Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
232/21.8T9PFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RP20230222232/21.8T9PFR.P1
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Proferido e transitado o despacho a que alude o artigo 311.º-A do Código Penal, forma-se sobre ele caso julgado formal
II – Por isso, depois de recebida a acusação, não pode o Juiz, antes da audiência de julgamento, proferir novo despacho a rejeitar a mesma acusação nos termos do artigo 311.º, n.º 3, a), do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 232/21.8T9PFR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira, Comarca do Porto Este, com o nº 232/21.8T9PFR, foi proferido despacho em 28.04.2022 que recebeu a acusação deduzida pelo Mº Público contra AA "pelos factos dela constantes ... consubstanciadores da prática, em autoria material de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º nº 1 do Código Penal."
Entretanto, em 29.09.2022, a nova Srª. Juíza titular (eventualmente, na decorrência da nomeação no Movimento Judicial Ordinário) proferiu novo despacho, rejeitando a acusação do Ministério Público, por manifestamente infundada e dando sem efeito a data designada para a audiência de julgamento.
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. No dia 23/02/2022, o Ministério Público deduziu despacho de acusação contra o arguido AA, visto considerar terem sido recolhidos indícios suficientes da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º/1 do Código Penal.
2. No dia 28/04/2022, na sequência do despacho de acusação deduzido pelo Ministério Público e após os autos terem sido remetidos à distribuição, a Meritíssima Juíza então titular do processo proferiu despacho, nos termos e para os efeitos do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
3. Nesse despacho, a Meritíssima Juíza declarou que não se verificava qualquer
uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, nem se vislumbrava a existência de qualquer causa de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, bem como que recebia a acusação pública deduzida Ministério Público contra AA, designadamente pelos factos dela constantes, os quais se deram por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais, factos aqueles consubstanciadores da prática, em autoria material de um crime de burla simples, previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal.
4. Tal como determinou a notificação do arguido para contestar, nos termos do
artigo 311º.-B do Código Processo Penal, remetendo cópia da acusação (art. 311.º-A, n.º 2 do Código Processo Penal).
5. Tal despacho foi regularmente notificado aos intervenientes processuais e transitou em julgado.
6. O arguido apresentou a sua contestação e, em 30/05/2022, a Meritíssima Juíza então titular do processo admitiu a junção da contestação e designou data para a audiência de discussão e julgado.
7. Numa autêntica “decisão surpresa”, a Meritíssima Juíza que entretanto passou a ser titular do processo decidiu, por despacho proferido em 29/09/2022, voltar a proferir um novo despacho sobre uma matéria que já tinha sido apreciada por decisão
judicial transitada em julgado, decidindo rejeitar uma acusação que já tinha sido previamente recebida, por agora a considerar manifestamente improcedente, dando sem
efeito a data já designada para a audiência e desconvocando todos os intervenientes.
8. Salvo o devido respeito, tal despacho carece de qualquer fundamento legal, conforme os nossos Tribunais superiores têm vindo a decidir em diversos Acórdãos.
9. Tal como os Tribunais superiores têm vindo a salientar, tendo sido proferido despacho judicial a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode posteriormente o juiz voltar a proferir um novo despacho, passando a rejeitá-la (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/02/2022).
10. “Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311.º do CPP), fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo ato processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos” (cfr. Tribunal da Relação de Évora, no seu Acórdão de 10/12/2009 (processo n.º 17/07.4GBORQ.E1).
11. No caso concreto, tendo já transitado em julgado o despacho judicial que, nos termos e para os efeitos do artigo 311.º/2 e 3 do Código de Processo Penal, recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público, a Meritíssima Juíza já não podia ter voltado a proferir novo despacho sobre a mesma matéria.
12. Em face do que, desde logo por esta relevante questão prévia, o despacho recorrido deverá ser revogado e, em sua substituição, ser proferido outro despacho que designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.
13. Sem prescindir do acima sustentado e caso o entendimento acima perfilhado não seja acolhido, é nosso entendimento que do despacho de acusação consta a descrição de uma conduta astuciosa, importando não olvidar que os Tribunais superiores se têm vindo a pronunciar exaustivamente sobre os requisitos desta conduta astuciosa (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14/12/2017 e 13/01/2016, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/01/2020, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/05/2014 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/03/2003, todos melhor identificados na motivação do recurso).
14. No caso concreto, resulta dos factos descritos no despacho de acusação que o arguido contactou pessoalmente com BB e propôs-lhe efetuar um negócio, designadamente vender-lhe pedras aparelhadas resultantes da demolição de dois anexos e um muro que existiam num prédio que o arguido declarou pertencer-lhe.
15. Que o arguido se deslocou com o BB ao referido prédio.
16. Que o arguido acordou com BB qual seria o preço da venda.
17. Que o arguido sabia que o prédio e, consequentemente, as pedras, eram propriedade da ofendida Associação ... e que, assim, não lhe pertenciam.
