Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
294/17.2T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: CONTRATOS DE SEGUROS DE VIDA
PROPOSTA
PREENCHIMENTO
DECLARAÇÃO INEXACTA
Nº do Documento: RP20210128294/17.2T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Segundo um critério de normalidade, se a seguradora souber que a potencial segurada padece de uma doença genética que calcifica a sua retina, é de aceitar que a mesma iria ponderar essa situação de saúde para aferir se celebrava o contrato de seguro com outras condições ou não o celebrava.
II - Uma declaração de estado de saúde do segurado pré-impressa na proposta de seguro não é uma cláusula contratual.
III - Tendo a segurada omitido o estado de saúde referido em 1) à seguradora, produziu declarações inexatas conforme o, ainda aplicável in casu, artigo 429.º, do C. Com..
IV - A eventual falta de esclarecimento ou informação à segurada sobre o preenchimento da proposta, incluindo sobre o seu estado de saúde, é da responsabilidade do tomador do seguro neste caso de adesão a seguro de grupo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 294/17.2T8VNG.P1.
*
1). Relatório.
B…, residente na Rua …, n.º .., …, …, Vila Nova de Gaia, propôs contra
C…, S. A., com sede na Avenida …, n.º .., Lisboa, a presente
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, alegando em síntese que:
celebrou com a Ré, na qualidade de aderente, um contrato de seguro de vida grupo temporário anual renovável contributivo com data de 06/04/2006, titulado pela apólice ../…/……, figurando como pessoa segura/segurado a Autora, tomador de seguro Banco D…, SA e beneficiários em caso de morte os herdeiros legais;
o capital garantido para ambos os riscos cobertos quer em caso de morte quer em caso de invalidez absoluta e definitiva é de 15.000 EUR;
tem pago os prémios;
exercia a profissão de auxiliar da ação escolar na Escola Secundária E…, em Vila Nova de Gaia;
por atestado médico de incapacidade multiuso com data de 15/01/2014, foi-lhe conferida uma incapacidade permanente global de 95%;
acionou a cobertura de invalidez, solicitando à Ré o pagamento do capital seguro o que a mesma declinou por carta de 09/09/2014 alegando que a Autora, «… à data de adesão ao seguro de vida a segurada era portadora de um quadro clínico suscetível de influenciar a verificação do risco», considerando o contrato nulo;
não é correta essa afirmação pois padece de incapacidade (ao nível oftalmológico) de invalidez atestada com uma incapacidade permanente global de 95%;
no âmbito do contrato de seguro em apreço nos autos, a Autora limitou-se a apor a sua assinatura numa Proposta de Subscrição que lhe foi presente pelo tomador de seguro (Banco D…, S.A.), através de um seu funcionário, por instruções da Ré seguradora;
nessa proposta constava em letras minúsculas uma «Declaração de saúde» não tendo a Autora preenchido qualquer campo desse boletim de adesão, não tendo sido transmitida qualquer explicação quanto ao âmbito, conteúdo e regime de incumprimento do dever de declaração inicial do risco;
assim, devem as cláusulas em causa ser excluídas;
na data do seu preenchimento a Autora declarou tudo quanto sabia;
a Ré aceitou o contrato em causa, pretendendo a sua manutenção ao aceitar o pagamento dos prémios sendo que se assim não fosse, existiria abuso de direito.
a incapacidade permanente global de 95% deve ser equiparado para efeitos de acionamento da cobertura MORTE;
Termina pedindo a condenação da Ré a entregar à Autora o capital contratado de 15.000 EUR, acrescido de juros à taxa legal a contar da citação até efetivo e integral pagamento.
*
Citada, contestou a Ré alegando em síntese que:
à data de adesão ao seguro de vida, a Autora era portadora de quadro clínico suscetível de influenciar a verificação dos riscos cobertos pelo mesmo pois desde 2003 que era seguida por estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de Pseudoxantoma Elasticam;
tivesse a Ré tido acesso a essa informação e jamais teria celebrado o contrato de seguro;
de acordo com o contrato entende-se que se verifica a invalidez absoluta e definitiva quando o Segurado/Pessoa Segura, em consequência de doença ou acidente, fica «total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade lucrativa de acordo com os respetivos conhecimentos e aptidões e, simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar cumulativamente os atos elementares da vida corrente e/ou apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais»;
impugna a restante factualidade.
*
Procedeu-se à realização de audiência prévia, elaborando-se despacho saneador tabelar, come elenco do objeto da ação e temas de prova.
Realizado o julgamento, proferiu-se sentença onde se decidiu condenar a Ré nos pedidos formulados contra si.
*
Inconformada, recorre a Ré apresentando as seguintes conclusões:
«1. O objecto primordial do presente recurso é a veemente impugnação da decisão proferida quanto ao facto 14. dado como provado que se pretende que seja alterado, ao 15., igualmente provado, que se pretende que seja dado como não provado e às alíneas a) e b) dadas como não provadas e que se pretende que sejam dadas como provadas - atento o errado julgamento das mesmas.
2. Previamente, não pode a Apelante deixar de exortar a este Tribunal que lance mão da possibilidade prevista no artigo 662.º CPC.
3. Na verdade, este Tribunal fará um novo julgamento e que procurará a sua própria convicção, de forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos de prova disponíveis (mesmo que nem indicados pelas partes).
4. O número 2 do artigo 662.º permite aos Tribunais da Relação, mesmo oficiosamente, que, entre outros poderes, ordenem, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.
5. Ora, uma interpretação conforme deste artigo com o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa impõe que este Tribunal da Relação use dos poderes-deveres de que dispõe para se concretizar a almejada verdade material.
6. Tanto mais que, ouvida a prova tal qual ela se encontra gravada (com a omissão da gravação de grande parte do depoimento da testemunha H…) deverá suscitar junto deste Tribunal a necessidade de produzir nova prova. Pois que, a prova (não) gravada, conjugada com a restante prova aponta num sentido diferente daquele que consta dos factos dados como não provados.
Sem prejuízo,
7.Quanto ao facto 14. o Tribunal a quo entendeu que “a referida incapacidade inabilita a autora totalmente e de forma permanente para o exercício da profissão exercida ou de qualquer outra”.
8. Fundamentando esta conclusão com base tão só na prova testemunhal produzida.
9. Elementos/Prova que impõe decisão diversa: i) relatório pericial de 22.11.2018 (notificado às partes no dia 29.11.2018) e ii) esclarecimentos prestados em julgamento pelo senhor Perito Dr. F… (Declarações gravadas no Habillus Media Studio, no dia 27.03.2019, com início pelas 11:04:19 e fim de gravação pelas 11:16:51, mais concretamente aos minutos 04:40 a 07:30).
10. Com efeito, o Tribunal a quo, porque entendeu que o prova deste facto 14. Estava dependente de conhecimentos técnicos ou científicos que nem o próprio Juiz os detinha, ordenou, e bem, a realização de prova pericial.
11. Quer a perícia, quer os esclarecimentos do perito em julgamento foram ambos no sentido de que a Apelante reúne critérios para Invalidez Relativa para a profissão de auxiliar de acção educativa, mas já não reúne critérios de invalidez absoluta para toda e qualquer actividade profissional.
12. Ora, sempre com o devido respeito, o Tribunal a quo depois de deferir a perícia, de lhe fixar um objecto, de analisar o seu conteúdo e de ouvir os esclarecimentos do Senhor Perito em julgamento, não podia, simplesmente, ignorar tal prova.
13. E, muito menos, desconsiderá-la em detrimento da prova testemunhal que é, consabidamente, sujeita a maior risco de falibilidade e de parcialidade.
