Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4337/11.5TAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
CHEQUE POST-DATADO
CRIME DE BURLA
CRIME DE FALSIFICAÇÃO
CONCURSO EFECTIVO
Nº do Documento: RP201301164337/11.5TAMTS.P1
Data do Acordão: 01/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de emissão de cheque sem provisão constitui, tradicionalmente, uma modalidade de burla.
II - O crime de burla é um crime contra o património, em geral.
III – No crime de emissão de cheque sem provisão, o elemento prejuízo patrimonial faz hoje parte integrante da sua definição, tornando-o um crime de dano.
IV - No crime de emissão de cheque sem provisão o interesse público da circulação do cheque como meio de pagamento continua a ter relevância.
V - Entre ambos os crimes há, ainda hoje, apesar da progressiva aproximação, diferenças essenciais.
VI - Entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o de burla não há concurso aparente de infracções pois que são distintos e autónomos os interesses tutelados por cada uma das incriminações e também não coincidem os respectivos elementos constitutivos.
VII - A norma do artigo 11°/3 do DL 454/91, de 28/12, ao dizer que se não aplica o n.° 1 quando o cheque seja postdatado, apenas pretende afastar o relevo criminal das condutas enumeradas anteriormente, quando o cheque seja postdatado. Nada mais.
VIII - Não se pode defender que se pretenda, com tal formulação, afastar o relevo criminal do cheque postdatado, em absoluto, em relação ao ordenamento jurídico, entendido na sua globalidade, reportado à lei geral.
IX - Se o crime de emissão de cheque sem provisão não pode ser cometido através de um cheque postdatado, tal facto não impede que através dele possa ser cometido, quer o crime de burla, quer o de falsificação - desde que naturalmente se verificam todos os seus restantes elementos típicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 4337/11.5TAMTS do 4º Juízo Criminal de Matosinhos

Relator - Ernesto Nascimento.
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I.1. Remetido o processo à distribuição, foi proferido despacho a rejeitar a acusação pública, por manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem o imputado crime de burla.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs recurso o Magistrado do MP, pedindo a revogação de tal despacho e a sua substituição por outro que receba a acusação pública e designe data para audiência de julgamento, sustentando as seguintes conclusões:

1. o Mm° Juiz a quo considerou na sua douta decisão de fls. 66 e ss. que os factos descritos na acusação integrariam a comissão de um crime de emissão de cheque sem provisão, e nenhum outro, e, não estando previstos os elementos típicos do crime, rejeitou-a;
2. mais entendeu que, mesmo que não houvesse uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de burla, a acusação seria sempre de rejeitar, pois que, da sua leitura, não resulta que o arguido tenha actuado com "astúcia", de forma a obter uma vantagem patrimonial a que não tinha direito;
3. no que respeita ao primeiro argumento, sustenta-se que, mesmo que haja uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão, e, por exemplo, o de falsificação e o de burla, o facto de se afastar a punição pelo crime de emissão de cheque sem provisão não impede o conhecimento dos crimes consumidos, desde que estejam descritos os seus elementos típicos;
4. mesmo afastada a punibilidade pelo crime de emissão de cheque sem provisão, resta a punição pelo crime de burla, pois o ofendido B… fez uma disposição patrimonial que de outro modo não faria, convencido pelo arguido C… de uma falsa aparência de realidade — a boa cobrança do cheque, incorrendo assim na prática do crime de burla pelo qual vinha acusado;
5. assim, rejeitar a acusação pública com os fundamentos que os factos ali descritos mantinham uma relação de especialidade com o crime de burla, não verificados que estavam os requisitos para o crime de emissão de cheque sem provisão, e, mesmo que assim não se entendesse, que não configuravam a prática de qualquer crime, designadamente o de burla, constitui uma violação dos artigos 217°/1 C Penal, e 311°/1 C P Penal.

I. 3. Na 1.ª instância não foi apresentada qualquer resposta.

II. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Representante do MP no sentido de o recurso não merecer provimento, pois que sendo certo que se não verifica, desde logo, o crime de emissão de cheque sem provisão - uma vez que o cheque foi post-datado e não foi sequer apresentado e, por isso não se verificou a sua falta de pagamento - da mesma forma também entende, por esta derradeira razão, que se não verifica o crime de burla, faltando o elemento prejuízo patrimonial (ou mesmo que o ofendido foi pelo arguido ludibriado) e porque a própria acusação refere que o cheque foi entregue para garantia do empréstimo que o ofendido concedeu ao arguido, valendo então, não como meio de pagamento, mas sim e, tão só, como documento particular de divida, assentando, de resto, a acusação numa hipótese – de que o cheque não podia ser pago porque não era valido – conforme informação dada ao ofendido, quando intentou deposita-lo.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada foi acrescentado.

Teve lugar o exame preliminar, onde se decidiu nada obstar ao conhecimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente para apreciação, tão só, a questão de saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar o tipo legal de burla.

III. 2. Para uma melhor elucidação da questão subjacente ao presente recurso, importa, desde já, recordar,

III. 2. 1. O teor da acusação pública:

“em Fevereiro de 2010, o arguido C… abordou o ofendido B…, nesta cidade, pedindo-lhe um empréstimo de € 1.000,00, o que lhe foi concedido.
Em troca, e para garantir a boa cobrança daquele valor, o arguido entregou ao ofendido o cheque n.° ………, da conta de que era titular no D…, com o n.° ……….., no valor de € 1.000,00 e pós datado para o dia 24/03/2011.
Sucede que o arguido nunca tencionou liquidar aquele cheque, nem o valor mutuado, porquanto o cheque que utilizou já não tinha validade, o que o arguido sabia, querendo assim locupletar-se com o valor mutuado, o que conseguiu.
Na verdade, quando o ofendido intentou depositar o dito cheque, em Agosto de 2011, a fim de se cobrar da quantia mutuada, tal depósito foi-lhe negado, pois foi informado de que o cheque já não tinha validade há mais de 2 anos, o que o arguido bem sabia, pois que não movimentava aquela conta naquele período.
O arguido C… agiu livre e lucidamente, convencendo o ofendido a emprestar-lhe a quantia em dinheiro, entregando-lhe cheque como garantia daquele empréstimo, que sabia não ter validade, assim criando erro na vontade daquele, que, assim, fez uma disposição patrimonial.
O arguido sabia que assim agindo incorria na prática de um crime punido pela lei penal.
Pelo exposto, e atendendo à factualidade típica descrita, fica o arguido C…, incurso na prática de, em autoria material e na forma consumada, um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217° C Penal”.