18. Não era exigível ao ofendido BB que, de acordo com a postura de um bonus pater familiae, tivesse encetado outras diligências com a finalidade de comprovar que o arguido era o proprietário das referidas pedras emparelhadas e as pretendia efetivamente vender.
19. A postura do ofendido é compatível com o normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa fé que devem nortear as relações comerciais.
20. Na verdade, estamos perante a aludida mentira encenada: o arguido contactou pessoalmente com BB e, “olhos nos olhos”, declarou perante o ofendido que era proprietário do aludido prédio e estava interessado em vender-lhe as referidas pedras; com vista a reforçar a confiança do ofendido na seriedade do negócio, inclusivamente deslocou-se ao local juntamente com o ofendido, onde acordou a valor do preço (cfr. artigo 3.º do despacho de acusação).
21. O arguido praticou diversos actos que são próprios de um verdadeiro proprietário e, ademais, contactou pessoalmente com o ofendido, o que como é consabido incute confiança no comprador, visto que as regras da experiência comum indicam que, habitualmente, os “burlões” tentam esconder a sua identificação (por exemplo, praticando as transações através dos meios informáticos).
22. Salvo o devido respeito, perfilhar o entendimento do Tribunal a quo acarretaria que, por exemplo, as denominadas “fraudes através do MBWay”, que tanto alarme social têm gerado, com significativo prejuízo patrimonial para milhares de vítimas, também não consubstanciem a prática de crime, bastando notar que, em vários desses casos, o ofendido se limita a confiar naquilo que o arguido lhe diz, isto é, “basta-se com a palavra e a encenação do arguido”, acreditando na boa fé da outra parte.
23. Aliás, o caso concreto é muito semelhante à factualidade que foi objeto de apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 13/01/2016 (processo n.º 502/13.9GCETR.P1), onde se decidiu que comete o crime de burla “o agente que enganou a vítima fazendo-se passar por proprietário de um terreno que não era seu, vendendo-lhe as respectivas árvores, tendo-se a astúcia traduzido na coerência dos atos de proprietário e na sua sequência devidamente encenada: propor a venda, visitar o local, acordar o preço, receber o acordado e passar o recibo correspondente”
24. Portanto – e sem prejuízo de a decisão recorrida fazer referência a factos e desenvolver considerações que manifestamente não têm qualquer relação com este processo concreto -, não assiste razão ao Tribunal a quo quando, no despacho recorrido, sustentou que os factos descritos no despacho de acusação consubstanciam a prática de crime, pelo que também por este motivo o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que designe data para a realização de julgamento.
25. Do despacho de acusação constam todos os elementos subjetivos do tipo legal de crime, conforme se pode verificar através da leitura dos artigos 6.º a 9.º do despacho de acusação.
26. Não obstante e sem prescindir do que acima sustentámos quanto à descrição de uma conduta astuciosa, mesmo que se considere admissível o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, nunca se poderá olvidar que estamos perante um entendimento jurídico que não é consensual e que, no mínimo, é controverso.
27. E que há já vasta jurisprudência que, de uma forma maioritária, tem vindo a notar que “tratando-se de matéria controvertida e sendo admissível, juridicamente, a qualificação dos factos operada na acusação pública, não basta para a sua rejeição com o referenciado fundamento, uma opinião doutrinária ou jurisprudencial divergente, por muito válida que seja, na medida em que, a esse nível, estaremos sempre no domínio da mera discussão jurídica, legítima, mas insuficiente para, ao abrigo da al. d) do nº3 do Artº 311, rejeitar uma acusação por se considerar a mesma como manifestamente infundada” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/04/2016, sem prejuízo dos restantes Acórdãos identificados na motivação do recurso).
28. Portanto, a sede própria para a discussão relativa à dignidade penal da conduta descrita no despacho de acusação é a audiência de discussão e julgamento, ou melhor, o momento da prolação da sentença.
29. Ao proferir a decisão recorrida ainda antes da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo olvidou a corrente jurisprudencial acima citada que é, aliás,
maioritária, quanto ao facto de a decisão recorrida colidir com a estrutura acusatória do processo penal.
30. Pelo exposto, é nosso entendimento que o recurso deve ser procedente e o despacho judicial recorrido integralmente revogado, sendo substituído por outro que designe data para a audiência de discussão e julgamento.
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Na 1ª instância não foi apresentada resposta às motivações de recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A decisão sob recurso, proferida em 29.09.2022, é do seguinte teor: [transcrição]
«Veio o Ministério Público deduzir acusação contra o arguido AA, a quem imputou factos capazes de consubstanciarem a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217.º, n.º 1, do Código Penal.
Alegou, em síntese e com interesse, que o arguido AA contactou BB oferecendo-lhe a venda de pedras aparelhadas, resultantes da demolição de dois anexos e parte de um muro, existentes num prédio urbano situado na Rua ..., na cidade de Paços de Ferreira.
