Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
421/17.0T8BGC-R.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
IMPUGNAÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RP20220404421/17.0T8BGC-R.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A fase de verificação e graduação de créditos, que se inicia com a decretação da insolvência, é composta por uma sequência encadeada de atos de credores, do administrador de insolvência, da devedora e de outros interessados, fixando a lei, para cada um deles um prazo determinado que, sendo autónomo dos demais, se encontra dependente do prazo imediatamente anterior e condiciona o prazo que se lhe segue;
II - Razões de simplificação e de celeridade justificam tal regime de prazos sucessivos para os atos em cadeia (prazo de 15 dias subsequentes ao prazo das reclamações - cfr. nº1, do art. 128º e al. j), do nº1, do art. 36º, do CIRE -, para apresentação, pelo administrador da insolvência, da lista, a que alude o nº1, do art. 129º, do CIRE, e prazo de 10 dias seguintes ao termo do referido prazo, para qualquer interessado impugnar a lista, a que alude o nº1, do art. 130º, de tal diploma), em que o prazo seguinte se inicia imediatamente após o anterior terminar, independentemente de notificações;
III - Contudo, em obediência ao princípio do contraditório, elevado, até a princípio constitucional, que tem, sempre, de ser observado e feito observar pelo juiz, caso o desrespeito de um prazo da cadeia impeça a determinação do início do prazo seguinte, impõem-se as notificações tendentes a despoletar o seu início, para, de modo proporcional, em igualdade e na plena e efetiva contraditoriedade, se poder definir o direito, nunca mecanismos materializadores de exigências de simplificação e celeridade processual prevalecendo sobre aquele princípio estruturante de um processo justo e equitativo. Quebrado um elo da cadeia, a contraditoriedade tem de ser assegurada da única forma possível – mediante notificação para o efeito;
IV - Destarte, tendo o Administrador da Insolvência apresentado a lista a que alude o nº1, do art. 129º, do CIRE, fora do prazo legalmente estabelecido e não tendo a insolvente sido notificada de tal apresentação, sequer os seus mandatários sido informaticamente associados ao apenso respetivo, em momento anterior aos 10 dias que antecedem a apresentação da impugnação, tempestiva é a impugnação apresentada pela insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 421/17.0T8BGC-R.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 3
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria José Simões
2º Adjunto: Abílio Costa

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: a credora Banco ..., S.A
Recorrida: a insolvente D..., SA

Banco ..., S.A., Credora nos autos, notificada do Despacho que julgou tempestiva a impugnação apresentada pela Insolvente à Lista de Credores Reconhecidos e com o mesmo se não conformando, dele veio interpor recurso de apelação, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que julgue inadmissível, por extemporânea, a impugnação apresentada pela Insolvente com a ref. CITIUS nº 29902701, de 16 de Agosto de 2018, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Apresentou-se a massa insolvente a responder, pretendendo a improcedência do recurso, dada a tempestividade da reclamação por ter ocorrido falta de notificação sua da lista apresentada pelo Senhor AI, sequer as suas mandatárias haverem sido associadas, e pela condenação em multa e indemnização, por a Recorrente ter conhecimento do infundado do recurso, ter uma postura processual contraditória com atos por si praticados em momento anterior e ter o recurso fins meramente dilatórios.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- Da intempestividade da impugnação da insolvente à listagem apresentada pelo Administrador da Insolvência;
2ª- Da litigância de má fé da apelante.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, vicissitudes processuais, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede, sendo que:
1. Por sentença de 10/5/2018, foi declarada a insolvência da apelada D..., SA e fixado em 30 dias o prazo para reclamar créditos;
2. Tendo terminado aquele prazo no mês de junho, o AI apresentou em 23 de julho de 2018 “lista dos créditos reclamados e reconhecidos em conformidade com o artigo 129º, do CIRE, bem como dos não reconhecidos, que não existem”;
3. A reclamação de créditos foi autuada em 24/7/2018;
4. Não foi a insolvente notificada da apresentação da referida lista nem as suas mandatárias foram associadas ao apenso referido em data anterior a 6/8/2018;
5. A insolvente, ora apelada, apresentou impugnação de créditos no dia 16/8/2018;
6. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
… as M. Distintas Mandatárias da insolvente só puderam obter operante acesso ao processo via CITIUS após terem diligenciado junto da secretaria judicial visando tal desiderato (…), daí derivando que só no transacto dia 6 de Agosto de 2018 se operou o termo inicial para a insolvente Dourounidos, S.A. através da sua M. Ilustre Mandatária (cfr. as referências CITIUS 395349593 do apenso B. e refª citius 395348125 do processo principal, com a inserção no campo intervenientes associados) apresentar eventual impugnação à listagem pregressamente carreada para os autos pelo Exmo.AI. à luz do estatuído art.129º do CIRE.
