Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0210613
Nº Convencional: JTRP00036476
Relator: MARQUES SALGUEIRO
Descritores: DANO QUALIFICADO
VIOLÊNCIA CONTRA AS PESSOAS
Nº do Documento: RP200401210210613
Data do Acordão: 01/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J VALE CAMBRA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Para que se integre o conceito "violência contra uma pessoa" do artigo 214 do Código Penal de 1995 é necessário que a violência seja um meio de cometimento do crime de dano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de....., o Mº Pº deduziu acusação contra FRANCISCO..... e MARIA....., requerendo o seu julgamento em processo abreviado e por tribunal singular, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 16º do C. P. Penal, imputando ao Francisco.... a prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelos artº 214º, nº 1, al. a), e 212º do C. Penal, e à Maria..... a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artº 143º, nº 1, do mesmo Código.
O ofendido JOAQUIM..... deduziu contra ambos os arguidos pedido de indemnização civil por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante global de 793.080$00, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a notificação do pedido até integral pagamento.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença (fls. 104 a 111), decidindo:
a) Condenar o arguido Francisco......, pela prática de tal crime de dano, na pena de 2 anos de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de um ano;
b) Condenar a arguida Maria....., pela prática do crime de ofensa à integridade física simples supra referido, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 400$00, ou seja, no total de 88.000$00;
c) Quanto ao pedido de indemnização civil, condenar o arguido/demandado a pagar ao demandante a quantia de 130.080$00 e a arguida/demandada a quantia de 70.000$00, absolvendo-os do mais.

Desta decisão interpuseram recurso os arguidos, pugnando pela sua absolvição, vindo, porém, a ser proferido acórdão nesta Relação (fls. 155 a 162) que, concluindo pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício reportado na al. a) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal, determinou o reenvio do processo para novo julgamento.
E, assim, tendo-se efectuado o julgamento ordenado, foi proferida nova sentença (fls. 211 a 223) que decidiu:
A. Quanto à matéria criminal:
1. Condenar o arguido Francisco....., como autor material do crime de dano com violência de que era acusado, na pena de 18 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de 1 ano;
2. Condenar a arguida Maria....., pela prática do crime de ofensa à integridade física simples que lhe era imputado, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 400$00, ou seja, no montante global de 80.000$00;
B. Quanto à matéria civil:
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra os arguidos, decidindo:
1. Condenar o Francisco....., a pagar ao demandante a quantia de 160.080$00, acrescida de juros de mora, contados da data da sentença quanto à quantia de 100.000$00 e contados da notificação para contestar quanto ao mais;
2. Condenar a Maria....., a pagar ao demandante a quantia de 100.000$00, acrescida de juros de mora contados desde a data da sentença;;
3. Condenar ambos os arguidos, solidariamente, a pagarem ao demandante a quantia de 21.000$00, acrescida de juros de mora contados desde a notificação do pedido;
4. Relegar para execução de sentença o apuramento da quantia necessária para o demandante proceder à extracção e à colocação de dentadura, consequência directa e necessária da agressão de que foi vítima.

Desta sentença, interpuseram novamente recurso ambos os arguidos, encerrando a sua motivação conjunta com as conclusões seguintes:
1. A arguida Maria..... foi condenada apenas com o depoimento do ofendido.
2. Há falta de prova objectiva para a condenar. A palavra do ofendido deve valer tanto em tribunal como a do arguido (ambos não prestaram juramento).
3. O ofendido diz que foi logo à GNR participar a agressão, mas mandaram-no ir no dia seguinte (13?, 14?) e o auto de denúncia tem a data do dia 15.3.99;
4. O auto de denúncia refere o ofendido que não houve testemunhas;
5. No entanto e a ser credível o depoimento da testemunha Benjamim, este refere que no dia seguinte falou com o mesmo e se recordou do que vira na madrugada.
6. Portanto, o ofendido já sabia que havia uma testemunha;
7. O arguido (ofendido?) só foi ao hospital no dia 14, pelas 19.50 horas, quando o hospital era relativamente perto e estava a funcionar. A testemunha Benjamim referiu que vinha do mesmo. O ofendido, segundo a sua versão, estava muito machucado e cheio de sangue.