14. Para prova deste facto 14. não há mais prova alguma, ainda que indiciária e que no seu conjunto com a prova testemunhal permita contrariar as conclusões da prova pericial.
15. Assim sendo, no confronto da prova testemunhal com a prova pericial, esta terá de prevalecer.
16. Em consequência, a resposta ao facto 14 deverá ser alterada passando a ser “a referida incapacidade inabilita a autora totalmente e de forma permanente para o exercício da profissão de auxiliar de acção educativa, mas já não para toda e qualquer actividade profissional”.
Sem prescindir,
17. No facto 15 resultou provado que “a referida incapacidade também a limita nas atividades da vida diária, dependendo de modo continuo de terceiros para a grande maioria dessas tarefas, tais como comer, usar a casa de banho, arranjar-se, vestir-se, tomar banho, deambular, cozinhar”.
18. Prova que impõe decisão diversa: i) relatório pericial de 22.11.2018 (notificado às partes no dia 29.11.2018) e ii) esclarecimentos prestados em julgamento pelo senhor Perito Dr. F… (supra identificado, mais concretamente ao minuto 03:20)
19. A propósito deste facto 15 repete-se a argumentação supra: sobre este facto foi realizada prova pericial; além da prova testemunhal não há mais prova alguma que, em conjunto com aquela, permita contrariar as conclusões da prova pericial. Donde, no confronto da prova testemunhal com a prova pericial, esta terá de prevalecer.
20. Pelo que, o facto 15 deverá ser dado como não provado.
Ainda sem prescindir,
21. De acordo com a sentença em crise não resultou provado que A autora era seguida, desde 2003, por estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam.
22. Prova que impõe decisão diversa: i) esclarecimentos prestados em julgamento pelo senhor Perito Dr. F… (supra identificado, mais concretamente aos minutos 09:44 a 10:12); ii) doc. 3 junto com a contestação e que consta da informação documental do relatório pericial de 22.11.2018 como sendo a declaração do serviço de oftalmologia datada de 12-08-2013; iii) doc. 5 junto com a contestação e que consta da informação documental do relatório pericial de 22.11.2018 como sendo declaração da Dra. G… datada de 06-03-2014; iv) depoimento da testemunha H… (citado nas alegações do Mandatário da Apelante, minutos 03:50 a 04:05, nas quais se refere sobre o que disse a testemunha H… e que explicou os motivos pelos quais entendia que a doença já estava diagnosticada); v)documentação clínica que foi junta pela própria Apelada no requerimento de 14.11.2017, mais concretamente o registo de consulta externa do Hospital I… que contém a anamese/registo de problemas com data de 04.04.2006;
23. Da conjugação dos esclarecimentos do perito (que afirma peremptoriamente que em 2003 foi diagnosticada uma alteração no olho da Apelada), da prova testemunhal (Dr. H…, citado nas alegações do Mandatário da Apelante, minutos 03:50 a 04:05, nas quais se refere que aquele explicou os motivos pelos quais entendia que a doença já estava diagnosticada) e da prova documental identificada resulta à evidência que a autora era seguida, desde 2003, por estrias angiogóides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam.
24. Donde, a alínea a) dos factos não provados deveria ter resultado provada Sempre sem prescindir,
25. Resultou não provado que se a ré tivesse tido acesso a essa informação não teria celebrado o contrato de seguro aqui em referência nestes autos.
26. Prova que impõe decisão diversa: i) documento n.º 3 junto com a douta PI e que corresponde a missiva enviada pela Apelante à Apelada no dia 09 de Setembro de 2014;
ii) declarações da testemunha J… (Declarações gravadas no Habillus Media Studio, no dia 27.03.2019, com início pelas 11:26:41 e fim de gravação pelas 11:39:56), mais concretamente, aos minutos 05:30 a 07:40 e a partir do minuto 10:30 até ao final; e, bem assim, as declarações da testemunha H… e que este Tribuna terá oportunidade de reproduzir.
27. Ao contrário do referido na fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo, para a prova deste facto não releva o nexo causal com a doença que acometeu a autora e que consubstancia a causa da sua incapacidade.
28. Pelo que deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que se a ré tivesse tido acesso a essa informação não teria celebrado o contrato de seguro aqui em referência nestes autos.
Consequentemente
29. Procedendo-se à alteração da matéria de facto, conforme se espera, deve a douta sentença proferida ser substituída por outra que absolva a Apelante do pedido.
30. Na verdade, no presente recurso está em causa, por um lado, a prestação de falsas informações ou omissão de informações relevantes quanto ao estado de saúde por parte da Apelada, o que teve reflexos no sentido da contratação, independentemente, do nexo de causalidade entre a informação omitida e a doença de que a Apelada padece; por outro lado, o problema de se saber se o estado em que a Apelada Autora se encontra é impeditivo do exercício de toda e qualquer profissão.
Vejamos,
31. Dando-se como provado, como se espera, as alíneas a) e b), entende a Apelante que se encontra demonstrado a falta ou omissão de informação relevante no momento da celebração do contrato.
32. Ou seja, a Apelada conhecia ou razoavelmente devia conhecer o diagnóstico dos problemas oftalmológicos e até de dermatologia de que padecia. Independentemente de o diagnóstico estar certo ou não. Independentemente de, à data, a doença degenerativa já evidenciar alguma sintomatologia.
33. Tanto assim sabia que dois dias antes da celebração do contrato de seguro, a Apelada deslocou-se a consulta no Hospital I… e na anamese consta que a mesma era seguida por oftalmologia por causa de estrias angióides, degenerescência macular e até se coloca em hipótese a glaucoma. Repete-se, dois dias antes da celebração do contrato de seguro.
34. A Apelada estava, por isso, obrigada a informar tais circunstâncias aquando da celebração de um contrato de seguro que tinha como coberturas a morte e a invalidez absoluta e definitiva.
35. O vindo de concluir subsume a prestação de informações falsas ou a omissão de informação relevante verificada ao regime dos artigos 24.º e 25.º do DL 78/2008 de 16 de Abril RJCS).
36. Além disso, conforme também parece resultar defendido na douta decisão em crise e, sempre com o devido respeito por opinião contrária, a Apelante entende que não se mostra necessário que a informação omitida seja a causa da incapacidade.
37. Ao invés, entende a Apelante que se mostra irrelevante que a causa da incapacidade tenha sido outro problema que não aquele que havia sido diagnosticado em 2003 e para o qual a Apelada chegou a fazer tratamentos em 2004.
38. Imperioso se mostra que a Apelada tenha prestado falsas declarações quanto ao seu estado de saúde ou que tenha omitiu informação relevante quanto ao mesmo estado de saúde no momento da contratação – Nesse sentido, ac. STJ de 19 de junho de 2019, no qual se refere que Imprescindível à anulabilidade é apenas a omissão ou a declaração inexacta que sejam susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, irrelevando que o óbito venha a ocorrer devido a outra doença e, por isso, que exista ou não nexo causal entre a doença omitida nas declarações prestadas na proposta e a que efectivamente se revelou letal.
39. E, neste contexto, a Apelada conhecia ou razoavelmente devia conhecer que padecia de uma doença degenerativa de pseudoxantoma elasticam e que, por isso, estava obrigada a informar tais circunstâncias aquando da celebração de um contrato de seguro que tinha como coberturas a morte e a invalidez absoluta e definitiva.
40. Acontece que, não só informou o seu estado real de saúde, como ainda declarou que se encontrava em bom estado de saúde.
