Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1308/19.7T8VFR.P1.
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
ACIDENTE DE TRABALHO
CONCEITO
AGRESSÃO ENTRE TRABALHADORAS
REPARAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP202204041308/19.7T8VFR.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; SENTENÇA ALTERADA OFICIOSAMENTE.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I. A impugnação da decisão da matéria de facto com base em prova testemunhal deve ser feita com base nos depoimentos prestados e não com base naquilo que o juiz entendeu ser de consignar, designadamente por palavras suas, na fundamentação da decisão da matéria de facto, considerações estas que correspondem à percepção ou àquilo que o juiz entendeu ser de retirar da prova, não constituindo porém a prova em si e não dispensando a sua indicação nos termos do citado art. 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a).
II. O conceito de acidente de trabalho assenta na teoria do risco de autoridade, decorrendo a responsabilidade objectiva do empregador da possibilidade do exercício da autoridade por parte deste sobre os seus trabalhadores e dispensando o nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com alguma relação entre o trabalho e o acidente.
III. A agressão mútua entre duas colegas de trabalho no local e tempo de trabalho por causa da execução do serviço de que resultaram lesões para uma deles, constitui acidente de trabalho.
IV. O referido em III teve o seu início numa discussão agressiva em voz alta, e pese embora tenha sido a A. quem primeiro deu um estalo na cara da sua colega, tal não exclui, nos termos do artº 14º, nº 1, al. a), 1ª parte da LAT/2009 [acidente “dolosamente praticado pelo sinistrado”], o direito à reparação, sendo que a factualidade provada não permite a conclusão da inevitabilidade ou grande probabilidade da reacção por parte da colega, pois que nem todas as pessoas, mediante um estalo, respondem com outra agressão, não permitindo a sua imputação à A., ao menos, a título de dolo eventual.
V. E também não permite a exclusão do direito à reparação com base na alínea b) do nº 1 do citado preceito, uma vez que o acidente não proveio exclusivamente do comportamento da A.
VI. A reparação devida por acidente de trabalho não é graduável em função da concausalidade, e correspondente percentagem de culpa, do comportamento do sinistrado na ocorrência do acidente, não sendo aplicável o art. 570º do Cód. Civil: ou a culpa do sinistrado determina, nos termos do art. 14º, nº 1, da LAT a exclusão do direito à reparação ou, não se verificando esta exclusão, a reparação é-lhe devida por inteiro.
V. O Ministério Público, nos processos emergentes de acidente de trabalho, caso não patrocine o sinistrado, tem legitimidade para intervir como parte acessória [arts. 9º do CPT, 5º, nº 4, al. b), do EMP] nos termos do art. 325º do CPC/2013, pelo que, embora não se encontrando a sinistrada patrocinada pelo MP, teria este legitimidade para recorrer da sentença, o que não ocorreu.
VI. Os direitos emergentes de acidente de trabalho têm natureza indisponível e irrenunciável (arts. 12º e 78º da Lei 98/2009, de 04.09), sendo de conhecimento oficioso a matéria relativa a tal reparação e a esta aplicável o art. 74º do CPT.
VII. Assim, e ainda que a questão referida em VI haja sido suscitada pelo Ministério Público apenas em sede do parecer a que se reporta o art. 87º, nº 3, do CPT, impõe-se a esta Relação conhecer oficiosamente de tal questão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1308/19.7T8VFR.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1260)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

AA, litigando com o benefício de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento de patrono, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra “S..., Ldª” e companhia de seguros “G..., SA” (antes denominada G1 ..., SA”), pedindo a condenação:
- da Ré entidade patronal a reconhecer o facto ilícito como acidente de trabalho;
- da Ré seguradora ao pagamento do capital de remição resultante da remição obrigatória da pensão anual de €264,60, devida desde o dia 24.04.2019; ao pagamento da quantia de €32,58, a título de diferença de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária atrás referidos; aos juros de mora sobre o capital de remição e sobre as quantias devidas a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária desde o dia 24.04.2019 e o valor de €30,00 de despesas de transporte.
Para tanto alegou, em síntese, que no dia 04.01.2019, quando trabalhava sob as ordens e direcção da sociedade “S..., Ldª”, a desempenhar as suas funções de empregada de limpeza, nas instalações do cliente “E..., SA”, sitas em ..., Espinho, no horário das 13h às 19h, por volta das 13h15, quando se encontrava a trabalhar foi chamada ao balneário feminino pelo responsável da sua entidade patronal, o Sr. BB. Nesse momento, encontrava-se noutro local outra colega de trabalho chamada CC, que sem que nada o fizesse prever e sem qualquer motivo, iniciou uma agressão violenta sobre a A., com murros e pontapés, puxões de cabelo e encontrões, tendo ficado com contusão do ombro e cotovelo direitos, joelhos, região cervical e face, agressões que foram presenciadas por alguns trabalhadores da E....
Na segunda-feira seguinte contactou telefonicamente a sua entidade patronal, que a informou que devia recorrer aos serviços da seguradora. Nesse mesmo dia, apresentou-se nos serviços clínicos da seguradora, onde foi recebida sem qualquer objecção, tendo dado início ao seu tratamento clínico até à sua alta e onde lhe foi liquidada a quantia de €1.216,05.
Em consequência do acidente descrito, a autora sofreu diversas lesões, melhor descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho do GML, que lhe determinaram um período de ITA e de ITP, tendo ficado afectada de uma IPP de 4,5%, desde a data da alta clínica fixada em 23.04.2019.
Mais alega que as RR. declinaram a sua responsabilidade por considerarem que o ocorrido não consubstancia acidente de trabalho.
A Ré seguradora contestou, alegando que a A. dirigiu-se aos serviços clínicos da Ré, declarando que tinha sido vítima de queda no local de trabalho; fazendo fé nessas declarações, a R. seguradora analisou as lesões e forneceu os adequados tratamentos até à data da alta, curada e sem desvalorização, que ocorreu em 23.04.2019.
Entretanto, havia pedido à titular do contrato de seguro, 1ª Ré, que lhe remetesse a participação do acidente; em resposta, a 1ª Ré comunicou-lhe que desconhecia em absoluto qualquer acidente sofrido pela A. ao seu serviço e que não se responsabilizava por qualquer acidente, considerando que a A. não tinha direito a beneficiar da sua apólice.
Conclui que nenhuma prova do acidente como de trabalho foi apurada, pelo que não podem ser dados como provados os factos alegados na petição. Além disso, não aceita o resultado do GML quanto à IPP atribuída.
Termina pedindo que a acção seja julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.
A 1ª Ré contestou, alegando desde logo que a A. só começou a trabalhar sob as ordens e instruções da Ré, em agosto de 2018.
Mais alega que não ocorreu um acidente de trabalho, já que o que de facto se passou no dia 4.01.2019, no local de trabalho, foi uma troca de agressões verbais e físicas entre A. e uma colega de nome CC. Nesse dia e no decurso de uma reunião promovida pelo supervisor da A., esta e a colega iniciaram uma discussão de forma agressiva em voz alta; o supervisor chamou a atenção, dando-lhes ordens para porem termo de imediato à discussão, ordem esta que não foi aceite, pois aumentaram o tom de voz e passaram a insultos verbais e na sequência dos insultos, A. e a colega passaram a vias de facto, agredindo-se fisicamente uma à outra, agressão a que só foi possível pôr termo com a intervenção de duas colaboradoras da empresa onde a A. estava a prestar o seu trabalho de limpeza.
Na sequência do comportamento da A., a 1ª Ré instaurou-lhe um processo disciplinar, que culminou com o seu despedimento com invocação de justa causa.
A 1ª Ré nunca comunicou à seguradora o ocorrido, porque entendeu que não tinha ocorrido um acidente de trabalho.
As lesões que a A. diz ter sofrido resultam exclusivamente do seu comportamento ao envolver-se em agressões físicas com a sua colega, não resultando do normal desempenho da sua actividade profissional, nem em execução de serviços ordenados pela Ré, não tendo a Ré que reparar quaisquer danos que tenham decorrido da situação de facto descrita.
Conclui que a acção deve ser julgada improcedente e, em consequência, a 1ª Ré absolvida do pedido.

Foi proferido despacho a fixar o valor da acção em €3.553,18, bem como despacho saneador, consignando-se a matéria de facto assente, identificando-se o objecto do litígio e enunciando-se os temas de prova, que não foi objecto de reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:
“1. Condeno as RR. “G..., SA” (antes denominada “G1 ..., SA”) e “S..., SA”, a reconhecerem que o acidente que vitimou a A. AA é um acidente de trabalho, do qual resultaram para a A. as lesões descritas nos factos provados.
2. Declaro que a A. se encontra afetada de uma Incapacidade Permanente Parcial de 4,5%, em consequência do acidente de trabalho descrito nos autos, com efeitos desde 24.04.2019.
3. Declaro que em consequência do acidente em causa, a A. esteve afetada de Incapacidade Temporária Absoluta no período compreendido entre o dia 05.01.2019 e 12.03.2019 e com Incapacidade Temporária Parcial de 25% entre 13.03.2019 e 23.04.2019.
4. Condeno a R. seguradora a pagar à A., o capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia no montante de € 132,30 (cento e trinta e dois euros e trinta cêntimos), - correspondente a 50% do valor da pensão que lhe seria devida de €264,60 -, desde 24.04.2019, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde aquela data até integral pagamento.
5. Condeno a R. seguradora a pagar à A. a quantia de €16,29 (dezasseis euros e vinte e nove cêntimos), - correspondente a 50% do valor que lhe era devido de €32,58 -, a título de diferenças na indemnização pelos períodos de Incapacidade fixados, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde 24.04.2019, até integral pagamento.
6. Condeno a R. seguradora a pagar à A. a quantia 15€ (quinze euros), correspondente a 50% do valor que lhe era devido de €30, resultante das despesas de transporte que a A. teve em deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e ao Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
7. Absolvo a Ré entidade patronal do demais peticionado.
8. Condeno a A. a devolver à Seguradora a quantia de €608,02 (seiscentos e oito euros e dois cêntimos), respeitante a indemnizações pelas incapacidades temporárias, pagas em excesso, por força da repartição de culpas fixada, a descontar no capital de remição.
*
Custas da ação pela Ré seguradora e pela A., na proporção do decaimento, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário concedido à A. (artigo 527º do CPC)”.

