Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2967/15.5T8LOU.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
CONSTITUIÇÃO OU RECONHECIMENTO DE OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201809112967/15.5T8LOU.P1
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 843, FLS 117-123)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ART. 703º DO CC
Sumário: I - À luz do artigo 703º do novo CPC não pode suportar a execução um documento particular que importou a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária e que constituía título executivo no âmbito da vigência do artigo 46.º, alínea c), do CPC de 1961.
II- Porém, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dessa norma, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961, repristina o regime anterior e determina o prosseguimento da execução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2967/15.5T8LOU
Comarca do Porto Este, Lousada, instância central, secção de execução - J1

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B..., residente na Rua ..., n.º ..., em Penafiel, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra C..., residente em ..., ..., Lousada, dando à execução um documento particular por este subscrito, datado de 10/12/2002, no qual se confessa devedor àquele da quantia de 5.000,00 euros e que se obriga a pagá-la em prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de 250,00 euros cada, iniciando-se o pagamento em 10/02/2013 e as restantes em igual dia do mês subsequente.
Foi proferido despacho de indeferimento liminar com fundamento no facto de o documento particular apresentado pelo exequente não constituir título executivo.

Inconformado, recorreu o exequente e, alegando, aduziu as seguintes conclusões:
«a) Tem o presente recurso por objecto matéria de direito, visando-se com a sua interposição indagar se o documento dado à execução – documento particular de confissão de dívida assinado pelo devedor datado de 10 de dezembro de 2002 – constitui ou não um título executivo.
b) O documento apresentado como título executivo não se encontra autenticado nem constitui um documento autêntico, sendo porém um documento de reconhecimento da dívida por parte do devedor.
c) O requerimento executivo veio a ser liminarmente indeferido pelo M.mo juiz do tribunal a quo porquanto entendeu o mesmo que, nos termos do artigo 703º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, à execução apenas podem servir de base os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem o reconhecimento de uma obrigação.
d) Sufragando o tribunal recorrido que o documento apresentado pelo exequente não obedece aos requisitos legais, uma vez que era necessário que o mesmo tivesse sido exarado por entidade competente ou o seu conteúdo tivesse sido confirmado pelas partes perante tal entidade, indeferindo liminarmente o requerimento executivo.
e) Não partilhamos do entendimento do tribunal a quo, sendo nosso parecer que o documento junto com o requerimento executivo constitui um título executivo válido e eficaz.
f) O documento dado à execução, na altura em que foi outorgado, constituía um título executivo válido à luz do ordenamento jurídico.
g) O princípio da irretroactividade das normas jurídicas é um princípio geral de direito, com assento no artigo 12º do código civil e tendencialmente aplicável a toda a ordem jurídica.
h) O artigo 703º do Código de Processo Civil não poder ser interpretado da forma como fez o tribunal a quo, pois consideramos que todos os documentos particulares outorgados antes do novo CPC mantêm a sua exequibilidade, independentemente da acção já ter sido proposta ou não.
i) Se assim não fosse estaríamos a atribuir ao destinatário da norma uma consequência diversa e mais gravosa, qual seja a da inexequibilidade do título, violando-se assim de forma irremediável os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança que são princípios do Estado de Direito.
j) O artigo 703º do CPC, interpretado no sentido da sua aplicação aos documentos pré-existentes à data da sua entrada no ordenamento jurídico, é inconstitucional.
k) O argumento do tribunal recorrido de que o exequente pode sempre socorrer-se da acção declarativa para que volte e ficar munido de um título executivo (que para si já detinha) não nos parece ser um argumento defensável uma vez que tal sempre implicaria uma injustificada e onerosa dificuldade de acesso aos tribunais, sendo certo que sempre se poderia contrapor que também o executado, considerando-se a exequibilidade do documento não autenticado, se poderá defender mediante a oposição à execução e à penhora caso não reconhecesse, por um qualquer motivo, a autenticidade do documento ou a existência da dívida.