Como silogístico corolário das razões supra expendidas – e ao nada detectar que, de dirimente forma, deponha em divergente sentido - sou a julgar como tempestiva a oferecida impugnação à listagem de credores da lavra do Exmo. AI., indeferindo tudo o que foi impetrado postulando em divergente sentido”.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1º - Da tempestividade da impugnação da insolvente
Insurge-se a apelante contra a decisão que julgou tempestiva a impugnação apresentada pela Insolvente, entendendo dever a mesma ter sido liminarmente julgada inadmissível, por extemporânea, pois a Insolvente não tinha de ser notificada da Lista, nem a Secretaria tinha de tomar diligência a esse respeito, porquanto é ao interessado que cabe, sabendo do prazo previsto no artigo 129º, nº 1 do CIRE, diligenciar pelo conhecimento da Lista de Créditos Reconhecidos:
i) solicitando-a ao Administrador da Insolvência;
ii) consultando presencialmente o processo;
iii) ou requerendo a sua associação ao respetivo apenso via Citius.
No sentido da necessidade da sua notificação, em falta, - por o prazo a que alude o nº1, do art. 129º, do CIRE, haver sido incumprido e, por isso, não ser determinável o prazo a que alude o nº1, do art. 130º, de tal diploma -, bem como da necessidade de serem associadas as suas mandatárias ao respetivo processo, para o exercício do contraditório se pronuncia a insolvente, que apresentou a impugnação dentro dos 10 dias a contar da mencionada associação.
A questão a conhecer no presente recurso é tão só a da tempestividade da impugnação da insolvente à lista apresentada pelo Administrador da Insolvência depois de ultrapassado o prazo de que o mesmo dispunha para o efeito (a que alude o nº1, do art.129º, do CIRE), sem que da apresentação de tal lista lhe fosse dado conhecimento.

Analisemos.

Decretada a insolvência, inicia-se a fase de verificação e graduação de créditos, composta por uma sequência, encadeada, de atos de credores, do administrador de insolvência, da devedora e de outros interessados, fixando a lei, para cada um deles um prazo determinado que, sendo autónomo dos demais, se encontra dependente do prazo imediatamente anterior e condiciona o prazo que se lhe segue.
Em matéria de prazos para Reclamação de Créditos no processo de insolvência, consagrado vem no nº1, do artigo 128º, do CIRE, que “Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos …” (cfr., ainda, al. j), do nº1, do art. 36º, do CIRE) e o subsequente art. 129º, do CIRE, estatui no nº1, que “Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, …”, sendo que, por seu turno, o nº1, do art. 130º dispõe “Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos …” (negrito e sublinhado nossos).
Assim, consagrados prazos sucessivos, os interessados (pacífico sendo sê-lo a própria insolvente) terão de ter especial atenção e cautela no controlo do início de contagem do prazo de impugnação da lista (dez dias a contar do termo do prazo de 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações), em virtude de, entre o termo do prazo das reclamações e o início da contagem do prazo da impugnação, nenhuma notificação ser efectuada[1], salvo nas situações contempladas no nº4, do art. 129º, do CIRE.
E foi, já, considerado que não sendo a apresentação da lista notificada aos interessados, é aos mesmos que cabe controlar “quer a sequência de prazos estabelecida na lei, quer o momento de disponibilização da lista de credores junto da secretaria”[2].
Porém, não pode entender-se assim se verificar em todos os casos, concretamente naqueles em que o Administrador da Insolvência, quebrando o elo de ligação do meio da sequência, desrespeita o prazo que lhe está, legalmente, estipulado.
E, na verdade, bem se analisa no Acórdão desta Relação de 28/10/2021, relatado pelo Sr. Desembargador Jorge Seabra, “Do regime legal consagrado nos artigos 128º e segs. do CIRE resulta que o legislador optou por um sistema de prazos legais sucessivos, em que o início do prazo seguinte tem lugar logo após o termo do prazo que o precede sem necessidade de intermediação de notificação dos actos objecto de contraditório.”, sendo que, contudo, “este sistema legal de prazos sucessivos pressupõe, necessariamente, que o início do primeiro prazo corresponda a uma data certa e conhecida ou cognoscível por todos os interessados, para que estes, com o grau de certeza e segurança que são exigíveis, possam prever e determinar o início do prazo seguinte e assim sucessivamente”. E mais, aí, se acrescenta:
III. O descrito regime e o pressuposto que lhes subjaz (cumprimento dos prazos previstos) ficam prejudicados se o Administrador da Insolvência não cumprir com a junção da lista de credores no prazo legal previsto para o efeito (15 dias após o termo do prazo para a reclamação de créditos) – artigo 129º, n.º 1, do CIRE -, posto que, a partir daí, torna-se incerta e imprevisível a data do início do prazo de 10 dias (contado após o termo daquele prazo) para a apresentação de impugnação à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos – artigo 130º, n.º 1, do CIRE.
