Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3000/17.8T8STS-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Nº do Documento: RP202009083000/17.8T8STS-E.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Dever ser qualificada como culposa a insolvência quando o quadro factual que nos autos se mostrou assente preenche a facti species das als. d) e h) e i) do nº 2 e als. a) e b) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE.
II - A verificação de qualquer das situações previstas na al. h) do nº 2 quer a situação prevista na al. b) do nº 2 leva, só por si, a qualificação da insolvência como culposa, não sendo necessário que, para o seu preenchimento, a conduta tenha causado qualquer prejuízo, pois que a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor e só por si uma das situações que à qualificação da insolvência como culposa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º nº 3000/17.8T8STS-B.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Comércio de Santo Tirso-J7
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de B…, Ld.ª, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, n.º …, r/c, ….-… Póvoa de Varzim, veio o Sr. Administrador da Insolvência (AI) apresentar parecer propondo que a insolvência fosse qualificada como culposa, dela sendo afectado os seus gerentes C… e D….
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Cumprido o disposto no artigo 188º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE), veio o Ministério Público acompanhar o parecer apresentado (fls. 13).
Foram os afectados pela qualificação da insolvência como culposa devidamente citados para se pronunciarem, tendo apenas a própria sociedade B…, Ld.ª apresentado contestação, mediante requerimento apresentado a fls. 18 e segs., subscrito pelos respectivos gerentes supra identificados, pugnando pela improcedência da acção. Foi proferido despacho saneador e identificado o objecto do processo e os temas da prova (fls. 67 e 68), os quais não sofreram qualquer reclamação.
Posteriormente, por se considerar ser obrigatória a constituição de mandatário (fls. 73), a sociedade requerida foi notificada para juntar procuração forense e ratificar o processado, o que satisfez através do requerimento apresentado a fls. 89 e 90, assim regularizando o processado.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.
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A final foi proferida decisão que:
a) qualificou a insolvência de B…, Ld.ª, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua …, n.º …, r/c, ….-… Póvoa de Varzim, como culposa;
b) declarou afectados por essa qualificação C… e D…, aos quais se atribui culpa média;
c) decretou a inibição de C… e D… para administrar patrimónios de terceiros por dois anos e seis meses.
d) decretou a inibição de C… e D… para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de dois anos e seis meses.
e) declarou perdidos quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente eventualmente detidos por C… e D… e a restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, caso tenham tido lugar.
f) condenou C… e D… a indemnizar os credores da devedora/insolvente B…, Ld.ª, no montante dos créditos reconhecidos em sentença de graduação de créditos e não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os afectados C… e D… interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
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Devidamente notificado contra-alegou o Ministério Público concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se a insolvência deve, ou não, ser qualificada como culposa.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido deu como assente a seguinte factualidade:
1. Em 29.09.2017, a sociedade E…, Ld.ª, alegando ser titular de um crédito de € 6.000,00, requereu a insolvência da devedora B…, Ld.ª.
2. Na sequência da falta de oposição, a devedora foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 31.10.2017, tendo sido nomeado como administrador da insolvência o Sr. Dr. F….
3. Em 19.12.2017, o Sr. Administrador da Insolvência apresentou ao Tribunal o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, requerendo o encerramento da insolvência, por insuficiência de bens.
4. A devedora insolvente foi constituída em 23.04.2007.
5. Sendo seus sócios e gerentes os requeridos C… e D….
6. A sociedade vincula-se, desde então, pela assinatura de ambos os gerentes.
7. A requerida não procedeu ao depósito das contas dos exercícios de 2015 e 2016 na Conservatória do Registo Comercial.
8. Os requeridos C…, D… e a sociedade requerida, respectivamente em 06.11.2017, 03.11.2017 e 06.11.2017, receberam as cartas dirigidas pelo Sr. Administrador da Insolvência para que procedessem à junção dos documentos contabilísticos dos últimos três exercícios (cfr. documentos nºs 1 a 3 do requerimento inicial).