41. Deste modo, a decisão da Apelante aceitar celebrar o seguro foi determinada por erro e a Segurada, com plena consciência de tais factos e que não os podia desconhecer, prestou àquela informações falsas/inexactas aquando da celebração do contrato.
42. Donde, seja porque a segurada prestou falsas declarações, seja porque omitiu informações relevantes para a análise de risco, tem a Apelante direito a opor à Autora a anulabilidade do contrato de seguro.
43. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto violou o disposto no artigo 24.º e 25.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.
Sem prejuízo,
44. O contrato de seguro celebrado era um seguro de vida que tinha como garantias subscritas a morte ou invalidez absoluta e definitiva.
45. Nos termos contratuais, a Invalidez Absoluta e Definitiva verifica-se quando o Segurado/Pessoa Segura, em consequência de doença ou acidente, fica “total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade lucrativa de acordo com os respectivos conhecimentos e aptidões e, simultaneamente, na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar cumulativamente os actos elementares da vida corrente e/ou apresentar um grau de incapacidade igual ou superior a 85%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais” – cfr. ponto 2.2.2.1. da referida garantia complementar, pág. 5).
46. No pressuposto de que este Tribunal considerará que a Apelada não se encontra totalmente incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão, entende a Apelante que se impõe a sua absolvição do pedido, por não se verificar a garantia coberta.
47. A Apelante tem presente o sentido jurisprudencial quanto à nulidade parcial da cláusula vinda de citar no que diz respeito, apenas, à exigência de necessidade de ajuda de terceira pessoa permanente para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
48. Porém, in casu, não se verifica a primeira parte da cláusula e que pressupõe a incapacidade absoluta para toda e qualquer profissão.
49. Ora, porque fica por preencher o requisito da incapacidade funcional, impõe-se que a douta sentença aqui em crise seja revogada e substituída por douto acórdão que absolva a aqui Apelante do pedido.
50. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto na condição especial contratada que prevê, pelo menos, como requisito para a verificação da respectiva garantia que a Apelada se encontre total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada; violou, ainda, o disposto no artigo 414.º CPC e artigos 342.º e 346.º, ambos do Código Civil.».
Termina pedindo a procedência do recurso com decisão em conformidade.
*
A recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão.
*
As questões a decidir são:
reapreciação da matéria de facto no que respeita às insuficiências físicas de que padece a Autora e seu estado de saúde aquando do preenchimento de proposta de seguro;
eventuais declarações inexatas produzidas pela mesma Autora aquando da subscrição da proposta;
sendo válido o contrato de seguro, se estão preenchidos os requisitos para que seja pago o capital seguro.
*
2). Fundamentação.
2.1). Factos provados.
Foram julgados provados os seguintes factos:
«1 – A autora, com data de 06-04-2006, subscreveu a proposta cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 22 verso e 23 frente, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, concernente a um contrato de seguro do ramo vida, titulado pela apólice com o n.º ../…/……..
2 – O tomador do contrato de seguro atrás referenciado era o Banco D…, S.A. nele figurando a autora como segurada.
3 – As coberturas do aludido contrato, subscritas pela autora, foram as de morte ou invalidez absoluta e definitiva da autora.
4 - O capital seguro foi de 15.000,00€.
5 – Como beneficiários figuravam, na aludida proposta, a própria segurada, a aqui autora, em caso de invalidez, e os herdeiros legais desta, em caso de morte.
6 – Da proposta melhor identificada no ponto 1 dos factos provados, consta, previamente impressa, a seguinte declaração: “o segurado declara estar em bom estado de saúde, não ter restrições na sua capacidade para trabalhar, não ter existido interrupção na sua atividade profissional nos últimos seis meses não ter sofrido qualquer acidente, não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de qualquer intervenção cirúrgica, consulta médica não de rotina ou internamento hospitalar. O segurado declara ainda não ser do seu conhecimento não possuir qualquer limitação física ou doença em especial, não estar infetada pelo HIV (vírus da sida) ou por hepatite de qualquer tipo”.
7 - A proposta melhor identificada no ponto 1 dos factos provados foi imediatamente aceite pela seguradora.
8 – A autora procedeu até à presente data ao pagamento dos prémios calculados em função do respetivo capital.
9 – O contrato de seguro ao qual se refere a apólice n.º …, celebrado, à data, entre o Banco D…, S.A. e a Companhia de Seguros K…, S.A, rege-se pelas condições juntas aos autos a fls. 33 e 34 e 36 a 45 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
10 - Por deliberação da assembleia geral extraordinária de 18-12-2014 foi alterada a denominação social da sociedade D1…, S.A, para C…, S.A.
11 - Com data de 27-07-2006, por deliberação da assembleia geral da Companhia de Seguros K…, S.A. foi deliberada a alteração da denominação daquela sociedade para D1…, S.A.
12 – A autora exercia, nomeadamente à data da subscrição da proposta atrás melhor identificada, a profissão de auxiliar da ação escolar na Escola Secundária E…, em Vila Nova de Gaia.
13 – À data de 15-01-2014 a autora apresentava, com correção (óculos), visão praticamente nula no olho esquerdo e muitíssimo reduzida (<1/10) à direita, quer para longe ou para perto.
14 – A referida incapacidade inabilita a autora totalmente e de forma permanente para o exercício da profissão exercida ou de qualquer outra.
15 – A referida incapacidade também a limita nas atividades da vida diária, dependendo de modo continuo de terceiros para a grande maioria dessas tarefas, tais como comer, usar a casa de banho, arranjar-se, vestir-se, tomar banho, deambular, cozinhar.
16 – Também a limita no que se refere ao uso de transportes, ao uso de dinheiro e ao uso do telefone.
17 - À data da subscrição do contrato de seguro em referência nestes autos a autora não sofria de qualquer restrição na sua capacidade de trabalhar.
18 – A autora também não tinha tido qualquer interrupção na sua atividade profissional nos últimos 6 meses.
19 – A autora também não foi submetida a qualquer intervenção cirúrgica ou internamento hospitalar.
20 - Nem sofria de qualquer limitação física ou doença em especial.»
E foram julgados não provados:
«a) - A autora era seguida, desde 2003, por estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam.
b) – Se a ré tivesse tido acesso a essa informação não teria celebrado o contrato de seguro aqui em referência nestes autos.».
*
2.2). De direito.
A). Impugnação da matéria de facto.
Factos provados 14 e 15: a referida incapacidade inabilita a autora totalmente e de forma permanente para o exercício da profissão exercida ou de qualquer outra e também a limita nas atividades da vida diária, dependendo de modo continuo de terceiros para a grande maioria dessas tarefas, tais como comer, usar a casa de banho, arranjar-se, vestir-se, tomar banho, deambular, cozinhar.
A recorrente seguradora pugna que não se apura que a Autora/recorrida tenha ficado inabilitada permanentemente para exercer qualquer outra profissão; pensamos que tem razão.
Na verdade, a incapacidade que está em causa é uma incapacidade visual, ou seja, a recorrida apresenta um défice de visão que lhe acarreta uma visão praticamente nula no olho esquerdo e muitíssimo reduzida (<1/10) à direita, quer para longe ou para perto - facto provado 13 -.
E, no relatório pericial junto em 28/11/2018 elaborado pelo I. N. M. L. C. F., consta expressamente que a recorrida não reúne os critérios para ser considerada totalmente inválida para o desempenho de qualquer profissão.
Em julgamento, na sessão de 27/03/2019, o mesmo perito esclareceu que a invalidez da recorrida decorre da sua incapacidade visual que, impedindo-a de exercer o cargo administrativo que tinha numa escola, não a impede de exercer outras profissões onde a sua incapacidade não seja óbice. O perito referiu que há invisuais que trabalham tendo dado o exemplo da profissão de telefonista.
