Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14885/13.7TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE PECULATO
SOLICITADOR DE EXECUÇÃO
CONSUMAÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
IN DUBIO PRO REO
INVESTIGAÇÃO OFICIOSA PELO TRIBUNAL
Nº do Documento: RP2018011014885/13.7TDPRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º01/2018, FLS.136-143)
Área Temática: .
Sumário: I - Não obsta à prolação de despacho de pronúncia do arguido, solicitador e agente de execução, para julgamento pelo crime de peculato, o facto de haver dúvidas sobre o montante apropriado, ou sobre se existe saldo a seu favor do arguido – por alegada impossibilidade de aceder à plataforma SISAAE:
a) se o crime se consumou, por existirem indícios suficientes de que,
b) o arguido teve na sua posse dinheiro, em razão das suas funções;
c) se comportou como se dele fosse proprietário, tendo feito transferências da conta- exequentes para uma conta de que era titular,
d) após as transferências, utilizou o dinheiro para efectuar pagamentos de compras e serviços pessoais e realizou levantamentos em ATMs, que depois utilizou em proveito próprio,
e) com a consciência de que se tratava de bem alheio do qual tinha a posse em razão das usas funções.
II - O princípio in dubio pro reo não funciona perante uma dúvida emergente da falta de exercício pelo tribunal dos seus poderes de investigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 14885/13.7TDPRT.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. nº 14885/13.7TDPRT do Tribunal da Comarca do Porto - Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 2 em que é arguido B….

Na sequência da acusação pública deduzida pelo MºPº por crime de peculato p. e p. pelo art.º 375º, n.º1, do C.P., por referência ao art.º 386º, n.º1, al. d), do C.P. e da instrução requerida pelo arguido, B…, foi proferido despacho de não pronuncia em 19/5/2017, que decidiu:
“Assim, pelas razões enunciadas e porque não estão demonstrados os requisitos do crime referido na acusação, determino o oportuno arquivamento dos autos.”

Recorre o Mº Pº, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1 - Na decisão instrutória junta a fls. 573 e ss, proferida pela Mm.ª Juiz de Instrução Criminal da 1ª secção de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, B… não foi pronunciado da prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375º, n.º1, do C.P., por referência ao art.º 386º, n.º1, al. d), do C.P., por que se encontrava acusado por despacho de acusação proferido a fls.379 a 385.
2 - Nos termos do art.º 375º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de peculato “o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções”.
3 - Da análise conjunta das declarações das testemunhas C…, D… (prestadas em 19-09-2016, em especial as registadas nos minutos 3:15-14:00; 15:00-23:00 e 31:00-39:00) e dos elementos bancários de fls. 70 a 119, 251 a 291, 295 e 298 e juntos nos apensos I e II, resulta que o arguido, na qualidade de agente de execução, transferiu €22.886,13, que lhe haviam sido entregues no exercício das suas funções e que se encontravam nas contas clientes, para a sua conta pessoal e que, após, efetuou levantamentos bancários e pagamentos de compras em estabelecimentos comerciais.
7 - Assim, uma correta apreciação da prova levaria à conclusão de que o arguido atuou com intenção de se apropriar dos referidos €22.886,13 e que se verificam todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de peculato e, consequentemente, à prolação por parte da Mmª Juiz a quo de um despacho de pronuncia do arguido, pelo que, não o fazendo, a decisão recorrida violou o disposto no art.º 235º, n.º1, do C.P.
8 - O princípio in dúbio pro reo não é arbitrário, só podendo ser utilizado em situações de dúvida razoável, séria e inultrapassável após analisada toda a prova;
9 - De acordo com o disposto nos art.ºs 288º, n.º1; 289º, n.º1, 290º e 292º, na fase de instrução, o juiz de instrução determina a prática de todos os atos necessários á comprovação judicial da decisão de decidir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, podendo determinar a realização de todos os meios de prova que não forem proibidos por lei.