Para o efeito, o arguido disse-lhe que esse prédio era seu, pelo que podia dispor do mesmo.
O ofendido carregou várias pedras aparelhadas num camião, as quais tinham um peso total de cerca de 5 toneladas, levando-as consigo.
Sucede que, o aludido prédio e as referidas pedras eram propriedade da ofendida Associação ... e não do arguido, o que este bem sabia.
O arguido mandou abusivamente efetuar o transporte das aludidas pedras pertencentes à ofendida, de valor não concretamente apurado, vendendo-as, sem o conhecimento, consentimento ou autorização desta.
Cumpre apreciar.
Ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º2, alínea a) do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.
Por sua vez, o nº3 da mesma disposição legal enumera as situações em que a acusação é manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituem crime.
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Do crime de Burla
Dispõe o art. 217.º do Código Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
De acordo com a descrição típica, na burla podem surpreender-se quatro momentos objetivos, ligados numa rede de causa e efeito:
a) a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve;
b) o erro ou engano;
c) os atos (de disposição patrimonial ou de administração) realizados pelo enganado; e
d) o consequente prejuízo patrimonial deste ou de uma terceira pessoa. Sendo o erro e o engano elementos do tipo, têm que estar em relação, dum lado, com os meios empregues pelo burlão, do outro, com os atos que vão diretamente defraudar o património do lesado. A conduta astuciosa do burlão motiva o erro ou engano; em consequência do erro ou engano, a vítima passa ao ato de que resulta o prejuízo patrimonial.
A burla é crime de relação, envolve dois comportamentos, o do burlão e o da vítima, mas só se pune o primeiro. A figura da vítima é certamente imprescindível no iter criminis da burla mas nunca se assume como punível.
Como primeiro elemento surge a astúcia do agente, exteriorizada numa conduta que a norma não descreve.
A atuação do burlão não se fica por uma simples alteração da verdade, deve antes projetar-se, de forma injustificada, numa falsa representação da realidade por parte da vítima, enganando-a ou induzindo-a em erro (sobre factos). Por conseguinte, esta conduta astuciosa (das motivierenden Verhalten) terá que ser de molde a motivar o erro ou o engano, de tal forma que, por um lado, se registe entre os dois segmentos típicos uma relação de causalidade; por outro, que tal conduta fraudulenta seja antecedente ou causal desse erro ou engano (e deste modo da disposição patrimonial que causa um prejuízo) e não meramente acidental.
Como consequência do erro, a vítima deverá realizar o outro requisito da burla: um ato de disposição. Os atos de disposição são o elemento do tipo que em pertinente relação causal estão em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de quem os pratica; do outro, com a consequência exterior — patrimonial — da burla, que é o prejuízo do enganado ou de terceiro. Esse nexo causal “deve essere concretamente accertato”, avisa Delpino.
O desenho da burla, que é crime de relação, envolve dois comportamentos, mas só se pune o do burlão.
A burla completa-se, quanto aos seus elementos objetivos, com o prejuízo — prejuízo patrimonial. O prejuízo patrimonial, que é elemento de outros tipos de crime, suscita um elevado número de questões, a maioria delas conexionadas com a noção de património. A disposição patrimonial deverá conduzir à diminuição do património do enganado ou de terceiro, deverá ser razão de um dano patrimonial. O conceito de património tem aqui a sua principal área de intervenção. A doutrina maioritária considera o património como o bem jurídico protegido no crime de burla e define-o de acordo com as suas características mistas. A noção mista de património é afeiçoada por A. M. Almeida Costa, Conimbricense, p. 282, com “corretores” tendentes a compaginá-la com a teleologia do direito penal”, adotando-se um procedimento que conduz “a um específico conceito jurídico-criminal de património”.
A burla, delito de execução vinculada, pressupõe um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de outra pessoa.
Trata-se de um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação).
Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de crime exclusivamente doloso, bastando o dolo eventual, que deve cobrir todos os elementos objetivos do tipo. Porém, o burlão age com a intenção de conseguir uma vantagem patrimonial ilegítima para si (eigennütziger Betrug) ou para terceiro (fremdnütziger Betrug). Nesta parte, o dolo (dolo "específico", como por vezes é designado) do agente do crime consiste na intenção de obtenção de um enriquecimento, a que o burlão ou o terceiro não têm direito, tendo o agente do crime consciência do prejuízo. A intenção de obter um enriquecimento ilegítimo é um dos conceitos de disposição (Dispositionsbegriffe) de que fala Hassemer. Essa intenção não tem que ser realizada, embora o seja a maior parte das vezes. É uma tendência interior transcendente (überschießende Innentendenz), que permite qualificar a burla como crime de resultado cortado, não havendo correspondência (“congruência”) entre o lado objetivo e o subjetivo do ilícito.