IV - Como assim, neste contexto, de incumprimento do prazo para a junção da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, impõe-se que o Sr. Administrador obvie às consequências do seu incumprimento, procedendo à notificação da lista de créditos a todos os que nela se mostrem inscritos, contando-se, assim, o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 130º a partir da realização de tal notificação.
V - O interesse da celeridade processual, ainda que relevante, não se pode sobrepor aos princípios subjacentes a um processo equitativo, nomeadamente ao princípio do contraditório – poder de influenciar a decisão e de defesa perante as pretensões da parte contrária - e do tratamento tendencialmente igualitário de todos os interessados no processo – igualdade em termos de utilização e uso dos meios processuais disponíveis”[3].
Nele, e no seguimento do Acórdão do Tribunal Constitucional aí citado, que, por bem elucidativo e esclarecedor, aqui também se exara[4], se decidiu que: “ocorrendo incumprimento pelo Administrador da Insolvência do prazo para a apresentação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos e importando esse incumprimento (tenha ele a duração que tiver) a impossibilidade de o insolvente (único que ora está em causa) poder determinar com a devida segurança e certeza o início do prazo de 10 dias para efeitos de impugnação da lista de créditos reconhecidos (com algum dos fundamentos previstos no artigo 130º, n.º 1, do CPC), não será (…) proporcional e adequado impor-se ao insolvente o ónus de consultar diariamente o processo para se inteirar da apresentação daquelas listas (consulta diária essa que se pode prolongar por todo o período temporal de mora do Administrador) e para assim aferir ele próprio a data de início e termo do prazo de que dispõe para a impugnação dos créditos reconhecidos.
Ao invés, nesta hipótese, (…) a notificação da lista entregue pelo administrador da insolvência surge como a única forma de, através do processo, assegurar o conhecimento pelo insolvente do dies a quo do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos, colocando-o em condições de exercer o seu direito de defesa face às pretensões dos credores reclamantes que considere não deverem proceder e em igualdade de condições relativamente a todos os demais credores que, nos termos do artigo 129º, n.º 4, do CIRE, têm que ser obrigatoriamente notificados daquelas listas, sendo certo que inexiste entre aquelas duas categorias de intervenientes no processo de reclamação e verificação de créditos nenhuma diferença substancial, do ponto de vista dos seus interesses, que justifique um tratamento tão radicalmente distinto e, ademais, a lei associa à inexistência de impugnação um significativo efeito cominatório. (…) como se refere no AC RL de 27.11.2019, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Amélia Rebelo, disponível in www.dgsi.pt., “… Nesse contexto, de incumprimento do prazo para junção da lista de créditos pelo Administrador da Insolvência, impõe-se que seja este a obviar às consequências do seu próprio incumprimento, procedendo à notificação da lista de créditos a todos os que nela constam inscritos, pois que só assim resulta potenciado o pretendido efectivo exercício do contraditório na medida em que, naquele cenário, não podem aplicar-se as regras (de prazos sucessivos e ausência de notificações) previstas pelos arts. 130º, nº 1 e 131º, nº 1 e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” E, ainda, prossegue o mesmo Acórdão, “… Assim, o que é expectável e devido, por legalmente previsto, é que a lista de créditos seja apresentada pelo Administrador da Insolvência até ao termo do prazo legal para o efeito previsto. Quando assim não suceda e quando aquele incumprimento não é colmatado com a notificação da lista de credores simultaneamente com a junção (tardia) da mesma aos autos, ocorre violação do principio constitucional do acesso à justiça previsto pelo art. 20º da CRP traduzida em omissão perturbadora do pleno e efectivo exercício do contraditório que, nos termos do art. 195º do CPC e caso não seja sanada até à prolação da sentença, produz a nulidade desta por idónea a influir no exame ou na decisão da causa.” ”[5] (negrito nosso).
E sendo o necessário assegurar o, pleno e efetivo, exercício do contraditório, bem considerou o STJ, no Ac. de 6/10/2021, proc. 209/18.0T8ACB-B.C1.S1 que “Tendo o administrador da insolvência enviado à insolvente, aqui recorrente, a lista de créditos em 12 de Abril de 2018, é óbvio que aquando da impugnação apresentada por esta a 14 de Maio de 2018, o prazo aludido no art. 130.º, n.º 1 do CIRE há muito que se encontrava precludido”[6].