8. O ofendido declarou ao médico que o assistiu que foi vítima de agressão no dia 14.3.99 (Vide elementos clínicos).
9. Os agentes da GNR, embora nada tendo presenciado relativamente aos factos, referem que durante essa noite não notaram nada de anormal.
10. Por tudo isso e em conformidade com as regras da experiência, da lógica e do pensamento, impõe-se a alteração dos factos dados como provados, dado não haver prova suficiente para a condenação da arguida Maria..... e, quanto ao arguido Francisco, a prova que alicerçou a sua condenação não ser valorada porque contraditória e insuficiente para a sua condenação.
Assim e considerando violados os artº 127º do C. P. Penal e 143º, nº 1, e 214º, nº 1, al. a), por referência ao artº 212º, nº 1, estes do C. Penal, concluem pela improcedência da pronúncia e consequente absolvição dos arguidos, quer na parte criminal, quer no pedido civil deduzido.

Respondeu o Mº Pº, sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, após considerar que os factos provados são agora suficientes para a decisão de direito e que a matéria de facto se deve considerar assente, já que, face aos elementos invocados pelos recorrentes, não há possibilidade de aqui se sindicar a prova produzida na audiência, nem ocorre vício algum do artº 410º, nº 2, do C. P. Penal, considera que foi incorrectamente qualificada a conduta do arguido Francisco....., conduta que apenas integra um crime de dano simples, p. e p. pelo artº 212º, nº 1, do C. Penal, devendo, assim, ser-lhe imposta uma pena de multa, pelo que, nessa medida, o recurso deste arguido merecerá provimento.
Notificados deste parecer, os arguidos não responderam.
Assim, cumpridos os vistos e realizada a audiência, cabe decidir.
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Como decorre da respectiva motivação, os recorrentes põem em causa a decisão da matéria de facto.
Porém, tendo sido gravadas as provas produzidas na audiência - como aqui sucedeu - e pretendendo impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, deviam os recorrentes observar o disposto nos nº 3 e 4 do artº 412º do C. P. Penal, ou seja, além de indicarem os pontos de facto que consideravam incorrectamente julgados e as provas que imporiam decisão diversa da recorrida, deviam fazer essas especificações da prova “por referência aos suportes técnicos, ...”, havendo, então, lugar a transcrição.
Ora, não observaram os recorrentes esta exigência legal, limitando-se a remeter globalmente para os depoimentos que, em seu aviso, imporiam essa diferente versão dos factos, referindo genericamente o sentido de tais depoimentos, porém sem indicação da localização das suas concretas passagens em que essa diferente versão se apoiasse, não satisfazendo, pois, à exigência legal de referência de tais suportes técnicos, indicando, dentre os números de contagem da gravação que cada depoimento abarca, os específicos pontos das gravações onde se compreendem as passagens havidas como tendo sido erradamente consideradas pelo Tribunal recorrido e que justificariam a, por si defendida, decisão diversa da recorrida.
Face ao que, obviamente, o Tribunal recorrido não fez transcrição alguma de prova (o apenso de transcrições que acompanhou o processo reporta-se à prova produzida aquando do primeiro julgamento), ficando precludida a possibilidade do reclamado conhecimento de facto, sendo, pois, inconsequente e redundando em pura perda a pretensão dos recorrentes no sentido de que os depoimentos dos arguidos, ofendido, testemunha Benjamim e agentes da GNR impunham a alteração dos factos dados como provados e a sua consequente absolvição.
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Isto posto, confinada esta Relação a conhecer apenas de direito e tendo em conta as conclusões formuladas pelos recorrentes - pelas quais o objecto do recurso se delimita -, vejamos, antes de mais, a matéria de facto, provada e não provada, que a sentença acolheu e em que termos aí se fundamentou essa decisão.