10 - Nos termos do art.º 9º, n.º2, do C.P.P., os tribunais, no exercício da sua função, têm direito a ser coadjuvados por todas as outras autoridades, preferindo a colaboração solicitada a qualquer outro serviço.
11 - Assim, entendendo que a consulta da plataforma SISAAE pelo arguido era essencial à formação da sua convicção e que a Ordem dos solicitadores e dos Agentes de Execução não o estava a facultar, a Mm.ª Juiz a quo deveria ter tomado as medidas necessárias à sua efetivação, nomeadamente determinando que aquela entidade permitisse o acesso provisório àquela plataforma pelo arguido, acompanhado por alguém que tivesse esse acesso ativo, o que já não sucedia com o arguido.
12 - Tendo sido solicitada pela Mm.ª Juiz a quo o acesso pelo arguido á plataforma SISAAE e tal não tendo ocorrido, tal situação não permite ao julgador o recurso ao princípio in dúbio pro reo, mas sim a tomada de medidas conducentes à concretização do solicitado.
13- Pelo que, ao atuar de outra forma, e aplicar o princípio in dúbio pro reo, a decisão recorrida violou este princípio.

O arguido respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência;
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido procedência do recurso
Foi cumprido o artº 417º2 CPP e o arguido respondeu defendendo a decisão.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta do despacho de não pronúncia (transcrição):
“(…)
Não há, excepções ou questões prévias, de que cumpra conhecer (todo o requerimento instrutório é elaborado com a alegação de uma nulidade, que abaixo de tratará). -
Inconformado com a acusação, veio o arguido B… requerer a abertura da instrução, alegando em síntese que não praticou os factos do modo descrito naquela peça processual. - Juntou documentos. - Procedeu-se a Debate Instrutório, com observância do legal formalismo conforme consta da respectiva acta. -
Cumpre decidir.
Conforme resulta dos autos, o arguido encontra-se acusado pela prática de um crime de peculato, p. e p. pelo art.º 375º, n.º1, do C.P., por referência ao art.º 386º, n.º1, al.d), do C.P.
Refere-se naquela peça que, no período compreendido entre 02-01-2012 e 11- 10-2013, o arguido, enquanto exercia as funções de solicitador de execução recebeu, nomeadamente através da realização de penhoras e de pagamentos voluntários por parte dos executados e de terceiros, quantias monetárias destinadas ao pagamento das quantias exequendas e demais encargos com os processos que lhe foram distribuídos, bem como quantias monetárias a título de preparos, despesas e honorários a pagar nos referidos processos. De acordo com o determinado pelo art.º 124º, n.º3, do DL n.º 88/2003, de 26/04 (diploma vigente na data dos factos), o arguido deveria proceder obrigatoriamente ao depósito, nas contas clientes exequentes, de todas as quantias monetárias recebidas destinadas a preparos, despesas e honorários; e, nas contas clientes de executados, de todas as quantias monetárias recebidas e destinadas ao pagamento das quantias exequendas e demais encargos com os processos.
Acabou por assim não proceder, fazendo coisa sua a quantia de €22.886,13, sabendo que a mesma não lhe pertencia e que lhe havia sido entregue no âmbito dos processos executivos que lhe foram distribuídos na qualidade de agente de execução, tendo tido acesso; à mesma em virtude e no exercício das suas funções de agente de execução e que aquela quantia devia ser utilizada para pagamento das quantias exequendas, despesas e encargos relacionados com os processos executivos que lhe foram distribuídos e que agia contra os deveres inerentes às suas funções.
A acusação louva-se em prova de natureza testemunhal e sobretudo, documental, estando o processo disciplinar nos autos sob a forma de CD (fls. 367).