Inconformada, veio a Ré Seguradora recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
…………………
…………………
…………………

NESTES TERMOS, dando provimento ao recurso e, por conseguinte, alterando a Douta Sentença recorrida no sentido de julgar improcedente a presente acção, absolvendo a demandada dos pedidos, (…)”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, e em síntese:
i) Suscita oficiosamente a questão da impossibilidade da redução da reparação devida pelo acidente de trabalho em função da culpa da A. na produção do acidente (que a sentença fixou em 50%), requerendo o conhecimento desta questão pela Relação;
ii) Pugna pela rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto por incumprimento do disposto no art. 640º, nº 1, al. b), do CPC/2013;
iii) Considera não ser de descaracterizar o acidente como acidente de trabalho;
iv) Pugna pela impossibilidade da redução da reparação devida pelo acidente de trabalho em função da culpa da A. na produção do acidente, cabendo a reparação, por inteiro conforme referido na al. i), à Ré Seguradora, não sendo aplicável o art. 570º do Cód. Civil,
v) E, por consequência e em conclusão, emite parecer “no sentido de ser negado provimento ao recurso,
Mas também,
De revogar a douta sentença recorrida, nos segmentos em que reduziu a 50% o valor do capital de remição e diferenças de indemnização por incapacidades temporárias e despesas de transportes, e condenar a recorrente pelos valores totais, de 100%, bem como revogar a douta sentença na parte em que condenou a recorrida a devolver a quantia de 608,02€ à recorrente, mantendo-se no mais decidido.”
Notificadas, as partes não responderam ao mencionado parecer.

Colheram-se os vistos legais.
***
II. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância
Foi a seguinte a decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância:
“A – Os Factos Provados
1º- À data de 4.01.2019, a A. trabalhava por conta da 1ª Ré S..., Ldª, sob a sua direção e fiscalização. (alínea A) dos Factos Assentes)
2º- No dia 4 de janeiro de 2019, a A. trabalhava como empregada de limpeza, que era a sua categoria à data, por ordem da 1ª Ré S..., na empresa E..., SA, em ..., Espinho. (alínea B) dos Factos Assentes)
3º- A 1ª Ré entidade patronal tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a 2ª R. seguradora, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., pela retribuição anual de 8.400€.(€600x14)- cfr. apólice de seguro junta a fls. 29, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (alínea C) dos Factos Assentes)
4º- Em consequência do acidente ocorrido em 04.01.2019, a A. sofreu as lesões e sequelas descritas no relatório da perícia de avaliação de dano corporal levada a cabo no Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga de fls. 139 a 142, que se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, que vieram a determinar para a Autora, de forma direta e necessária:
a) Incapacidade Temporária Absoluta no período compreendido entre o dia 05.01.2019 e 12.03.2019;
b) Incapacidade Temporária Parcial de 25% no período compreendido entre o dia 13.03.2019 e o dia 23.04.2019, data em que lhe foi dada alta clínica;
c) Incapacidade Permanente Parcial de 4,5%, desde a data da alta fixada em 23.04.2019.- cfr. relatório da perícia de avaliação de dano corporal levada a cabo no Gabinete Médico-Legal e Forense de Entre Douro e Vouga de fls. 139 a 142. (alínea D) dos Factos Assentes)
5º- Por conta dos períodos de incapacidade temporária considerados pela Ré seguradora (ITA de 07.01.2019 a 12.03.2019 e ITP de 25% de 13.03.2019 a 23.04.2019) a Ré seguradora pagou à A. a quantia de €1.216,05.- cfr. nota discriminativa junta a fls. 26, cujo teor se dá aqui por reproduzido. (alínea E) dos Factos Assentes)
6º- Realizada a Tentativa de Conciliação no dia 15.09.2020, no âmbito dos presentes autos, a mesma frustrou-se porque, apesar de a A. aceitar que teve um acidente nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que aí descreveu, que esse acidente foi de trabalho, que as lesões e sequelas das mesmas aí descritas e as incapacidades temporárias e permanentes delas resultantes e descritas são consequência desse acidente, que a sua retribuição era a aí discriminada e que a responsabilidade relativa a acidentes de trabalho seus estava transferida para a 2ª R.;
a) a 2ª Ré seguradora:
aa) aceitou que a responsabilidade relativa a acidentes de trabalho da A. ocorridos ao serviço da 1ª Ré estava transferida para si através de contrato de seguro titulado pela apólice identificada, pela retribuição anual aí identificada, e que as lesões e sequelas aí descritas e as incapacidades temporárias e permanentes delas resultantes e aí descritas (constantes do relatório do GML aí dado por reproduzido) são consequência desse acidente;
ab) não aceitou que a sinistrada teve um acidente nas circunstâncias de tempo, modo e lugar aí descritas e que esse acidente foi de trabalho, nem nunca como tal lhe foi participado, pelo que não se concilia;
b) a 1ª Ré Entidade Patronal:
ba) aceitou que a responsabilidade relativa a acidentes de trabalho da A. ocorridos ao seu serviço estava transferida para a Ré seguradora através de contrato de seguro titulado pela apólice identificada, pela retribuição anual aí identificada, e que as lesões e sequelas aí descritas e as incapacidades temporárias e permanentes delas resultantes e aí descritas (constantes do relatório do GML aí dado por reproduzido) são consequência desse acidente;
bb) não aceitou que a sinistrada teve um acidente nas circunstâncias de tempo, modo e lugar aí descritas e que esse acidente foi de trabalho, pelo que não se concilia. (alínea F) dos Factos Assentes)
7º- Pelos factos ocorridos no dia 04.01.2019, a 1ª Ré moveu um processo disciplinar à A. que culminou com o seu despedimento por justa causa, tendo sido dada ordem à A., no dia 04.01.2019, para não voltar ao trabalho e que lhe iria ser movido um processo disciplinar.-cfr. cópias juntas a fls. 100 a 119 cujo teor se dá aqui por reproduzido. . (alínea G) dos Factos Assentes)
8º- A A. impugnou judicialmente o seu despedimento, processo que correu termos neste Juízo do Trabalho sob o nº2338/19.4T8VFR-J2, tendo terminado com uma transação judicial após a audiência de julgamento. cfr. cópias juntas a fls. 100 a 119 cujo teor se dá aqui por reproduzido. (alínea H) dos Factos Assentes)
9º- A A. efetuou uma queixa crime contra CC, pelos factos ocorridos no dia 04.01.2019 no seu local de trabalho, que deu origem ao NUIPC nº29/19.5PDVNG, a correr termos no DIAP da Comarca de Aveiro- Secção de Espinho, que se encontra ainda na fase de inquérito.- cfr. certidão junta a fls. 125 a 137, cujo teor se dá por reproduzido. (alínea I) dos Factos Assentes)
10º- A 1ª Ré não enviou à 2ª Ré qualquer participação referente ao acidente sofrido pela A. (alínea J) dos Factos Assentes)
11º- A 2ª Ré solicitou à 1ª Ré que lhe remetesse a participação do acidente da A. e em resposta a 1ª Ré comunicou-lhe que desconhecia qualquer acidente sofrido pela A. enquanto ao seu serviço e que não se responsabilizava por qualquer acidente. –cfr. documento junto a fls. 200 verso/201, cujo teor se dá aqui por reproduzido. (alínea K) dos Factos Assentes)
12º- No dia 4.01.2019, a A. trabalhava como empregada de limpeza, por ordem, direção e fiscalização da entidade patronal S..., na empresa E..., SA, em ..., Espinho. (artigo 4º da p.i.)
13º- Auferindo a remuneração de €600 mensalmente. (artigo 3º da p.i.)
14º- O seu horário de trabalho era das 13h00 às 19h00. (artigo 5º da p.i.)
15º- Nesse dia 04.01.2019, por volta das 13h15, foi chamada ao balneário feminino pelo responsável da sua entidade patronal Sr. BB (parte do artigo 6º da p.i.)
16º- Nesse momento e local, a A. e a colega de trabalho chamada CC, por razões não concretamente apuradas mas relacionadas com as tarefas de limpeza que ambas realizavam, envolveram-se em agressões mútuas, tendo a A. sido agredida com murros, pontapés e puxões de cabelo, que causaram lesões físicas à A.. (resposta restritiva e concretizadora ao artigo 7º da p.i.)
17º- As agressões mútuas chegaram a ser presenciadas pelas trabalhadoras da E... DD e EE, que trabalhavam na área administrativa. (parte do artigo 8º da p.i.)
18º- A A. foi conduzida ao Hospital ..., pela sua prima FF, onde foi assistida, tendo sido efetuado Rx por queixa de cervicalgia, braquialgia direita e lombalgia esquerda; escoriações do lábio inferior; RMG ombro direito e RMG cervical. (parte do artigo 9º da p.i.)
19º- No dia 4.01.2019, houve uma troca de agressões verbais e físicas entre a A. e uma colega de nome CC. (artigo 7º da contestação da entidade patronal)
20º- No dia referido, numa reunião promovida pelo supervisor da entidade patronal, a A. e a colega iniciaram uma discussão de forma agressiva em voz alta, tendo o supervisor chamado a atenção das duas trabalhadoras, dando-lhes ordens para porem termo à discussão, o que não fizeram. (artigos 8º, 9º e 10º da contestação da entidade patronal)
21º- Na sequência dos insultos, a A e a colega passaram a vias de facto, agredindo-se fisicamente uma à outra, com murros, pontapés e puxões de cabelo, tendo sido a A. quem primeiro deu um estalo na cara na sua colega. (resposta concretizadora ao artigo 11º da contestação da entidade patronal)
22º- Agressão física a que só foi possível pôr termo com a intervenção de duas colaboradoras da empresa onde a A estava a prestar o seu trabalho de limpeza. (artigo 12º da contestação da entidade patronal)
23º- A A abandonou as instalações da empresa pelo seu próprio pé. (parte do artigo 18º da contestação da entidade patronal)
24º- As lesões que a A. sofreu também resultam do seu comportamento, ao envolver-se em agressões físicas com a sua colega. (resposta restritiva ao artigo 19º da contestação da entidade patronal)
*
Não se provaram os restantes factos não incluídos nos acima transcritos, designadamente não se provou que:
- a A foi chamada quando já se encontrava a trabalhar (parte do artigo 6º da p.i.)
- Nesse momento, sem que nada o fizesse prever e sem qualquer motivo, a CC iniciou uma agressão violenta sobre a A. (parte do artigo 7º da p.i.)
- As ofensas foram tão graves que nesse dia teve de se ausentar do local de trabalho. (parte do artigo 9º da p.i.)
- Na segunda-feira seguinte à ocorrência, a A. ligou telefonicamente para a sua entidade patronal, que a informou de que devia recorrer aos serviços da seguradora. (artigo 10º da p.i.)
- Quando se dirigiu aos serviços clínicos da seguradora, declarou que havia sido vítima de queda no local de trabalho e que foi fazendo fé nessas declarações que a seguradora analisou as lesões e forneceu os tratamentos adequados até à data da alta. (artigos 3º e 4º da contestação da Ré seguradora)
- As lesões que a A. sofreu resultam exclusivamente do seu comportamento, ao envolver-se em agressões físicas com a sua colega. (parte do artigo 19º da contestação da entidade patronal)”.
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III. Fundamentação