Assim, foram ali havidos como provados os factos seguintes:
1. No dia 13 de Março de 1999, cerca da l hora, o ofendido Joaquim...... encontrava-se no interior do seu veículo de passageiros, de matrícula DV-..-.., no banco da frente, do lado esquerdo, estando o referido veículo imobilizado e estacionado junto à rotunda de....., em.....;
2. Quando ali estava, pelo arguido Francisco, que se encontrava munido de um pau cujas dimensões e características não foi possível apurar, foi desferido um golpe na direcção do pára-brisas do veículo ligeiro de passageiros do ofendido, partindo-o e atingindo, simultaneamente, o ofendido na zona da face;
3. De seguida, o arguido Francisco desferiu ainda um outro golpe sobre a porta do lado esquerdo do veículo do ofendido;
4. Nesse momento, a arguida abriu a porta do lado do condutor e sobre o ofendido desferiu vários murros em várias partes do seu corpo;
5. Com tal conduta causaram os arguidos ao ofendido hematoma da região parieto-temporal esquerda, de forma circular e com 3 cm de diâmetro, tumefacção do lábio superior e região adjacente da face, com ferida no lábio superior não suturada, punctiforme, três escoriações na face direita, medindo a maior 3 cm, todas de forma linear, tumefacção da região cervical direita com hematoma circular com 6 cm de diâmetro, subluxação dos três primeiros dentes da arcada dentária superior direita;
6. Tais lesões determinaram para o ofendido, necessária e directamente, um período de 20 dias de doença, sendo os primeiros 10 com incapacidade para o trabalho;
7. Quis a arguida com a sua conduta atingir o ofendido na sua integridade física, como efectivamente atingiu;
8. Quis o arguido Francisco provocar danos no veículo do ofendido, como provocou;
9. Com os golpes desferidos pelo arguido Francisco, partiu-se o pára-brisas do veículo de matrícula DV-..-.. e amolgou-se uma das portas, causando um prejuízo de 60.080$00;
10. Os arguidos agiram de forma livre e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
11. O ofendido sofreu fortes dores e inchaços faciais;
12. Passou mais de um mês sem conseguir mastigar a comida;
13. Ficou com a cara inchada e desfigurada. e com o lábio superior marcado;
14. Despendeu 21.000$00 em medicamentos;
15. À data em que ocorreram os factos, o ofendido trabalhava ao dia, ocasionalmente, para a Junta de Freguesia de....., auferindo por cada dia de trabalho 3.000$00;
16. Como consequência directa e necessária da agressão de que foi vítima, o ofendido terá de proceder à extracção e à colocação de dentadura;
17. O arguido Francisco é operador de máquinas, auferindo 110.000$00 mensalmente;
18. A arguida é casada com o arguido e é doméstica;
19. Têm dois filhos maiores;
20. Não têm antecedentes criminais;
21. No dia em que ocorreram os factos e poucas horas antes, teve lugar uma discussão no café que, à data da prática dos factos, era explorado pelos arguidos, tendo envolvido estes, o ofendido e uma empregada do referido café, a testemunha Otília;
22. Os arguidos negaram a prática dos factos;
23. Os arguidos encontram-se inseridos socialmente.
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Consignou-se depois não se ter provado que:
- o arguido Francisco quisesse atingir a integridade física do ofendido ou ainda que tivesse previsto tal resultado como consequência necessária ou previsível da sua conduta;
- o ofendido tivesse o cinto de segurança colocado, pois acabara de estacionar a sua viatura automóvel;
- porque se encontrava preso com o cinto de segurança e porque ficou atordoado com a pancada que sofreu, não esboçou qualquer gesto em resposta a tal agressão;
- a arguida só parou a agressão quando verificou que o ofendido sangrava fortemente da face;
- o ofendido é motorista de profissão;
- em virtude da incapacidade para o trabalho deixou de auferir quantia não inferior a 30.000$00;
- que em medicamentos e consultas médicas tenha despendido quantia não inferior a 25.000$00;
- na extracção de dentes em consequência da pancada gastou a quantia de 8.000$00;
- o ofendido tenha sofrido abcessos dentários.
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E, enfim, motivando a decisão proferida sobre a matéria de facto, a sentença logo começa por dizer que “o Tribunal fïrmou a sua convicção numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto”, para depois concretizar que:
“Os arguidos negaram a prática dos factos, declarando que, no dia em que os mesmos terão ocorrido, teve lugar uma pequena contenda no café que então exploravam, contenda essa que ocorreu entre o ofendido e uma empregada do referido café, a testemunha Otília, e os arguidos.