A consumação do crime de burla requer a produção do prejuízo, ainda que paralelamente se não verifique a obtenção do lucro pela outra parte. Exigindo-se um efetivo prejuízo patrimonial, pode simultaneamente concluir-se que o bem jurídico tutelado é o património como um todo. A burla é crime comum, de dano contra o património, crime material, na medida em que a realização típica comporta o evento.
Ora, no presente caso, está em causa saber se a conduta do arguido se reveste de dignidade penal que justifique a sujeição a julgamento.
Senão vejamos:
Há vários níveis de proteção dos bens jurídicos, o nível mais elevado é aquele que pressupõe igualmente uma mais grave violação de tais bens jurídicos e é precisamente aí que surge o direito penal, pois que a sua intervenção implica que mais nenhum meio no ordenamento jurídico assegure eficazmente essa função de salvaguarda do valor violado.
Conforme já se disse, o tipo objetivo da burla exige um comportamento astucioso que induz alguém em erro (entendido como um estado psicológico de falsa representação da realidade, consequência do engano e causa do ato de disposição patrimonial) ou leva ao engano (ação e efeito de fazer crer a alguém, com palavras ou de qualquer modo, algo que não é verdade), que por sua vez é
Por outro lado, exige-se um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património e, entre estes últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial.
Revertendo ao caso em apreço e, desde logo, admitindo o bem fundado da factualidade constante da acusação, em lado nenhum da acusação consta que tenha havido erro ou engano, astuciosamente provocado pela conduta do arguido, o que de modo nenhum se pode retirar do facto de ter vendido objetos que não lhe pertenciam.
Na verdade, não se alega nem demonstra a existência de quaisquer vícios da vontade na relação contratual havida; aliás, dentro do amplo princípio da liberdade contratual que vigora em direito civil e de que faz eco o art. 405º do Código Civil, pelo que, desde logo por aqui naufraga a sua alegação de que se sente enganado com as declarações de vontade que assim corporizou, já que o mesmo poderia por exemplo pretender adquiri-las ao seu legítimo dono.
Simplesmente, em 01 de Agosto 2018, o ofendido tentou contatar o número móvel ..., não tendo as suas chamadas sido atendidas ou devolvidas.
Remeteu então um email a solicitar esclarecimento, obtendo como resposta que a moradia já não podia ser arrendada e que iria proceder à devolução do valor pago, o que até à data não aconteceu.
Ora, não se descortina que engano causou o arguido, sendo certo que é a própria que assume o incumprimento e informa o ofendido que irá devolver-lhe o valor pago por este, não obstante ter sido o mesmo a enviar-lhe um email.
Assim, no libelo acusatório não obstante nesse sentido se concluir, não se encontram plasmados factos dos quais se possa concluir que o arguido, tenha astuciosamente induzido o ofendido em erro, de molde a com isso conseguir causar-lhe prejuízo patrimonial.
Sendo o erro e o engano elementos do tipo, têm que estar em relação, dum lado, com os meios empregues pelo burlão, do outro, com os atos que vão diretamente defraudar o património do lesado.
Da acusação também não consta, pois, descrito qualquer artifício, engendrado pela arguida, determinante à formação errónea da vontade do ofendido, e que o levasse a contratar. Pelo contrário, o que se constata e consta da acusação, é que a própria assumiu o incumprimento, se comprometeu devolver-lhe o valor entregue, havendo uma mera falta ou atraso na devolução do montante já prestado.
Mais uma vez, da acusação não constam factos dos quais se retire que tenha havido uma conduta astuciosa pelo burlão, conduta esta que motiva o erro ou engano; nem que em consequência do erro ou engano, a vítima passa ao ato de que resulta o prejuízo patrimonial.
Assim, temos apenas que o arguido cumpriu defeituosamente/incumpriu a sua obrigação vendendo coisa alheia.
Desde logo diremos, o que é pacífico, não é pelo facto de o ofendido se sentir enganado que isso merece tutela criminal mas, antes, apenas a factualidade recortada no tipo legal (tipicidade e legalidade).
Ora, em rigor, do que se trata nos autos é de um mero incumprimento contratual, cfr. arts. 790º e ss. do Código Civil, sendo irrelevante em sede criminal que o ofendido se sinta enganado pelo anúncio do bem em causa, pois que isso apenas releva em sede de incumprimento contratual (desconformidade entre o anunciado e o prestado, ou até incumprimento definitivo, sendo certo que o ofendido tem os meios civis à disposição).
De facto, no frenético comércio jurídico atual e na chamada "aldeia global" que os modernos meios de comunicação potenciam e aproximam, onde cada vez mais desconhecemos o rosto dos nossos co-contraentes, existem múltiplas atividades no comércio jurídico que podem veicular uma visão distorcida da realidade, sem que, por isso, devam ser consideradas de facto enganosas, competindo, em primeira linha, às pessoas singulares ou colectivas, antes de contratarem e de disporem/entregarem quaisquer quantias monetárias, informarem-se prévia e devidamente sobre a identidade dos seus co-contraentes e do alcance e segurança do negócio jurídico que projetam, assim adotando ex ante e não depois todas as cautelas necessárias à defesa dos seus interesses, para não terem que remediar depois…!