Sobre o crime de peculato:
Dispõe o nº1 do art.º 375º, do CP, que “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Como se refere no AC da RE, datado de 17/03/2015, in www.pgdlisboa.pt, “ O crime de peculato é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de resultado, quanto á forma de consumação do ataque ao objecto da acção. 3. O objecto do crime de peculato é duplo: por um lado, a tutela de bens jurídicos patrimoniais; e, por outro, a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários. 4. São elementos típicos do crime de peculato: a) Que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386º do C. P.; b) Que tenha a posse do bem (dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções; c) Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a «inversão do título de posse ou detenção»; d) Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro. 5. A consumação ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente”.
No AC datado de 18/01/01, do STJ, P. N.º 2833/00, 5ª secção refere-se que, “ no crime de peculato o funcionário apropria-se ilegitimamente, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções.
II - Trata-se de um delito específico em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo, no caso, um funcionário, diversamente do que sucede com os tipos legais de crime, em geral, nos quais os factos podem ser levados a cabo por qualquer pessoa, podendo apresentar-se como um crime de abuso de confiança qualificado, face à evidência das semelhanças na delineação do tipo, posta a nu pela confrontação do n.° 5 do art. 205.º do C. Penal com o n.° l do art. 375.º, estabelecendo-se uma relação de especialidade que conduz a um concurso aparente”.
Por seu turno, refere o AC do STJ, de 16/02/00, P. N.º 1153/99, 3ª secção que:” O crime de peculato consuma-se no preciso momento em que o agente, tendo em seu poder verbas que, legalmente, tinham um determinado fim, as desvia para seu próprio proveito. A posterior entrega das verbas em causa só tem interesse do ponto de vista da reparação do prejuízo anteriormente provocado, sendo irrelevante para a consumação do ilícito”.
Ainda do mesmo tribunal, diz-se no AC datado de 4/12/97, P. n.º 978/97, 3ª secção que, “o que caracteriza o peculato, é a apropriação ilegítima pelo funcionário em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou de qualquer coisa móvel pública ou particular, que esteja na sua posse em razão das suas funções. Tal apropriação, todavia, pressupõe que o dinheiro ou a coisa estejam na posse legítima do arguido, ao contrário do que se passa na burla, em que os bens vêm à sua posse ilegitimamente, por força da astúcia utilizada”.
Quanto ao momento da apropriação, em que se verifica a inversão do título da posse, refira-se que “Para o crime de peculato, tal como para o crime de abuso de confiança, o que releva para definir a consumação do crime, é a apropriação, não o propósito de apropriação. Aquela consuma-se com a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar. Qualquer dessas atitudes revela que o arguido agiu como se o dinheiro fosse dele, usou-o como se fosse o respectivo dono, apropriando-se do mesmo.
II. É esse o momento da inversão do título da posse, pois, enquanto até ali, o agente possuía em nome de terceiro - tendo aquele recebido o bem por título não translativo da propriedade -, a partir de então agiu como dono da coisa que lhe foi entregue” – AC da RL, datado de 19/05/2015, na mesma base de dados acima aludida.
Temos assim que o crime se consuma com a verificação de determinadas realidades, realidades essas que estão indiciariamente demonstradas nos autos, quais sejam, o agente ser um funcionário para efeitos do artigo 386º do C. P.; ter tido na sua posse dinheiro, em razão das suas funções; comportar-se como se fosse proprietário do dinheiro, fazendo-o seu (o arguido efectuou transferências da conta n.º ….……. do E… (exequentes), para a conta n.º ……….. do F…/G…, de que o arguido é titular (fls. 311 a 316; após a transferência, o arguido utilizou as quantias monetárias transferidas para efetuar pagamentos de compras pessoais em estabelecimentos comerciais, pagamentos de serviços pessoais e realizou levantamentos de dinheiro em ATM’s que, depois, utilizou em proveito próprio (Apenso II)), com consciência de que se tratava de bem alheio do qual tinha a posse em razão das suas funções.
O tipo verifica-se com a conjugação destes factores, não sendo relevante o montante apropriado, bastando para a sua consumação a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa, dando-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar.