9. Os requeridos apenas procederam à entrega de alguns documentos contabilísticos até ao ano de 2015, nada tendo entregado referente aos anos de 2016 e 2017.
10. Por requerimento de 29.12.2017, os requeridos informaram os autos de que a falta de entrega dos demais documentos contabilísticos referidos em 9. supra resultou da recusa do TOC G… em entregá-los, sem que fossem regularizados os seus honorários.
11. Este TOC não reclamou qualquer crédito nos autos.
12. A sociedade H…, S.A. emitiu a favor da devedora os cheques datados de 15.12.2016 e 02.01.2017, respectivamente de € 23.260,01 e € 4.078,35, ambos endossados pelos requeridos e depositados numa conta do requerido C….
13. A requerida não elaborou as contas respeitantes aos exercícios económicos e fiscais de 2016 e 2017.
14. Em Junho de 2017, o TOC da requerida, G…, renunciou à actividade que vinha prestando à mesma.
15. Os requeridos nunca efectuaram a entrega ao TOC dos documentos contabilísticos referentes aos anos de 2016 e 2017, apesar de estarem em poder dos mesmos.
16. Apenas foi apreendido para a massa insolvente o “crédito do sócio-gerente C… por depósito por depósito de cheques à ordem da insolvente na conta particular”, no valor de € 27.338,36, conforme auto de apreensão constante de fls. 3 do apenso D, cujo teor se dá por reproduzido.
17. Foram reclamados no processo de insolvência créditos no montante global de € 193.827,78, os quais foram reconhecidos e graduados conforme sentença proferida de fls. 4 a 6 do apenso A), cujo teor se dá por reproduzido.
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Factos não provados
Não se provou que:
a) A falta de entrega dos documentos contabilísticos referidos em 9. tenha sido devida à recusa do TOC G… em entregar tais documentos aos requeridos, sem que fossem regularizados os seus honorários.
b) As quantias tituladas pelos cheques referidos em 12. tenham servido para pagar dívidas da sociedade insolvente.
c) O procedimento seguido em 12. tenha sido levado a cabo pela devedora em virtude de ter o saldo da sua conta bancária penhorado.
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III- O DIREITO
Questão Prévia
Na sua alegação requerem os apelantes a junção aos autos de um documento.
Trata-se de uma factura da operadora de telecomunicações “I…”.
Invocam os recorrentes, para sustentar a admissibilidade da junção deste documento nesta fase do processo, o disposto nos artigos 651.º n.º 1 e 425.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então, se tal admissão se mostra possível.
À questão da junção de documentos na fase de recurso se refere expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, cujo teor ora se transcreve:
Artigo 651º
Junção de documentos e de pareceres
1-As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
E dispõe o artigo 425º para o qual remete o texto da norma acabada de transcrever:
Artigo 425º
Apresentação em momento posterior
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423º do CPC:
Artigo 423º
Momento da Apresentação
1-Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2-Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3-Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Da concatenação destas normas decorre, que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da caracterização (rectius, da alegação e da prova) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí-até ao julgamento em primeira instância-se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
Os documentos em referência nos citados artigos são habitualmente designados de documentos supervenientes, sendo que, e a sua superveniência pode ser objectiva, nos casos em que o documento só foi produzido em momento posterior ao do encerramento da discussão ou subjectiva, quando o documento, apesar de já existir, só chegou ao conhecimento da parte depois desse momento.
Neste caso invocam os apelantes que a junção do documento supra referido se tornou “necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância” (parte final do artigo 651.º n.º 1 do Código de Processo Civil).
O normativo em referência e atrás transcrito, também admite, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento.
Todavia, pressupõe esta situação, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.[1]
Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes[2], “[p]odem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” e mais à frente acrescenta[3] “A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”.