III. 2. 2. O despacho recorrido.

“O Tribunal é competente.
Da acusação manifestamente infundada: O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido C…, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217° C Penal.
Ora, a acusação do Ministério Público ou do assistente tem, conforme resulta dos artigos 283°/3 alínea b) e 285º/3 C P Penal, de narrar os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sob pena de nulidade e rejeição da acusação, nos termos do artigo 311°/2 alínea a) e n.° 3 alínea d) C P Penal.
Aliás, em obediência aos princípios basilares do processo penal, a solução legal referida para a acusação que não contenha factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos típicos de um crime imputáveis ao arguido não pode ser outra, na medida em que a acusação, seja pública, seja particular, fixa o objecto do julgamento, delimitando a actividade de cognição a desenvolver pelo tribunal, de tal forma que, nos termos do artigo 379°/1 alínea b) C P Penal, é nula a sentença que, entre outros, condene o arguido por factos diversos dos descritos na acusação.
Deste modo, quando os factos relatados na acusação não integram os elementos objectivos e subjectivos de um tipo criminal ou quando não são imputados factos que constituam crime, a prolação de sentença por outros factos que, por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime traduziria uma alteração substancial dos factos, conforme decorre do disposto no artigo 1° alínea f) C P Penal, o que, consequentemente, determinaria a nulidade dessa decisão (artigo 379°/1 alínea b) C P Penal).
Neste enquadramento, não obstante a existência de entendimento em sentido contrário, entende o Tribunal que a acusação não relata factos adequados a integrar a prática do crime pelo qual acusa o arguido, na perspectiva em que, mesmo provando-se todos os factos alegados, a decisão seria no sentido da absolvição do arguido.
Concretizando:
o entendimento conclusivamente afirmado no sentido de os factos da acusação não permitirem, mesmo que provados, a condenação do arguido prende-se, por um lado, com a concepção jurídica da punição do concurso de crimes e com a interpretação da lei segundo as regras legais previstas no artigo 9° C Civil, e, por outro lado, com a própria insuficiência da matéria de facto alegada para o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de burla pelo qual o arguido é acusado.
Para o efeito, constitui um elemento essencial verificar que o crime de burla imputado ao arguido respeita, no essencial, ao alegado facto de o arguido ter emitido e entregue ao queixoso um cheque pós-datado que não tinha validade, com o objectivo de receber do queixoso uma quantia em empréstimo.
Acontece que, apesar de, em abstracto, os factos em causa poderem traduzir pelo menos alguns dos elementos típicos que o artigo 217° C Penal prevê, a verdade é que tal não basta para que a conduta imputada seja criminalmente punida, pois que a ordem jurídica pode afastar tal punição, tal como sucede no caso em apreço, como a seguir será explicitado, convocando-se, ainda que apenas como linha de orientação, a teoria do concurso de crimes e o princípio da especialidade.
O concurso de crimes encontra tratamento legal no artigo 30° C Penal, onde se dispõe, no que ora releva, que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos.
"O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração — concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção." - Ac. STJ de 27.05.2010, proc. 474/09.4PSLSB, em www.dgsi.pt.
No caso, importa convocar a regra da especialidade, na perspectiva da concorrência aparente de leis penais, em que uma, a lei especial, exclui a outra, a lei geral, na vertente em que aquela determina, de forma exclusiva, o conteúdo do injusto de uma acção. Em todo o caso, como vem sendo reconhecido na doutrina e na jurisprudência, o concurso de crimes envolve variantes tais que, na prática, dificilmente as teorias doutrinais sobre a punição do concurso de crimes permitem solucionar todas as situações reais. Daí que, independentemente de as teorias em causa, como é o caso da regra da especialidade, servirem como ponto de partida, importa sempre interpretar a lei, sem se cingir à letra desta, mas reconstituindo o pensamento legislativo, ainda que através do texto da lei, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias que nortearam a sua elaboração (cfr. artigo 9° C Civil), de modo a se encontrar a solução jurídica concreta que observe estes ditames.
Neste enquadramento e no que releva para o caso dos autos, entende o tribunal que o regime jurídico da punição penal do cheque sem provisão (Decreto Lei 454/91, de 28.12), na qualidade de regime especial, exclui a aplicação da lei geral, o que significa que exclui a punição pelo crime de burla previsto no Código Penal, pelo menos na parte concorrente e tutelada por aquele regime.
Ora, dispõem nos seguintes termos os artigos 11° e 11°- A do regime jurídico da punição penal do cheque sem provisão, atendendo às alterações posteriores do diploma (Decreto Lei 316/97, de 19.11, Decreto Lei 323/2001, de 17.12 e Decreto Lei 83/2003, de 24.04) e com a redacção da Lei 48/2005, de 29.08:
"Artigo 11° (crime de emissão de cheque sem provisão)
1. Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a € 150,00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque;
ou
c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento
integral referidas nas alíneas anteriores; se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazo estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
3. O disposto no n° 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
"Artigo 11°- A (queixa)
1. O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo anterior depende de queixa.
A acção susceptível de preencher o tipo criminal de emissão de cheque sem provisão consistirá, pois, no que ora pode importar, na emissão e entrega de um cheque de valor superior a € 150,00 com a assinatura do sacador, acompanhada do não pagamento do título por falta de provisão ou por irregularidade do saque, onde se integram os casos de emissão de cheque inválido.
Porém, conforme dispõe o n°3, do referido artigo 11º do mesmo diploma legal, o regime incriminador previsto supra não será aplicável se o cheque for emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador. Com efeito, em face do preceito legal incriminador em causa, para que a conduta do agente, traduzida na emissão de cheque sem provisão, seja punida criminalmente é necessário que - em consonância com a natureza de meio de pagamento do cheque e não de instrumento de crédito - o cheque se destine a pagamento imediato e, como tal, não haja sido emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador ou sem data. Trata-se, pois, de um elemento negativo ao nível da definição típica da conduta proibida, através do qual expressamente se exclui do âmbito da tutela penal que ao cheque é dispensada os títulos que não sejam emitidos com data correspondente à da sua efectiva entrega ao beneficiário. E este elemento negativo do tipo, não obstante realizar pela negativa a delimitação dos factos punidos, é um elemento necessariamente explícito, no sentido em que, se o contrário não resultar positivamente demonstrado a partir da matéria factual apurada, fica precludida a possibilidade de imputar ao agente qualquer forma de responsabilidade criminal.