Na defesa que apresenta no RAI o arguido aceita que procedeu às transferências, não aceitando ser devedor da quantia de 22.886.13€; refere que enquanto não puder aceder à plataforma SISAAE, não pode conferir e conciliar saldos, admitindo até que após tal conferência tais saldos possam ser neutralizados, ou revelarem-se até credores a favor do arguido. Elenca no RAI falhas relativas àquela plataforma, razão pela qual tramitou manualmente os seus processos, admitindo que, por isso, tenha cometido alguma irregularidade processual.
Está junta aos autos a fls. 429, carta dirigida pelo arguido à Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça, no sentido de lhe ser facultado o acesso ao relatório de liquidação, referindo que nunca nada lhe foi respondido; o mesmo aconteceu com o pedido que fez à Agente de Execução Liquidatária. Diz que, contrariamente ao que dos autos consta, apenas teve conhecimento dos factos quando consultou o inquérito, em Janeiro de 2016, estando aquela fase inquinada por nulidade, nos termos do art.º 120, 1 e 2, do CPP.
Da análise do inquérito:
Conforme decorre dos autos, no escritório do arguido, em 10 de Outubro, de 2013, por membro da Comissão para a Eficácia das Execuções, foram analisados quatro processos, tendo sido detectados movimentos irregulares, decidindo-se instaurar procedimento disciplinar. Já nessa altura admitiu o arguido atrasos, dada a sua profissão de advogado e devido ao mau funcionamento do SISSAE. Por esse motivo pediu a cessação de funções.
A fls. 121 foi inquirida C…, que foi a agente de execução liquidatária do escritório do arguido, referindo que constatou a existência de processos com movimentos por conciliar e que esses processos “não denunciam a apropriação de valores, tal só é perceptível quando analisados os saldos das contas bancárias e o resultado do relatório final da liquidação do escritório. Foi ouvida de novo a fls. 179 e sgs., e por referência ao documento de fls. 171/2, por si elaborado, diz, “não tem dados que lhe permitam afirmar se existe ou não apropriação dos valores das contas clientes, porquanto nem sequer conhece os saldos das referidas contas”.
O arguido foi ouvido a fls. 191, em Janeiro de 2015, reiterando os constrangimentos da plataforma informática, referindo que as verbas recebidas foram aplicadas. Frisa ser imperioso proceder-se à conciliação informática dos movimentos, negando ter-se apropriado de forma ilegítima de qualquer verba, dizendo que o reembolso dos exequentes foi feito sem qualquer exclusão e que as discrepâncias de saldos foram por falta de conciliação electrónica.
Confrontado com o valor de 22.000€, pede, a fls. 231, a consulta dos autos.
A fls. 334 consta o relatório final da PJ, cujas conclusões determinaram a dedução da acusação agora sindicada em instrução.
No entanto, aquelas conclusões não são mais do que a demonstração do já referido no início da investigação, ou seja, indícios de que o arguido não movimentou de forma regular as contas clientes que titula, sendo o seu saldo insuficiente.
Porém há que confrontar tais conclusões com o depoimento da agente de execução acima aludido, que por duas vezes referiu não se poder falar de apropriação, elemento de que depende a verificação do tipo legal em causa.
Por outro lado, situação que se manteve em sede de instrução, apesar de várias tentativas nesse sentido, ao arguido não foi possibilitado conferir os movimentos, pretensão que desde cedo manifestou.
E se está demonstrada nos autos conduta do arguido susceptível de gerar procedimento disciplinar (ocorrido e efectivado – interdição definitiva do exercício da actividade), se, conforme a testemunha que depôs em sede de instrução (fls. 515), as falhas do sistema informático não justificam os erros do arguido, não está demonstrado, de forma a que seja de prever, num grau de certeza seguro, a sua condenação em sede de julgamento, que se tenha apropriado dos montantes referidos na acusação, considerando, sobretudo, os depoimentos de C… e as declarações do arguido. E porque não lhe foi possibilitada a conferência de saldos, como sempre pretendeu, subsiste a dúvida sobre se, com essa conferência, os saldos seriam os da acusação. Com efeito, da decisão final do relatório disciplinar de fls. 528 e sgs., em que foi aplicada a pena de interdição definitiva do exercício da actividade, consta, como dever violado, “não ter contabilidade organizada nem manter as contas clientes segundo o estatuto (…)”, nada se dizendo sobre “apropriação”.