l) O artigo 703º do código de processo civil não poderá ser aplicado ao presente caso, o que equivale a dizer que, não obstante a alteração legislativa ocorrida com a sua entrada no ordenamento jurídico, não deixaram os documentos particulares não autenticados de ser títulos exequíveis, motivo pelo qual, sendo o documento dado à execução um título executivo, deverá ser ordenado o prosseguimento da execução.
m) Violou assim o tribunal a quo o artigo 703º do Código de Processo Civil, o artigo 2º da Constituição da República portuguesa e o artigo 12º do Código Civil, termos em que deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, sendo o despacho de indeferimento liminar revogado e ordenado o prosseguimento da acção executiva.»

Citado o executado, o mesmo não respondeu à alegação do recorrente.

II. Objeto do recurso
O âmbito recursivo é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso [artigos 635º/4, 637º/2 e 639º/1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC]. A questão solvenda reside em indagar se o documento apresentado é dotado de força executiva para sustentar o prosseguimento da execução e, sendo a resposta negativa, se viola o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

II. Fundamentação de facto
1. O exequente intentou, em 05/06/2015, a presente execução contra C..., com base num documento particular, intitulado ‘confissão de dívida’, por ele subscrito, datado de 10/12/2002, no qual se confessa devedor àquele da quantia de 5.000,00 euros e se obriga a pagá-la em prestações mensais, iguais e sucessivas no valor de 250,00 euros cada, iniciando-se o pagamento em 10/02/2013 e as restantes em igual dia do mês subsequente.
2. Esse documento não contém autenticação.

III. Fundamentação de direito
A ação executiva supõe a apresentação de um documento revestido de exequibilidade, ou seja, a ação executiva não pode prosseguir se o exequente se não encontrar munido de um título executivo. Na definição da ação executiva, o artigo 10º/4 do CPC consagra que a ação executiva é aquela em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida. Tal como plasmado no n.º 5 da mesma norma, «toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva». Portanto, é o título executivo que define os limites subjetivos e objetivos da ação executiva e que constitui a sua base, revelando, por si só, com um mínimo de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo.
Neste enquadramento, o ordenamento jusprocessual civil apresenta uma enumeração taxativa das espécies de títulos executivos que podem servir de fundamento à ação executiva, pelo que são inadmissíveis convenções entre as partes para a atribuição de força executiva documentos que não integrem o elenco normativo (artigo 703º do CPC)[1].
Este preceito qualifica como títulos executivos os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (n.º 1, b)], o que não deixa quaisquer dúvidas quanto à necessidade de a exequibilidade dos documentos particulares de reconhecimento de dívida terem de ser exarados ou autenticados pelo notário ou outra entidade com competência para tal. Aliás, a exposição de motivos da proposta de lei que deu origem àquela que veio a aprovar o Código de Processo Civil (lei 41/2013, de 26 de junho) expressa que os «(…) créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. (…) opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem», com ressalva dos «(…) títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva».
Assim, é inequívoco que, à luz da norma vigente, os meros documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, carecem de exequibilidade. Foi a partir deste enquadramento jurídico que a decisão recorrida entendeu que o documento em causa, embora sendo uma confissão de dívida, não constitui um documento autêntico ou autenticado e, por isso, carece de força executiva bastante para sustentar a ação executiva. Entendimento que sufragou por a ação executiva ter entrado em juízo após a vigência desse preceito e, por conseguinte, transportar a aplicação do regime vigente nessa data.
Como o próprio exequente aceita, o documento não é autêntico nem exibe termo de autenticação e, por isso, não está dotado da exequibilidade conferida aos documentos particulares constitutivos ou recognitivos de uma obrigação.
Daí que a axialidade da defesa recursiva se centre nos princípios da aplicação da lei no tempo, defendendo que a circunstância do documento ser emitido antes da atual exigência legal de autenticação lhe confere valia bastante para sustentar a execução. Ampara a tese de que os requisitos de aferição de exequibilidade do título executivo é reportada à data da emissão do documento dado à execução e não à data da instauração da mesma execução.