Ora, nada disso ocorre na situação sub júdice não podendo este normativo servir como pretexto para a junção de documentos para demonstração de factos sujeitos a prova e que se vieram a julgar indemonstrados.
Na verdade, estando em causa o incidente de qualificação de insolvência, os recorrentes sabiam qual era o thema decidendum e qual era o objecto de condenação e, portanto, que factos teriam de provar para que a mesma fosse considerada fortuita, ou seja, já sabiam quais eram os factos que tinham relevância dentro do objecto do processo antes de ser proferida a decisão.
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Em consequência, recusa-se a junção dos referidos documentos e consequentemente, ordena-se o seu desentranhamento, condenando-se a recorrente em multa que se fixa em 1 (uma) UC nos termos do artigo 543.º, nº 2 do CPC e do artigo 27.º, nº 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais.
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Como supra se referiu a primeira questão colocado no recurso consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões os recorrentes impugnam a decisão da matéria de facto, no sentido de que deviam ser dados como provados os factos constantes das alíneas b) e c) do elenco dos factos não provados.
Quid iuris?
Como se infere da fundamentação factual o tribunal recorrido e sobre os pontos em questão discorreu da seguinte forma:
No tocante à afectação das quantias tituladas pelos cheques referidos em 12. para pagar o pagamento de dívidas da sociedade insolvente, nenhuma prova foi produzida nos autos susceptível de gerar uma convicção sólida nesse sentido, daí decorrendo a falta de prova das alíneas b) e c) da Matéria de facto não provada. De facto, partilha-se da análise realizada pelo colaborador do AI em audiência, no sentido de considerar que os elementos constantes dos autos, designadamente de fls. 28 a 52, sem o suporte contabilístico adequado, justifique cabalmente as operações efectuadas como realizadas no interesse da insolvente.
Desde logo, porquanto o fundamento para o ingresso de montantes destinados à insolvente acabarem por ingressar na conta (como tal, no património) do gerente C…, não ter sido minimamente demonstrado, pois nem aquele colaborador do AI ou o TOC da insolvente aludiram em momento algum à penhora da conta da sociedade que o justificasse, não constando dos autos qualquer documento revelador dessa penhora.
Por outro lado, e conforme referiu o colaborador do AI, não existem nos autos documentos contabilísticos que comprovem que os movimentos a débito lançados na conta do gerente C…, na sequência do lançamento a crédito das quantias tituladas pelos cheques referidos em 12., tal como constam do extracto bancário da respectiva conta, junto de fls. 29 a 31, tivessem sido utilizados no pagamento de dívidas da sociedade insolvente, sendo insusceptíveis dessa demonstração os documentos particulares de fls. 41 a 48 e 49, assim como insuficientes as cópias das facturas juntas de 34 a 37, sendo ademais certo que os talões de multibanco de fls. 51 e 52 também nada revelam sobre a satisfação de dívidas da sociedade, tal como observou o AI. Ora, conforme referiu o colaborador do AI, o interesse dos elementos da contabilidade que não foram facultados ao AI, era precisamente o de permitir, em concreto, o conhecimento da situação em causa. Daí que, e para o que aqui releva, somente ficasse demonstrado o ingresso das quantias destinadas à sociedade insolvente no património do gerente da mesma, C…, sendo certo que o mesmo admitiu no respectivo depoimento que utilizou em seu benefício o montante de € 400,00 (quatrocentos euros), confissão que reveste da maior relevância para o que aqui importa”.
Salvo o devido respeito não cremos que a análise crítica feita pelos apelantes altere a citada fundamentação.
Com efeito e como decorre da transcrita fundamentação, o tribunal recorrido também aí ponderou os extractos bancários que agora os apelantes chamam agora à colação.
Desde logo, tal como aí se refere não existe justificação cabal para que os montantes destinados à insolvente tenham ingressado na conta (como tal, no património) do gerente C…, já que nem colaborador do AI ou o TOC da insolvente aludiram em momento algum à penhora da conta da sociedade que o justificasse, não constando dos autos qualquer documento revelador dessa penhora.