Acentuamos aqui, que o direito penal, para segurança e garantia de todos nós, só deve intervir quando nenhum outro ramo possa dirimir o conflito.
Como refere Souto Moura, (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 4, pág. 579), “é essencial que o direito penal (...) seja um direito penal da lei. Mas não é menos importante que o direito penal seja um direito penal do facto e um direito penal da culpa”.
A este propósito refere também Claus Roxin (“Problemas Fundamentais do Direito Penal”, ed. Veja, pag. 28),citado no despacho de arquivamento do procº de instrução nº 390/98, que “ o direito penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões dos bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios de direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se. (...)por ser a reacção mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar. Se for utilizada quando bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem jurídica, carece da legitimidade que lhe advém da necessidade social e a paz jurídica vê-se perturbada pela presença de um exército de pessoas com antecedentes criminais numa medida superior á que pode ser fundamentada pela cominação legal.
Não se pode pois, como já se disse, afirmar de modo pleno, com o nível de segurança mínimo exigido nesta fase processual,que o arguido tivesse cometido o crime em causa.
São indícios suficientes aqueles que relacionados e conjugados, persuadem o Juiz da culpabilidade do arguido, fazendo antever, com razoável grau de probabilidade a sua ulterior condenação.
A decisão de pronúncia deve pois ser precedida por um juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma futura decisão condenatória. É que, ”tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige-se que a acusação e a pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido” - AC da RP, de 20/10/93, CJ, T. IV, pag., 261.
Existindo dúvidas sobre a actuação do arguido, não devem nunca tais dúvidas ser valoradas contra o primeiro, sendo certo que a alta probabilidade contida nos indícios recolhidos, a que atrás se fez referência, deve aferir-se no plano fáctico e não jurídico. E neste plano, “a falta de provas não pode, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova...tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirme o princípio “in dubio pro reo.” - Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º, 1974, pag. 214.
Assim, pelas razões enunciadas e porque não estão demonstrados os requisitos do crime referido na acusação, determino o oportuno arquivamento dos autos”
*
São as seguintes as questões a apreciar:
- Se existem indícios suficientes da pratica do crime pelo arguido
- Violação do princípio in dubio pro reo
*
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335).

Como flui do despacho de não pronuncia recorrido, o diferendo, ocorre não quanto aos factos praticados na sua essencialidade mas por de acordo com o despacho haver duvidas sobre o montante apropriado e se o foi pois pode haver saldo a favor do arguido o qual não teve acesso à plataforma de modo a poder averiguar tal facto.
Contra o que se insurge o recorrente, por competir ao tribunal resolver pelo poder que detém essa falta, e aceder à plataforma
Vejamos.
Em primeiro lugar importa averiguar que indícios existem.
Decorre do próprio despacho de pronuncia que existem indícios da pratica do crime pois: “Temos assim que o crime se consuma com a verificação de determinadas realidades, realidades essas que estão indiciariamente demonstradas nos autos, quais sejam, o agente ser um funcionário para efeitos do artigo 386º do C. P.; ter tido na sua posse dinheiro, em razão das suas funções; comportar-se como se fosse proprietário do dinheiro, fazendo-o seu (o arguido efectuou transferências da conta n.º ………… do E… (exequentes), para a conta n.º ……… do F…/G…, de que o arguido é titular (fls. 311 a 316; após a transferência, o arguido utilizou as quantias monetárias transferidas para efetuar pagamentos de compras pessoais em estabelecimentos comerciais, pagamentos de serviços pessoais e realizou levantamentos de dinheiro em ATM’s que, depois, utilizou em proveito próprio (Apenso II)), com consciência de que se tratava de bem alheio do qual tinha a posse em razão das suas funções.