Verifica-se, pois, que o legislador definiu um regime próprio para a punição dos crimes associados aos cheques sem provisão (com saque irregular, etc.), alargando a punição a actos posteriores à própria emissão e entrega do cheque, como é o caso da proibição de pagamento dirigida à instituição sacada, ao mesmo tempo que excluiu da tutela penal as condutas referentes aos cheques pós-datados, por não se destinar ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente, assim disciplinando o regime punitivo em termos exclusivos e, por conseguinte, de forma excludente de outras previsões típicas que respeitem a condutas previstas no artigo 11º/1, e, na vertente negativa, às condutas previstas no artigo 11°/3. Ou seja, as condutas que se refiram a cheques sem provisão (incluindo todas as previstas no artigo 11°/1) apenas podem ser punidas criminalmente no âmbito do regime do cheque sem provisão, sendo essa punição afastada quando aquelas condutas se referiram, nomeadamente, a cheques pós-datados, as quais o legislador entendeu não merecer a tutela penal. Esta intenção do legislador mostra-se, também, expressamente vertida no preâmbulo no Decreto Lei 316/97, de 19.11, onde se justifica a alteração legislativa para tornar "mais claro que o cheque emitido para garantia de pagamento ou emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador não goza de tutela penal (artigo 11º/3), por, em qualquer dos casos, não constituir meio de pagamento em sentido próprio", reiterando posteriormente que "deixa de ser tutelado penalmente o cheque que não se destine ao pagamento imediato..." e que foi intenção do legislador "excluir da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que se não destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente" - sublinhado nosso. Importa notar que o legislador é particularmente claro na afirmação de que as condutas previstas no n° 1 do artigo 11° que respeitem a cheques pós-datados não merecem qualquer tutela penal, não se limitando o legislador a aludir à tutela penal específica do regime do cheque sem provisão, para além de que em parte alguma da lei ressalvou a eventual punição por outros tipos de crime preenchidos pela conduta subjacente à emissão de cheque sem provisão, nomeadamente quando este fosse pós-datado. No fundo, independentemente da aplicação das teorias da punição do concurso de crimes, tal como já exposto, o que resulta do espírito do legislador que se extrai da letra da lei, analisada de forma integrada no âmbito do regime jurídico do cheque sem provisão e segundo o pensamento legislativo vertido no preâmbulo do próprio diploma supra aludido, é a clara intenção de tornar penalmente irrelevante ("sem tutela") as condutas concernentes à emissão de cheque pós-datado sem provisão, seja em que modalidade for (das previstas no n°1 do artigo 11°), mesmo que subjacente ao não pagamento do cheque estejam condutas que, se noutra área de actuação, poderiam preencher os elementos típicos de crimes previstos na lei geral, como é o caso dos crimes de burla e de falsificação.
A própria coerência e a lógica na interpretação do regime jurídico punitivo do cheque sem provisão, associado às regras da punição do concurso de crimes, implicam o entendimento preconizado pelo tribunal. É que, se o regime do cheque sem provisão não fosse entendido como totalmente excludente da punição por outros tipos de crime, sempre teria de se defender a punição, em concurso efectivo, dos crimes de emissão de cheque sem provisão - no caso de cheques emitidos na data de entrega - com o crime de burla e, eventualmente, o crime de falsificação, se estivesse em causa a emissão de uma declaração falsa de proibição de pagamento, pois que, seguindo a teoria dos bens jurídicos, estes são diferentes em cada um dos ilícitos típicos.
Além disso, o legislador previu a natureza semi-pública para o crime de emissão de cheque sem provisão, como resulta do artigo 11°- A, o que, naturalmente, fez por entender que a emissão de cheques sem provisão respeita a uma matéria específica merecedora de um tratamento exclusivo e diferenciado, o que se mostra tanto mais relevante quando se constata que a natureza semi-pública se mantém mesmo no caso de o prejuízo provocado ser de valor elevado ou consideravelmente elevado, ao contrário do que sucede no crime de burla previsto no artigo 218° C Penal, em que os bens jurídicos são idênticos.
Acresce que, do ponto de vista prático, entendimento contrário ao do tribunal implicaria, por vezes, punir mais fortemente a emissão de cheques sem provisão pós-datados do que a emissão de cheques como meio de pagamento imediato, apesar de, como se disse, a preocupação do legislador em tutelar penalmente o bem jurídico subjacente se dirija somente a este último tipo de cheques, o que poderia suceder, por exemplo, se se entendesse a conduta como integradora do crime de burla qualificada, atento o valor, nos termos do artigo 218°/2 alínea a) C Penal, para além da natureza pública deste crime, ou se se admitisse o concurso de crimes de burla e, eventualmente, de falsificação.
Por tudo o exposto, mas vincando-se o espírito do legislador que resulta do texto da lei, conclui-se que, versando os factos da acusação sobre um cheque pós-datado, em que a modalidade de acção "típica" se enquadra no artigo 11°/1, do regime jurídico do cheque sem provisão, o n°3 do artigo 11° deste diploma exclui qualquer tutela penal, tornando os factos imputados ao arguido como não puníveis criminalmente - essencialmente neste sentido, entre outros, Ac. RC de 14.10.2009, proc. 228/07.2TAVGS, e Ac. Rc de 25.06.2008, proc. 156/06.9TAACN, disponíveis em Jusnet.pt; em sentido contrário, entre outros, Ac. RP de 14.07.2010, proc. 5562/08.1TAMTS, disponível em www.dgsi.pt.
Acresce que, como supra adiantado, independentemente da concepção jurídica acabada de expor, os factos da acusação, mesmo que analisados sem referência ao regime jurídico do cheque sem provisão, não são adequados a integrar todos os elementos típicos do crime de burla, mais concretamente o elemento astúcia concernente ao erro ou engano provocado no ofendido, sendo este um elemento objectivo expressamente previsto no artigo 217°/1 C Penal.
É que, para o preenchimento do crime de burla, não basta que alguém seja enganado e determinado a sofrer ou a provocar em terceiro um prejuízo, mas exige-se um mais, ou seja, que esse erro ou engano seja provocado no visado de forma astuciosa, ou seja, como se disse no Ac. RP de 10.05.2006, proc. 0416676, em www.dgsi.pt., "...que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.
Ora, com referência ao caso dos autos, importa ter em conta que a emissão de cheque sem provisão abrange sempre o meio enganoso que consiste na criação ou no aproveitamento da convicção de que o cheque tem provisão e é regular. Daí que, para se concluir pelo preenchimento do elemento astúcia que é pressuposto do crime de burla não baste a entrega de cheque sem provisão ou de saque irregular, uma vez que quem recebe um cheque tem consciência de que é possível a sua falta de provisão ou de inviabilidade de cobrança - para mais sendo pós-datado -, mas antes se exija uma conduta astuciosa destinada a criar no tomador o convencimento sobre a existência de provisão ou de regularidade do saque. A entrega de um cheque sem provisão ou irregular pós datado pode configurar um modo de execução do crime de burla, mas não é bastante para tal, devendo diferenciar-se as situações em que o engano do visado assenta na mera convicção de que o cheque terá provisão e é regular, o que apenas configurará um crime de emissão de cheque sem provisão não punível, das situações em que o engano/convicção do visado não é apenas a agora referida, mas também outra que astuciosamente lhe tenha sido incutida pelo emitente do cheque, aparecendo o cheque apenas como um de outros factos que fundamentam esse engano/convicção, situação em que, esta sim, poderá integrar o crime de burla - neste sentido, entre outros, citando nomeadamente o Ac. RC de 19.01.2005, em www.dgsi.pt ver Ana Brito, em "Comentário das Leis Penais Extravagantes", organizado por Paulo Pinto de Albuquerque e outros, vol. 2, Universidade Católica Editora, 2011, p. 300.
Revertendo ao caso dos autos, a acusação associa a convicção errónea do ofendido no sentido da provisão do cheque e da sua regularidade - ou seja, no sentido de que iria receber o valor titulado no cheque na data do seu vencimento - apenas à entrega de um cheque pós-datado, sem que relate qualquer outra conduta do arguido, astuciosa ou não, no sentido de convencer o ofendido naquele sentido.
Assim sendo, pelas razões expostas, reitera-se que não está presente na acusação o elemento típico "astúcia" que é pressuposto essencial ao preenchimento do crime de burla pelo qual o arguido vem acusado.
Destarte, a acusação mostra-se desprovida de base factual imprescindível à condenação do arguido pela prática do crime pelo qual este vem acusado, não narrando factos susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena, infringindo o disposto no já referido artigo 283°/3 alínea b) C P Penal, com a consequente nulidade e rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311°/2 alínea a) e n°3 alínea d) C P Penal.