Ora, como a disponibilização da lista é essencial à sua impugnação, no caso de o administrador incumprir o prazo para a apresentar, isto é, excedidos os 15 dias de que dispõe para o efeito, o prazo para a sua impugnação tem de ser contado do dia em que a apresentação tiver sido feita[7], com o conhecimento da mesma levado ao interessado. Só desse modo se assegura, amplamente, o exercício do contraditório, em posição de igualdade com os demais interessados e os fins de um processo justo e equitativo.
In casu, como resulta dos autos e bem considerou provado o Tribunal a quo, não foi a insolvente notificada da apresentação (tardia) referida lista nem as suas mandatárias foram, sequer, associadas ao apenso referido em data anterior a 6/8/2018, não resultando a existência de conhecimento em data anterior a 6 de agosto de 2018 da lista pela insolvente, pelo que a impugnação apresentada a 16 de tal mês, tem de ser considerada tempestiva, por oferecida dentro dos 10 dias seguintes ao conhecimento da apresentação da lista (de credores reconhecidos e não reconhecidos) pelo administrador da insolvência.
Na verdade, como bem sustenta a apelada, no caso dos autos, o Senhor AI não cumpriu o prazo do nº1, do artigo 129º, do CIRE, nem notificou a insolvente de que havia remetido a lista de credores ao Tribunal, a qual não foi notificada, por qualquer forma, da apresentação dessa lista. E o Senhor AI, que apresentou o seu requerimento através do sistema Citius, aquando do preenchimento do respetivo formulário, não associou no sistema nenhuma das mandatárias da insolvente, que apenas mais tarde tiveram conhecimento da apresentação de tal lista.
Atendendo a que nenhuma notificação foi efetuada à insolvente e a que os ilustres mandatários desta não estavam associados ao processo antes de 6 de agosto de 2018, a impugnação à lista (oferecida tardiamente pelo Sr. Administrador de Insolvência), apresentada no dia 16 desse mês, não pode ser havida como intempestiva, dado não ter a devedora, em momento anterior àquele, conhecimento da apresentação da lista pelo Senhor Administrador da Insolvência.
Bem decidiu, pois, o Tribunal a quo.
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- Da litigância de má fé da apelante
Pede a apelada a condenação da apelante como litigante de má fé, sustentando o seu conhecimento do infundado do recurso e os fins meramente dilatórios deste e, ainda, a postura processual contraditória da mesma com atos que praticou.
Cumpre deixar claro que este Tribunal é um Tribunal de recurso pelo que as questões a apreciar são as já suscitadas junto da 1ª Instância e que a mesma apreciou e decidiu[8].
Na verdade, o recurso visa, tão só, o reexame da matéria apreciada pela 1ª Instância na decisão recorrida, não podendo ter por objeto questões novas (cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Os recursos são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a sua modificação.
Recurso é, pois, um “pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior”[9].
Acresce que o direito ao recurso é uma garantia constitucionalmente consagrada, expressamente prevista pelo nº1, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, podendo mesmo dizer-se que o direito de acesso aos Tribunais compreende o direito de recorrer (art. 20º, daquela Lei Fundamental), pelo que não é pelo facto de este ter recorrido, no exercício do seu direito e em defesa dos seus interesses, mesmo que lhe não venha a ser reconhecida razão e o recurso improceda, que se pode concluir que esteja a litigar de má fé.
Consagrando o legislador o direito de acesso aos Tribunais, a lei não reserva tal acesso aos detentores da razão, embora estabeleça entraves à introdução em juízo de toda e qualquer pretensão e comine certas atuações como litigância de má fé.
E, na verdade, “não deve confundir-se a litigância de má fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 2-3-10, 6145/09)[10].
Assim, mesmo resultando não ter a Apelante razão e improcedendo o recurso, não se segue, como consequência necessária, a condenação como litigante de má fé, sendo que a condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando alcançar o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça.
Assim, e sem prejuízo do tribunal a quo, poder/dever apreciar a eventual litigância de má fé, que a apelada imputa à apelante, a qual é de conhecimento oficioso do tribunal, improcede a pretensão, questão nova, que a apelada formula na resposta às alegações de recurso.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida, improcedendo, também, o pedido de condenação da apelante por litigância de má fé.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 4 de abril de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Maria José Esteves e Sandra Alves Amorim, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vida Económica, pág. 207.
[2] Ac. RP de 15/2/2011, proc. 3083/10.1T2SNT-C.L1.7, citado na obra que antecede, pág. 208.