O tipo verifica-se com a conjugação destes factores, não sendo relevante o montante apropriado, bastando para a sua consumação a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa, dando-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar.”
O que é aceite pelo arguido, desse despacho constando que “Na defesa que apresenta no RAI o arguido aceita que procedeu às transferências, não aceitando ser devedor da quantia de 22.886.13€; refere que enquanto não puder aceder à plataforma SISAAE, não pode conferir e conciliar saldos, admitindo até que após tal conferência tais saldos possam ser neutralizados, ou revelarem-se até credores a favor do arguido.”
É quanto basta para dar com o verificado o crime. O arguido apropriou-se, usou e fez seu o dinheiro que não lhe pertencia, e que lhe fora entregue em razão das suas funções e no exercício delas. Se depois da apropriação e do seu uso, o devolveu, no todo ou em parte, é questão que para a verificação dos elementos típicos do crime não interessa, e nada tem a ver com esta perfeição do crime, pois é facto posterior a ele, podendo também ter a ver com razões de punibilidade ou não, ou de determinação da pena ou elemento atenuativo, em face da reparação do mal do crime.
Ora apenas é este, o acerto de contas que faltaria apurar (ou seja o que devolveu), não o montante de que se apoderou e usou.
Ora verificados os elementos típicos do crime, este só não será punível de existir uma causa de justificação ou uma caus ade exclusão da culpa ou uma caus ade desculpa e nenhuma dessas é aventada.
Dizer que tramitou manualmente os processos por falhas da plataforma, afigura-se-nos por ora, sem relevo, pois as apropriações resultam dos dados inscritos na plataforma, pelo que não nos parece que seja “desculpa” antes parece ser modo de encobrir (não revelar) o que estava a fazer, poias a plataforma existe para evitar fugas, devendo tudo ali ser contabilizado.
Existem assim indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento, por se verificaram os elementos típicos do crime e inexistir causa de justificação que torne licita ou sem culpa a conduta do arguido.

E se compete ao tribunal julgar também lhe cabe, como dever funcional, apurar a verdade até final do julgamento (artº 340º CPP), e para isso tem os poderes coactivos necessários, só tem efectivamente que exercê-los.
Cabe isto para dizer, que o principio in dubio pro reo, não funciona perante uma dúvida emergente da falta de exercício pelo tribunal dos seus poderes de investigação.
A dúvida relevante, que faz operar tal principio tem de ser uma dúvida insanável: ou seja, por não ter sido possível ultrapassar o estado de incerteza após aplicação de todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos; dúvida razoável: sendo uma dúvida séria, racional e argumentada; e uma dúvida objectivável: porque justificável perante terceiros excluindo as dúvidas arbitrárias ou as meras conjecturas ou suposições, o que não nos parece ser o caso, pois estando apenas em causa o acesso à plataforma ou o saber, não quanto o arguido se apropriou que esse já é sabido, mas quanto está em dívida, isso pode e devia ser apurado, sendo que, e como referido, tal não interfere com a prática do crime que se mostra consumado, nem parece constituir caus ade justificação.
O tribunal ao invocar o princípio por não ter havido acesso àquela plataforma, quando o arguido aceita ter-se apropriado do dinheiro, mas apenas não saber quanto deve, ou até tem a haver, quando pode e deve fazer diligencias para apuramento desse facto, fez uso indevido do princípio in dubio pro reo.
A existência do processo disciplinar não colhe, face às suas finalidades - averiguar da violação ou não dos deveres inerentes ao cargo exercido - e não a investigação de um crime, sendo por isso diferentes os seu objecto e interesse visado.
Deve por isso o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime imputado se outras razões a tal não obstarem.
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e em consequência revoga o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime que foi acusado, se outras razões a tal não obstarem.
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Porto 10/01/2018
José Carreto
Paula Guerreiro