A exegese do artigo 6º/3 do diploma de aprovação do atual CPC é clara quanto à aplicação do novo regime de títulos executivos às execuções instauradas após a sua entrada em vigor, ou seja, às ações executivas interpostas após 01/09/2013. Como este requerimento executivo deu entrada em juízo em 05/06/2015, os requisitos de exequibilidade do título executivo são aferidos em função do disposto no citado artigo 703º/1 do CPC, o que parece legitimar o acerto da decisão recorrida[2].
O princípio geral da aplicação das leis processuais no tempo é o da sua aplicação imediata. Na ausência de norma transitória, «a nova lei processual aplica-se nas próprias causas já instauradas, a todos os termos processuais subsequentes» e ficam de todo «sob o império da nova lei (…) os pleitos ulteriores à sua vigência». Opção justificada pelos seguintes fundamentos: «a) A natureza publicística do processo. A conveniência, portanto, da aplicação imediata da nova lei, já que melhor pretende regular o interesse público fundamental ligado de um modo geral a este ramo do direito. Sendo de mais elevada consideração, este interesse deve prevalecer sobre algum eventual interesse dos particulares em contrário. b) A natureza instrumental do processo: as leis de processo não proveem sobre o teu e o meu; não dizem o que pertence a cada um; não estatuem acerca de quais sejam os bens de cada um, mas só quanto ao modo de os defender em juízo. Daí a possibilidade da aplicação imediata da nova lei processual sem afectar os bens das partes, sem interferir na solução dada através do direito substantivo ao conflito de interesses que forma o substrato da relação material ventilada, e sem violar portanto quaisquer expectativas das partes atinentes a esse ponto. c) O princípio, implícito no comum das leis, de que estas só regem para o futuro: a máxima segundo a qual as leis contêm implícito um doravante, um daqui para o futuro, quando aplicada às leis do processo, significa naturalmente que os diversos actos processuais devem ter como lei reguladora a lei vigente ao tempo da sua prática»[3].
Aliás, situação similar foi já objeto de uniformização de jurisprudência, quando esteve em causa a redação atribuída pelo decreto-lei n.° 242/85, de 7 de julho, ao artigo 51°/1 do Código de Processo civil então vigente. Esse diploma dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques, então exigida para lhes conferir a natureza de títulos executivos, e o Supremo Tribunal de Justiça entendeu ser de aplicação imediata o novo regime, mesmo em execuções pendentes (assento 9/93, Diário da República n.º 294/1993, Série I-A de 18/12/1993). Assento esse que, ponderando que o artigo 51°/1 é uma típica norma de direito processual, diretamente relacionada com o meio processual adequado à defesa do direito material, considerou que a lei nova devia aplicar-se para o futuro e, portanto, às ações intentadas depois da sua entrada em vigor, independentemente da lei vigente na data da constituição da relação jurídica material, ocorrendo, nessa medida, a aplicação imediata ou retroativa da lei processual, justificada pela sua natureza publicística e instrumental. E só sinalizou algumas dificuldades quanto às ações pendentes, mas sufragou o entendimento que a execução instaurada deveria prosseguir, porque a nova lei, com a dispensa do reconhecimento notarial da assinatura do devedor, não regula o efeito jurídico do ato de subscrição do título de crédito mas simples aspeto de natureza processual. De facto, afirma-se que «quando a lei nova só reclama vigência ‘ex nunc’, ainda que com virtualidade de afectar direitos, situações ou posições que, embora constituídos no passado por força ou com a cobertura da lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente», «a resistência à retroactividade apresenta uma menor intensidade normativa: o juízo de inconstitucionalidade dependerá essencialmente de uma ponderação de bens ou interesses em confronto»[4].