Decisão.
Nestes termos, atentos os princípios e os preceitos legais expostos, por manifestamente infundada, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 47 e ss. contra o arguido C…, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217° C Penal.

Face à rejeição da totalidade da acusação submetida a julgamento, fica prejudicado o conhecimento do pedido cível, por impossibilidade superveniente da lide, atento o princípio da adesão, na vertente negativa, previsto no artigo 71° C P Penal, sem prejuízo do recurso aos meios civis comuns.
Notifique.
Oportunamente, arquive”.

III. 3. O crime de emissão de cheque sem provisão.

III. 3. 1. As razões do recorrente.

Por seu lado, o recorrente mostra a sua discordância perante tal decisão, pugnando por que, ao rejeitar-se a acusação pública com o argumento de que era manifestamente infundada, quer porque os factos ali relatados não integravam o crime de burla, mas sim, eventualmente e se verificados os requisitos, o crime de emissão de cheque sem provisão e, num segundo argumento, mesmo que se pudesse entender que os factos integravam o crime de burla, da acusação estavam ausentes factos - que o tribunal não podia suprimir, mormente em fase de julgamento e, in casu, não estava descrita a astúcia determinativa da prática do crime de burla – se mostram violados os artigos 217°/1 C Penal e 311°/1 C P Penal.
Entende o recorrente que - como resulta da prova produzida nos autos e a acusação pública descreve - o arguido entregou ao ofendido um cheque, garantia, pós-datado, garantindo-lhe a boa cobrança do mesmo, que o ofendido aceitou e, quando o tentou cobrar, verificou que o cheque não tinha já validade há dois anos, para depois questionar, se,
os factos configurassem a emissão de um crime de emissão de cheque sem provisão (o que não se verifica, dado que não foram respeitados os prazos previstos na LU) - os factos não poderiam configurar algo mais do que o mero crime de emissão de cheque?

III. 3. 2. Vejamos.

São do seguinte teor as normas alegadamente violadas:

Nos termos do artigo 217°/1 C Penal, comete o crime de burla, "quem com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (...)".

O artigo 311º C P Penal dispõe que,

“1. recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre s nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido par a julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do MP na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente.
3. para os efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se os factos não constituírem crime”.

Por sua vez, o Decreto 454/91, de 28.12 que aprovou o regime jurídico da punição penal do cheque sem provisão – sucessivamente alterado pelo Decreto Lei 316/97, de 19.11, pelo Decreto Lei 323/2001, de 17.12, pelo Decreto Lei 83/2003, de 24.04 e pela Lei 48/2005, de 29.08, dispõe no seu artigo 11° (crime de emissão de cheque sem provisão), que:
“1. Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a € 150,00 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou
c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores; se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazo estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
3. O disposto no n°1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador”.

III. 3. 3. As razoes do despacho recorrido.

Como vimos no despacho recorrido, entendeu-se que, constitui, desde logo, essencial verificar que o crime de burla imputado ao arguido respeita ao facto de ter emitido e entregue ao queixoso um cheque pós-datado, que não tinha validade, com o objectivo de receber deste uma quantia em empréstimo e que, apesar de, em abstracto, os factos em causa poderem traduzir pelo menos alguns dos elementos típicos que o artigo 217° C Penal prevê, a verdade é que tal não basta para que a conduta imputada seja criminalmente punida, pois que a ordem jurídica afasta tal punição.
Com efeito, ai se defende que, os factos da acusação não permitem - mesmo que provados - a condenação do arguido, por um lado,
fazendo-se apelo a concepção jurídica da punição do concurso de crimes,
com a interpretação da lei segundo as regras legais previstas no artigo 9° C Civil, e,
por outro lado, com a própria insuficiência da matéria de facto alegada para o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de burla pelo qual o arguido é acusado.
Para fundamentar a primeira asserçao invoca-se, como linha de orientaçao, a teoria do concurso de crimes, os casos de concurso aparente e as regras da subsidariedade, da consunçao e da especialidade, para se fixar nesta - na perspectiva da concorrência aparente de leis penais, em que uma, a lei especial, exclui a outra, a lei geral.
Para fundamentar a segunda, invoca-se, o espírito do legislador que se extrai da letra da lei, analisada de forma integrada no âmbito do regime jurídico do cheque sem provisão e segundo o pensamento legislativo vertido no preâmbulo do próprio Decreto Lei 316/97, donde resulta ser clara a intenção de tornar penalmente irrelevante, "sem tutela" as condutas concernentes à emissão de cheque pós-datado sem provisão, seja em que modalidade for (das previstas no n°1 do artigo 11°), mesmo que subjacente ao não pagamento do cheque estejam condutas que, se noutra área de actuação, poderiam preencher os elementos típicos de crimes previstos na lei geral, como é o caso dos crimes de burla e de falsificação.

III. 3. 4. Apreciando.

III. 3. 4. 1. Temos então que, a acusação foi rejeitada, por se ter considerado como manifestamente infundada, dado que os factos ali descritos não constituem crime de burla.
A propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal refere Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal, é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
Acusação manifestamente infundada é aquela que nos seus próprios termos não tem condições de viabilidade, no entendimento expressivo de Maia Gonçalves, o que acontece nos casos taxativos previstos no n.º 3 do artigo 311º C P Penal.
O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.
Com a actual redacção do artigo 311º C P Penal, introduzida pela Lei 65/98 de 25AGO, manifestante que se quis excluir a possibilidade de rejeitar a acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, como tinha sido fixado pelo Ac. do STJ 4/93, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311º C P Penal.

Como bem refere o recorrente, de resto, a acusação só poderá ser manifestamente infundada e rejeitada, se da sua leitura não resultar nenhuma possibilidade de condenação do arguido.

Aqui chegados.

III. 3. 4. 2. Generalidades

O crime de emissão de cheque sem provisão constitui, tradicionalmente, uma modalidade de burla.
Entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o de burla não há concurso aparente de infracções pois que são distintos e autónomos os interesses tutelados por cada uma das incriminações e também não coincidem os respectivos elementos constitutivos.
Se é certo que o crime de burla é um crime contra o património, em geral e, que, no crime de emissão de cheque sem provisão, o elemento prejuízo patrimonial faz hoje parte integrante da sua definição, tornando-o um crime de dano, também é certo que o elemento interesse público da circulação do cheque como meio de pagamento continua a ter relevância – dai a negação de relevo penal dado pelo regime jurídico-penal do cheque, ao titulo que não tenha essa finalidade, cfr. artigo 11º/3 citado.

Entre ambos os crimes há, ainda hoje, apesar da progressiva aproximação, diferenças essenciais, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Crimes de emissão de cheques sem provisão, 1995 e Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, 1997:
“- no crime de burla exige-se a cooperação de outrem, aquele que pratica “actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”; essa cooperação não é elemento necessário no crime de emissão de cheque sem provisão;
- na burla o agente induz a vítima em erro sobre factos; na emissão de cheque sem provisão o erro do tomador não é elemento necessário; o que o é, é o desconhecimento de que o cheque seja pago;
- no crime de burla exige-se a intenção de enriquecimento; no crime de emissão de cheque sem provisão, basta o dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto;
- o crime de emissão de cheque sem provisão apresenta-se como interferindo no crime - mais geral - de burla, numa relação de especialidade recíproca”.