1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as matérias que sejam de conhecimento oficioso, (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente:
- Impugnação da decisão da matéria de facto;
- Descaracterização do acidente como acidente de trabalho;
- Subsidiariamente, da alteração da percentagem da culpa, devendo ser fixada em 75% para a A. e 25% para a Recorrente.
Porém, previamente a esta última questão, importa apreciar da questão suscitada oficiosamente pelo Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer, qual seja a da impossibilidade da redução da reparação devida pelo acidente de trabalho em função da culpa da A. na produção do acidente, cabendo a reparação, por inteiro à Ré/Recorrente e, por consequência, se a sentença recorrida deve ser revogada no que toca aos segmentos em que reduziu para 50% o valor do capital de remição e diferenças de indemnização por incapacidades temporárias e despesas de transportes, devendo a Ré/Recorrente ser condenada em valores totais, de 100%, bem como revogada na parte em que condenou a A/Recorrida a devolver a quantia de 608,02€ à Ré/recorrente.

2. Da impugnação da decisão da matéria de facto

A Recorrente impugna o nº 21 dos factos provados.
De tal ponto consta o seguinte: “21º- Na sequência dos insultos, a A e a colega passaram a vias de facto, agredindo-se fisicamente uma à outra, com murros, pontapés e puxões de cabelo, tendo sido a A. quem primeiro deu um estalo na cara na sua colega. (resposta concretizadora ao artigo 11º da contestação da entidade patronal)”, pretendendo a Recorrente que o mesmo passe a ter a seguinte redacção: “Na sequência dos insultos, a A. e a colega passaram a vias de facto, agredindo-se fisicamente uma à outra, com murros, pontapés e puxões de cabelo, tendo sido a A. quem primeiro deu um estalo na cara da sua colega e um pontapé na barriga dessa mesma colega” [o sublinhado corresponde ao que a Recorrente pretende que se adite].
Para tanto, alega a Recorrente o seguinte:
“Sucede, porém, que tal resposta à matéria de facto encontra-se, sempre com o devido respeito, incompleta.
Na verdade, conforme se alcança da Fundamentação das respostas à matéria de facto, além de ter dado um estalo à colega, a demandante também lhe deu, logo de seguida, um pontapé na barriga.
Isso mesmo é reconhecido pela Excelentíssima Senhora Doutora Juíza “a quo”, em sede de valoração dos depoimentos prestados pelas testemunhas.
Ou seja, foi a demandante que iniciou as agressões com um estalo na cara da colega e com um pontapé na barriga dessa mesma colega.
Todavia, o pontapé na barriga da colega não consta do artº 21º dos Factos Provados, e deveria constar, crendo a demandada que se trata de um mero lapso.”

2.1. Diz o Exmº Sr. Procurdor Geral Adjunto, no seu douto parecer, e com razão, que não deu a Recorrente cumprimento ao requisito previsto no art. 640º, nº 1, al. b), do COC/2013.
Com efeito:
Pretendendo-se a reapreciação da decisão da matéria de facto, tem o Recorrente que dar cumprimento aos requisitos exigidos pelo art. 640º, nºs 1, als. a), b) e c), e 2, al. a), do CPC/2013, nos quais se dispõe que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recruso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”
O facto que a Recorrente pretende que seja aditado – “(…) e um pontapé na barriga dessa mesma colega” – consubstancia, não um facto meramente complementar ou instrumental, mas sim um facto essencial, na medida em que integraria a factualidade conducente à descaracterização do acidente como acidente de trabalho, consubstanciador de defesa por excepção, facto esse que não foi alegado por nenhuma das partes.
Mas, e mesmo admitindo, como mera hipótese de raciocínio que, não obstante essa falta de alegação, a Relação dele poderia conhecer ao abrigo do disposto no art. 72º do CPT [pese embora não haja sido determinada pela 1ª instância a ampliação da matéria de facto, nem havendo a mesma sido requerida pelas partes, designadamente pela Ré Seguradora], necessário seria que tivessem sido cumpridos os requisitos relativos à impugnação da decisão da matéria de facto, o que, no caso, não ocorreu no que toca aos requisitos previstos no art. 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), a que a Recorrente não deu cumprimento.
Com efeito, deve o Recorrente que impugne a decisão da matéria de facto indicar os meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão [art. 640º, nº 1, al. b)], sendo que só assim será possível ao tribunal ad quem perceber e saber quais são os concretos meios de prova que, segundo o Recorrente, levariam a que determinado facto devesse ter resposta diferente.
[Cfr. Acórdão do STJ de 20.12.2017, Proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2, e de 19.12.2018, Proc. 271/14.5TTMTS.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt, constando do sumário deste último o seguinte: “I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. (…)]
E se impugnada a factualidade com base em depoimentos gravados deverá também o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”, sendo que, podendo embora proceder à transcrição dos depoimentos ou de excertos dos mesmos, tal não o dispensa contudo daquela indicação como expressamente decorre da letra da norma.
[Cfr. Acórdão do STJ de 19.02.2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1, in www.dgsi.pt, de acordo com o qual a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no nº 1 do art.º 662º do Código de Processo Civil].
De referir ainda que a impugnação com base em prova testemunhal deve ser feita com base nos depoimentos concretamente prestados, com indicação do tempo da gravação correspondente ao início e termo dos excertos dos depoimentos que o Recorrente tem por pertinentes, e não com base naquilo que o juiz entendeu ser de consignar, designadamente por palavras suas, na fundamentação da decisão da matéria de facto, considerações estas que correspondem à percepção ou àquilo que o juiz entendeu ser de retirar da prova, não constituindo porém a prova em si e não dispensando a sua indicação nos termos do citado art. 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a).
Por fim, o citado art. 640º é claro e expresso na consequência da omissão do cumprimento dos requisitos nele previstos, qual seja a imediata rejeição da impugnação.
Como referiu António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, páginas 126/127/129, – em comentário ao artigo 640º do CPC/2013, com o que se concorda: “(…). a) …, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação critica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto; (…)” e acrescentando ainda que “(…) as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de um decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)”.
No caso, a Recorrente não deu cumprimento ao requisito previsto na al. b) do nº 1 do citado preceito, assim como à al. a), do nº 2, do mesmo.
Com efeito, a Recorrente, nas alegações [bem como nas conclusões], limita-se a dizer que o facto que pretende que seja dado como provado é reconhecido pela Mmª Juiz “em sede de valoração dos depoimentos prestados pelas testemunhas”, ou seja, como diz, tal decorreria da fundamentação da decisão da matéria de facto.
A Recorrente não identifica, contudo, qualquer testemunha, não indica qualquer excerto de depoimento, nem o tempo [início e fim] da gravação de depoimento que pudesse sustentar a alteração. Diga-se que na audiência de discussão e julgamento ocorreu com gravação da prova, na qual, para além das declarações de parte prestadas pela A., prestaram depoimento quatro testemunhas.
Ora, como acima referido, a impugnação com base em prova testemunhal gravada deve ser feita com base nos depoimentos concretamente prestados, com indicação do tempo da gravação correspondente ao início e termo dos excertos dos depoimentos que o Recorrente tem por pertinentes, e não com base naquilo que o juiz entendeu ser de consignar, designadamente por palavras suas, na fundamentação da decisão da matéria de facto, considerações estas que correspondem à percepção ou àquilo que o juiz entendeu ser de retirar da prova, não constituindo porém a prova em si e não dispensando a sua indicação nos termos do citado art. 640º, nºs 1, al. b), e nº 2, al. a).
Assim sendo, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto.