Sabemos que certamente é motivo de sofrimento para quem padece de uma incapacidade ouvir afirmar que, apesar de tão grave problema que vive, o certo é que pode exercer outros trabalhos, antecipando-se as dificuldades de adaptação que essa nova função pode implicar.
Mas se uma pessoa que perde por completo a consciência do que a rodeia ou sofre um dano físico totalmente impeditivo de qualquer movimento certamente estará impedida para a realização de qualquer atividade profissional, a recorrida medicamente não o estará podendo, com a realização de adaptação (eventualmente por entidades especializadas), exercer uma outra profissão em que a falta de visão consiga ser debelada.
Pensamos ainda que aquela conclusão médica (e por isso científica), a ser afastada, teria que o ser com base nalgum outro tipo de prova que fizesse com que as conclusões científicas tivessem de ser afastadas porque incorretas. Ora, na nossa opinião, não podem ser somente os depoimentos de testemunhas a afastar aquele raciocínio científico desde logo porque não encontramos que este padeça de algum vício ou incorreção.
Depois porque os depoimentos do irmão (José Guedes), Cândido Lima (amigo) da recorrida não forneceram matéria probatória suficiente para concluir que o perito médico tinha errado na sua avaliação; mencionaram as dificuldades que a mesma tem na sua vida e que, do que percebemos, advém não só da grave incapacidade que possui mas também da altamente compreensível dificuldade emocional e psicológica em viver com a mesma – daí ser também compreensível que o seu irmão refira o medo que tem de a recorrida poder entrar em depressão -.
Mas essas dificuldades não significam que a recorrida não possa conseguir desempenhar uma outra função sendo que as questões psicológicas eventualmente sofridas pela recorrida não foram objeto dos autos nem são, naturalmente, do recurso.
Daí que esses depoimentos, imbuídos de sentimentos e sem a preparação técnico-científica para avaliar do estado médico da recorrida, não puderam (como na esmagadora maioria das situações sob análise judicial) concluir pela sua prevalência sobre as conclusões do perito médico.[1]
Acrescentamos ainda algo ao nosso raciocínio que consiste em que, desde logo, não conhecemos as habilitações literárias da Autora/recorrida pelo que não se pode traçar um quadro fáctico concreto sobre que tipo de atividades, em teoria, poderia estar efetivamente preparada para exercer.
Também não se consegue determinar as dificuldades de adaptação, a nível físico, que a mesma poderá ter no exercício de uma eventual nova ocupação (sabemos que terá alguma dificuldade emocional).
Ora, para quem sofre tão incapacitante diminuição da sua integridade física, sem se poder concluir se pode ser possível a sua adaptação à realização de tarefas que prescindam da sua visão, a conclusão de que a sua incapacidade não afeta a capacidade para o exercício de qualquer profissão não pode ser segura. Mas também não é seguro que possa vir efetivamente a conseguir realizar um outro trabalho pois pode revelar-se impossível a sua adaptação, por qualquer motivo ligado à pessoa da Autora.
Daí que pensemos que o que se apurar é que, para conseguir exercer uma outra profissão, não o conseguirá sem auxílio técnico especializado, tal como iremos mencionar em relação ao seu dia-a-dia.
Esse apoio pode passar por uma aprendizagem de como reconhecer objetos a usar na sua atividade ou aprender a usar meios alternativos à visão (audição por exemplo), eventualmente através do uso instrumentos que impliquem o uso da audição ou tato e que substituam aquele mesmo sentido, agora praticamente perdido para a Autora/recorrida.
Assim, a Autora estará totalmente incapacitada para exercer a sua profissão habitual e, em relação a outra profissão, só a poderá exercer com auxílio técnico especializado focado para uma profissão adequada ao seu atual estado.
Será este, para nós, o que efetivamente resulta para a Autora em termos de incapacidade.
Deste modo, o facto provado 14 deve passar a ter a seguinte redação:
A referida incapacidade inabilita a Autora totalmente e de forma permanente para o exercício da profissão por si exercida e, em relação a outra profissão, só o poderá fazer com auxílio técnico especializado focado para a atividade adequada à sua limitação.
E resulta não provado:
A incapacidade de que padece a Autora, referida no facto provado 13), a impeça de exercer qualquer outra profissão sem o apoio técnico especializado focado para a atividade adequada à sua limitação.
*
Aprecie-se agora se a mesma incapacidade limita a recorrida nas atividades da vida diária, dependendo de modo continuo de terceiros para comer, usar a casa de banho, arranjar-se, vestir-se, tomar banho, deambular, cozinhar.
O perito médico, a esta questão, respondeu que não; e em sede de esclarecimentos, referiu que, em contexto de se lavar, alimentar, vestir-se e estar na sua residência, a recorrida está apta a fazê-lo, como o está em locomover-se locais habituais.
O irmão da recorrida afirmou que a mesma não consegue preparar a sua comida e mesmo o ato de telefonar é muito difícil, tendo três números gravados; a testemunha L… mencionou que a recorrida não conseguia colocar a loiça na máquina.
Compreendendo estas afirmações, pensamos que por um lado há a natural análise da situação da recorrida por parte de pessoas que gostam da mesma e assim analisam a situação subjetivamente mas, por outro lado, ocorre não só a eventual e já mencionada fragilidade emocional da recorrida mas também a falta de preparação para as dificuldades que advêm da sua incapacidade.
O vestir-se ou lavar-se pensamos, como referiu o perito médico, que podem ser atividades que, com um grau menos intenso de adaptação podem ser realizadas pela recorrida; o preparar refeições ou deambular pela habitação certamente que exigirá maior adaptação mas ainda assim pode recorrer-se a outro tipo de confeção de comida que, por exemplo, permita a confeção mais simples num micro-ondas.
Ou seja, por causa da incapacidade de que padece, a recorrida não está impedida de poder conseguir realizar essas tarefas do dia-a-dia; outra questão é se o irá conseguir atenta a eventual fragilidade psicológica de que padeça.
Daí que também entendemos que, em contexto habitual, a recorrida não ficou continuamente dependente de terceiro por causa da incapacidade visual de que padece; precisará de ajuda de pessoas ou para a prepararem para enfrentar essas atividades sozinha ou de ajudas pontuais para alguma tarefa mais específica ou menos habitual.
Em contexto de locais «não habituais», aí a recorrida necessitará de apoio para exercer atividades, de terceira pessoa ou de meios de apoio a invisuais, tal como referido pelo mesmo perito médico.
Assim, o facto provado 15 passa a ter a seguinte redação:
A mesma incapacidade faz com que a Autora dependa de terceiros ou de meios técnicos específicos para invisuais para a realização de tarefas fora da sua residência habitual ou do seu meio habitual de circulação.
E resulta não provado:
A incapacidade da Autora a tenha tornado dependente de terceiros para as atividades de comer, usar a casa de banho, arranjar-se, vestir-se, tomar banho, deambular na residência habitual, cozinhar.
*
Quanto aos factos não provados.
A Autora era seguida, desde 2003, por estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam e se a Ré tivesse tido acesso a essa informação não teria celebrado o contrato de seguro aqui em referência nestes autos.
Também aqui pensamos que a recorrente tem razão pois do documento n.º 3 (que indica nas suas alegações) e que foi junto aos autos com a contestação, um oftalmologista do Centro Hospital do Porto menciona que a Autora já era seguida desde 25/02/2003 por angiogoides com Pseudoxantoma Elasticam.
Igual referência é feita nos documentos juntos por ofício de 11/05/2018 constantes da análise efetuada pela Caixa Geral de Aposentações quando na página seis se menciona na anamnese igual factualidade.