Ora no caso vertente é pacífico que, tratando-se de um cheque postdatado, a sua incriminação, em sede de emissão de cheque sem provisão, está desde logo afastada, atento o disposto no artigo 11º/3 do Decreto Lei 454/91.
E daqui somos confrontados com a questão de saber se no caso de não estarem preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de emissão de cheque sem provisão, por o cheque ser, desde logo, postatado, ganha, ou não, autonomia o crime de burla, verificados que sejam todos os seus elementos constitutivos.

O Decreto Lei 454/91 veio introduzir profundas alterações na definição típica do crime de emissão de cheque sem provisão, nomeadamente inscrevendo agora nos elementos do tipo objectivo o elemento prejuízo patrimonial, alargando as modalidades da acção típica e equiparando as penalidades às do crime de burla, passando a punição a depender da gravidade dos interesses patrimoniais atingidos quando o crime fora até então desenhado como um crime de perigo abstracto tutelando um interesse público supra individual da confiança ou credibilidade do cheque como meio de pagamento, e não no dano ou prejuízo causado ao respectivo tomador ou portador, que se consumava com a simples entrega do cheque, sabendo o sacador que não possuía os necessários fundos para o seu pagamento.
A fisionomia do crime passou a ser outra, também quanto aos sujeitos da infracção, podendo o sujeito activo ser outra pessoa que não o sacador, e o momento relevante para a respectiva consumação também não podia já sustentar-se no momento da emissão e entrega do cheque. Ou seja, a tutela penal do cheque afasta-se cada vez mais da relação cartular. Esse afastamento iniciado com o Decreto Lei 454/91 de 28.12, veio a acentuar-se de uma forma decisiva com o Decreto-Lei 316/97 de 19 de Novembro.

III. 3. 4. 3. Descendo ao caso concreto.

A questão que interessa dirimir reporta-se à punibilidade ou não daquele que emite e entrega um cheque - que não vem a ser apresentado a pagamento e por isso não vem a ser recusado o pagamento, mas desta questão aqui não cuidaremos, por irrelevante e deslocada - sendo certo ainda que, o montante pelo mesmo titulado não foi ainda pago - questão que ganha relevância, na medida em que tal conduta, que poderia eventualmente ser punida como crime de cheque sem provisão, não o é por se tratar de cheque pós-datado.

Enquanto que a decisão recorrida defende a não punibilidade desta conduta, nem em sede de burla, o MP na 1ª instancia defende que nada o impede, desde logo.

A primeira questão com que somos confrontados e a de saber se não se verificando os elementos constitutivos do tipo de emissão de cheque sem provisão, desde logo, por o cheque ser de garantia - aliado ao facto de não ter sido, sequer, apresentado a pagamento, muito menos, no prazo legal – então a conduta do arguido, já não pode ser punida como crime de burla.

Embora reconhecendo a complexidade da questão e não desconhecendo posições divergentes – de que a decisão recorrida da devida nota, de resto - não podemos deixar de discordar da argumentação aduzida no douto despacho recorrido, que com o devido respeito, não tem fundamento legal.

Com efeito.
Desde logo, salta a vista a contradição e o paradoxo entre a argumentação aduzida, a propósito do resultado a que se chega por via da hermenêutica e das as regras da interpretação das normas legais, com a afirmação da existência de uma relação de concurso aparente, a ser dirimida através da aplicação da regra da especialidade.
Isto e, se, por força do n.º 3, se entende que as condutas previstas no n°1, do artigo 11° do Decreto Lei 454/91, de 28/12, na redacção conferida pelo Decreto Lei 316/97, de 19/11, que respeitem a cheques pós-datados não merecem qualquer tutela penal - não se limitando o legislador a aludir à tutela penal específica do regime do cheque sem provisão, pois que em parte alguma da lei ressalvou a eventual punição por outros tipos de crime, mesmo que subjacente ao não pagamento do cheque estejam condutas que, se noutra área de actuação, poderiam preencher os elementos típicos de crimes previstos na lei geral, como é o caso dos crimes de burla e de falsificação - já não se pode defender que estamos perante uma situação de concurso aparente entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o de burla, a ser dirimida pela aplicação da lei especial, que prevê aquele, em detrimento da lei geral, que prevê este.

Como expressamente, de resto, se reconhece na decisão recorrida, pressuposto da verificação de uma situação de concurso, desde logo e o preenchimento de uma pluralidade de tipos de crime.
Não eventual, mas sim, formalmente preenchidos. O concurso aparente pressupõe que sobre a mesma situação de facto possa convergir mais do que uma norma, verificando-se entre elas uma relação de especialidade, de subsidariedade ou de consunção e, so uma delas prevalecera sobre a outra - esta só formalmente aplicável – e exclui-la-a.

No concurso aparente de infracções o campo de aplicação das 2 normas assemelha-se a dois círculos concêntricos, de forma que todos os elementos que cabem numa, também, cabem na outra, não podendo os mesmos elementos de facto ser apreciados 2 vezes – o que, de resto, se traduziria, aqui sim, numa flagrante e ostensiva violação do principio nem bis in idem.

Outra se se entende que a lei exclui, de todo, qualquer relevo penal aos cheques postdatados, não so em sede de crime de emissão de cheque sem provisão, como de burla ou de falsificação – então não se pode fazer apelo ao facto de a conduta o arguido, reportada a um cheque postdatado, ser susceptível de integrar 2 tipos de crime, de emissão de cheque sem provisão e de burla, para depois se afastar a aplicação deste, porque seria aplicável aquele – em tese – pois que em concreto se afastou, desde logo, ess possibilidade, pela não verificação de todos só elementos do tipo, ou melhor dito, pela verificação do elemento negativo, previsto no n.º 3 do artigo 11º.
Se a conduta não integra a factualidade típica do crime de emissão de cheque sem provisão, do artigo 11º, então não se pode fazer apelo a uma putativa relação de concurso aparente deste crime com o de burla, raciocínio que apenas serve para afastar a aplicação deste, por via da regra da especialidade.
Se não existe crime de cheque, não se pode argumentar com o afastamento da punibilidade através da burla, por via da regra da especialidade, quando afinal se concluíra já que este também se não verifica, por o cheque ser postdatado.
A relação de concurso aparente nunca se chegou a constituir pois que presupunha desde logo que os factos fossem susceptíveis de integrar formalmente a previsão das 2 normas incriminatorias.
Como é evidente, para que a invocada situação de concurso aparente, por especialidade, se concretizasse, necessário seria que estivéssemos perante factualidade que fosse abrangida pela previsão punitiva dos 2 preceitos legais. E a verdade é que um deles o não está, desde logo.
Daí que, também, não tem sentido argumentar, que, integrando a conduta do arguido elementos, mas não todos, do crime de emissão de cheque sem provisão, haveria violação do princípio ne bis in idem, se houvesse punição pela burla, na medida em que no caso não há procedimento por aquele primeiro crime, por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos.

De qualquer forma.