3. Da descaracterização do acidente como acidente de trabalho

Entende a Recorrente que o acidente em causa deve ser descaracterizado, para tanto alegando que “10 - É que, se perante um estalo na cara poder-se-ia argumentar com a desproporcionalidade da resposta da colega, já perante um pontapé na barriga, que é uma agressão que, claramente, pretende magoar e ferir quem o apanha, despertou na colega da demandante um legítimo sentimento de retribuição, até para parar com esse tipo de agressão. 11 - As lesões que a demandante sofreu têm como causa única e exclusiva as agressões que desferiu, primeiramente, e de modo próprio, à sua colega. 12 - O acidente é descaracterizado ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artº 14º da Lei 98/2009, de 04/09, pois os danos da demandante apenas tiveram como causa única e exclusiva o seu próprio comportamento, ao agredir, da forma que o fez, a colega de trabalho, que se limitou a reagir às agressões.”
De referir que a mencionada argumentação assenta no pressuposto da alteração da decisão da matéria de facto, isto é, assenta no pressuposto de que, para além do estalo na cara, a A. teria desferido um pontapé na barriga dessa mesma colega e, também com isso (pontapé), iniciado a rixa, sendo que a impugnação da decisão da matéria de facto foi rejeitada.
Ora, assim sendo, nada mais haverá a apreciar.
De todo o modo, sempre se dirá o que se segue.
A Recorrente não põe em causa a caracterização do acidente como acidente de trabalho [na medida em que ocorrido no tempo e local de trabalho e foi determinante de uma lesão]. O que entende é que, atento o disposto no art. 14º, nº 1, als. a), da Lei 98/2009, de 04.09, o mesmo não conferiria o direito à reparação.
No caso, e porque se concorda com o douto parecer do Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto, passamos a transcrevê-lo[1]:
“Mais entende a Recorrente que por ter sido a Recorrida a dar causa ao acidente deverá este ser descaracterizado, nos termos do art.º 14º, n.º 1, al. a) da Lei 98/2009.
Sob a epígrafe, “Descaracterização do acidente”, o artigo 14º da Lei 98/2009, de 4 de setembro – LAT – dispõe que:
“1 – O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; … … …
2 – Para efeitos do disposto na al. a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
… … …
Este artigo prevê, assim, algumas situações em que o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente. O acidente, embora qualificável como de trabalho, não dá lugar à sua reparação, nos termos desta Lei.
Invoca a recorrente a violação do disposto no artigo 14º, al. n.º1, alínea a) citado.
O disposto na alínea a) do número 1, deste artigo art.º 14º, da LAT, prevê duas hipóteses distintas:
- (i) - a primeira na al. a), primeira parte, ou seja o acidente que “for dolosamente provocado pelo sinistrado”;
- (ii) – a segunda na al. a), parte final, ou seja, o acidente que provier de acto ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
Na primeira hipótese – acidente dolosamente provocado pelo sinistrado - só haveria um acidente, na modalidade de dolo eventual, pois que nas outras a situação não seria, em bom rigor, um acidente. Mas cremos que nem esta hipótese se verifica, como se dirá.
Na segunda, a verificação da hipótese prevista na al. a), segunda parte, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelas entidade empregadora ou previstas na lei, (ii) violação, por acção ou omissão, dessas condições por parte do sinistrado, (iii) que a actuação deste seja voluntária, embora não intencional, (iv) sem causa justificativa (definida no n.º 2 do preceito), e, (v) que o acidente seja consequência necessária e exclusiva dessa actuação(6).
Cremos, porém, que a Recorrente se refere à primeira hipótese, em que a Recorrida, actua dolosamente, pois, voluntariamente agride a colega de trabalho.
Mas, apesar disso, entendemos que causadora das lesões da Recorrida é a colega de trabalho, que a agrediu, e podia não o ter feito. Sendo a agressão perpetrada no local e tempo de trabalho e por razões a este ligadas.
Na verdade, nem todas as pessoas agredidas respondem com agressões, nem as agressões em resposta a uma provocação ou agressão se tornam actos lícitos.
Assim, salvo melhor opinião, e apesar das agressões recíprocas, estamos em presença de um acidente de trabalho.
Tal como, aliás, decidido no citado Ac. da RE de 14.02.2019(7): “a agressão mutua entre dois colegas de trabalho no local e tempo de trabalho por causa da execução do serviço de que resultaram lesões para um deles, constitui acidente de trabalho reparável pela empregadora e/ou seguradora.”
Mais se pode ler no referido acórdão que “Desconhece-se se a sinistrada provocou lesões ao colega de trabalho. Em qualquer caso, o colega da sinistrada praticou um ato ilícito em resposta à prática igualmente por aquela de um ato ilícito, donde resultou incapacidade para a primeira. Uma vez que as lesões foram provocadas por um colega de trabalho quando ambos estavam no exercício das funções, por causa delas, e a trabalhadora aqui sinistrada sofreu incapacidade para o trabalho, entendemos que estamos perante um acidente de trabalho. (…)
Eventuais outras responsabilidades, a apurar nos termos do art.º 17.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04.09, não são para apreciar na ação emergente de acidente de trabalho nem, aliás, foram colocadas.
Em resumo: ambos os trabalhadores praticaram atos ilícitos. A única diferença é que em relação à aqui autora provou-se que em consequência do evento sofreu incapacidade temporária e teve que recorrer a apoio médico, ou seja, sofreu danos.
Assim, concluímos que o acidente sofrido pela trabalhadora constitui um acidente de trabalho, de acordo com os parâmetros legais acima referidos.”
*
Além disso, tal como na hipótese de o acidente se ficar a dever a negligência grosseira do sinistrado, também nesta hipótese de culpa da Recorrida-lesada, entendemos que a culpa dela deveria ser causa única do acidente, pois havendo concurso de causas, já a responsabilidade não pode ser afastada(8).
E, também, que a culpa seja exclusiva da sinistrada, Recorrida, por forma que havendo concurso de culpas, (com colegas de trabalho, p. ex.), a responsabilidade não é afastada, havendo, antes, lugar à reparação(9).
O que tudo deverá ser apreciado, não em termos gerais e abstratos, mas sim em concreto e casuisticamente(10).
A descaracterização do acidente de trabalho constitui facto impeditivo do direito invocado pelo sinistrado, incumbindo àquele contra quem tal direito é invocado o ónus da prova correspondente (art.º 342º, do Cód. Civil)(11). Neste caso a seguradora, ora recorrente, para quem a entidade empregadora, por contrato de seguro, havia transferido a sua responsabilidade infortunística.
A douta sentença em recurso entendeu que “no caso, atendendo à matéria de facto apurada, afigura-se-nos existir alguma equivalência entre os comportamentos da A. e da colega (que se embrulharam fisicamente, com agressões físicas recíprocas, na sequência de insultos verbais), pelo que podemos afirmar que ambas contribuíram em igual medida para a produção do acidente e dos danos dele resultantes e, como tal, as responsabilidades pelos danos produzidos têm de ser repartidas em proporção idêntica para ambas, ou seja, 50% para cada uma.”
Assim, conclui-se que, não estando descaracterizado, há lugar à reparação deste acidente.” [fim de transcrição]
Com efeito:
O conceito de acidente de trabalho não sofreu alteração face ao que constava da legislação pretérita (Lei 100/97, de 13.09).
Para que o acidente seja caracterizado como de trabalho tem sido considerado como necessário que: (a) ocorra um acidente; (b) que tal se verifique no local e tempo de trabalho ou em algumas das demais circunstâncias referidas no art. 9º (c) que o acidente determine, directa ou indirectamente, uma lesão corporal, perturbação funcional ou doença ou a morte; (d) que das lesões provocadas pelo acidente resulte a perda ou diminuição da capacidade de ganho.
Por outro lado, como é hoje adquirido e já o temos afirmado[2], o conceito de acidente de trabalho e a responsabilidade objectiva do empregador assenta na teoria do risco de autoridade (que, porque a antecessora corrente assente na teoria do risco profissional - esta exigindo uma relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho - não dava cobertura a acidentes dignos de protecção, a veio substituir).
A teoria do risco de autoridade, assentando na responsabilidade do empregador decorrente da possibilidade do exercício da autoridade por parte deste sobre os seus trabalhadores, dispensa o referido nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com alguma relação entre o trabalho e o acidente.
Assim é que, no âmbito da protecção infortunística, não estão, apenas, incluídos os acidentes directamente ocasionados por facto próprio, inerente ou típico do exercício das tarefas que se enquadram nas funções que constituem a actividade do trabalhador ou a este cometidas expressamente pelo empregador, sendo que, a assim se não entender, tal representaria um regresso às ultrapassadas concepções assentes na referida teoria do risco profissional.
A conexão ou causalidade entre o trabalho e o acidente decorre ou está insitamente contida na circunstância de o acidente ter ocorrido no local e no tempo de trabalho, não sendo ao sinistrado necessário demonstrar, relativamente a acidente ocorrido em tais circunstâncias, que o mesmo decorreu por virtude do concreto trabalho.
Isto mesmo decorre do Acórdão do STJ de 16.09.2015, Processo 112/09.5TBVP.L2.S1, in www.dgsi.pt, aresto esse que, embora tirado no âmbito da Lei 100/97, mantém actualidade e que, pelo seu interesse, se passa a transcrever [omitem-se as notas de rodapé]:
“ (…)
14. Discorrendo sobre o conceito de acidente de trabalho, diz-nos, expressivamente, em obra recente, Júlio Manuel Vieira Gomes[12]:
«A noção de acidente de trabalho sempre foi problemática ao ponto de, por vezes, as leis (…) optarem por prescindir de uma definição legal de acidente de trabalho, sendo que, mesmo quando tal definição existe, ela é, frequentemente, pouco elegante abrangendo--se na definição o definido.
(…)
[A] doutrina sempre hesitou entre uma definição passiva ou ativa do acidente. Com efeito, enquanto alguns (preferiam) uma visão do acidente como uma violação ou lesão do corpo humano, outros – e parece ter sido esse o entendimento que triunfou entre nós – apresentam antes o acidente como o evento que desencadeia a lesão.
Na sua origem, em todo o caso, as definições propostas apresentavam geralmente o acidente como um acontecimento produzido por uma força exterior ou esternal, súbito, violento, que deveria causar à vítima uma lesão corporal ou mental ou uma doença que acarretasse a incapacidade para o trabalho ou a morte. Alguns autores acrescentavam, também, que deveria tratar-se de um facto anómalo. (…) [Q]uase todas estas características têm sido gradualmente postas em causa, de tal modo que só parece mesmo subsistir hoje a existência de subitaneidade e, ainda assim, entendida em termos hábeis e flexíveis.
Hippolyte Marestaing, por exemplo, defendia que (…) a lesão [é] sempre devida a uma causa externa. Mas já Adrien Sachet duvidava dessa exigência de uma causa externa ao corpo do trabalhador, afirmando que “certas manifestações mórbidas têm uma causa violenta e súbita que tanto pode ser externa como interna: é o caso dos lumbagos, das ciáticas, das ruturas musculares, das hérnias, etc.”, E entretanto foram-se multiplicando as vozes que – e bem, a nosso ver – acreditam que não há que exigir sempre uma causa externa ou exterior ao corpo do trabalhador.
É tradicional, também, a referência a uma causa violenta da lesão sofrida pelo trabalhador. Sublinhe-se que o que se exigia era uma causa violenta da lesão e não, propriamente, uma causa violenta para o evento desencadeador da lesão, isto é, para o acidente. Mas mesmo assim, embora essa causa violenta exista frequentemente, parece excessivo configurá-la como indispensável para a existência de um acidente de trabalho (…).
Uma parte da doutrina exigia, também, no passado, que ao acidente correspondesse a um evento anómalo ou, de algum modo, excecional. Tal exigência, mais uma vez, carece de razão de ser (…).
Modernamente uma característica que parece continuar a reunir consenso é a subitaneidade que parece, aliás, ser hoje o critério fundamental que permite distinguir o acidente da doença profissional.»
15. A variedade dos acontecimentos suscetíveis de constituir acidente de trabalho é muito ampla, sendo as quedas, acidentes de viação, explosões, cortes, entalões, torções de determinada parte do corpo e pancadas/embates com/em objetos contundentes/cortantes algumas das situações mais frequentes.