[3] Ac. RP de 28/10/2021, proc. 2422/20.1T8AVR-A.P1, in dgsi.pt
[4] Ac. TC n.º 16/2018, Proc. 978/2016, proferido com data de 10.01.2018, disponível no sítio oficial daquele Tribunal: “Tal como interpretado pelo Tribunal a quo, o n.º 1 do artigo 130.º do CIRE dispensa a notificação ao insolvente da lista dos créditos reconhecidos entregue pelo administrador da insolvência, não apenas nos casos em que tal entrega tem lugar dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, como também nas situações em que o referido prazo é inobservado pelo administrador da insolvência, sendo a lista apresentada para lá da verificação do respectivo termo final.
Para melhor compreender a racionalidade subjacente ao preceito de que emerge a solução impugnada, importa começar por explicitar o essencial do regime do processo de insolvência, tal como consagrado no CIRE.
O processo de insolvência — começa por dispor o artigo 1.º do CIRE, na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril — é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Perspectivado a partir das várias fases que comporta, o processo de insolvência surge integrado por uma sequência ordenada de actos, que tem início com a apresentação do devedor à insolvência (artigo 18.º) ou com o pedido da sua declaração (artigo 20.º) e culmina no pagamento aos credores (artigo 172.º), quando não deva extinguir-se por causa diversa (artigo 230.º, n.º 1, alíneas b), c) e d)).
Inscrevendo-se a solução impugnada no âmbito da fase de verificação e graduação de créditos, a esta convém dedicar particular atenção.
A fase de verificação e graduação de créditos tem lugar logo após a declaração de insolvência, a qual determina o vencimento imediato das obrigações do insolvente, impondo a verificação do respectivo passivo. Constituindo um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, a verificação e graduação de créditos compreende a reclamação de créditos (artigos 128.º a 135.º), o saneamento (artigo 136.º), a instrução (artigo 137.º) e, por último, a discussão e julgamento da causa (artigos 138.º e 139.º), que culmina na sentença (artigo 140.º).
A fase de verificação do passivo inicia-se, assim, com a reclamação de créditos, que deve ter lugar dentro do prazo fixado na sentença declaratória da insolvência, até ao limite máximo de 30 dias (artigo 36.º, n.º 1, alínea j)), contado a partir da citação dos credores do insolvente.
Para além de notificada ao devedor — notificação que será efectuada com observância das formalidades previstas para a citação sempre que o devedor não tiver sido já pessoalmente citado para os termos do processo (artigo 37.º, n.º 2) —, a sentença declaratória da insolvência é seguida da citação dos cinco maiores credores conhecidos (artigo 37.º, n.º 3), sendo os demais credores e outros interessados citados por edital, com prazo de dilação de cinco dias (artigo 37.º, n.º 7).
As reclamações de créditos apresentadas são apreciadas pelo administrador da insolvência, ao qual incumbe entregar, dentro do prazo de 15 dias após a termo do prazo de reclamações, duas listas na secretaria judicial, respeitando uma aos créditos por si reconhecidos e outra aos créditos que não obtiveram reconhecimento, relativamente não só aos credores que tenham deduzido reclamação, como ainda àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento (artigo 129.º, n.º 1).
Da lista apresentada pelo administrador da insolvência são notificados todos os credores não reconhecidos, os credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos apesar de não reclamados e os credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos diversos dos constantes da respectiva reclamação (artigo 129.º, n.º 4). Os restantes credores, bem como todos os demais interessados, não são notificados, devendo consultar a lista apresentada pelo administrador na secretaria do tribunal.
Segue-se a fase de impugnação da lista apresentada pelo administrador da insolvência, acto para o qual é fixado o prazo único de 10 dias. O respectivo termo inicial diverge, porém, consoante o interessado de que se trate.
Em geral, prazo de impugnação inicia-se após o termo final do prazo de que dispõe o administrador da insolvência para entregar na secretaria judicial a lista dos créditos reconhecidos e a lista dos créditos não reconhecidos (artigo 130.º, n.º 1). Porém, quanto aos credores que devem ser notificados da referida lista, tal prazo só começa a contar-se a partir do terceiro dia útil posterior ao da expedição da carta para aquele efeito remetida (artigos 130.º, n.º 2, e 249.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este aplicável ex vi do artigo 17.º).
A partir desta fase, o reconhecimento dos créditos reclamados passa a competir ao juiz.
Se for deduzida alguma impugnação — que poderá basear-se na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos (artigo 130.º, n.º 1) —, abre-se, no processo de insolvência, o incidente regulado nos artigos 131.º a 140.º: depois de exercido o contraditório (artigo 131.º) e de efectuadas as diligências probatórias que devam ser nesse momento realizadas (artigo 137.º), tem lugar a realização da audiência de julgamento (artigo 139.º), finda a qual o juiz profere sentença de verificação e graduação de créditos (artigo 140.º).
Se não houver impugnações, o juiz profere de imediato sentença de verificação e graduação dos créditos, na qual se limitará a homologar, salvo caso de erro manifesto, a lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, graduando os créditos reconhecidos em atenção ao que dela conste (artigo 130.º, n.º 3).
A questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos prende-se directamente com a determinação do dies a quo do prazo de 10 dias concedido ao insolvente para impugnar a lista dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência. Mais concretamente, trata-se de saber se, em face do que se dispõe nos artigos 20.º, 202.º e 205.º da Constituição, tal prazo continuará a poder ser desencadeado pela mera apresentação da lista dos créditos reconhecidos, com dispensa da sua notificação ao insolvente, nos casos em que tal apresentação tem lugar depois de esgotado o prazo de 15 dias de que o administrador da insolvência legalmente dispõe para proceder a tal entrega.
A fase de verificação e graduação de créditos que se abre com a decretação da insolvência é integrada, conforme se viu, por uma cadeia organizada de actos, para a prática de cada um dos quais a lei fixa um determinado prazo. Apesar de autónomo dos demais, cada um desses prazos encontra-se directamente dependente do prazo imediatamente anterior, ao mesmo tempo que condiciona o prazo que imediatamente se lhe segue.
É, assim, com a verificação do termo final do prazo para a reclamação de créditos fixado na sentença declaratória da insolvência que tem início o decurso do prazo 15 dias concedido ao administrador da insolvência para apresentar a lista dos créditos por si reconhecidos e a lista daqueles que não hajam obtido reconhecimento; o termo final do prazo de 15 dias concedido ao administrador da insolvência para entregar na secretaria judicial as listas que lhe cabe elaborar determina, por sua vez, o início do prazo de 10 dias de que, excepção feita aos credores que devam ser para esse efeito notificados, dispõe qualquer interessado para impugnar as listas dos créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentadas pelo administrador da insolvência.
Ora, em qualquer regime processual informado pela regra segundo a qual cada prazo seguinte tem como momento a quo o momento ad quem do prazo imediatamente anterior, o conhecimento do ato que com que é desencadeado o decurso do primeiro dos prazos que integram a cadeia, no caso, a sentença que declara a insolvência constitui, em princípio, uma condição simultaneamente necessária e suficiente para o estabelecimento do termo inicial de todos os demais que se lhe seguem: por força da relação de interdependência que liga os prazos em sucessão, é possível determinar, a partir do conhecimento do primeiro deles, tanto o dies a quo quanto o dies ad quem de qualquer um daqueles que se lhe seguem, tanto imediata como mediatamente.
Assim, se todos os prazos estabelecidos para a prática dos vários dos actos que integram a fase de verificação de créditos forem observados pelos sujeitos que nela intervêm, credores reclamantes e administrador da insolvência, a mera notificação da sentença que declara a insolvência, imposta no artigo n.º 2 do artigo 37.º do CIRE, colocará qualquer interessado em perfeitas condições de determinar o termo inicial do prazo de que dispõe para impugnar os créditos que hajam sido reconhecidos pelo administrador da insolvência: tal prazo iniciar-se-á com a sobrevinda do termo final do prazo de 15 dias concedido ao administrador da insolvência para apresentar na secretaria do tribunal a lista dos credores não reconhecidos, prazo este que é, por seu turno, desencadeado pelo esgotamento do prazo que a sentença declaratória da insolvência tiver fixado para a reclamação de créditos.
Do ponto de vista do insolvente, é a esse que importa atender aqui, o problema surge quando o prazo estabelecido para a prática de qualquer um dos actos que têm lugar em momento anterior ao previsto para a sua intervenção for inobservado pelo sujeito processual a que se dirige, sem que isso afecte a aproveitabilidade processual do acto praticado intempestivamente. Nesta hipótese, o termo inicial do prazo seguinte passa a ser determinado pelo momento em que foi efectivamente praticado o ato pelo interveniente anterior, deixando de poder coincidir com o termo final do prazo que imediatamente o precedeu.
Dito de outra forma: sempre que o administrador da insolvência apresentar as listas dos créditos reconhecidos e não reconhecidos depois de volvido o prazo de quinze dias de que para o efeito dispõe, contado a partir do termo final do prazo para a reclamação de créditos fixado na sentença declaratória da insolvência, a regra do desencadeamento automático do prazo seguinte a partir do esgotamento do prazo imediatamente anterior deixa de poder funcionar; neste caso, o prazo para a impugnação da lista dos créditos reconhecidos só poderá iniciar-se com a prática do acto correspondente ao da sua efectiva apresentação na secretaria judicial e a possibilidade de o insolvente determinar, a partir da mera notificação da sentença que declara a insolvência, o termo inicial do prazo de que dispõe para exercer a faculdade prevista no n.º 1 do artigo 130.º do CIRE é, obviamente, eliminada.