Acresce que, como aí também se afirma, não existem nos autos documentos contabilísticos que comprovem que os movimentos a débito lançados na conta do gerente C…, na sequência do lançamento a crédito das quantias tituladas pelos cheques referidos em 12., tal como constam do extracto bancário da respectiva conta, junto de fls. 29 a 31, tivessem sido utilizados no pagamento de dívidas da sociedade insolvente, da mesma forma que os talões de multibanco de fls. 51 e 52 também nada revelam sobre a satisfação de dívidas da sociedade.
Na verdade admitindo-se que, tal como referem os recorrentes, que o cheque no montante de € 23.260,01 depositado a 16/12/2016 foi, quase na sua totalidade, transferido para sociedade, E…, Ldª, e que corresponde ao montante constante da factura com os n.º 39/40, ou seja € 20.209,73, conforme o comprovativo da ordem de transferência anexo, como sabemos que, sem o suporte contabilístico adequado, tal operação foi realizada no interesse da insolvente?
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No que tange a al. c) dos factos não provados os recorrentes limitam-se a tecer um conjunto de considerandos perfeitamente inócuos sendo que, quanto a remissão, sem mais, para os depoimentos na íntegra por eles prestados não cumprem os ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 2 al. a) do CPCivil.
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Decorre do exposto que a apreciação do Mmº juiz a quo-efectivada no contexto da imediação da prova-, surge-nos assim como claramente sufragável, não sendo a prova documental capaz, para além de toda a dúvida razoável, sustentar a tese que pelos recorrentes vem expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que pois que afirmar ter o Mm.º juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem, não existindo, portanto, fundamento probatório convocado pelos recorrentes para que este tribunal dê como provados as als. b) e c) do elenco dos factos não provados.
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Improcedem, desta forma as conclusões a) a e) formuladas pelos recorrentes.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se a insolvência deve, ou não, ser qualificada como culposa.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que a insolvência devia ser qualificada como culposa pelo preenchimento da factie species das alíneas d), h) e i) do nº 2 e alíneas als. a) e b) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE.
Desse entendimento dissentem os recorrentes.
Analisando.
Conforme consta no preâmbulo do diploma que aprovou o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas-CIRE–(Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.3), o incidente de qualificação da insolvência tem como objectivo “a obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas”.
Segundo o legislador, “as finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais aos credores”.
Inspirado na Ley Concursal espanhola, o dito incidente destina-se a apurar, sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil, “se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”. (n.º 40 do preâmbulo).
Conforme se sintetiza no preâmbulo, “a qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as pessoas afectadas que podem ir da inabilitação por um período determinado[4] a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos”.
O supra referido propósito sancionatório concretizou-se, no que diz respeito à delimitação do conceito de insolvência culposa e à caracterização das situações aplicáveis, no artigo 186.º do CIRE, que aqui se reproduz:
Insolvência culposa”:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Portanto, este normativo, estabelece no seu nº 1 o conceito geral de insolvência culposa, com diversos pressupostos, a saber:
a) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito;
b) essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
c) que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência;
4) e que essa conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.
Postula-se ali não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.
Acontece que o legislador não se ficou por ali, indo mais longe ao estatuir, no nº 2 daquele mesmo preceito legal, que se “considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto”, tenham praticado alguns dos factos elencados nas diversas alíneas desse número.
