Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1031/14.9TBLSB-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP202204041031/149TBLSD-R.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O incidente de intervenção de terceiros (na modalidade de intervenção principal) visa fazer intervir na lide alguém que nela deveria estar (litisconsórcio necessário) ou poderia estar (litisconsórcio voluntário) desde o início, como é o caso.
II – Exigindo a intervenção principal espontânea prevista no artigo 311.º do CPC um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, requer-se que o interveniente tenha um interesse igual ao da parte com a qual vai litisconsorciar-se;
III – Os bens apreendidos ao insolvente formam um património autónomo e separado – a massa insolvente – que está vocacionada para o cumprimento, na medida do possível, das obrigações do devedor para com a globalidade dos credores, pelo que qualquer credor reconhecido tem interesse em opor-se a qualquer pretensão formulada em acção que, a ser julgada procedente, implique a diminuição desse património.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1031/14.9 TBLSD-R.P1
Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante (Juiz 1)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
Em 05.08.2021, “R..., L.da”, devidamente identificada nos autos, veio, por apenso ao processo de insolvência que corre termos pelo Juízo de Comércio de Amarante (Juiz 1), Comarca do Porto Este, em que é insolvente AA, intentar contra a respectiva “Massa Insolvente” acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta:
a) a restituir-lhe a quantia de € 250.000,00 «a título de restituição no âmbito da relação de liquidação nascida da resolução contratual em beneficio da massa»;
b) a pagar-lhe, «a título de indemnização pelo incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa, mas sempre ilícito em face da violação do disposto no nº1 do artigo 106º do CIRE», a quantia de € 250.000,00;
c) a pagar-lhe juros moratórios à taxa legal sobre as indicadas quantias.
Em 25.11.2021, “P... Company” deduziu incidente de intervenção principal espontânea, com os seguintes fundamentos (reprodução):
«1. A ora requerente tomou conhecimento de que, em 05/08/2021, a R..., Limitada intentou uma ação declarativa de condenação contra a massa insolvente de AA, por intermédio de Requerimento da primeira junto aos autos principais deste processo sob a referência citius 7281355.
2. A ora Requerente é credora hipotecária - garantida - da massa insolvente no que ao imóvel em crise diz respeito.
3. A 19/10/2021 foi proferido, nos autos principais, despacho a ordenar que antes do pagamento de rateio parcial aos credores fosse retido “o montante previsível para efetuar o pagamento das custas do processo e de todas as dividas da massa que, desde já se afigurem como prováveis e/ou hipotéticas.”, conforme referência citius 86760763.
4. Deste modo, o desfecho da causa pendente contra a massa insolvente irá afetar a ora Requerente, que poderá ver-se impedida de ser devidamente ressarcida na medida da garantia que o Insolvente prestou.
5. Logo, nos termos do artigo 32.º e 311.º do Código de Processo Civil (CPC) deverá a ora Requerente ser admitida a intervir como parte principal, porquanto tem um interesse igual ao do réu na referida ação declarativa.
6. No mais, requer-se que a intervenção seja por mera adesão aos articulados da massa insolvente de AA, nos termos do artigo 313.º do CPC.
7. Subsidiariamente, deverá a ora Requerente ser habilitada a participar na ação na qualidade de interveniente acidental, nos termos do artigo 326.º do CPC, pelos fundamentos acima explanados.
8. Face à impossibilidade de proceder à validação da referência do DUC na plataforma Citius, mais se requer a junção do documento atinente ao pedido do mesmo, e respetivo comprovativo de pagamento.»
Concluiu pedindo que seja admitida a sua intervenção a título principal «enquanto litisconsorte da massa insolvente AA, nos termos do artigo 311.º e seguintes do CPC» ou a sua habilitação «enquanto interveniente acidental, nos termos do artigo 326.º do CPC.».
Nenhum dos interessados, notificados para o efeito, deduziu qualquer oposição a esta pretensão.
Por despacho de 22.12.2021, foi admitida a intervenção principal espontânea da requerente “P... Company”[1].
Inconformado com a decisão, em 10.01.2022, veio a autora dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões (reprodução integral):
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A requerente/interveniente contra-alegou, sintetizando assim os fundamentos da sua resposta:
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O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo)
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre das conclusões do recurso, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão verificados os pressuspostos da intervenção principal (do lado passivo).