Ou seja, apenas naqueles casos em que existe um especial engenho ou uma especial astúcia suscetível de iludir o cuidado que no sector em causa, normalmente se espera de cada um, materializado em factos concretos, é que se está perante uma situação merecedora de tutela jurídico-criminal, o que não sucedeu no caso em apreço.
Tais acontecimentos são, portanto, consequência dos novos riscos que, com tendência globalizante, irrompem na frenética sociedade de consumo dos nossos dias, de que o comércio electrónico é paradigma, pela rapidez que potencia mas que, inevitavelmente, acarreta novos e acrescidos riscos para quem contrata.
Ou seja, estamos, quiçá, perante técnicas agressivas de publicidade de massas, de venda de bens e serviços (vejam-se os anúncios publicitários, vg. na TV e na "net", etc. muitos deles risíveis, destinados aos consumidores em geral, onde se tenta passar a mensagem idílica (e ás vezes falsa) de que, a pretexto de um insignificante desconto ou promoção quanto mais se comprar... mais se ganha, o que é um contra-senso, pois quanto mais se compra mais se gasta…!) e dos métodos promocionais de venda que induzem frequentemente os consumidores na celebração de contratos precipitados em grande escala, causando-lhes, a final, danos pessoais e patrimoniais mais ou menos avultados.
Ora, o direito penal só pode/deve intervir quando se torna necessária (princípio da necessidade de intervenção em conjugação com o princípio da intervenção penal mínima) a proteção de bens jurídicos, bens esses socialmente relevantes e dignos de tutela penal.
O princípio da subsidiariedade ou da intervenção mínima do direito penal impõe que este direito só atue quando as medidas de política social não forem suficiente ou a questão não puder ser resolvida com intervenção de outro ramo de direito, sob pena da sua banalização, ao arrepio da intenção legislativa.
Ora, no caso em apreço os factos denunciados não consubstanciam qualquer conduta criminalmente punível, antes se enquadram no âmbito do direito civil dos contratos, pelo que não merecem tutela criminal.
De resto, ao negociar nos termos indicado, assumiu o ofendido um risco acrescido, ademais pagando parte do preço antecipadamente – método, aliás, muito vulgarizado nas vendas pela “net”, onde o consumidor fica numa posição contratual ainda mais fragilizada – pelo que, competia-lhe, antes de mais - como se exigiria ao cidadão comum, medianamente atento e avisado, sobretudo nos nossos dias – rodear-se de todas as cautelas tendentes à segurança do negócio jurídico efetuado e sobre as obrigações emergentes do contrato celebrado, em suma, da sua fiabilidade e, na mais pequena dúvida, aconselha a mais elementar prudência a não contratar, pura e simplesmente!
Em suma, resta-lhe agora invocar em sede cível o incumprimento contratual e dele obter o preço que pagou, o que é estranho à tutela criminal, como temos vindo a explicar.
Em raciocínio semelhante, explicitando e acompanhando a tese acabada de referir, os Acórdãos do STJ de 03/02/2005 e 04/10/2007.
No primeiro sumariou-se, na parte que releva, o seguinte: “4 - A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o ato dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.
5 - Há fraude penal:
- quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico: - quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indireto;
- quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
- quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;
- quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;
- quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.
6 - Nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal; mas pode também a fraude penal pode manifestar-se numa simples operação civil, quando esta não passa de engodo fraudulento usado para envolver e espoliar a vítima, com desprezo pelo princípio da boa fé, traduzindo-se num desvalor da ação que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena. 7 - Há mera reserva mental só relevante no plano civil, quando o arguido queria efetivamente comprar determinadas mercadorias e só entrega como garantia um cheque correspondente a parte do preço, de que anteriormente havia comunicado o extravio, o que não foi determinante da entrega dos bens por parte do vendedor.”
Desta forma, sendo a questão ora em apreço excede a tutela penal, que não pode degradar-se/banalizar-se com questões deste jaez, sendo por isso incompetente para a sua apreciação.
Noutros termos, o princípio da mínima intervenção do direito penal impõe que o mesmo só deve atuar quando não chegarem medidas de política social ou a questão não puder ser resolvida com intervenção de outro ramo de direito.
“O recurso ao direito penal é supérfluo quando a tutela do bem jurídico for eficaz mediante sanções de natureza não penal; em paridade de eficácia dos instrumentos de tutela, o legislador deve optar por aqueles que limitem menos os direitos das pessoas.” GERMANO MARQUES DA SILVA, “Direito Penal Português”, I, Lisboa, 2001, P.88.