O STJ vem decidindo que o evento pode não ser instantâneo, nem violento[13], mas deve ser súbito[14], embora o conceito de subitaneidade venha a ser progressivamente ampliado pela doutrina.[15] Também de modo crescente se vem defendendo que o acidente de trabalho não pressupõe uma causa exterior física (cfr. supra n.º 14) e que a sua origem pode ser, nomeadamente, de índole moral ou psíquica[16].
Independentemente das querelas doutrinárias atinentes à sua exata delimitação, pode afirmar-se, grosso modo, que o acidente de trabalho consiste sempre num evento danoso que, entre outras características, apresenta determinada conexão com a prestação do trabalho.
O direito comparado revela que, em termos de estruturação dogmática, é possível focalizar o conceito no elemento “evento” (seja ele um facto humano ou uma situação jurídica objetiva[17]) ou no elemento “dano”, discrepância que não se encontra isenta de consequências práticas.
Com efeito, se em determinadas situações é possível identificar claramente os dois elementos (é o caso, por exemplo, das lesões corporais sofridas por um motorista profissional na sequência de um acidente de viação, ou do trabalhador que é acometido de enfarte agudo do miocárdio ou de acidente vascular cerebral aquando de uma altercação com o seu superior hierárquico), outras há em que não é possível determinar exatamente a origem de lesões sofridas no contexto do vínculo jus-laboral.
Para obviar a este tipo de dificuldade, alguns sistemas jurídicos tendem a construir o conceito de acidente de trabalho a partir do elemento “lesão”, como é o caso de Espanha, país em que o art. 115.º do Real Decreto Legislativo 1/1994, de 20 de junho, que aprovou o Texto Refundido da Lei Geral da Segurança Social, estatui que se entende por acidente de trabalho toda a lesão corporal que o trabalhador sofra por ocasião ou em consequência do trabalho (que execute por conta alheia).
Como se compreende, este paradigma privilegia a relação “mais ou menos intensa” existente entre o trabalho e o dano[18], ao contrário do modelo vigente entre nós, que não dispensa a prova de um evento infortunístico que configure um acidente de trabalho (cfr. supra n.º 13).
16. Sabido que é a assunção de determinada esfera de riscos que leva à “edificação” de uma esfera de responsabilidade, de imediato se suscita o tema – de “cunho imputacional” – da exclusão do domínio da responsabilidade civil daqueles danos que não apresentem com o risco suficiente “pertinência” ou “conexão funcional”[19], como, no limite, acontece com os casos de força maior [cfr. art. 7.º, n.º 1, d), da Lei 100/97].
Nesta perspetiva, como resulta da definição legal de acidente de trabalho, a sua verificação demanda a presença de um elemento espacial (em regra, o local de trabalho) e de um elemento temporal (que em regra se reconduz ao tempo de trabalho) que expressem uma adequada conexão com a prestação laboral, nexo que se “preenche sempre que o trabalhador se encontre naquele local, naquele momento e naquelas circunstâncias em virtude do seu trabalho”[20].
Vale por dizer que o conceito de acidente de trabalho supõe uma “relação de natureza etiológica” entre a prestação de trabalho e o acidente, isto é, que “a causa do dano esteja incluída dentro de uma certa zona de riscos” de alguma forma ligados à prestação de trabalho.[21]
Ou, noutra formulação, embora com análogo sentido, que o trabalho tem de estar implicado no acidente (“nexo de implicação”), o que pode resultar “em termos formais dos critérios consagrados na lei ou, em casos mais complexos, de uma conexão material com as funções da pessoa”.[22]
Todavia, tendo em conta a conexão com o local e tempo de trabalho já ínsita no conceito legal de acidente de trabalho (e sendo ainda certo que nos encontramos no âmbito da responsabilidade objetiva, domínio que se vem afirmando “como resposta jurídica ao aumento do risco da vida e à premência de se garantir os direitos dos lesados”[23], no qual se evidencia a tendência para a “deslocação do dano para entidades coletivas”[24] e para a socialização dos riscos, em especial dos associados à prestação laboral, a par de uma simplificação das exigências atinentes à causalidade[25]), não é de exigir ao trabalhador a prova de um nexo causal (propriamente dito) entre o trabalho e o evento lesivo, como decidiu o Ac. de 17.12.2009 desta Secção Social[26], do qual se destaca o seguinte passo:
«“[C]ompreende-se que assim seja, uma vez que a teoria subjacente ao nosso ordenamento jurídico infortunístico-laboral há muito deixou de ser a chamada teoria do risco profissional que, como diz Carlos Alegre (in Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª ed., p. 12 e 13), assentava num risco específico de natureza profissional, traduzido pela relação direta acidente-trabalho, tendo sido substituída, a partir da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, pela denominada teoria do risco económico ou risco da autoridade cuja ideia mestra, no dizer do citado autor, “é a de que não se trata já de um risco específico de natureza profissional, traduzido pela relação direta acidente-trabalho, mas sim de um risco genérico ligado à noção ampla de autoridade patronal e às diferenças de poder económico entre as partes”.
Como diz aquele autor (ob. cit., páginas 41-42), discutiu-se muito, quer na doutrina (-), quer na jurisprudência, a necessidade da causa da lesão ser ou não um risco inerente ao trabalho, ou seja, a necessidade da existência de um nexo de causalidade entre o trabalho e o evento lesivo, mas a desnecessidade desse nexo entre o evento lesivo e o trabalho em execução é uma decorrência natural da teoria do risco económico ou risco da autoridade, pelo que o acidente ocorrido no tempo e local do trabalho é considerado como de trabalho, “seja qual for a causa, a menos que se demonstre (e esse ónus pertence à entidade responsável) que, no momento da ocorrência do acidente, a vítima se encontrava subtraída à autoridade patronal”.»
(…)”.
Como, e bem, se diz na sentença recorrida, citando Júlio Manuel Vieira Gomes in O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, págs. 97/99) “parece-nos claro que o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Poderão ser acidentes de trabalho múltiplos acidentes em que o trabalhador não está, em rigor, a trabalhar, a executar a sua prestação, muito embora se encontre no local de trabalho e até no tempo de trabalho, pelo menos para este efeito da reparação dos acidentes de trabalho. (…) Sendo suficiente que o acidente ocorra, na terminologia italiana e anglo-saxónica, por ocasião do trabalho, o acidente de trabalho pode consistir em um acidente ocorrido quando se presta socorro a terceiros ou, inclusive, numa situação em que o trabalhador é agredido ou é vítima de uma “partida de mau gosto”, quer o autor desse facto ilícito seja um colega, quer se trate de um estranho à relação laboral.”
Tendo, no caso, a A. sido, no tempo e local de trabalho, vítima de agressão por parte de colega de trabalho, na sequência de contenda entre ambas aliás relacionada com o trabalho, e da qual lhe resultou uma lesão, o ocorrido enquadra-se na noção de acidente de trabalho.
Aliás, isso mesmo parece ser também entendido pela Recorrente uma vez que esta não põe, propriamente, em causa que o ocorrido consubstancie um acidente de trabalho, sendo que, o que entende, é que o mesmo deve ser descaracterizado uma vez que a A. deu causa à rixa verificada e, com isso, às lesões sofridas.
Mas, também a este propósito, concordamos com o parecer do Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto.
Dispõe o art. 14º da LAT que: “1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador e previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado. (…)”.
No caso, está excluída a situação prevista na segunda parte da al. a) do nº 1 do mencionado preceito, uma vez que não está em causa o incumprimento de condições de segurança previstas na lei ou estabelecidas pelo empregador.
A propósito da 1ª das situações previstas – acidente dolosamente provocado pelo sinistrado – refere Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime jurídico Anotado, 2ª edição, Almedina, pág. 60, ainda que no âmbito da Lei 100/97, mas que mantém actualidade no âmbito da Lei 98/2009:
“a) O acidente dolosamente provocado pela vítima é aquele em que a vítima pratica não só o acto determinante do acidente, mas em que também deseja ou se conforma com todas as suas consequências. (…).
O artigo 2º da Lei 1942 falava em acidente que fosse intencionalmente provocado pelo sinistrado. No fundo, a diferença de linguagem não é relevante: dolo é o mesmo que culpa intencional.
A noção de dolo utilizada no nº 1, alínea a) do artigo 7º, é muito próxima do conceito de dolo em Direito Penal: requer-se a consciência do acto determinante do evento e das suas consequências e, também, a vontade livre de o praticar. Mais do que previsto, o resultado do acto tem que ser intencional, O dolo deve, pois, verificar-se em referência, quer ao elemento intelectual (consciência), quer ao elemento volitivo (vontade). A conduta, quer por acção, quer por omissão, tem que ser considerada e desejada nas suas consequência danosas.
O dano pode ser directamente dirigido a si próprio, trabalhador, (como no suicídio ou na auto-muitilação) ou constituir a consequência de uma acção primordialmente dirigida a terceiro (patrão, companheiro de trabalho ou outro). Duvidosa é, contudo, a exigência do grau de consciência do acto, embora elemento essencial para a eclosão do evento. Parece não ser exigível a representação na totalidade das circunstâncias do acto e suas consequências danosas, bastando-se com algumas e, sobretudo, com a vontade de as produzir”.
No caso, decorre dos factos provados que:
- no dia em causa, numa reunião promovida pelo supervisor da entidade patronal, a A. e a colega iniciaram uma discussão de forma agressiva em voz alta, tendo o supervisor chamado a atenção das duas trabalhadoras, dando-lhes ordens para porem termo à discussão, o que não fizeram; (nº 20)
-Na sequência dos insultos, a A e a colega passaram a vias de facto, agredindo-se fisicamente uma à outra, com murros, pontapés e puxões de cabelo, tendo sido a A. quem primeiro deu um estalo na cara na sua colega (nº 21),
- Agressão física a que só foi possível pôr termo com a intervenção de duas colaboradoras da empresa onde a A estava a prestar o seu trabalho de limpeza. (nº 22);
- As lesões que a A. sofreu também resultam do seu comportamento, ao envolver-se em agressões físicas com a sua colega. (nº 24).
É certo que foi a A. quem primeiro deu um estalo à colega, com o que desencadeou a agressão física desta e a contenda em que se envolveram, com as lesões físicas que daí resultaram para a A. Não obstante, concordamos com o parecer do Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto ao referir que “Mas, apesar disso, entendemos que causadora das lesões da Recorrida é a colega de trabalho, que a agrediu, e podia não o ter feito. Sendo a agressão perpetrada no local e tempo de trabalho e por razões a este ligadas.
Na verdade, nem todas as pessoas agredidas respondem com agressões, nem as agressões em resposta a uma provocação ou agressão se tornam actos lícitos”.
E é de referir que o estalo que a A. deu à colega se inseriu no contexto de uma discussão verbal agressiva, discussão esta que, naturalmente não justificando o comportamento da A. ou determinando a sua licitude, afasta ou pode afastar, todavia, a intencionalidade ou representatividade, pela A., do que se lhe seguiu de modo a que se possa dizer que isso, mormente a agressão por parte da colega, haja sido dolosamente, ainda que na modalidade de dolo eventual, praticada pela A., não permitindo a factualidade provada a conclusão da inevitabilidade ou grande probabilidade da reacção por parte da colega. Como se diz no citado parecer nem todas as pessoas, mediante uma agressão, no caso, um estalo, respondem com outra agressão.
Não se nos afigura, pois, que a matéria de facto provada permita concluir no sentido da verificação da situação prevista no art. 14º, nº 1, al. a), primeira parte, sendo que é à entidade responsável que cabe o ónus de alegação e prova da factualidade que possa levar à descaracterização do acidente como acidente de trabalho tratando-se, como se trata, de matéria impeditiva do direito da A. –art. 342º, nº 2, do Cód. Civil.
E também não se verifica a situação prevista na al. b) do nº 1 do citado preceito, o qual pressupõe a exclusividade do comportamento negligente do sinistrado. Ora, no caso, tal não ocorre, pois que para o acidente concorreu o comportamento da colega da A; aliás, foi o comportamento desta – agressão perpetrada por esta – que determinou a lesão.
Assim, e nesta parte, improcedem as conclusões do recurso.