Cremos que a norma do artigo 11º/3 ao dizer que se não aplica o n.º 1 quando o cheque seja postdatado, apenas pretende afastar o relevo criminal das condutas enumeradas anteriormente, quando o cheque seja postdatado. Nada mais. Como parece obvio.
Não se pode defender que se pretenda, com tal formulação, afastar o relevo criminal do cheque postdatado, em absoluto, em relação ao ordenamento jurídico, entendido na sua globalidade, reportado a lei geral.
Seja, se o crime de emissão de cheque sem provisão não pode ser cometido através de um cheque postdatado, tal facto não impede que através dele possa ser cometido, quer o crime de burla, quer o de falsificação - desde que naturalmente se verificam todos os seus restantes elementos típicos.
Tem-se presente que, tratando-se de cheque postdatado, não sendo susceptível de integrar a prática do crime de emissão de cheque sem provisão, continua, ainda, assim, a ser um título cambiário, um meio de pagamento imediato (ainda que apresentado antes da data) e, à vista, da soma nele inscrita e, susceptível, desde logo, de endosso.

Donde e independentemente deste juízo - a questão do concurso aparente de normas, a ser resolvido por via da relação de especialidade - não se coloca, uma vez que, desde logo, uma delas – a que prevê e pune o crime de emissão de cheques sem provisão - não se encontra preenchida, por o cheque ter sido emitido com data posterior à sua entrega ao ofendido.

Donde não existe o alegado impedimento na qualificação dos factos como integrando o tipo legal de burla.
Isto e não será por se não se verificarem todos os elementos do crime de emissão de cheque sem provisão – desde logo, cheque não postdatado - que tal facto impede, que a conduta seja punida em termos de crime de burla.

III. 3. 4. O crime de burla.

III. 3. 4. 1. As razoes do recorrente.

Neste particular defende o recorrente que o processo deve seguir para julgamento, pois que,
o ofendido foi enganado, tendo-lhe sido assegurado que o cheque tinha determinadas características, desde logo, o seu bom pagamento, o que sabia não corresponder à verdade, e, acreditando nessa falsa aparência de realidade, e só por isso, o ofendido fez a disposição patrimonial, que o arguido nunca quis solver, apropríando-se assim ilegitimamente daquela quantia, factos que integram a comissão do crime de burla e,
a astúcia, a que se refere o despacho recorrido, é, neste caso, como noutros, uma questão de grau, a ponderar em sede de ilicitude, mas ainda assim, integra o elemento objectivo do tipo.

III. 3. 4. 2. Os fundamentos do despacho recorrido.

Neste ponto, considerou-se que,
os factos da acusação não são adequados a integrar todos os elementos típicos do crime de burla, mais concretamente o elemento astúcia concernente ao erro ou engano provocado no ofendido - elemento objectivo expressamente previsto no artigo 217°/1 C Penal;
para preenchimento deste tipo, não basta que alguém seja enganado e determinado a sofrer ou a provocar em terceiro um prejuízo, mas exige-se um mais, ou seja, que esse erro ou engano seja provocado no visado de forma astuciosa, ou seja, que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade;
isto porque, a emissão de cheque sem provisão abrange sempre o meio enganoso que consiste na criação ou no aproveitamento da convicção de que o cheque tem provisão e é regular;
daí que, para se concluir pelo preenchimento do elemento astúcia que é pressuposto do crime de burla não baste a entrega de cheque sem provisão ou de saque irregular, uma vez que quem recebe um cheque tem consciência de que é possível a sua falta de provisão ou de inviabilidade de cobrança - para mais sendo pós-datado -, mas antes se exija uma conduta astuciosa destinada a criar no tomador o convencimento sobre a existência de provisão ou de regularidade do saque.

III. 3. 4. 3. Generalidades.

O crime de burla, originariamente previsto no artigo 313º e agora depois da reforma operada através do Decreto Lei 48/95, no artigo 217º, está inserido no capítulo dos crimes contra o património em geral e está previsto – como vimos já - para a situação de “quem com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
Requisitos deste tipo legal surgem, assim:
uma actividade enganadora;
a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo;
a prática de actos pelo enganado;
o prejuízo patrimonial do enganado ou de outrem;
o duplo nexo causal, entre a actividade enganadora do agente e o erro do enganado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial.
A conduta enganadora deve ser adequada a produzir um erro no sujeito passivo, deve será a causa do erro, pressupondo um nexo de causalidade entre ambos.
Para que o engano seja causa adequada a produzir o erro é suficiente que possa exercer influência no ânimo do sujeito passivo. O meio enganador não é, no entanto, suficiente; torna-se necessário que ele consubstancie a causa do erro, em que se encontra o burlado. Como da mesma forma não será suficiente a simples verificação do estado de erro; necessário, será, ainda, que nesse engano resida a causa da prática pelo enganado dos actos donde decorre o prejuízo patrimonial.
O crime de burla, enquanto crime de dano, consuma-se com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro, que passa, então, por aquele apontado duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta do agente e a prática pelo burlado dos actos tendentes a uma diminuição do património e, depois, entre estes e a efectiva verificação do prejuízo.
O engano é o mais melindroso dos elementos deste tipo legal, se bem que seja, em simultâneo, o decisivo. É ele que individualiza o crime de burla em face das restantes figuras de enriquecimento ilegítimo.
Enganar é fazer crer a alguém, por acção ou de qualquer forma concludente, algo que não é verdade.