Ora, o caso em apreço é paradigma disso mesmo, sendo a tutela criminal invocada pelo denunciante de modo precipitado, com o devido respeito.
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Uma última e breve nota para sublinhar a natureza do crime de burla, quanto ao tipo subjetivo. Trata-se de crime exclusivamente doloso, bastando o dolo eventual, que deve cobrir todos os elementos objetivos do tipo. Porém, o burlão age com a intenção de conseguir uma vantagem patrimonial ilegítima para si (eigennütziger Betrug) ou para terceiro (fremdnütziger Betrug).
Nesta parte, o dolo (dolo "específico", como por vezes é designado) do agente do crime consiste na intenção de obtenção de um enriquecimento, a que o burlão ou o terceiro não têm direito, tendo o agente do crime consciência do prejuízo. A intenção de obter um enriquecimento ilegítimo é um dos conceitos de disposição (Dispositionsbegriffe) de que fala Hassemer. Essa intenção não tem que ser realizada, embora o seja a maior parte das vezes. É uma tendência interior transcendente (überschießende Innentendenz), que permite qualificar a burla como crime de resultado cortado, não havendo correspondência (“congruência”) entre o lado objetivo e o subjetivo do ilícito.
Ora, no caso concreto, constata-se que também ao nível do tipo subjetivo, a acusação é insuficiente porque omite claramente esta parte do tipo, ou seja a intenção de obtenção de um enriquecimento ilegítimo.
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Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º1, alínea a) e n.º3, alínea d), considero a acusação pública manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
Sem custas (artigo 522.º do Código de Processo Penal).
Em consequência dou sem efeito as datas designadas para a realização de audiência de julgamento.
Notifique e desconvoque pelo meio mais expedito.
Dê a competente baixa.»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões:
- se depois de ter sido proferido despacho que, ao abrigo do disposto nos artºs. 311º e ss. do C.P.Penal, recebeu a acusação deduzida pelo Mº Público, pode o Juiz, antes da audiência de julgamento, proferir novo despacho a rejeitar a mesma acusação ao abrigo do disposto no artº 311º nº 3 al. d) do C.P.Penal, por entender que os factos constantes da acusação não constituem crime.
- se a acusação deduzida não contém factos que traduzam uma conduta astuciosa típica do crime de burla, bem como o elemento do tipo subjetivo que se traduz na intenção de obtenção de um enriquecimento ilegítimo.
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Da rejeição da acusação:
A primeira questão que importa apreciar consiste em saber se, proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, pode, depois, o mesmo ou outro juiz proferir outro despacho a rejeitá-la.
De realçar ainda que a resposta negativa a esta questão prejudicará a apreciação da segunda, porque inútil, na medida em que, se concluirmos que não pode ser proferido um despacho daquele teor, não fará qualquer sentido analisarmos se os factos constantes da acusação integram ou não o ilícito imputado na acusação.
Sob a epígrafe "saneamento do processo" dispõe o artº 311º do C.P.Penal que:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
Caso entenda que inexiste fundamento para rejeitar a acusação, o juiz proferirá o despacho a que alude o artº 311º-A, que contém, além do mais, "a indicação dos factos e disposições legais aplicáveis, o que pode ser feito por remissão para a acusação ou para a pronúncia, se a houver".
Ou seja, o despacho que recebe a acusação contém um juízo implícito sobre a viabilidade da acusação (análise sobre a sua manifesta improcedência) e se os factos nela descritos integram um crime, com vista a submeter a julgamento o arguido. Ao receber a acusação, o juiz profere assim um juízo de mérito sobre a relação jurídico-processual, tornando estável o objeto do processo definido pela acusação, sabido que, de acordo com o princípio da vinculação temática, é ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal.
Assim, proferido e transitado o despacho a que alude o artº 311º-A do C.P.Penal - o qual não está abrangido pela irrecorribilidade prevista no nº 5 do preceito[2] - forma-se sobre ele caso julgado formal.
Acresce que um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão. Este princípio significa, entre o mais, que uma vez praticado determinado ato, ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão). Este princípio tem um campo de aplicação muito amplo, quer em processo civil quer em processo penal e aplica-se, nomeadamente, a todos os atos petitórios e contestatórios das partes (por exemplo, apresentação de queixa, dedução de acusação particular, dedução de instrução, pedido de indemnização civil, contestação crime e contestação cível). Mas aplica-se também aos atos dos Magistrados. Tal resulta, diretamente, do disposto no artº 613º/CPC, aplicável em processo penal, por força do qual proferida sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado, intra e extra processual). Tal norma é aplicável aos simples despachos decisórios intercalares – o que fundamenta a figura do caso julgado formal e material (artºs 619º a 621º, do CPC, aplicável ao CPP, ex vi artº 4º). Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correção de lapsos materiais (artº 614º/CPC) e, no âmbito CPP, daqueles a que se refere o artº 380º/CPP.