4. Da impossibilidade de redução da reparação devida pelo acidente de trabalho em função da culpa da A. na produção do acidente.

A Recorrente, subsidiariamente, requereu que a proporção da sua responsabilidade fosse reduzida para 25%, fixando-se em 75% a da A., dada a culpabilidade desta na ocorrência do acidente de trabalho.
Porém, o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto, no seu parecer, suscitou a questão da impossibilidade da redução da reparação devida pelo acidente de trabalho em função da culpa da A. na produção do acidente, cabendo a reparação, por inteiro, à Ré/Recorrente, questão esta que se mostra prejudicial, na medida em que, procedendo este entendimento, prejudicada ficará a terceira questão suscitada pela Recorrente.
E, assim sendo, importa dela apreciar.

4.1. Na sentença recorrida referiu-se o seguinte:
“Destarte se conclui que o acidente de trabalho em causa nos autos não se mostra descaracterizado, cumprindo assim aquilatar da respetiva reparação.
Importa agora aqui equacionar se o comportamento apurado da A., que primeiro agrediu a sua colega, que de seguida também a agrediu, pode ser causa de exclusão do dever de reparar, ou causa de redução, exonerando total/parcialmente o responsável, por aplicação analógica do princípio previsto no artigo 570º do Código Civil, que cremos deve ter aqui inteira aplicação, porquanto a A. com o seu apurado comportamento concorreu, com a conduta da sua colega, para a produção do dano. E nesta circunstância, a proteção da trabalhadora, que a lei de acidentes de trabalho lhe confere, deve ser refreada, pois seria flagrantemente injusto que pudesse ser indemnizada como se nenhuma contribuição tivesse tido para a produção do acidente e suas consequências, quando se apurou que, com a sua conduta também concorreu para a produção dos danos que sofreu.
Nos termos do art. 570º, nº1, do C.C. "quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída".
Esta norma prescreve a relevância da conculpabilidade da vítima quanto ao montante da indemnização a prestar, sendo necessário que o facto do lesado seja uma concausa do dano em concorrência com o facto causal do lesante.
No caso vertente, cremos que essa concausalidade é inequívoca, pois, como vimos, as condutas da A. e da colega de trabalho "intervieram na produção do mesmo dano concreto". Mas qual a consequência, no caso concreto desta conculpabilidade? A este propósito refere Rodrigues Bastos (in Notas ao CC, III, pág. 43) que, na maioria dos casos, a concorrência de culpa do lesado conduza a uma redução da indemnização correspondente à medida das respectivas culpas.
No caso, atendendo à matéria de facto apurada, afigura-se-nos existir alguma equivalência entre os comportamentos da A. e da colega (que se embrulharam fisicamente, com agressões físicas recíprocas, na sequência de insultos verbais), pelo que podemos afirmar que ambas contribuíram em igual medida para a produção do acidente e dos danos dele resultantes e, como tal, as responsabilidades pelos danos produzidos têm de ser repartidas em proporção idêntica para ambas, ou seja, 50% para cada uma.
Conclui-se que existem razões, no caso, para reduzir o direito à indemnização devida à A., na proporção de 50%. Terá assim direito a ser ressarcida, nessa proporção de 50%.”.