O perito médico mencionou essa data de 2003 e mencionou ainda que nessa altura não haveria diminuição da acuidade visual da Autora/recorrida mas o facto em causa não visa provar a falta de acuidade visual mas «apenas» o seguimento médico da referida patologia que se nos afigura que existia.
Assim, a alínea a), dos factos não provados passa a considerar-se provado com o seguinte teor:
A Autora era seguida, desde 2003, por estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam.
E, provando-se que a Autora desde 2003 era medicamente assistida por aquela maleita, a conclusão que é dada por assente no facto provado 20 – A Autora, aquando da assinatura da proposta de seguro não sofria de qualquer limitação física ou doença em especial não pode manter-se.
Desde logo porque se trata, como referimos, de uma conclusão que implica que se analise não só a realidade física da Autora (seu estado de saúde) como o teor do contrato que celebrou para se poder definir se a doença de que padece era ou não especial ou se era uma limitação física.
Por outro lado, padecer de estrias angiogóides com atingimento da retina num quadro de uma outra doença genética que provoca a calcificação e fragmentação, no caso, da retina[2], é uma doença ocular que tem de ser dada como assente, não se podendo provar que não tem uma doença em especial porque, mesmo atendendo a um sentido normal desta expressão «em especial» - nada de relevante -, para nós, uma doença que atinge a retina é algo de muito especial pois interfere diretamente num dos cinco sentidos de que dispomos.
Assim, elimina-se o facto provado 20.
No que respeita à alínea b), dos factos não provados, está em causa saber se a Ré/recorrente teria ou não celebrado o contrato de seguro se soubesse que a Autora/recorrida estava a ser seguida desde 2003 àquele mencionado problema de saúde.
Não há prova nos autos que permita concluir com total segurança que, se essa informação estivesse na sua posse, a recorrente não celebrava de todo o contrato de seguro.
Desde logo, não foi produzida nos autos informação suficiente para que possamos concluir o que a recorrente, enquanto seguradora, soube do estado de saúde da recorrida pois, conforme alegado pela Autora (e resulta do tipo de contrato em causa – seguro de grupo -) não há prova de que tenha sido a Ré a diretamente celebrar o contrato com a Autora.
Como esta alega e não é discutido nos autos, se foi o Banco que encetou um contacto direto com a recorrida na assinatura da proposta de seguro que depois enviou à mesma seguradora.
E ignora-se não só o que a Autora possa ter transmitido à entidade bancária como o que esta mesma entidade transmitiu à seguradora em termos reais.
O que se pode definir que se sabe é que, nesta hipótese, terá sido transmitida uma proposta com uma assinatura a seguir a uma declaração de estado de boa saúde; mas se essa declaração foi acompanhada de explicações, esclarecimentos ou não, é algo de que não há prova nos autos.
E igualmente se desconhece, por ausência de prova, que tipo de conversação ocorreu entre Autora e entidade bancária ou até entre Autora e Ré/seguradora, desconhecendo-se então:
o que foi efetivamente transmitido pela seguradora à potencial segurada/Autora nomeadamente sobre o que tinha de ser referido sobre o estado de saúde desta pois não há qualquer referência probatória sobre esta matéria;
o que teria a Autora/recorrido afirmado oralmente ao Banco tomador ou até à seguradora sobre o seu estado de saúde.
Assim, não se apura que tipo de conhecimento tinha a Ré/recorrente sobre o estado de saúde da Autora/recorrida quando esta assinou a proposta de seguro num local subsequente a uma declaração em que se mencionava que estava de boa saúde, entre outras situações relativas ao mesmo estado de saúde.
Essa assinatura pode ter sido produzida de modo esclarecido por parte da Autora/recorrida, sabendo o que significava, ou ter sido antecedida de uma pergunta totalmente genérica sobre se estava bem de saúde ou até nada ter sido dito.
Assim, não se sabendo que tipo de real informação a seguradora obteve diretamente da potencial segurada, não se pode concluir com total segurança que se soubesse os problemas de saúde da mesma não celebrava de todo o contrato (podia ainda assim, ponderando um eventual valor pouco elevado do contrato e as perspetivas da evolução da doença serem favoráveis, celebrá-lo com iguais contornos ou por diferente valor).
Partindo-se desta indefinição, não se pode concluir no caso concreto que a seguradora não teria celebrado o contrato de seguro se soubesse do estado de saúde da segurada.
Mas, ainda assim, pensamos que se pode admitir que se a seguradora tivesse tido conhecimento do problema de saúde da Autora/recorrida que existia não só em 2003 como também em 2006, no dia 04/04/2006 (dois dias antes da assinatura da proposta) em que se mantinha em seguimento por oftalmologia por estrias angiódes, degenerescência macular, com hipótese de glaucoma – informação do Hospital I…, no Porto, constante nos autos por requerimento de 14/11/2017 -, certamente iria ponderar essa situação e avaliar se necessitava de mais informação médica e se celebrava ou não o contrato de seguro e, na afirmativa, em que termos.
Ou seja, se a recorrente/seguradora tivesse sabido daquele problema que a potencial segurada tinha, face à situação que claramente está para além do que se pode considerar como mais frequente que pode ocorrer no campo da visão – miopia, astigmatismo, hipermetropia, … -, encontrando-se no âmbito de uma doença ocular grave, iria avaliar a situação para igualmente melhor ponderar o risco.
Admitir o contrário seria entender que a seguradora seria completamente negligente no exercício da sua atividade, descurando a análise mais cuidada numa pessoa que apresenta problemas sérios de saúde e assim celebra um contrato de seguro de vida em que está em causa esse mesmo estado de saúde, algo que nos autos não tem qualquer tipo de demonstração.
Assim, numa situação de normalidade, pensamos que a seguradora, sabendo daquele estado de saúde da potencial segurada, iria avaliá-lo e poderia concluir por não celebrar o contrato ou celebrá-lo com outras condições.
É esta, para nós, a factualidade que deve resultar provada, sendo um «menos» em relação ao que é alegado pela recorrente.
Deste modo, resulta provado que «A Ré, sabendo dos problemas de visão da potencial segurada, iria avaliar previamente essa questão de saúde e poderia concluir por não celebrar o contrato ou celebrá-lo com outras condições.».
*
Não há que analisar qualquer outra questão probatória, incluindo a questão de impossível audição de uma testemunha pois essa já foi decidida pelo tribunal recorrido, indeferindo o requerimento suscitado sobre essa falha de gravação.
*
Pensamos não haver necessidade de elencar os factos provados e não provados por a alteração ser rapidamente perceptível.
*
2.2). Do mérito do recurso.
1). Da lei aplicável ao contrato.
Não é questionado nos autos que a Autora aderiu a um contrato de seguro celebrado entre o anteriormente denominado Banco D… (tomador) e Companhia de Seguros K…, S.A (seguradora), esta atualmente C…, S.A., ora Ré.
A Autora/recorrida, ao aderir àquele contrato, passou a ser segurada e ao mesmo tempo beneficiária em vida e, no caso da sua morte, seriam beneficiários os seus herdeiros legais – factos provados – 1 a 5 -.
A adesão da Autora/recorrida ao contrato de seguro de grupo ocorre em 06/04/2006 – factos provados 1 e 7 -.
Assim, nessa data, ainda não estava em vigor o atual regime do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, com início de vigência em 01/01/2009 – artigo 7.º, do referido diploma -.
O artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma que aprovou este novo regime do contrato de seguro estipula que:
«Aplicação no tempo.