Por sua vez, a par da idoneidade do meio enganador, objectivamente apreciada, deve-se tomar em consideração a personalidade do burlado.
Aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, vg, mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente.
A pedra de toque da distinção entre o crime de burla e o incumprimento de obrigações civis, centra-se no facto de que o crime de burla apenas tem a virtualidade de criminalizar os contratos civis, quando o propósito de enganar, precede a celebração do contrato ou ocorre no momento de celebração do contrato, determinando a vontade da outra parte. O dolo no incumprimento das obrigações tem, ao invés, carácter subsequente e surge posteriormente à conclusão de um negócio lícito contraído de boa fé, na fase de cumprimento e execução.
Assim, apenas poderá ocorrer o crime de burla se a intenção de não cumprir existia ab initio, não podendo aqui ocorrer uma situação de dolo subsequente. [1]
O erro entende-se como o estado psicológico de falsa representação da realidade, consequência do engano e causa do acto de disposição patrimonial. Não é no entanto qualquer erro que o crime de burla pressupõe. O erro, aqui, tem que ser provocado astuciosamente, de forma fraudulenta. Maliciosamente era a expressão utilizada no já citado tipo legal previsto no nº. 4 do artigo 450º C Penal de 1886.
Na actividade de apreciação do preenchimento dos elementos do tipo legal de burla, há que com muito cuidado apreciar e avaliar as palavras e declarações expressas, os actos concludentes e os silêncios, pois que o engano pode ser produzido por omissão.
O acto concludente ou engano implícito, assume a maioria das vezes uma conduta do agente que leva associada ou implícita a ideia de que vai cumprir a contraprestação, mas em que na realidade tal propósito não existe e a sua aparência outra finalidade não tem senão a de induzir em erro o ofendido. [2] Eis, o artifício fraudulento.
No entanto, no ensinamento do Prof. Faria Costa, [3] importa proceder à delimitação do âmbito de protecção do ilícito subjacente a este tipo legal: apesar da característica acentuadamente solidária dos actuais Estados de Direito social, persiste a convicção de que, em primeira alinha, compete a cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses, surgindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios – até por razões reportadas à preservação da autonomia da esfera privada – com carácter subsidiário e residual.
Este facto adquire particular acuidade na esfera das relações patrimoniais, quer de natureza civil, quer, sobretudo, comerciais, no âmbito do mundo dos negócios.
Com efeito, numa economia de mercado, assente em mecanismos de livre concorrência, o sucesso liga-se, as mais das vezes, ao superior conhecimento das características do sector concreto de actividade e assim, em termos de erro ou de ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o mencionado domínio do erro consubstancia um elemento constitutivo, intrínseco, do regular funcionamento de uma economia de mercado. Neste caso o correspondente exercício apresenta-se conforme à ordem jurídica, não podendo integrar a previsão do ilícito criminal em apreciação.
A questão será já diversa, quando tal domínio corresponder a uma actuação ofensiva das relações de lealdade que deve acompanhar o comércio jurídico e como tal consubstanciando o domínio do erro penalmente relevante. [4]
Como da mesma forma, o Prof. Costa Andrade, [5] defende que importa ponderar a existência, ou não, de um critério legal de interpretação da factualidade típica susceptível de em certos domínios, um deles a burla, permitir valorar a conduta da vítima do ponto de vista da carência de tutela jurídica e, por essa via, excluir determinadas expressões da vida do âmbitos da factualidade típica. Citando Hassemer, que parte do princípio da subsidariedade do direito penal – a que atribui dignidade constitucional – segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela de bens jurídicos em causa, não puder ser garantida por outras vias, que impliquem custos menos gravosos para os direitos do homem, tal princípio vale sem limites, ié, tanto em relação ao outras alternativas estaduais como alternativas privadas, nomeadamente a auto-tutela que se permite e se reclama aos portadores concretos de bens jurídico-penais.
Quer dizer o princípio da subsidariedade do direito penal tem como reverso um princípio de auto-responsabilização dos titulares concretos dos bens jurídico-penais.
O direito não pode exigir que os indivíduos se fechem à participação social e evitem todo o contacto histórico-socialmente adequado mesmo que susceptível de criar risco para os respectivos bens jurídico-penais. Mas já pode reclamar que não sejam eles a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção. Pois se aquele limiar só foi atingido e excedido por razões imputáveis à vítima – que não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe eram oferecidas e cujo aproveitamento lhe era exigível, então terá que se concluir, à luz dos princípios da subsidariedade e da proporcionalidade, que ela se colocou fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória.
Aplicando esta construção à interpretação da factualidade típica do crime de burla, interroga-se Hassemer, sobre se deverá considerar-se o elemento erro da vítima em todos os casos em que a sua situação cognitiva se caracteriza pela dúvida concreta: nos casos em que, não sendo de convicção subjectiva quanto à verdade do estado de coisas apresentado fraudulentamente pelo agente, ultrapassa, todavia, o grau de mera dúvida difusa adequada ao tráfego normal comercial.
Dúvida concreta, existirá, quando o comprador do automóvel usado, a quem o vendedor garante que o mesmo nunca sofreu qualquer colisão, sendo que o estado da pintura e da chaparia, apresenta sinais concretos que torna razoável a representação da possibilidade de ocorrência da colisão e, por seu lado, dúvida difusa, ocorrerá, quando, o mesmo comprador, sem ignorar a eventualidade e mesmo frequência de fraude nesta actividade, não vê sinais externos e concretos susceptíveis de fazer ultrapassar este estado difuso e generalizado de dúvida.
Sustenta, então, Hassemer, que o enquadramento de cada uma destas duas situações, deve ser diferenciado: ninguém pretenderá excluir a subsunção da 2ª hipótese na factualidade típica do crime de burla, em especial no elemento erro. Será diferente quanto à 1ª situação: se com a dúvida concreta se verificar, cumulativamente, que sem custos ou sacrifícios inexigíveis, o comprador poderia alargar o seu campo de informação ou, em alternativa, renunciar à transacção. Se o portador do bem jurídico não assume qualquer destas atitudes alternativas, embora tal lhe fosse possível e exigível, então falha a sua carência de tutela e por isso, a aplicabilidade do elemento da factualidade típica, erro, com a consequência de ter que se excluir, pelo menos, a condenação por burla consumada.
Claro que esta teoria não é decisiva para fundamentar a carência de tutela penal do bem jurídico, sobretudo em sociedades como a portuguesa, mal habituada para aceitar subtilezas da doutrina, antes habituada a recorrer à protecção que lhe é facultada pelo direito criminal para resolver problemas decorrentes de negócios jurídicos tutelados pela lei civil ou comercial. É certo que o direito criminal presta apoio com as suas técnicas específicas a outros ramos de direito, mas resta saber se tal apoio não deverá, em certas situações particulares sofrer algumas restrições, sobretudo quando os lesados omitem as precauções exigíveis e normais em contraentes prudentes e avisados. [6]

Apreciemos agora se a actuação do arguido descrita na acusação pública, é susceptível de o revelar ou fazer constatar.

Aqui se imputa ao arguido o facto de,
em FEV2010, ter abordado o ofendido, pedindo-lhe um empréstimo de € 1.000,00, o que lhe foi concedido;
em troca, e para garantir a boa cobrança daquele valor, o arguido entregou-lhe um cheque de uma conta de que era titular no D…, naquele valor e postdatado para 24MAR2011;
o arguido nunca tencionou liquidar aquele cheque, nem o valor mutuado, porquanto o cheque que utilizou já não tinha validade, o que o arguido sabia, querendo assim locupletar-se com o valor mutuado, o que conseguiu;
na verdade, quando o ofendido intentou depositar o dito cheque, em Agosto de 2011, a fim de se cobrar da quantia mutuada, tal depósito foi-lhe negado, pois foi informado de que o cheque já não tinha validade há mais de 2 anos, o que o arguido bem sabia, pois que não movimentava aquela conta naquele período;
o arguido agiu livre e lucidamente, convencendo o ofendido a emprestar-lhe a quantia em dinheiro, entregando-lhe cheque como garantia daquele empréstimo, que sabia não ter validade, assim criando erro na vontade daquele, que, assim, fez uma disposição patrimonial, bem sabendo que assim agindo incorria na prática de um crime punido pela lei penal.

Se ate aqui utilizamos a expressão cheque postdatado, no sentido utilizado pela artigo 11º/3, também utilizado, quer no despacho recorrido, quer nos termos do recurso, a partir de agora, por ser esta expressão, também utilizada, como aquela, de resto, na acusação publica, passaremos a utilizar o termo cheque de garantia.
Diz-se, com efeito, a este propósito, no Preambulo do Decreto Lei 317/96, que se visava tornar mais claro que o cheque emitido para garantia de pagamento ou emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador não goza de tutela penal, por, em qualquer dos casos, não constituir meio de pagamento em sentido próprio e que o âmbito da incriminação é restringido, (…) afastando-se o cheque, mero instrumento de garantia ou porque emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador, pretendendo-se excluir da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que se não destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente - seja qual for a designação que se lhes atribua – ainda, ante-datados e pré-datados.