O ofendido prestou um depoimento sério e credível, tendo corroborado as declarações dos arguidos relativamente à altercação ocorrida no café horas antes de ter lugar a agressão de que foi vítima. Quanto aos factos imputados aos arguidos esclareceu a forma como os mesmos ocorreram, o que fez de forma espontânea e natural, convencendo o tribunal da sua veracidade.
Quanto ao facto de só se ter deslocado ao Centro de Saúde dois dias depois da ocorrência da agressão, declarou que o fez porque pensou que a situação se resolveria por si, tendo decidido deslocar-se ao hospital porque sofreu uma infecção. A sua explicação, embora primária, é perfeitamente aceitável, tendo em conta a condição humilde e simples do ofendido.
A testemunha Benjamim..... declarou ter visto os arguidos junto do veículo do ofendido, estando este lá dentro, e presenciou o arguido Francisco a bater no carro do ofendido e partir o vidro do pára-brisas. Declarou, ainda, que posteriormente viu o ofendido com a cara ferida e o veículo com o pára-brisas partido. O seu depoimento mostrou-se firme e sem contradições.
A testemunha Domingos..... declarou que viu, no dia depois da ocorrência dos factos, o veículo do ofendido amassado.
Relativamente às testemunhas Manuel..... e Adriano....., mostraram um depoimento pouco credível, não convencendo o tribunal da sua veracidade. Estas testemunhas afirmaram não ter visto o veículo do ofendido com qualquer mazela no dia a seguir á ocorrência dos factos. No entanto, não souberam esclarecer o Tribunal da razão porque se lembravam com tanta precisão do dia exacto. Tal circunstância, aliada ao facto de afirmarem que nunca souberam o que aconteceu ao ofendido, torna o seu depoimento pouco crível, tendo em conta o meio pequeno em que os factos ocorreram e o facto de as testemunhas e o ofendido residirem nesta comarca, relativamente próximos uns dos outros.
Quanto ao pedido cível, o Tribunal teve em conta os depoimentos prestados por Carlos..... e Odete......, irmãos do ofendido, que demonstraram conhecimento directo das consequências para este dos factos praticados pelos arguidos, o que foi ainda confirmado pelas testemunhas Rui...... e Fernando....., amigos do ofendido e que com ele conviviam frequentemente.
A testemunha Albano confirmou o valor da reparação do veículo, efectuada por si.
Os agentes Mário..... e Norberto...... apenas souberam esclarecer o Tribunal quanto aos factos ocorridos antes de terem lugar os ilícitos imputados aos arguidos.
A testemunha Otília, companheira do ofendido, também confirmou a altercação ocorrida no café, tendo ainda presenciado, posteriormente, o arguido a desferir uma pancada no pára-brisas do veículo do ofendido e tendo visto este nos dias seguintes, com feridas na zona da face e o veículo com o vidro partido.
Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos, o Tribunal teve em conta as suas próprias declarações.
Teve-se ainda em conta o CRC de fls. 41 e 46, autos de exame de fls. 4 e 24, elementos clínicos de fls. 9 e 10, orçamento de fls. 20 e documento de fls. 60.
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Para além de perseguirem - improficuamente, como se viu - a alteração da decisão sobre a matéria de facto, sustentam ainda os recorrentes que a arguida foi condenada apenas com o depoimento do ofendido, cuja palavra não pode valer mais que a do arguido, pois que ambos não prestaram juramento.
Deste jeito, na tese recursória, a arguida havia sido condenada sem que houvesse prova objectiva bastante para a condenar.
Mas é óbvio que tal argumentação não pode colher.