Assim, uma vez proferido o despacho a que alude o artº 311º-A do C.P.P., está precludida a possibilidade de o juiz renovar a prática do ato. O ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado[3]. Outra solução não consentem as regras processuais já supra identificadas, que dessa forma também dão corpo a princípios fundamentais de um processo penal próprio de um Estado de Direito Democrático, como sejam os princípios do processo justo e da lealdade processual.
Princípios que se refletem na proteção da confiança recíproca na atuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais, sob pena, de preterição da certeza, da segurança, da estabilidade e da confiança inerentes ao exercício do poder jurisdicional, constitucionalmente reconhecidas.
Importa ainda referir que o termo "processo" tem múltiplos significados, mas o que ora nos interessa é o que respeita a "uma sequência de atos juridicamente preordenados praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respetivas consequência jurídicas e sua justa aplicação"[4]. A sucessão dos atos processuais está lógica e cronologicamente ordenada, legalmente regulamentada e organizada em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, sob pena de deixar de ter a natureza de processo judicial, potenciando-se o caos.
A fase processual dos atos preliminares, em que se insere o saneamento (artº 311º do C.P.P.), destina-se a preparar a fase subsequente do julgamento.
Ao sanear o processo, nos casos em que não tenha havido instrução, o juiz que profere o despacho previsto nos artºs. 311º e 311º-A, antes de designar dia para a audiência, decide as nulidades e demais questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer, debruçando-se depois sobre o fundamento da acusação e verificando se a acusação do assistente ou do Ministério Público representa ou não uma alteração substancial da acusação dominante.
Em obediência aos referidos princípios da preclusão, da confiança e da estabilidade da instância, na fase subsequente do julgamento (propriamente dito), o juiz já não poderá voltar a pronunciar-se sobre as questões já decididas na fase anterior.
Com efeito, dispõe o artº 338º nº 1 do CPP que no início do julgamento o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; e dispõe o artº 368º, nº 1, no momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode começar por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do tribunal de julgamento em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa estão limitados apenas quando a lei o determine expressamente.
Ou seja, os vícios que o juiz de julgamento é chamado a controlar são aqueles que impedem o prosseguimento dos autos (“nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa de que possa desde logo conhecer”). Trata-se, assim, de uma apreciação que se projeta no futuro dos autos, não no seu passado.
Por outro lado, o juiz de julgamento só pode conhecer de questões sobre as quais ainda não se tiver pronunciado o juiz de instrução, ou sobre as quais não tenha recaído decisão na fase de saneamento, só assim se respeitando o princípio constitucional de que os tribunais são independentes entre si, salvo as relações de hierarquia ou supraordenação dentro de cada categoria de tribunais (artigos 210.º, 212.º e 221.º da CRP). Com efeito, seria inaceitável, à luz da intraordenação constitucional dos tribunais e da sua competência, que se atribuísse a um tribunal com o mesmo grau hierárquico a competência para rever ou reapreciar (mantendo ou alterando) a decisão proferida por outro tribunal da mesma instância que negou a arguição de uma nulidade, questão prévia ou incidental[5].
Afastada a revisibilidade pelo juiz de julgamento das decisões anteriormente proferidas por outro juiz da mesma instância, relativamente a nulidades, questões prévias e incidentais, por maioria de razão se deverá aplicar o mesmo raciocínio à avaliação judicial da relevância criminal dos factos imputados ao arguido na acusação.
Como decidiu o Tribunal Constitucional no seu Ac. nº 520/2011 de 31.10.2011, «(…) o que se proíbe é que o juiz de julgamento, nessa fase, possa sequer efetuar uma tal avaliação, devendo apenas decidir pela condenação ou absolvição do Réu, após realizada a produção de prova e alegações, e fixados os factos que se provaram na audiência de julgamento.
Esta limitação dos poderes do juiz de julgamento tem como fundamento um reconhecimento da autoridade do caso julgado formal. Tendo já sido decidido pelo juiz de instrução criminal, por decisão transitada em julgado proferida nesse processo, que o arguido deve ser submetido a julgamento pelos factos constantes do despacho de pronúncia, entende-se que o juiz do julgamento não pode reponderar a relevância criminal dos factos imputados ao arguido, com a finalidade de emitir um segundo juízo sobre a necessidade de realização da audiência de julgamento.
A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo».
Concluiu aquele acórdão em «Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos».
Note-se que apesar de ali estar em causa uma decisão anterior do juiz de instrução, o entendimento plasmado no citado aresto é extensível à situação em apreço em que o despacho que recebe a acusação ao abrigo do disposto no artº 311º-A do C.P.Penal, foi proferido por um juiz diferente do que proferiu o despacho recorrido. Com efeito, como refere Germano Marques da Silva[6] "o despacho proferido ao abrigo do artº 311º tem função similar à decisão instrutória, de apreciação da legalidade da acusação e subsistência dos pressupostos para que o arguido possa ser submetido a julgamento pelos factos da acusação".