O citado n.º 2 enumera, assim, um conjunto de actos que, cada um de per se, constituem fundamento bastante para o preenchimento do conceito de insolvência culposa, ou seja, da verificação de qualquer dos factos inscritos no nº 2 desta norma, a lei faz presumir, de forma inilidível (iures et de iure) quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Ou seja, não apenas se presume juris et de jure a existência culpa, mas também a causalidade entre a actuação dos administradores, de facto ou de direito, do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência não admitindo a produção de prova em sentido contrário[5], sendo certo que, como resulta do artigo 186.º, nº 4 do CIRE as circunstâncias previstas pelos nº 2 e 3 são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
Esse é, aliás, como unanimemente se lhe reconhece, o sentido conferido à norma pela expressão “sempre” que a integra.[6]
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Postos este breves considerandos e como noutro passo já se referiu, o tribunal recorrido considerou dever ser qualificada a insolvência como culposa por estar preenchida a factie species das alíneas d), h) e i) do nº 2 e alíneas als. a) e b) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE.
Ora, tendo em conta a factualidade dada como provada e só a essa há que fazer apelo, não vemos como não dar como verificada a facti species das mencionadas alíneas d), h) e i) do nºs 2 e als. a) e b) 3 do artigo 186.º do CIRE, tal como conclui o tribunal recorrido, com cuja fundamentação se concorda inteiramente e que aqui nos abstemos de reproduzir.
No que concerne a al. h) do nº 2 referem os recorrentes que para a verificação deste pressuposto, torna-se necessária que a conduta cause prejuízo, ora em nenhum ponto é alegado ou provado o prejuízo da conduta dos Apelantes.
Não se pode salvo o devido respeito concordar com este entendimento.
Na verdade, a citada norma distingue várias condutas:
- incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada;
- manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade;
- ou praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira.
Portanto para a verificação da sua facti species basta que esteja verificada uma daquelas situações, como acontece no caso em apreço em que a insolvente não elaborou as contas respeitantes aos exercícios económicos e fiscais de 2016 e 2017 (cfr. ponto 13 da fundamentação factual), ou seja, a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira é só por si, uma das situações para considerar a insolvência como culposa.
E as mesma considerações, valem, mutatis muntandis, em relação à al. b) do nº 3 em que também os recorrentes consideram de que este pressuposto carece sempre do prejuízo provocado pela omissão.
Desta forma e tal como se decidiu deverá a insolvência qualificar-se como culposa.
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Alegam ainda os recorrentes que caso não seja alterada a qualificação da insolvência, o período de inibição do exercício da sua actividade comercial deve ser reduzido ao seu mínimo, ou seja 2 anos.
Na decisão recorrida fixou-se o referido período de inibição em 2 anos e seis meses, tendo discorrido da seguinte forma:
Ora, face aos elementos que acima se enunciam, tratando-se da qualificação da insolvência como culposa pelo preenchimento dos referidos pressupostos, verificando que por força dessa conduta se chegou a um passivo elevado, na ordem de € 193.827,78 (montante dos créditos reclamados e reconhecidos), nenhum bem existindo cuja venda possa atenuar por qualquer valor aqueles débitos, julga-se que o juízo de censura a estabelecer se deve aproximar de um limite médio/inferior, não obstante nada se ter apurado quanto à actual situação familiar, social e económica dos requeridos”.
Os apelantes não indicam qualquer motivo ou circunstância que justifica a redução, que diga-se se fixou quase no seu limiar mínimo, razão pela qual não deve a mesma ser alterada.
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Improcedem, assim, as conclusões f) a i) formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.

IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provado procedente e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da massa insolvente (artigos 303º e 304º do CIRE e 527.º nº 1 do CPCivil).
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Porto, 08/09/2020.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Ou dito, de outra forma os casos em que a sua junção se torna necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância são apenas aqueles em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes de a decisão ter sido proferida.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 184.
[3] Obra citada pág. 185.
[4] Esta consequência, prevista na alínea b) do art.º 189.º do CIRE, veio a ser julgada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/2009, de 02.4.2009, por violação do princípio da proporcionalidade, no que diz respeito à imposição da inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.
[5] Cfr. neste sentido Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2012, pág. 274.
[6] Cfr. neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 2013, Quid Juris, pág. 718 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª ed., 2013, Almedina, pág. 131 a 133.