Sendo apodítico que o novo CPC eliminou do elenco dos títulos executivos os «documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes», o quais tinham, antes, a característica da exequibilidade, coloca-se, pois, a questão de saber qual o entendimento sufragado quanto a documentos particulares que possuíam força executiva à data da entrada em vigor do novo CPC. Questão que se prende com a problemática da sucessão no tempo de leis processuais, já que o artigo 6º/3 da lei n.º 41/2013 define a sua aplicabilidade a todas as execuções iniciadas após a entrada em vigor da norma, a significar que foi retirada força executiva a documentos particulares que anteriormente a detinham, se ainda não acionados. Logo, pertinentemente, o recorrente pede a apreciação da matéria na vertente da sua (in)constitucionalidade, designadamente no vetor da eventual afetação do direito fundamental de acesso dos cidadãos aos tribunais (artigo 20º/1 da CRP).
Na verdade, «o direito à execução é um direito que se dirige contra o Estado, constituindo uma manifestação do direito público de ação, enquanto direito à tutela jurisdicional efetiva [...]», tendo a natureza de «direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias», pelo que «beneficia do regime de proteção do artigo 18.º da Constituição»[5]. Sob o jugo desses princípios entendeu o Tribunal Constitucional que a alteração legislativa se aplica apenas aos processos de execução iniciados após a sua entrada em vigor e repercute-se apenas para o futuro, pelo não colide com o princípio da proibição da aplicação retroativa das leis restritivas do direito de acesso aos tribunais. Porém, no campo normativo do princípio da proteção da confiança dos cidadãos (artigo 2º da CRP) colocou o acento tónico num outro nível de ponderação e considerou que, embora a norma não afete os efeitos jurídicos produzidos sob o domínio do direito anterior, pois não é retirada exequibilidade a títulos que já tenham produzido a sua eficácia executiva, a verdade é que recusa o reconhecimento da força executiva a documentos particulares que antes a tinham e, por essa via, desvaloriza a posição do credor numa proteção com a qual ele podia contar. De facto, a alteração legislativa tem como consequência que um credor munido de documento particular, legalmente dotado de exequibilidade no momento da sua constituição, vê eliminada a natureza de título executivo desse documento, com frustração do seu direito anteriormente merecedor de proteção pois, com base nesse título, já poder aceder à ação executiva em caso de incumprimento do devedor.
Cabe, então, perguntar se estas legítimas expetativas dos cidadãos são fundadas e se os cidadãos, com razão, fizeram planos de vida na perspetiva da continuidade do comportamento do Estado, caso em que a ponderação dos interesses em jogo, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, exige que sejam sopesados a confiança dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente e o interesse público subjacente à alteração. Juízo que não pode deixar de sopesar a natureza do título executivo, como pressuposto processual específico da ação executiva: sem ele não pode ser instaurada, ou prosseguir, a ação executiva para cumprimento coercivo das obrigações. Para além de ser um requisito de admissibilidade da ação executiva, o título executivo é um documento escrito que tem valor probatório quanto à existência do direito de crédito, ou seja, que atesta, com suficiente grau de segurança, o conteúdo e os sujeitos da relação creditícia. O título de crédito não se confunde com o ato titulado, isto é, com o facto jurídico gerador do direito à prestação, mas condiciona a exequibilidade extrínseca da pretensão, para além de estabelecer uma presunção ilidível quanto à existência da obrigação exequenda[6].
Esse enquadramento do título executivo integra na lei processual o seu regime e reclama, desde logo, para efeitos de aplicação da lei no tempo, o princípio de aplicação imediata da lei nova, donde deriva um duplo significado: o processo não se rege pela lei vigente ao tempo em que se constitui ou extinguiu o direito ou relação jurídica litigada, mas pela lei vigente ao tempo do processo; a nova lei processual aplica-se imediatamente às ações pendentes, mesmo que a situação processual seja uma situação de formação sucessiva. Solução compaginada com a natureza instrumental da lei processual, no sentido de que não afeta a situação material das partes, mas apenas ao modo se fazer valer em juízo os seus direitos, esses conferidos pela lei substantiva[7]. E, neste juízo, é defensável que a exequibilidade dos títulos é cognoscível em sede de impulso da ação executiva, sempre dependente da «opção do sistema jurídico, em sede de direito público (adjetivo), sobre o grau de certeza do direito exigível para a admissibilidade da ação executiva»[8]. Nesse contexto poder-se-á considerar que as mudanças legislativas introduzidas a esse nível não conflituam com os índices de imprevisibilidade necessários à tutela da legítima confiança.