Antes de mais, dir-se-á que se tem por menos exacto afirmar que a condenação da arguida assentou exclusivamente nas declarações do ofendido, impondo-se reparar que, como se começou por consignar na motivação da sentença, a convicção do tribunal se firmou “numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto”; o que, como ali depois se concretiza, passou pela ponderação, nomeadamente: da negativa em que, quanto aos factos, ambos os arguidos se mantiveram, mas referindo a ocorrência, nesse dia, no café que então exploravam, de uma contenda entre eles e o ofendido e a testemunha Otília, companheira do ofendido e empregada nesse café; do depoimento do ofendido, corroborando as declarações dos arguidos quanto à altercação ocorrida no café, descrevendo a forma como ocorreram os factos imputados àqueles e, enfim, esclarecendo a razão pela qual só dois dias mais tarde foi ao hospital; do depoimento da testemunha Benjamim que viu ambos os arguidos junto do carro do ofendido, estando este lá dentro, e o arguido a partir o pára-brisas do veículo, tendo mais tarde visto o ofendido ferido na cara e o veículo danificado; do depoimento, em sentido similar, da testemunha Otília que igualmente confirma a altercação no café.
Ou seja, diversamente do que pretendem os arguidos, desenha-se na sentença um quadro probatório que se não confina às declarações do ofendido, antes se apoia, em maior ou menor medida, em diversos elementos que o julgador apreciou, valorou e conjugou entre si, de tudo extraindo as conclusões que houve por pertinentes; labor de apreciação que, como é sabido, o julgador desenvolve nos termos apontados no artº 127º do C. P. Penal, isto é, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Apreciação que - refira-se em breve apontamento - se não vê que enferme do vício a que alude a al. c) do nº 2 do artº 410º do C. P. Penal (erro notório na apreciação da prova) - de que este Tribunal podia oficiosamente conhecer: Ac. nº 7/95, do STJ, de 19/10/95, DR., I-A, de 28/12/95 -, vício que, como se dispõe no preceito, apenas se verificaria se ressaltasse directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, assim, sem apelo a elementos exteriores a esse texto.
E, além disso, exigindo-se que tal erro de apreciação fosse “notório”, isto é, de tal modo patente que não escapasse a um observador normalmente perspicaz e atento, só haveria erro relevante se, confrontado com o texto da decisão e fazendo apelo aos ensinamentos da experiência comum, o homem de capacidade e formação médias logo alcançasse que não eram possíveis as (ou algumas das) conclusões a que, em sede de matéria de facto, o Tribunal chegara.
Ora, uma simples leitura do texto da sentença, mormente na parte concernente à matéria de facto ali acolhida, logo deixa concluir que tal vício se não verifica ali.

De todo o modo, ainda que fosse exacta a afirmação avançada no recurso de que o Tribunal se bastara com as declarações do ofendido, daí não resultaria a reclamada falta ou insuficiência de prova, já que, como é evidente, o critério para a sua aferição não é, de todo, meramente quantitativo, mas qualitativo, isto é, não será obstáculo a que o Tribunal forme convicção em determinado sentido a circunstância de tal versão não colher o apoio maioritário das pessoas ouvidas e haver divergência, maior ou menor, mesmo oposição, entre os depoimentos das diferentes testemunhas. Dir-se-á que essa é mesmo a realidade com que nos deparamos na esmagadora maioria dos pleitos, aí residindo, precisamente, a primeira tarefa do julgador, ou seja, formar a sua convicção a partir da diversidade de elementos de facto que ao processo são aportados, acolhendo os que julgar credíveis e rejeitando os mais; tudo nos termos do supra referido artº 127º do C. P. Penal, isto é, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
E, ainda nessa linha, nada obsta até a que o Tribunal possa formar convicção com base num depoimento apenas, mesmo que do ofendido (ou do arguido) se trate, ainda que em confronto com vários outros divergentes: tudo passa, como se disse, pela maior ou menor credibilidade que uns e outros possam merecer ao Tribunal.
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Mas, se não colhem assim as objecções opostas à decisão recorrida na parte em que acolheu a matéria de facto em que assentou a condenação da arguida, não podendo, em relação a ela, o recurso deixar de improceder, melhor resultado se não alcança da demais argumentação recursória, tendo por alvo essa sentença enquanto condenatória do arguido
Arredada, como já se viu, a possibilidade de aqui se sindicar o sentido e alcance das prova oralmente produzidas na audiência de julgamento e, por isso, de se aquilatar das alegadas discrepâncias entre os vários elementos probatórios apontados no recurso e sendo certo que, tão-pouco, a sentença padece de vício algum que a inquine, designamente dos referidos no supra referido nº 2 do artº 410º do C. P. Penal, fixou-se a matéria de facto que, concernente ao arguido, ali foi acolhida, conduzindo à recusa de toda a argumentação desenvolvida pelo recorrente e consequente improcedência do recurso.