4.2. Por sua vez, no seu parecer, refere o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto o seguinte, que se passa a transcrever[3]:
“2 - Questão prévia:
A douta sentença em recurso, reduziu a 50% o valor das indemnizações e capital de remição-pensão atribuídas à Recorrida, socorrendo-se do disposto no art.º 570º do Cód. Civil (culpa do lesado).
A recorrida, com mandatária constituída, não interpôs recurso, nem respondeu ao da Recorrente.
Porém, entende-se que estamos em presença de direitos irrenunciáveis e indisponíveis – art.º 78º (12º e 13º) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro – Lei dos Acidentes de Trabalho – LAT – não nos parecendo possível a aplicação, neste caso, de tal preceito legal.
Cremos também, que o conhecimento desta questão, agora levantada, é de conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, 5º, n.º 3, ambos do Cód. Proc. Civil), atenta a natureza dos direitos e os valores de interesse e ordem públicos.
E o Ministério Público, atento o disposto no art.º 87º, n.º 3 do CPT, e porque mantém nos processos emergentes de acidente trabalho, o estatuto de parte acessória, pode e deve suscitar esta questão.
A sentença não transitou, ainda, em julgado.
É possível conhecer desta questão no recurso, o que se requer, a acrescer àquelas já referidas, que a Recorrente suscita – art.º 608º, n.º 2 e 5º, n.º 3 do CPC).
(…)
5 – Percentagem de culpa.
Entende a Recorrente, por fim, que,
“Se se mantiver o entendimento de que estamos perante um acidente de trabalho, o que se não concebe nem tão pouco se aceita, sempre se deverá alterar a percentagem de responsabilidade atribuída à demandante, que foi de 50%.
Entende a demandada que, a manter-se a caracterização do acidente como sendo de trabalho, essa percentagem deverá ser fixada em 75% de responsabilidade para a demandante e 25% de responsabilidade para a demandada.” – conclusões 13 e 14.
Neste caso, foram fixadas percentagens de culpa ou responsabilidade pelo acidente, por aplicação do disposto no art.º 570º do Cód. Civil.
Como se disse supra, a propósito das questões a decidir, achamos não ter aplicação neste caso, tal disposição, como se dirá, devendo, o Tribunal da Relação, no acórdão a proferir, oficiosamente revogar a douta sentença em recurso, nesta parte, e antes condenar a Recorrente no pagamento à Recorrida de todos os créditos a que tem direito, por inteiro e não reduzidos a 50% nem a 25%, como agora a recorrente pretende.
6.1. Aplicação do disposto no art.º 570º do Cód. Civil.
Entendemos que o disposto no art.º 570º do Cód. Civil, inserido no Livro do Direito das Obrigações e sobre as modalidades das Obrigações e referente à obrigação de indemnização, não tem aplicação neste caso.
Não que as normas do Direito Civil não possam ter aplicação no Direito do Trabalho (como p. ex. quanto à obrigação de juros, eventual reparação do dano moral ou dano sobre coisas), mas porque o regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos do artigo 284º do Cód. Trabalho, é regulamentado em legislação específica, legislação própria, neste momento, a Lei 98/2009, de 4 de Setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho – LAT).
E, atentas as patentes diferenças de regime de reparação do dano em direito civil e do dano emergente de acidente de trabalho, as normas de um de outro não são compagináveis.
Nem sempre foi assim. Efectivamente a reparação dos acidentes de trabalho começou por ser feita com base no Código Civil, à data o Código Civil de 1867, (Código civil de Seabra), nos termos do seu artigo 2398º.(12/13).
A responsabilidade da entidade empregadora por acidentes de trabalho fundava-se no conceito de culpa aquiliana, consagrada genericamente naquele preceito legal.
Assim, só haveria lugar à reparação quando aqueles acidentes tivessem tido por origem a culpa ou negligência da entidade patronal, estando a prova a cargo do sinistrado.
Porém, reconhecendo-se a insuficiente protecção, a 24 de julho de 1913, foi publicada a Lei n.º 83, que consagrou entre nós, (tal como acontecera já em legislações estrangeiras(14)) a teoria do risco profissional.
Foi este o primeiro diploma legal a estabelecer um verdadeiro regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho.
A esta Lei seguiu-se a lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, tendo subjacente, agora (tal como se evoluiu, também, noutras legislações estrangeiras(15)) a teoria do risco de autoridade. Foi orientada pelo princípio da responsabilidade patronal e pelo da transferência desta para o seguro privado. E, era regulamentada pelo Decrecto n.º 27649, de 12 de Abril de 1937.
A Lei que lhe sucedeu, a Lei 2127, de 03 de Agosto de 1965, regulamentada pelo DL 360/71 de 21 de Agosto, consagrou a teoria do risco económico ou de autoridade, e depois, também, a Lei que se lhe seguiu, a Lei 100/97, de 13 de Setembro e seu decreto regulamentar, o DL 143/99, de 30 de Abril, que, nas palavras de Carlos Alegre(16), “neste aspecto, como em muitos outros, não foi nada inovadora.”
Actualmente, como se disse, vigora nesta matéria a Lei 98/2009, de 4 de Setembro, e que continua a ter subjacente a teoria do risco económico ou de autoridade.
Regime, com o qual não é compaginável a aplicação do regime do Código Civil, como este preceito, o art.º 570º do Cód. Civil, como já referido, atentas as patentes diferenças de regime de reparação do dano em direito civil e do dano emergente de acidente de trabalho.
6. 2. Com efeito, sem enumerar todas, a determinação da incapacidade é efectuada de acordo com a tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, elaborada e actualizada por uma comissão nacional, cuja composição, competência e modo de funcionamento são fixados em diploma próprio – art.º 20 da Lei 98/2009, de 4 de setembro - LAT – tendo sido, a actual Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro.
O dano em direito civil é avaliado em diferente Tabela, prevista no anexo II daquele Decreto-lei.
A reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, não prevê apenas a obrigação de indemnização, e um único pagamento (referida para as incapacidades temporárias, absoluta ou parciais) mas prevê também o pagamento de uma pensão, anualmente e durante a vida do trabalhador.
O dano indemnizável, é o legalmente previsto, … “lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”. – art.º 8º da LAT
A reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho tem características e natureza jurídica especificas; a entidade empregadora está obrigada a transferir a sua responsabilidade para uma companhia seguradora (art.º 79º, n.º 1), as prestações são fixadas em função da remuneração auferida e não cobrem a totalidade do dano sofrido (art.º 71º), sendo os créditos provenientes de acidentes de trabalho, inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis (art.º 78º (12º e 13º)(17).
O acidente de trabalho pode gerar, para além da responsabilidade infortunística, responsabilidade civil e criminal.
Mas os processos são diferentes, mantendo-se o emergente de acidente de trabalho, autónomo, em relação a outro ou outros, decidindo apenas as questões de natureza laboral, e mantendo-se durante a vida do trabalhador/sinistrado, com a possibilidade de ser reaberto.
Como se lê no Ac. da RP de 4 de dezembro de 2000, proc. n.º 1.197/2000, VNG, “o processo de acidente de trabalho destina-se precisamente a apurar a existência do acidente, as suas sequelas e definir o conteúdo da reparação e a pessoa responsável pela mesma. Aquele processo não visa apurar a responsabilidade de terceiros alheios à relação laboral. E compreende-se que assim seja, uma vez que a a obrigação de reparação por parte da entidade patronal ou equiparada assenta em pressupostos diferentes daqueles em que assenta a eventual responsabilidade de terceiros, o mesmo acontecendo em relação ao conteúdo da reparação que a uns e outros pode ser pedida.”
Assim, nem “os tribunais de trabalho não têm competência material para conhecer da responsabilidade de terceiros na produção dos acidentes de trabalho. Tal responsabilidade tem de ser pedida nos tribunais comuns. Tal responsabilidade não emerge do acidente de trabalho enquanto tal, mas de eventual culpa do terceiro na sua produção, afere-se pelo regime da lei geral e nada tem a ver com a lei dos acidentes de trabalho”, como refere, ainda, o citado acórdão.
Cremos, portanto, que não só não é possível reduzir o montante dos créditos derivados do acidente, como já referido por não ter aqui aplicação outro regime legal que não o da reparação de acidentes de trabalho, como não é possível determinar responsabilidades entre a Autora e a colega que a agrediu, terceiro neste acidente, por, para tal, não ser materialmente competente o tribunal de trabalho.
A colega de trabalho da Autora é completamente alheia à relação laboral, entre esta e a entidade empregadora (e seguradora para quem estava transferida a responsabilidade) e não é, nem beneficiária nem responsável pelo acidente, não lhe sendo aplicável a Lei 98/2009 de 04.09 - LAT, neste caso.
Por isso, o seu grau de participação não pode, salvo melhor opinião, ser avaliado neste processo, indo a douta sentença em recurso para além daquilo que podia conhecer (o que, eventualmente, podia constituir motivo de nulidade, atento o disposto no art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC, a arguir perante o tribunal que proferiu a sentença).
6. 3. A Lei dos acidentes de trabalho prevê no seu artigo 17º o acidente causado por outro trabalhador ou por terceiro, e o regime aplicável neste caso.
Assim, quando a acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais. – n.º 1 – podendo, como a seguradora, sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis, que têm ainda direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente. – n.ºs e 5.
Não sendo cumuláveis as indemnizações, se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido. – n.º 2
Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante. – n.º 3
Como refere Carlos Alegre(18), “nestas situações o acidente reveste dupla natureza de acidente de trabalho e de acidente (ou crime) por facto ilícito de outrem.
Na medida em que o acidente ocorra dentro dos parâmetros locais e temporais previstos no art.º 6º (hoje 8º) a entidade patronal responde sempre em termos de responsabilidade objectiva; responsabilidade a que se junta a responsabilidade civil por factos ilícitos ou, mesmo, a responsabilidade criminal, quando outros trabalhadores (companheiros) ou terceiros tenham, culposamente, causado o acidente.”
Assim, a entidade empregadora, através da Seguradora, é sempre responsável pela reparação do acidente de trabalho.
Podendo esta, Seguradora, em acção de regresso, pedir ao causador do acidente, o pagamento das quantias pagas ao lesado/sinistrado.
Neste caso, cremos assim, que o regime especifico de reparação dos acidentes de trabalho não consente a disciplina de outros regimes e de outras jurisdições, nomeadamente em relação a aspectos nele especificamente previstos.
Assim, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, não podia a douta sentença reduzir a 50% os montantes das indemnizações e pensão e demais créditos da Autora derivados deste acidente de trabalho, mas, antes, condenar a Recorrente, na totalidade destas quantias, podendo esta, se assim o entender, reclamá-las depois à colega da Autora, que cometeu este acto ilícito.
Entende-se, assim, que será de revogar a douta sentença em recurso neste particular, bem como no segmento em que condenou a A. a devolver à Seguradora a quantia de €608,02 (seiscentos e oito euros e dois cêntimos), respeitante a indemnizações pelas incapacidades temporárias, pagas em excesso, por força da repartição de culpas fixada, a descontar no capital de remição,
e condenar, antes, a Recorrente a pagar à recorrida a totalidade daqueles montantes, a saber:
- o capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia no montante de €264,60, desde 24.04.2019, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde aquela data até integral pagamento.
- a quantia de €32,58, a título de diferenças na indemnização pelos períodos de Incapacidade fixados, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde 24.04.2019, até integral pagamento.
- a quantia de €30, resultante das despesas de transporte que a A. teve em deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e ao Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
No mais, deve ser mantida a douta sentença recorrida.
*
Pelo que, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, emite-se parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso,
Mas também,
De revogar a douta sentença recorrida, nos segmentos em que reduziu a 50% o valor do capital de remição e diferenças de indemnização por incapacidades temporárias e despesas de transportes, e condenar a recorrente pelos valores totais, de 100%, bem como revogar a douta sentença na parte em que condenou a recorrida a devolver a quantia de 608,02€ à recorrente, mantendo-se no mais decidido.” [fim de transcrição]
4.3. A questão ora em apreço foi suscitada pelo Ministério Público no âmbito do parecer que emitiu nos termos do art. 87º, nº 3, do CPT.
O Ministério Público, nos processos emergentes de acidente de trabalho, caso não patrocine o sinistrado (cfr. arts. 7º, al. a), e 119º, nº 1, do CPT), tem legitimidade para intervir como parte acessória como decorre do disposto nos arts. 9º do CPT e 5º, nº 4, al. b), do Estatuto do Ministério Público, com as alterações introduzidas pela Lei 114/2017, de 29.12 [cfr., designadamente, Acórdão da RG de 07.03.2019, Proc. 105/17.9T8VFR.G1, in www.dgsi.pt].
E, como parte acessória, intervém nos termos do disposto no art. 325º do CPC/2013, de harmonia com o qual: “1 – Sempre, que nos termos da respectiva Lei Orgânica, o Ministério Público deva intervir acessoriamente na causa, é-lhe oficiosamente notificada a pendência da acção, logo que a instância se considere iniciada. 2 – Compete ao Ministério Público, como interveniente acessório, zelar pelos interesses que lhe estão confiados, exercendo os poderes que a lei processual confere à parte acessória e promovendo o que tiver por conveniente à defesa dos interesses da parte assistida. 3 – O Ministério Público é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida.
4 – Até à decisão final e sem prejuízo das preclusões previstas na lei de processo, pode o Ministério Público, oralmente ou por escrito, alegar o que se lhe oferecer em defesa dos interesses da pessoa ou entidade assistida.”
No caso, a A. encontra-se patrocinada, no âmbito do benefício de apoio judiciário, por patrona nomeada, e não pelo Ministério Público, a qual não recorreu da sentença. Não obstante, tinha também o Ministério Público, que foi notificado da sentença, legitimidade para, nos termos do nº 3 do citado art. 325º, dela recorrer na qualidade de parte acessória, o que não ocorreu.
Acontece, porém, que os direitos emergentes de acidente de trabalho têm natureza indisponível e irrenunciável como decorre do disposto nos arts. 12º e 78º da Lei 98/2009, de 04.09 e, como tal e nos termos do art. 608º, nº 4, do CPC/2013, sendo de conhecimento oficioso a matéria relativa a tal reparação. Aliás isso mesmo decorre do disposto no art. 74º do CPT, de harmonia com o qual “o juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos temos do artigo 412º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.
Ou seja, serve o referido para dizer que, ainda que a questão da impossibilidade de redução do direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho em função da concausalidade do comportamento da sinistrada (e da consequente percentagem de culpa na sua ocorrência) haja sido suscitada pelo Ministério Público apenas em sede do parecer a que se reporta o art. 87º, nº 3, do CPT (e não através da interposição de recurso da sentença), afigura-se-nos que se impõe a esta Relação o conhecimento oficioso de tal questão (tanto mais que, tendo a pretensão da Recorrente por objecto a redução da sua percentagem de responsabilidade com base na alegada concausalidade, se imporia pronúncia sobre a redução da reparação).
De referir ainda que foi cumprido o contraditório, pois que, tendo sido a questão suscitada pelo Ministério Público no seu parecer, foi o mesmo notificado às partes que, nos termos do citado art. 87º, nº 3, a ele podiam ter respondido.
4.4. E apreciando de tal questão, concordamos com as doutas considerações tecidas no parecer do Ministério Público que, de forma cabal, aprecia da questão e que, assim, nos dispensamos de reproduzir, pouco ou nada mais havendo a acrescentar.
Apenas se entende ser de realçar, de modo muito sintético, que a reparação emergente de acidente de trabalho se encontra, de forma taxativa, regulamentada em lei especial, qual seja a Lei 98/2009, que não prevê norma semelhante ao art. 570º do Cód. Civil, nem para ele remete. E, como decorre da citada Lei, a culpa do sinistrado apenas poderá relevar nos termos e para os efeitos do art. 14º da mesma, ou seja, para efeitos da descaracterização do acidente como acidente de trabalho. Ou seja, ou a culpa do sinistrado, nos termos desse art. 14º, determina a perda (total) do direito à reparação ou, não sendo esse o caso, é então devida a reparação nos termos previstos na Lei 98/2009, sem qualquer redução em função da culpa ou da concausalidade do comportamento do sinistrado para a produção do acidente.
E, assim sendo, impõe-se revogar a sentença recorrida, condenando-se a Ré Seguradora na totalidade da reparação devida (e não apenas em 50%), bem como revogar a sentença na parte em que condenou a A. a devolver à Ré/Recorrente a quantia de 608,02€.
A totalidade do capital de remição é o correspondente a uma pensão anual e vitalícia no montante de €264,60 e, o total da indemnização pelos períodos de incapacidade temporária em dívida é de €32,58.