Por isso, se a dispensa de notificação das listas dos créditos reconhecidos e não reconhecidos se mantiver nas situações em que o administrador da insolvência incumpre o prazo fixado no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, será somente através da diária deslocação à secretaria judicial, onde aquelas listas são entregues, que, ao contrário do que se prevê para o conjunto de credores a que alude o artigo 132.º, n.º 2, o insolvente poderá tomar conhecimento, em momento compatível com o seu aproveitamento integral, do dies a quo do prazo para impugnação dessas listas, faculdade que lhe é conferida pelo artigo 130.º, n.º 1, do referido diploma legal.
Saber se tal ónus, a que a norma impugnada dá origem, é compatível, desde logo, com o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrados no artigo 20.º da Constituição, é a questão a que se procurará responder nos pontos seguintes.
Enquanto garantia da possibilidade de realização dos demais direitos fundamentais, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva concretiza um dos elementos essenciais do princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2.º da Constituição), sendo essa a principal razão por que surge consagrado no artigo 20.º da Constituição em termos tão compreensivos quanto particularizados.
Assim, para além de assegurar a todos o direito de acção propriamente dito, isto é, a faculdade de submeter determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional para defesa de um direito ou de um interesse legalmente protegido (n.º 1), a garantia da via judiciária ínsita no artigo 20.º inclui outras dimensões, igualmente indispensáveis à concretização de uma tutela jurisdicional efectiva, com especial destaque, no que aqui especialmente releva, para o chamado princípio do processo equitativo, explicitado no respectivo n.º 4 após a revisão de 1997.
Dela resulta que o processo, uma vez iniciado, deverá desenvolver-se em termos funcionalmente orientados para o asseguramento de uma tutela jurisdicional efectiva a ambas as partes intervenientes no litígio, proporcionando-lhes meios eficientes de salvaguarda das suas posições e colocando-as, também desse ponto de vista, numa situação de paridade na dialética que protagonizam na defesa dos respectivos interesses (cf. Acórdão n.º 632/99).
Assim compreendido, o princípio do processo equitativo, apesar de não excluir a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação dos diversos regimes adjectivos que integram o ordenamento infraconstitucional, vincula a estruturação de cada procedimento à observância de um conjunto de regras e princípios, em especial do princípio do contraditório e do princípio da igualdade de armas.
O princípio do contraditório, do qual decorre, em primeira linha, a chamada regra da proibição da indefesa, postula que a ambas as partes seja assegurada possibilidade de participar no desenrolar do processo e de influir na dirimição do litígio, em termos de cada uma delas «poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras» (cf. Acórdão nº 444/91, em DR II, de 2 Abril de 1992, p. 3137).
Já o princípio de igualdade de armas exprime uma ideia de paridade ou de equilíbrio entre as partes quanto aos meios processuais mobilizáveis para a defesa das respectivas posições, exigindo que a ambas sejam concedidas «“idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida”» (cf. Acórdão n.º 223/95). Por isso, apesar de não implicar uma identidade formal absoluta de meios, o princípio da igualdade processual reclama que cada uma das partes em litígio «possa expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária» (cf. Acórdão n.º 223/95 e, no mesmo sentido, Rui Medeiros, in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 442).
Uma vez que, por força dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, o legislador se encontra vinculado a modelar cada processo em que se dirima um conflito em termos de ambos os litigantes poderem dispor, em condições de tendencial paridade, da faculdade de exercer uma influência efectiva no modo de conformação da lide, percebe-se que o domínio da fixação do regime das citações e das notificações surja, justamente, como um daqueles em que a liberdade de conformação que em princípio lhe assiste se encontra particularmente condicionada. Condicionada no sentido em que, apesar de a Constituição não impor a adopção de um qualquer específico formalismo para a comunicação dos actos processuais, daqueles princípios decorre que o formalismo escolhido, qualquer que seja, deverá «facultar às partes o conhecimento da existência ou do estado do processo, colocando-as em condições de exercitarem o seu direito de defesa, face às pretensões da contraparte, ou de exercerem os demais direitos de intervenção processual» (cf. Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil” Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2004, p. 837).
Conforme visto já, a norma impugnada integra o regime processual a que se encontra sujeita a fase de verificação e graduação de créditos no âmbito do processo de insolvência, dela resultando que, também no caso de a lista dos créditos reconhecidos ser entregue pelo administrador da insolvência depois de esgotado o prazo legal fixado para esse efeito, o insolvente, ao contrário do que sucede com os credores cujos créditos não hajam obtido reconhecimento ou que tenham sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, não carece de ser notificado dessa entrega.