O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes
Este artigo acaba por conter o ensinamento que o artigo 12.º, do C. C. consagra no sentido de quando a lei dispõe sobre o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, a lei nova aplica-se a essas mesmas relações já anteriormente constituídas.
Assim, o legislador do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, também entendeu que as normas que elaborou seriam de aplicar ao conteúdo de contratos anteriormente celebrados que ainda subsistissem porque o que está em causa é a existência de um contrato de seguro que se enquadre nalguma das suas normas sem se ter de atender à causa concreta que fez emergir a celebração do contrato.
Sucede que o que está em causa nos autos não é a aplicação de normas relativas ao conteúdo do contrato (motivos de resolução ou denúncia de contrato, por exemplo) mas antes o aferir se o contrato de seguro se mostra validamente celebrado.
Assim, há que buscar a norma que determine quais as regras que têm de ser observadas pelas partes para que o contrato possa ser considerado válido. E daí que, estando em causa essa validade, no caso, substancial do contrato (alegadas declarações desconformes com a realidade por parte da segurada), a norma que há-de conter a solução para se concluir pela validade ou invalidade, no silêncio da lei nova do regime de seguro, é a que vigorar ao tempo da sua celebração conforme dispõe o artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do C. C..[3]
A igual conclusão se pode chegar atentando que o contrato em causa, conforme consta na sua cláusula 1.ª, é anualmente renovável pelo que se tem de atentar no disposto no artigo 3.º, n.º1, do referido Decreto-Lei n.º 72/2008 que determina que nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
Entre estas normas estão incluídos os artigos 24.º a 26.º que se referem ao dever de verdade a que está sujeito o segurado e às declarações inexatas por si transmitidas e consequências dessa falta de verdade nas declarações; assim, estes artigos não são aplicáveis a um contrato celebrado anteriormente à data de início de vigência daquele diploma mesmo que se renove durante a sua vigência pois as regras em causa respeitam à formação do contrato, no caso, à validade da sua formação.
Daí que, ao contrário do defendido na sentença recorrida, pensamos que se tem de aplicar o regime legal dos contratos de seguro vigente à data da celebração do contrato, ou seja, não só o artigo 429.º, do Código Comercial (C. Com.) mas também outra legislação que se mostre em vigor à data e que possa ter relevância para decidir a questão da validade.
*
2). Das declarações inexatas.
O artigo 429.º, do C. Com. estatui que toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.
Já está bastante sedimentado que o que está em causa neste vício é a possível anulabilidade do contrato de seguro se se verificar que o segurado não transmitiu fielmente todos os dados sobre a sua condição, no caso, da sua saúde e se se concluir que os mesmos dados, a serem conhecidos da seguradora, tinham a potencialidade de influir sobre a existência ou as condições do contrato.
Ou seja, na nossa opinião, é preciso atender a que, se quando a pessoa se prontifica a contratar com uma seguradora um contrato de seguro, acaba por transmitir, na fase da sua formação, toda a informação que lhe seja pedida ou que, eventualmente não sendo pedida, seja de considerar relevante para a decisão da seguradora avaliar o risco que está em causa.
Será através deste diálogo que a seguradora obtém elementos que lhe vão permitir decidir pela celebração do contrato de seguro com determinadas condições ou pura ou simplesmente decidir pela sua não celebração.
No caso concreto, tem então de se analisar se foram produzidas aquelas declarações inexatas no sentido de que se declarou algo (ou se assentiu em algo já declarado como correto) que não corresponde ao efetivo estado de saúde da Autora/recorrida e se, a seguradora sabendo desse facto que lhe foi omitido, poderia ter optado por, em vez de celebrar o contrato de seguro que efetivamente celebrou, celebrar um outro diferente ou não o celebrar.
A relevância do que não é transmitido assenta neste juízo de previsão que o tribunal tem de realizar para determinar se aquela factualidade é de tal modo relevante que uma qualquer seguradora, numa situação de normalidade, certamente iria ponderá-la e celebraria um contrato diverso ou então não o celebrava.
Importa desde já analisar se a Autora/recorrida produziu as apontadas declarações inexatas e, na nossa opinião, a resposta é afirmativa.
Na proposta de seguro consta a declaração transcrita no facto provado 6: «o segurado declara estar em bom estado de saúde, não ter restrições na sua capacidade para trabalhar, não ter existido interrupção na sua atividade profissional nos últimos seis meses, não ter sofrido qualquer acidente, não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de qualquer intervenção cirúrgica, consulta médica não de rotina ou internamento hospitalar. O segurado declara ainda não ser do seu conhecimento não possuir qualquer limitação física ou doença em especial, não estar infetada pelo HIV (vírus da sida) ou por hepatite de qualquer tipo.».
Esta declaração pré-impressa acaba por conter afirmações que necessitam do assentimento da segurada para que se possam aceitar como declarações sobre o estado de saúde da mesma segurada, ou seja, na proposta afirma-se que a segurada está de boa saúde e se aquela mesma segurada assinar por baixo da declaração, está a declarar que efetivamente está de boa saúde.
A sua assinatura faz com que aceite o conteúdo dessa declaração como verdadeiro, tal como a assinatura faz aceitar o modo de pagamento dos prémios por débito na conta bancária ou autorize a recolha de elementos médicos sobre o seu estado de saúde.
Existir um questionário com quadrículas que se preenchem com um «x» em sim ou não que contivesse todas aquelas perguntas que constam na declaração (goza de boa saúde, tem restrições na sua capacidade para trabalhar, houve existido interrupção na sua atividade profissional nos últimos seis meses, sofreu algum acidente, …) ou existir uma declaração onde essa informação consta já respondida, tendo o segurado de aceitar o que aí consta assinando a proposta, em termos objetivos, para nós, é igual.
Antes de assinar a proposta, lendo o que aí consta, alguém que saiba que teve um acidente ou que vai ser submetido a uma intervenção cirúrgica, certamente pode referir que essa afirmação de que não teve um acidente ou não vai ser submetido a uma intervenção cirúrgica não se enquadra na sua situação real.
Por isso, nesse momento, antes de assinar a proposta, se alguma dessas afirmações não corresponder ao seu estado de saúde, querendo celebrar um contrato de seguro do ramo vida, tem de alertar a seguradora para esse circunstancialismo para que esta possa aferir se o que lhe é transmitido impede a assinatura dessa declaração.
A recorrida aponta que essa declaração é uma efetiva cláusula contratual geral pelo modo como está escrita e que por isso tinha de lhe ser comunicada nos termos do respetivo regime legal das cláusulas contratuais gerais, o que alega que não sucedeu.
Essa visão tem sustento jurisprudencial (Acs. da R. P. de 24/05/2011 – que no caso afasta em concreto essa conclusão -, R. L. de 22/05/2014, ambos em www.dgsi.pt -). No entanto, não entendemos desse modo porque essa declaração não é uma cláusula do contrato, é «apenas» uma declaração que visa a obtenção de recolha de dados numa fase pré-contratual pelo que não vemos como se pode enquadrar a mesma num regime que visa a comunicação de cláusulas contratuais.
Se o contrato for celebrado, essa declaração não passa a constituir uma regra contratual a ser observada pelas partes; esse cumprimento esvaziou-se na fase pré-contratual.
O que se tem de analisar, por um lado e se tal for alegado, é se a pessoa que se apresenta a querer subscrever um contrato de seguro percebeu e/ou tinha de perceber o que estava em causa ao assinar a proposta assim mencionando que não padecia de problemas de saúde relevantes e que por isso a eventual inexatidão não foi consciente.