Também os Tribunais da Relação têm repetidamente afirmado que "ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311º do CPP), fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infração cometida e os efeitos produzidos pelo ato processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a ação penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do art. 311º (incluindo a al. d)), apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável". (...) "a partir do momento em que foi recebida a acusação pelo despacho a que se refere o art. 311º do CPP, não pode o mesmo juiz ou juiz diferente (como parece ter sucedido no caso presente) decidir rejeitar a acusação em momento processual posterior, designadamente no início da audiência de julgamento"[7].
No mesmo sentido se pronunciaram o Ac. R. Porto de 10.05.2000, CJ XXV, Tomo 3, pág. 243; Ac. R. Porto de 06.07.2005, Proc. nº 0541884, Des. Francisco Brízida Martins; Ac. Rel. Évora de 26.02.2008, Proc. nº 2736/07.1, Des. Fernando R. Cardoso, Dec. Sumária proferida no Proc. nº 1503/03.0TACBR.E1, Des. Carlos Berguete Coelho e Ac. R. Guimarães de 21.02.2022, Proc. nº 3/21.1GTBRG.G1, Des. Mário Silva.
Como se refere no citado Ac.R.P.de 06.07.2005, "relembram as decisões citadas que esta era forma de dar o dito por não dito, contrariar a estabilidade de uma decisão jurisdicional, o que se mostra intolerável, sob pena de se criar a desordem, incerteza, confusão. Apenas o tribunal superior pode, por via de recurso, alterar ou revogar uma decisão que não seja de simples expediente. Não se mostra viável, ao invés, que o próprio juiz autor de uma decisão ou outro posteriormente, antes de efetuado o julgamento, e sem a emergência das apontadas circunstâncias supervenientes, venha proferir decisão totalmente oposta".
No caso em apreço, a decisão recorrida, proferida quando se mostrava já esgotado o poder jurisdicional quanto à questão apreciada, é manifestamente ilegal por contrariar o caso julgado formal decorrente do despacho que recebeu a acusação, proferido em 28.04.2022, que já se mostrava perfeitamente consolidada (artºs 620º nº 1. 625º nº 1 e 628º do C.P.Civil, ex vi artº 4º do C.P.Penal), não podendo aquela subsistir, por se impor a decisão que primeiro transitou em julgado.
Com efeito, o trânsito em julgado do despacho que recebeu a acusação sobrepõe-se a qualquer outro que mais tarde venha a pronunciar-se sobre a mesma questão, tendo em conta o disposto no art. 625º nºs 1 e 2 do CPC, segundo o qual “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, regime (este) aplicável a questões que “versem sobre a mesma questão concreta da relação processual”.
Pelo exposto, declara-se ineficaz[8] o despacho recorrido, devendo ser proferido outro que designe data para audiência de julgamento, prosseguindo os ulteriores termos do processo.
Fica assim prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declaram a ineficácia jurídica da decisão recorrida, devendo ser proferido despacho que designe dia para audiência de julgamento, prosseguindo os ulteriores termos do processo.
Sem tributação.
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Porto, 22 de fevereiro de 2023
(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
Lígia Figueiredo
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Como refere o Cons. António Gama in "Comentário Judiciário do Código de Processo Penal", Tomo IV, pág. 63 "A irrecorribilidade reporta-se apenas à parte do despacho que ordena a notificação do arguido para contestar (nº 1). A redação final da norma abandonou a formulação constante da Proposta de Lei 90/XIV, que propunha no seu nº 5 um genérico «Deste despacho não há recurso», o que englobava todo o despacho. Não fazia sentido a norma exigir que o despacho devia cumprir, sob pena de nulidade, as exigência de conteúdo descritas no nº 2/a/b/c/d, e depois consagrar a irrecorribilidade. Assim, arguida a nulidade (nº 2) o despacho que sobre ela recair é recorrível nos termos gerais."
[3] Cfr., neste sentido, Ac. R. Guimarães de 22.10.2018, proferido no Proc. nº 1958/15.0T9BRG.G1, Des. Clarisse Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 8.
[5] Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Ac. nº 482/2014, de 25.06.2014, pese embora ali estivesse em causa a competência do juiz de instrução vs. juiz de julgamento, mas cujo raciocínio entendemos poder transpor para a situação em apreço, em que o juiz que recebe a acusação é diferente do juiz que preside ao julgamento.
[6] In Curso de Processo Penal, 3ª ed., Tomo III, pág. 202.
[7] Cfr. Ac. R.Évora de 10.12.2009, proferido no Proc. nº 17/07.4GBORQ.E1, Des. António João Latas, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes e outros, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª. ed., 2020, pág. 774.