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e as vicissitudes processuais relevantes para a decisão são os que constam do antecedente relatório e, ainda, os seguintes (que resultam de documentos com força probatória plena existentes nestes autos, nos autos do processo principal e nos do apenso de reclamação de créditos):
1) Nesta acção declarativa, a autora, ora recorrente, “R..., L.da” pede a condenação da “Massa insolvente de AA” a pagar-lhe as referidas quantias (de € 250.000,00 «a título de restituição no âmbito da relação de liquidação nascida da resolução contratual em beneficio da massa» e de € 250.000,00 a título de indemnização) alegando «incumprimento definitivo e culposo» pela ré “Massa Insolvente”, representada pelo respectivo Administrador da Insolvência, do contrato-promessa, formalizado por escritura pública outorgada no dia 30.11.2012, no Cartório Notarial do Dra. BB, pelo qual aquele AA prometeu vender-lhe, tendo ela, autora prometido comprar-lhe os seguintes prédios: a) Prédio Urbano composto por casa de rés-do-chão e anexos, com quintal, sito no Lugar ..., freguesia ... do concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da União de freguesias ..., registado a favor do insolvente pela Ap. ... de 2003/08/25; b) Prédio rústico composto por pinhal e eucaliptal, sito no Lugar ..., freguesia ... do concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... da União de freguesias ..., registado a favor do insolvente pela Ap. ... de 2003/08/25.
2) Por sentença de 12.08.2020, transitada em julgado, proferida no apenso de reclamação de créditos foi reconhecido e graduado em primeiro lugar o crédito da Banco ..., S.A., no montante de € 924.960,11, crédito este garantido por hipoteca, até ao montante máximo assegurado, que incide sobre o prédio urbano identificado no número anterior;
3) Mediante contrato formalizado por escritura pública outorgada em 12.05.2020, Banco ..., S.A. cedeu a “P... Company”, entre outros, o crédito referido no número anterior, com a respectiva garantia, e por despacho de 13.11.2020 foi esta sociedade julgada habilitada para prosseguir nos autos no lugar da credora Banco ..., S.A.

2. Fundamentos de direito
Como é bem sabido, o incidente de intervenção de terceiros (na modalidade de intervenção principal) visa fazer intervir na lide alguém que nela deveria estar (litisconsórcio necessário) ou poderia estar (litisconsórcio voluntário) desde o início.
Conforme decorre do disposto no artigo 311.º do CPC, a intervenção principal é, necessariamente, litisconsorcial[2] e pode ocorrer pelo lado activo ou pelo lado passivo, ou seja, tanto pode ocorrer para chamar alguém a ocupar a posição de co-autor ou de co-réu.
Exigindo um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, requer-se que o interveniente tenha um interesse igual ao da parte com a qual vai litisconsorciar-se.
A legitimidade no processo civil é (tal como no direito substantivo ou material) um conceito de relação: relação entre a parte no processo e o objecto deste e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o[3].
Tem legitimidade activa quem, juridicamente, pode fazer valer a pretensão em face do demandado; tem legitimidade passiva a pessoa que, juridicamente, pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida.
Por outras palavras, «o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca[4], surgir nela como sujeito susceptível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for directamente prejudicado com a procedência da ação»[5].
A questão está, então, em determinar se, procedendo a acção, a interveniente é directamente prejudicada.
Ora, no despacho recorrido, está bem evidenciado esse prejuízo para a requerente:
«Com efeito, a ser procedente a ação, o crédito da Autora, como crédito sobre a massa insolvente, seria pago à frente dos créditos reconhecidos sobre a insolvência e, como tal, apesar da Interveniente ter o seu crédito garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel objeto do contrato promessa invocado como causa de pedir, a verdade é que poderia, em caso de procedência da ação, vir a não receber o montante do crédito que lhe foi reconhecido, como garantido, face ao montante peticionado nesta ação e ao montante existente como receita da massa.
Aliás, tendo já o imóvel que garante o crédito da interveniente sido vendido, o Sr. Administrador de Insolvência viu-se impossibilitado de cumprir, de imediato, com o disposto no artigo 174.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, face à interposição da presente ação e à necessidade de acautelar o pagamento do crédito aqui peticionado, como divida da massa já que o respetivo pagamento sai precípuo das receitas da liquidação, o que necessariamente afeta diretamente a satisfação do crédito da Interveniente».
Declarada a insolvência, os bens actuais e futuros do insolvente formam um património autónomo e separado – a massa insolvente – que está adstrito à satisfação dos interesses dos credores. Por outras palavras, «a massa está vocacionada para o cumprimento, na medida do possível, das obrigações do devedor para com a globalidade dos credores, respeitadas as regras próprias da hierarquia dos créditos» (L.A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Códido da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, pág. 292).
Por isso, qualquer credor reconhecido tem interesse em opor-se a qualquer pretensão formulada em acção cujo resultado seja a diminuição desse património separado.
No caso da interveniente/recorrida, sendo esta titular de um crédito garantido por uma hipoteca que incide sobre o prédio que constituía o bem mais valioso apreendido para a “massa” e pretendendo a autora, ora recorrente, obter a condenação da “Massa Insolvente” a pagar-lhe a quantia de € 500.000,00 e juros de mora por alegado incumprimento culposo, por parte do administrador da insolvência, de contrato-promessa de compra e venda desse imóvel, é manifesto o interesse directo da credora “P... Company” em contradizer essa pretensão, pois só o decesso desta permitirá que o seu crédito seja parcialmente satisfeito.
Concluindo, a decisão recorrida não merece qualquer censura e deve ser confirmada.

III Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por “R..., L.da” e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Tendo decaído totalmente, a recorrente suportará as custas do recurso.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 04.04.2022
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Despacho notificado aos interessados por expediente electrónico elaborado no dia seguinte.
[2] Com o novo Código de Processo Civil, deixou de ser possível a intervenção principal coligatória.
[3] Cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 51.
[4] A efectiva existência dessa relação e da pretensão deduzida diz já respeito ao mérito da acção.
[5] A.S. Abrantes Geraldes e outros, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 59.