Por outro lado, nessa alegação tem de se incluir o saber como foi efetivamente preenchida essa declaração de saúde, ou seja, se ocorreu essa perceção do que se estava a assentir ao que estava declarado ou se tal não ocorreu; por exemplo, deve aferir-se se foi unicamente pelo silêncio de nada se ter dito por ambas as partes intervenientes que acabou por se assinar a mesma declaração incluída na proposta.
Não é por se assinar o contrato que o silêncio teve o valor de declaração negocial, é preciso que se apure que a negociação foi efetivamente silenciosa, bastando-se com nenhuma real afirmação por parte do futuro segurado (por exemplo, este assina sem entender que também estava a assinar a indicada declaração por ninguém lho ter dito).
Delimitando-se o que se tem de apurar para se decidir a questão, vejamos então o que sucede nos autos.
E, analisando o que consta da declaração, pensamos que em 06/04/2006, com o devido respeito, a Autora/recorrida:
não gozava de boa saúde.
Na realidade, nessa data, tinha um problema sério de visão de que padecia pelo menos desde fevereiro de 2003 (estrias angiogoides com atingimento macular num quadro de pseudoxantoma elasticam) além de que nessa altura (2006) havia suspeitas de glaucoma e já havia degenerescência macular como foi ponderado para se dar como provado a possível não celebração do contrato por parte da recorrente.
Mas, mesmo atendendo só ao que está expressamente dado como provado, não se pode concluir que alguém com aquele problema a nível ocular goza de «boa saúde». É certo que pode não ter outros problemas e até pode viver com qualidade de vida por o problema de que padece ainda ser corrigível (com uso de óculos); mas a correção de um problema de saúde não deixa de ser um modo de solucionar um problema que existe.
já tinha tido pelo menos uma consulta médica não de rotina.
Esta afirmação também poderia permitir à recorrida, porventura em menor grau de exigência, esclarecer a seguradora. Na verdade, a avaliação médica em 2003 de uma doença genética em que também há o atingimento da retina e sua progressiva destruição, não deve ser classificada consulta de rotina no sentido de ser uma observação médica para avaliar se existe algum problema de saúde escondido, em geral ou em específico.
Podemos pensar que antes de fevereiro de 2003 terá havido alguma análise ocular que vem a concluir que a Autora/recorrida tem de passar a ser seguida por um médico oftalmologista, o que vem a suceder mas então a rotina passa a ser outra: análise de um problema específico de que a Autora/recorrida padece para se atentar na sua evolução.
Entendemos que a declaração de consulta médica de não rotina aponta para excluir da necessidade de se alertar a seguradora da realização de uma consulta para despistagem de algum problema, não dispensando esse alerta para uma consulta de rotina já marcada para análise de um problema de saúde específico.
No entanto, repete-se, aqui a eventual declaração inexata da Autora/recorrida teria um menor grau de assim se poder considerar pois a afirmação constante na declaração deixa margem para algumas dúvidas.
não ser do conhecimento da Autora não possuir qualquer doença em especial.
A Autora, de acordo com regras de normalidade, sendo seguida em consultas de oftalmologia e em que é determinado o seu problema de saúde, sabe que padece do mesmo (nem a Autora alega esse desconhecimento nem existe qualquer facto de onde se possa retirar que o seu estado de saúde andasse a ser escondido de si por qualquer motivo). E, no caso, sabe a recorrida que tem um problema sério na sua visão pelo menos desde fevereiro de 2003, pelo que tem uma doença em especial (apesar do caráter pouco técnico desta expressão mas que pode ter como fundamento o ser acessível à maioria das pessoas que sabe que, quando lhe perguntam se sofre de algum problema em especial, apreende rapidamente o que pretende saber – se tem um problema especial nos olhos como a deterioração da retina ou somente miopia com grau médio, por exemplo, atenta a situação em análise).
A Autora/recorrida tinha um problema de saúde especial e deveria tê-lo mencionado aquando da subscrição da proposta.
Não o fez pois assinou o impresso onde consta a declaração oposta.
Temos assim que a Autora/recorrida produziu declarações inexatas pois declarou que estava de boa saúde, não tinha uma doença em especial além de que já tinha tido consultas que não se devem classificar como o que é normalmente conhecido como consulta de rotina.
Tais declarações são relevantes pois, como já dissemos, podem influir na análise do risco a assumir pela seguradora, tendo-se então provado que a Ré, sabendo dos problemas de visão da potencial segurada, iria avaliar previamente essa questão de saúde e poderia concluir por não celebrar o contrato ou celebrá-lo com outras condições
Não está em causa, como também é entendimento pacífico, saber se os problemas de que padecia quando assinou a proposta de seguro foram os causais da sua atual incapacidade mas sim se o problema omitido é relevante nos termos acima referidos.[4]
Mas o que está agora em causa é saber se a declaração de saúde que a Autora/recorrida assinou e por isso validou na sua total expressão foi não só corretamente entendida por si podendo ser extraída da mesma todas as legais consequências, como ainda se estava ciente das consequências sobre um eventual incumprimento do seu dever de declaração com verdade.
A Autora/recorrida alegou na petição inicial que não lhe foi transmitida qualquer explicação quanto ao âmbito, conteúdo e regime de incumprimento do dever de declaração inicial do risco, pelo que, expressamente menciona que não houve informação sobre as consequências de produzir afirmações inexatas mas também, na nossa opinião, aponta falhas na comunicação do que estaria a assinar pois reporta-se ao conteúdo desse dever de declaração (ser o mais fiel possível à sua situação de saúde).
Este dever é reportado a um caso concreto pelo que está em causa saber se a Autora/recorrida estava ciente que aquela declaração, com assentimento da sua parte mas sustentado em declarações inexatas, poderia levar à invalidade do contrato.
No contrato em questão consta efetivamente uma cláusula que determina que as declarações inexatas ou incompletas e que alterem a apreciação do risco tornam o contrato nulo – cláusula 3.2, folhas 11 do contrato junto com a contestação -.
Ora, a Autora alegou que não foi informada sobre esta consequência, sendo que a Ré não alegou qualquer comunicação/informação e não resultou provado nem provado qualquer facto sobre este aspeto.
Então, por falta de prova da comunicação dessa cláusula contratual e da sua perceção pela segurada, o incumprimento do dever previsto no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 – dever de comunicação com antecedência e de modo adequado das cláusulas contratuais gerais – pode apontar para que a cláusula não se considere escrita – artigo 8.º, alínea a), do mesmo diploma legal -.
Porém, essa cláusula tem praticamente um teor idêntico ao que resulta da lei, nada acrescentando ao disposto no artigo 429.º, do C. Com. pelo que, mesmo que se pudesse concluir nos presentes autos que havia a falta de comunicação da mesma e considerar-se não escrita, o dever de prestar declarações exatas já advinha da lei pelo que não pode a Autora/recorrida invocar o seu desconhecimento – artigo 6.º, do C. C. -.[5]
Quanto à declaração de saúde impressa na proposta e já previamente elaborada, como já referimos, a mesma não é uma cláusula contratual geral mas antes uma declaração da segurada pré-elaborada que, concordando com a mesma, passa a ser uma sua declaração igual àquela que tivesse sido por si manuscrita.
Pode então, como em termos gerais igualmente referimos, questionar-se se à Autora/recorrida foi devidamente explicado o teor dessa declaração de saúde, explicando-se o que significavam as expressões e situações que aí estão inscritas, para assim se aferir se a assinatura de conformidade com essa declaração corresponde a uma vontade esclarecida.