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De todo o modo, tal não importa que a decisão recorrida deva ser integralmente mantida, já que, na linha do Exmº Procurador-Geral Adjunto, também se crê que não terá sido correcta a qualificação jurídico-penal da apurada conduta do arguido.
Com efeito:
Considerou-se ali que o arguido cometera um crime de dano com violência, p. e p. pelos artº 214º, nº 1, al. a), e 212º, nº 1, do C. Penal.
Conforme se dispõe no corpo do nº 1 desse artº 214º, “Se os factos descritos nos artigos 212º e 213º forem praticados com violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, o agente é punido: a) ...; b) ...; c) ...”.
Deste modo, da letra do preceito e tal como diz o Exmº Magistrado do Mº Pº nesta Relação, logo resulta que a “violência contra uma pessoa”, que integra a circunstância qualificativa ali prevista, há-de constituir “um meio de cometimento do crime”, isto é, as condutas danosas caracterizadas nos artº 212º e 213º hão-de ser levadas a cabo mediante o emprego de tal violência contra uma pessoa, violência que, assim, constitui um meio de execução do facto danoso, sendo, pois, prévia ou, ao menos, simultânea da acção lesiva.
Por outro lado, fazendo essa violência parte integrante da conduta danosa, também em relação a ela se há-de verificar o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades, exigindo-se, pois, que também essa circunstância se possa imputar a esse título ao arguido.
Ora, a simples leitura da matéria de facto provada mostra que tal se não verificou no caso presente, tendo apenas sucedido que o ofendido foi atingido na face pelo arguido quando este, com um pau, desferiu um golpe contra o pára-brisas do veículo automóvel do ofendido e em cujo interior este se encontrava então. Ou seja, a ofensa corporal que, desse modo, o ofendido sofreu não foi um meio utilizado pelo arguido para produzir o dano, mas apenas uma mera consequência, ocasional, da própria acção danosa.
Aliás, significativamente, quanto ao elemento subjectivo da conduta do arguido Francisco....., o dolo apenas vem reportado ao dano que causou na viatura do ofendido e já não à ofensa corporal que, ao produzir esse dano, concomitantemente produziu naquele.
Deste modo, pensa-se que se não pode imputar ao arguido o crime de dano com violência, prevenido no artº 214º, mas apenas o crime de dano simples, p. e p. pelo artº 212º, nº 1, do C. Penal, que a matéria de facto provada irrecusavelmente preenche, relevando a ofensa corporal que, de todo o modo, o arguido produziu no ofendido como mera circunstância agravativa, de natureza geral, com interesse para a definição da medida da pena, por se dever considerar um mal produzido pela conduta e que acresce ao mal do próprio crime, atendível nos termos do nº 2 do artº 71º do C. Penal.
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Nesta conformidade, devendo a douta sentença ser alterada e o arguido condenado pela prática de tal crime de dano simples, passa-se à determinação da espécie e medida da pena que lhe deve ser aplicada.

Assim, quanto à espécie da pena:
Ao crime em questão corresponde a moldura penal de prisão até 3 anos ou de multa (de 10 a 360 dias - artº 47º, nº 1) e a cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 1 e € 498,80, a fixar em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (nº 2 do mesmo artº 47º, na redacção conferida pelo Dec.Lei nº 323/2001, de 17.12).

Sendo aplicáveis ao crime, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o artº 70º do C. Penal impõe que se dê preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, pese embora a natureza fortemente censurável da conduta do arguido, de dano gratuito - para a qual apenas se vislumbra, como eventual razão (mas que nem minimamente a justifica ou, sequer, faz compreender!), uma mera altercação ocorrida já horas antes - e as naturais exigências de prevenção, geral e especial, que condutas deste jaez, fortemente anti-sociais, reclamam, mas sendo o arguido já um homem de meia idade, sem passado criminal, com família constituída e socialmente inserido, crê-se incontroverso que, de todo, se não justifica a opção por uma pena privativa da liberdade e que a pena não privativa, de multa, basta para satisfazer as finalidades que as penas perseguem.