Assim, o crime de emissão de cheque sem provisão pode ser uma forma especial do crime de burla, uma forma de o executar, e isto quando o erro ou engano, com intuito de conseguir enriquecimento ilegítimo, se traduza precisamente na entrega fraudulenta de um cheque. Este aparece, então, apenas como um modo, um meio de executar o crime de burla e assim se lograr obter o enriquecimento ilegítimo.

Como dissemos já o cheque constitui um meio de pagamento e não instrumento de garantia de pagamento – conceito, a, de resto, a própria LUCH não se refere.
Esta expressão e usada com múltiplos sentidos, desde o cheque postdatado, entregue como efectivo meio de pagamento a prazo, a cheque de simples garantia de pagamento a realizar por outra forma.
Num sentido mais conforme com a designação, o cheque de garantia e aquele que não se destina ao pagamento de uma obrigação, mas assume finalidade subsidiária, de mera garantia de cumprimento de uma obrigação
Enquanto meio de garantia, o cheque não tem protecção jurídico-penal, mas poderá revestir a função de meio de cumprimento principal ou privilegiado, se a obrigação não for cumprida.
A utilização do cheque como instrumento de garantia e uma utilização que não corresponde a sua função precípua, já que a função para que o cheque foi criado foi a de servir de instrumento de pagamento, de meio de mobilização de fundos em substituição da entrega efectiva de dinheiro,
Isto não obsta a que no entanto, o cheque possa servir de facto como garantia atípica de cumprimento de uma obrigação, enquanto o cheque não e invalido e vale pela sua abstracção e literalidade.
Assim emitido um cheque como garantia de uma obrigação, tudo depende dos acordos subjacentes que são invocáveis nas relações imediatas e nas mediatas, nos termos do artigo 22º da LUCH.
Por sua vez nas relações imediatas, para efeitos penais, todo se reconduzira afinal a verificação da ocorrência de prejuízo patrimonial do portador causado pelo não pagamento do cheque.
Se do acordo resultar que o cheque não deveria ser apresentado a pagamento, então não se verifica o prejuízo patrimonial e consequentemente não há crime por falta desse elemento essencial.

Donde, a emissão e entrega de um cheque, poder traduzir, desde logo, uma de 3 realidades jurídico-penais:
1. se o cheque vale como meio de pagamento, poderemos vir a estar perante um crime de emissão de cheque sem provisão;
2. se, aliada a tal finalidade se evidencia ainda uma outra, que astuciosamente, foi incutida pelo emitente do cheque, aparecendo o cheque apenas como um de outros factos que fundamentam a mise en scene envolvente ao negocio – alem do inerente erro ou engano, próprio da situação anterior, quanto a criar a convicção de que o cheque tinha provisão - então o crime poderá ser o de burla;
3. se o cheque vale tão só como garantia do pagamento de uma obrigação de natureza civil e, não tem a finalidade de ser apresentado a pagamento, falta desde logo o elemento prejuízo.
Mesmo que, o emitente não tivesse, desde logo, a partida, a intenção de cumprir a obrigação assumida e que entregue como garantia um cheque com o prazo de validade expirado, pois que, nunca o arguido garantiu, sequer, muito menos astuciosamente, com erro fraudulento, que o cheque tinha provisão e seria pago quando apresentado a pagamento.

Tanto assim é, que se o arguido tivesse cumprido a obrigação assumida com o empréstimo, o mutuante não se consideraria, sequer, enganado. Erro e engano a que o ofendido, aliás, deu azo, ao aceitar conceder um empréstimo recebendo um cheque nas condições em que o aceitou – com a data de validade ultrapassada e apenas, como garantia e, não como meio de pagamento.
Não houve, assim, objectivamente, qualquer erro ou engano, próprio do tipo legal de burla, nem prejuízo ou enriquecimento ilegítimo. O que os autos evidenciam e a celebração de um negocio, em termos tais, que apesar da garantia concedida, o arguido ainda não cumpriu.

Se não comete o crime de emissão de cheque sem provisão aquele que para garantia do pagamento de um mutuo, emite e entrega um cheque ao mutuante - datado para dai a 1 ano - que respeitando a sua função, não o apresenta a pagamento – cheque que tinha a sua validade expirada já ao tempo da sua emissão, não tendo ainda sido pago o valor mutuado - mesmo que o contrato de mutuo, subjacente a emissão do titulo, seja nulo, por vicio de forma, uma vez que por via da nulidade, cada um dos contraentes fica obrigado a restituir ao outro o que dele tiver recebido - o mutuante e tomador do cheque sofre um prejuízo patrimonial.
Não derivado da falta de pagamento do cheque – que, de resto era de mera garantia - mas sim, do não reembolso do valor do mutuo.
Prejuízo e o dano patrimonial sofrido em consequência do não pagamento do cheque - que se não confunde, de resto, com o não enriquecimento do portador – e se o cheque não era um meio de pagamento, mas de garantia, então o portador não tinha o direito a receber o valor titulado pelo cheque, pois que não tinha, sequer, o direito de o apresentar a pagamento
Falta assim, alem do mencionado engano fraudulento – de todo, pois mesmo que o cheque fosse meio de pagamento, o mais que a acusação lhe imputa e o assegurar e prometer que o cheque teria provisão, o que se traduz afinal, no erro ou engano normal inerente ao crime de emissão de cheque sem provisão - ainda o prejuízo patrimonial – na noção de frustração do direito do portador do cheque de receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito e para cujo pagamento o cheque foi emitido.

III. 3. 6. Termos em que se conclui que,
assistindo, muito embora, razão ao recorrente no primeiro segmento do recurso,
já carece de fundamento o segundo segmento e, como tal,
se andou mal a decisão recorrida, naquele,
já, pertinentemente se decidiu, neste segundo,
motivo pelo qual há que concluir pelo não provimento do recurso,
restando, por isso, ao portador do cheque, tão só, a possibilidade de lançar mão dos meios cíveis, para receber o valor mutuado - ou no pressuposto da validade do negocio, para o que tem em mão um documento particular assinado pelo devedor, que não constituindo, e certo titulo executivo (pois que não foi apresentado a pagamento, sequer) vale como mero quirografo da relação causal ou subjacente, ou, como consequência da sua nulidade por vicio de forma.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos acabados de expor, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo MP., confirmando-se a decisão recorrida, tão só no segmento em que considera a acusação desprovida de base factual imprescindível à condenação do arguido pela prática do crime de burla, pelo qual este vem acusado.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2013.janeiro.16
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Artur Manuel da Silva Oliveira
______________
[1] Acórdão deste Tribunal relatado pela Sra. Desembargadora Isabel Pais Martins, de 16.2.2005, in CJ, 219.
[2] Voto de vencido subscrito pelo então Desembargador Santos Cabral no Acórdão da RC de 13.12.2000, in CJ, V, 54.
[3] C Penal Conimbricense, II, 263
[4] Voto de vencido subscrito pelo então Desembargador Santos Cabral no Acórdão da RC de 13.12.2000, in CJ, V, 54.
[5] Citado no Acórdão do STJ de 1.7.1998, de que foi relator o Conselheiro Lopes Rocha, in CJ, S, II, 223 e extraído do estudo denominado “Sobre o estudo e Função da Criminologia Contemporânea, in Separata do BMJ 13, 25.
[6] Citado acórdão de 1.7.98