Sucede que, tomando como certo (e não questionado pela Ré nos autos) e aceitando o alegado pela mesma Autora que o que está em causa é um contrato de seguro de grupo em que foi alguém representando o Banco tomador que foi o seu interlocutor, então o dever de informação do teor dessa declaração caberia ao funcionário do Banco tomador.
Na realidade, é este quem apresenta a proposta e é com essa pessoa que a futura segurada dialoga pelo que, à partida, é entre estas duas pessoas que se devem cumprir todas regras de boa-fé contratual (artigo 762.º, do C. C.) onde se inclui o esclarecimento do que se propõe vir a ser contratado.
Tanto assim é que, no regime vigente à data da formação deste contrato previsto no Decreto-Lei n.º 176/95, de 28/07, se prevê que é o tomador do seguro (o Banco D…, no caso) que tem de informar o segurado sobre as coberturas e exclusões contratadas, as obrigações e direitos em caso de sinistro e as alterações que ocorram, em formulário fornecido pela seguradora, competindo ao mesmo tomador o ónus da prova de que assim se fez – artigo 4.º. nºs. 1 e 2, -.
Só assim não será se o contrato previr que seja a seguradora a fazê-lo (algo que, bem, não é alegado pois não resulta do contrato) ou se o segurado pedir esclarecimentos à mesma seguradora – nºs. 4 e 5 do mesmo artigo 4.º -(o que também não é alegado).
E se é o tomador que tem de observar aquele dever de informação em relação a todas as cláusulas do contrato, não vemos outra solução que não seja a de considerar que para que essa comunicação seja completa, seja também o tomador a ter de informar o segurado sobre o alcance do que é perguntado a nível da sua saúde, ou seja, a nível da declaração inicial de risco.
Se naquele momento o Banco tem de esclarecer o segurado sobre o que pretende contratar, também tem de informar o que é necessário para que o contrato seja firmado e só se a seguradora pretender assumir para si essa obrigação ou o segurado quiser que seja a seguradora a informá-lo, é que passa a ser a mesma seguradora a ter de fazê-lo.
O tomador do seguro não é parte nos autos.
É certo que Autora alegou que nada lhe foi comunicado pelo Banco/tomador sobre aquele dever de verdade sobre a declaração inicial de risco e também é certo que não há factualidade provada ou não provada sobre esta matéria; porém, mesmo que se provasse que não tinha sido cumprido esse dever, a omissão não tinha sido praticada pela Ré/recorrente mas sim pelo Banco.
Poderá afirmar-se que, se se provasse essa falta de informação total ou, eventualmente concretizada factualmente num grau menor, ficava a saber-se que tinha sido impossível a segurada/Autora suscitar dúvidas sobre o que se lhe estava a pedir em termos de estado de saúde e assim poder-se-ia concluir que assinou um contrato sem estar devidamente esclarecida.
Mas, ainda que tal se pudesse provar e afirmar (no caso concreto, não tendo a segurada uma atuação mais ativa de declarar o seu estado de saúde preenchendo quadrículas, podendo assim escapar-lhe mais facilmente o que efetivamente estava a declarar), a omissão desse dever contratual não advém da seguradora/Ré e o prejuízo que aquela Autora possa ter sofrido não foi causado pela mesma seguradora.
Se a segurada não foi esclarecida ou foi impedida de se esclarecer junto da seguradora sobre o que teria a declarar sobre o estado de saúde (se nada lhe foi informado então podia não ter dúvidas por pensar que ou não havia análise da saúde ou que esta seria feita posteriormente ou que nem seria preciso mais cuidados na resposta atento a generalidade do que era pedido), essa situação adveio da atuação do Banco e só a este pode ser assacada responsabilidade.
O Banco não intervém a mando da seguradora, não existindo qualquer alegação e prova no sentido de que é auxiliar ou comissário da seguradora (artigos 500.º e 800.º do C. C.), não se afigurando que uma relação económica entre ambos possa fazer nascer uma responsabilização jurídica de atos praticados por uma pessoa a cargo de outra pessoa distinta – veja-se neste sentido a análise efetuada no Ac. do S. T. J. de 25/06/2013 (Cons. Lopes do Rego), também seguida pelos Acs. do S. T. J. de 14/03/2017 (Cons. Ernesto Calejo) e 30/11/2017 (Cons. Maria do Rosário Morgado) e já mencionada no Ac. do S. T. J. de 20/05/2015, este relatado pelo Cons. Tomé Gomes, todos em www. dgsi.pt -.
Poderia eventualmente existir uma alegação no sentido de que também a seguradora era responsável por não ter informado devidamente o tomador do seguro sobre o que deveria ser informado ao segurado, surgindo assim uma «co-autoria» na violação do dever de informação (conforme se defende no caso concreto no citado Ac. do S. T. J. de 20/05/2015 mas em que, neste caso, nem sequer tinha sido entregue um documento com as condições particulares e gerais ao segurado que depois eram invocadas contra o segurado); mas essa situação não é a suscitada nos presentes autos.
Daí que seria inócuo nesta fase determinar o prosseguimento dos autos para prova do que (não) tinha sido transmitido pelo Banco tomador à segurada pois a eventual prova da falta de comunicação não poderia ser assacada à Ré/recorrente.
Deste modo, tendo a Autora/recorrido prestado declarações inexatas, o contrato de seguro tem de se considerar anulado, não tendo assim direito a receber o valor segurado no contrato – artigo 287.º, do C. C. -, havendo razões para proceder o recurso.
Estas razões não são afastadas por qualquer situação de abuso de direito (artigo 334.º, do C. C.) pois o que se apura é que a aqui recorrida/Autora não prestou as devidas e exigíveis informações à seguradora pelo que foi na ignorância da real situação de saúde daquela que a mesma seguradora, aqui recorrente, aceitou os pagamentos dos prémios (não os aceitou sabendo que a sua segurada já padecia de um problema de saúde relevante aquando da subscrição do contrato de seguro).
Daí que não possa considerar que a seguradora tenha violado qualquer regra de boa-fé ao, quando confrontada com o pedido de pagamento da quantia segurada, ter analisado o motivo do pedido (incapacidade de 95%) e ter então averiguado desde quando a mesma ocorria. Aliás, contratualmente esse poder era-lhe facultado até para aferir se a doença tinha advindo no período de vigência do contrato ou anteriormente como viemos a concluir que sucedeu.
Quanto ao pagamento dos prémios pela segurada e sua aceitação pela seguradora, também não vemos como tal possa afastar a apontada anulação do contrato de seguro pois não se alega sequer que a seguradora soubesse do vício em causa (doença pré existente à celebração do contrato) que lhe permitiria anular o contrato, conhecimento que o artigo 288.º, n.º 2, do C. C. exige.
Conclui-se assim que o recurso procede, declarando-se anulado o contrato de seguro em causa, com absolvição da Ré do pedido formulado pela Autora.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julgando-se procedente o presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência, declara-se anulado o contrato de seguro titulado pela apólice ../…/…….. celebrado entre Autora e Ré, absolvendo-se a mesma Ré do pedido.
Custas pela Autora/recorrida.
Registe e notifique.
*
Porto, 28 de fevereiro de 2021
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
__________________
[1] Sobre a questão da prevalência do juízo pericial sobre os depoimentos de testemunhas, Luís Pires de Sousa, Direito Probatório material comentado, página 188.
[2] http://repositorio.chporto.pt/bitstream/10400.16/1235/1/Pseudoxantoma_18-1.pdf.
[3] Acs. do S. T. J. de 28/06/2018, R. G. de 14/03/2019, www. dgsi.pt.
[4] Ac. R. L. de 23/01/2018, www.dgsi.pt
[5] Ac. R. P. de 06/11/2007, www.dgsi.pt.