Optando-se assim, decididamente pela imposição de uma pena de multa, importa definir a respectiva medida.
Consoante o artº 71º do C. Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo ainda às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, relevem a favor ou contra o arguido, nomeadamente as aludidas no nº 2 desse preceito.
Nestes moldes, a pena concreta há-de ter na culpa do arguido o seu último limite que não poderá ultrapassar e, por outro lado, não deverá ficar aquém do necessário para satisfação dessas exigências de prevenção, sendo dentro dessas fronteiras que, tendo em conta ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido, se terá de encontrar a pena tida como adequada e justa.
Isto posto, importa ter em conta, por um lado, que:
O arguido agiu com dolo directo, o grau mais intenso do dolo; como já se anotou, a sua conduta, reiteradamente produzindo o dano, foi meramente gratuita, sem nada que, em alguma medida, a pudesse tornar compreensível, o que acentua as exigências de prevenção geral pela maior premência de se evitar tal tipo de condutas; é também acentuada a ilicitude dessa conduta, quer pelo o instrumento utilizado para a execução do crime, quer pela insistência na sua consumação; também já se viu que ao mal do crime acresceu ainda a lesão produzida no corpo do ofendido; enfim, há que considerar a conduta posterior do arguido, não tendo ainda reparado as consequências do crime.
Por outro lado, dir-se-á que as exigências de prevenção especial se não mostram significativas, tendo em conta que o arguido é um homem já de meia idade, sem passado criminal, com ocupação profissional e bem inserido social e familiarmente.
Tudo ponderado e atenta a moldura penal em causa, julga-se equilibrado impor ao arguido uma pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa.

Enfim, quanto à taxa diária da multa:
Variando dentro dos limites apontados atrás e em função “da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais” (nº 2 do artº 47º), importa não esquecer que também esta pena - cujo pagamento suavizado está, aliás, previsto na lei para as situações que o justifiquem - há-de representar um justo sacrifício para o condenado, para que se não traduza, afinal, numa quase -absolvição, com a consequente frustração das finalidades da punição (artº 70º).
Assim, atenta a condição económica do arguido - como se apurou, aufere 110.000$00 por mês, é casado com a aqui também arguida Maria..... que é doméstica e não lhes vêm referidos especiais encargos - e tendo ainda em consideração a taxa diária que a sentença recorrida estabelecera já para a arguida, pensa-se que será ajustado fixar para ao arguido essa mesma taxa diária - € 2,00 (dois euros) -, assim se perfazendo a multa total de € 500,00 (quinhentos euros), à qual, nos termos do artº 49º, nº 1, do mesmo Código Penal, desde já se faz corresponder prisão subsidiária por 166 (cento e sessenta e seis) dias, prisão subsidiária esta, porém, desde já perdoada, nos termos do artº 1º, nº 1 e 3, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, e sob a condição resolutiva referida nos artº 4º e 5º, nº 1, da mesma Lei.
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Assim e pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso de ambos os arguidos Francisco..... e Maria....., mas, quanto ao primeiro, altera-se a douta decisão recorrida, ficando esse arguido agora condenado como autor material de um crime de dano simples, p. e p. pelo artº 212º, nº 1, do C. Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 2,00 (dois euros), perfazendo a multa total de € 500,00 (quinhentos euros), à qual, nos termos do artº 49º, nº 1, do mesmo Código Penal, corresponde prisão subsidiária por 166 (cento e sessenta e seis) dias, prisão subsidiária esta, porém, desde já perdoada, nos termos do artº 1º, nº 1 e 3, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, e sob a condição resolutiva referida nos artº 4º e 5º, nº 1, da mesma Lei, em tudo o mais - condenação penal da arguida e de ambos em indemnização civil - se mantendo a douta sentença impugnada.
Custas pelos recorrentes, com 3 (três) UCs de taxa de justiça por cada um.

Porto, 21 de Janeiro de 2004
José Henriques Marques Salgueiro
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz
Joaquim Costa de Morais