Não nos parece que a legitimidade das expetativas dos credores na continuidade de um determinado regime normativo, ainda que em matéria adjetiva, seja inarmonizável com o princípio da tutela da confiança, pois o direito processual também pode fundar posições de confiança, tal como já tem sido decidido pela jurisprudência constitucional em determinadas situações concretas[9].
Ademais, o preceito em causa não afeta a (in)existência do direito de crédito ou da obrigação exequenda, mas altera o valor probatório para efeitos executivos de documentos anteriormente emitidos e por acionar, retirando-lhes o atributo executivo. Donde possamos afirmar que as opções dos cidadãos tomadas com base num determinado quadro normativo, relativamente estável, são negativamente afetadas pela alteração legislativa e, à luz do princípio da tutela da confiança, a implementação da medida não deve ser imediata, mas diferida no tempo. «Aplicá-la de imediato é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas»[10]. Podemos, portanto, sustentar que, ao suprimir a exequibilidade extrínseca da pretensão materializada nos documentos particulares, a norma sob escrutínio introduziu uma modificação imprevisível. Se a lei nova estivesse vigente ao tempo da «celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo»[11].
Cremos, pois, que o regime transitório constante do artigo 6.º/3 da lei n.º 41/2013 não acomoda de forma equilibrada os interesses em presença e que dele resulta uma lesão particularmente intensa da confiança legítima do particular que perde o título executivo e em função do qual tinha programado a sua vida, o que conforma um juízo de inconstitucionalidade, aliás, já declarado, com força obrigatória geral. Com efeito, com esse âmbito foi declarada a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º/1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da CRP)[12].
Destarte, como a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da mesma norma e determina a repristinação da norma revogada (artigo 282º/1 da CRP), damos procedência à apelação e, revogando o despacho recorrido, determinamos o legal prosseguimento dos autos com a aceitação da exequibilidade do título dado à execução.

V. Dispositivo
Ante o exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em dar procedência à apelação e, revogando a decisão recorrida, determinar o prosseguimento dos legais termos do processo.
Apelação sem custas (artigo 527º/ do CPC)..
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Porto, 11 de setembro de 2018
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
_____________
[1] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A ação executiva singular, Lex, 1998, pág. 67.
[2] In www.dgsi.pt: Acs. RP de 09/12/2014, processo 1011/14.4T8PRT.P1; 24/03/2015, processo 1403/14.9T2AGD.P1; 15/09/2015, processo 335/14.5T8OVR-C.P1.
[3] MANUEL ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 42.
[4] JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, págs. 265/266.
[5] In www.tribunalconstitucional.pt: Acórdão n.º 847/2014, de 03/12/2014.
[6] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A ação executiva - À luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2014, pág. 81; ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Títulos Executivos, in Themis, ano IV, n.º 7, 2003, pág. 35.
[7] In www.tribunalconstitucional.pt: Acórdão n.º 508/99, de 21/09/1999.
[8] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, ibidem, págs. 85/86.
[9] In www.tribunalconstitucional.pt: Acórdão n.º 287/90, de 30/10/1990.
[10] In www.tribunalconstitucional.pt: Acórdão n.º 847/2014, de 03/12/2014.
[11] Maria João Telles, A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, in Julgar on line, setembro 2013.
[12] Acórdão n.º 408/2015, publicado in Diário da República n.º 201/2015, Série I, de 14/10/2015.