4.5. E, assim sendo, fica prejudicado o conhecimento da questão, suscitada pela Ré/Recorrente, da alteração da percentagem de culpa da Autora (sinistrada) na produção do acidente, de 50% para 75% [diga-se que, precisamente pelas razões apontadas, nunca poderia proceder esta pretensão da Recorrente].
***
IV. Decisão
Em face do exposto acorda-se em:
A. Negar provimento ao recurso.
B. Oficiosamente, revogar a sentença quanto aos segmentos decisórios 4, 5 e 6, em que reduziu a 50% o valor do capital de remição e diferenças de indemnização por incapacidades temporárias e despesas de transportes, que é substituída pelo presente acórdão em que se decide:
b.1. Condenar a Ré, G..., SA, a pagar à A., AA, desde 24.04.2019, o capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia no montante de €264,60, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde aquela data até integral pagamento.
b.2. Condenar a Ré, G..., SA, a pagar à A., AA, a quantia de €32,58 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
b.2. Condenar a Ré, G..., SA, a pagar à A., AA, a quantia de €30, resultante das despesas de transporte que esta teve em deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e ao Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
C. Revogar a sentença recorrida no que toca ao ponto 8 do seu segmento decisório, isto é, na parte em que condenou a Autora, AA, a devolver à Seguradora, G..., SA, a quantia de €608,02 “respeitante a indemnizações pelas incapacidades temporárias, pagas em excesso, por força da repartição de culpas fixada, a descontar no capital de remição”.
D. No mais impugnado no recurso, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 04.04.2022
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo de Freitas
____________________
[1] Das notas 6, 7, 8, 9, e 10 do parecer transcrito consta o seguinte:
“6 - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças profissionais, 2 ª edição, Almedina, Coimbra, p. 125.
7 – proferido no proc. 3080/15.0T8PTM.E1, in www.dgsi.pt.
8 – Ac. Do STJ, de 11-04-2018, Proc. n.º 45/11.5TTCLD.C1.S1 (Revista) – 4.ª Secção (Chambel Mourisco), e, Ac. do STJ, n.º 254, Ano XXII, tomo I/2014, pg. 241.
9 - Pedro Romano Martinez, ob. cit. pg. 899.
10 - Ac. do STJ, n.º 254, Ano XXII, tomo I/2014, pg. 241.”
[2] Cfr. designadamente, acórdão desta Relação de 11.09.2017, Proc. 62/15.8Y7PRT.P1, relatado pela ora relatora, in www.dgsi.pt., ainda que com base em diferente circunstancialismo fáctico diferente.
[3] Das notas 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 do parecer transcrito consta o seguinte:
“12 – João Augusto Pacheco e Melo Franco, Direito do Trabalho, BMJ, 1979, suplemento, p. 57/58.
13 – Que dispunha: “os empreendedores, ou executores de edificações, quer proprietários, quer empreiteiros de obra, os donos de estabelecimentos industriais, comerciais ou agrícolas, e as companhias ou indivíduos construtores de estradas e de caminhos de ferro, ou de outras obras públicas, bem como os empresários de viação por vapor, ou por qualquer outro sistema de transporte, serão responsáveis, não só pelos danos, ou prejuízos causados à propriedade alhaeia, mas também pelos acidentes, que, por culpa sua, ou de agentes seus, ocorreram à pessoa de alguém, quer esses danos procedam de factos, quer de omissão de factos, se os primeiros forem contrários aos regulamentos gerais, ou aos particulares de semelhantes obras, industrias, trabalhos, ou empresas, e os segundos exigidos pelos ditos regulamentos.”
14 – João Augusto Pacheco e Melo Franco, Direito do Trabalho, BMJ, 1979, suplemento, p. 58.
15 – Ob. Cit. p. 58.
16 – Carlos Alegre, ob. Cit. p. 41.
17 – Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Temas Laborais, Almedina, Coimbra, p. 36.
18 – Carlos Alegre, ob. Cit. p. 150."