Trata-se, portanto, de uma hipótese que supõe a confrontação com os princípios do contraditório e da igualdade de armas, não da suficiência do mecanismo escolhido pelo legislador para levar ao conhecimento de certo interveniente processual — no caso, o insolvente — a prática de determinado ato — a apresentação da lista dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência —, mas da ausência pura e simples de qualquer forma de transmissão. De acordo ainda com a solução impugnada, o ato cuja notificação é dispensada, apesar de extemporaneamente praticado, é, no entanto, aquele que desencadeia o início do prazo de 10 dias de que, na qualidade de interessado, o insolvente dispõe para exercer no processo a faculdade de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, invocando a indevida inclusão de todos ou de certos deles e/ou a incorrecção do respectivo montante ou da qualificação que hajam obtido.
Ora, toda a fase de verificação e graduação de créditos é informada — convêm recordá-lo uma vez mais — pela regra segundo a qual o prazo para a prática do acto que se segue é desencadeado a partir do mero esgotamento do prazo que a lei fixa para a prática do acto imediatamente anterior.
Nos casos em que a lista dos créditos reconhecidos é entregue pelo administrador da insolvência depois de esgotado o prazo que a lei para o efeito lhe fixa, tal regra — cujo objectivo é o de tornar o procedimento mais célere e expedito — deixa de poder funcionar: nesta hipótese, vimo-lo também, o termo inicial do prazo de que dispõe o interveniente seguinte na cadeia torna-se independente do termo final do prazo previsto para a prática do acto da responsabilidade do interveniente imediatamente anterior, passando a coincidir com o momento em que este último acto é efectivamente praticado, qualquer que seja o momento em que o tenha sido, por referência àquele em que o deveria ser.
Em hipóteses como esta, a notificação da lista entregue pelo administrador da insolvência surge como a única forma de, através do processo, assegurar o conhecimento pelo insolvente do dies a quo do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos, colocando-o em condições de exercer o seu direito de defesa face às pretensões dos credores reclamantes que considere não deverem proceder. Se tal notificação for dispensada, o insolvente apenas conseguirá inteirar-se do termo inicial do prazo de 10 dias de que dispõe para contestar os créditos pelos quais entenda não dever responder, pelo menos em momento compatível com o aproveitamento de todo ele, se se deslocar diariamente à secretaria judicial para verificar se a lista já foi entregue, e se o fizer ao longo de tantos dias quantos aqueles em que persistir a delonga do administrador da insolvência, face ao que se dispõe no artigo 129.º, n.º 1, do CIRE.
Tal ónus, já em si conflituante com os princípios do contraditório e da proibição da indefesa, torna-se mais problemático ainda em face do efeito cominatório quase pleno que a lei associa à falta de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência: independentemente da maior ou menor latitude consentida pela interpretação do conceito, é seguro que será apenas nos casos de «erro manifesto» que, na falta de impugnação, o juiz deixará de proferir de imediato sentença de verificação e graduação de créditos, limitando-se aí a homologar a lista dos credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e a graduar os créditos reconhecidos em atenção ao que conste dessa lista (artigo 130.º, n.º 3, do CIRE).
Daqui resulta que o desconhecimento do termo inicial do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos não gera apenas a consequência de impedir o insolvente de contraditar a pretensão dos credores reclamantes; por força do efeito cominatório atribuído à falta de impugnação, tal desconhecimento produz ainda o efeito de tornar o património do insolvente automaticamente responsável pela totalidade dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, nos exactos termos em que o tiverem sido, salvo caso de erro manifesto.
Ora, a gravidade do efeito cominatório e preclusivo que a lei impõe ao insolvente não impugnante não pode deixar de reforçar a necessidade de uma certeza prática no conhecimento ou cognoscibilidade do ato que desencadeia o início do prazo dentro do qual poderá ser contestada a existência dos créditos reconhecidos, a exactidão do seu montante e/ou a qualificação que receberam do administrador da insolvência (neste sentido, ainda que a propósito dos efeitos associados à revelia do réu em processo civil, cf. Lopes do Rego, loc. cit., p. 857), tornando, por isso, mais problemática ainda, à luz do princípio do contraditório, a dispensa de notificação — que é o mecanismo processual destinado a dar conhecimento a alguém de um facto (cf. artigo 219.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) — da entrega da lista dos créditos reconhecidos, sempre que a mesma tiver lugar depois de esgotado o prazo previsto para esse efeito.
Ao comprometer determinantemente o exercício pelo insolvente da faculdade de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, a dispensa de notificação consentida pela norma impugnada afecta, em suma, uma projecção nuclear do princípio da proibição da indefesa, que assenta na inadmissibilidade de prolação de qualquer decisão sem que ao sujeito processual pela mesma afectado seja previamente conferida a possibilidade de discutir e contestar a pretensão que nela obtém procedência e se intensifica perante o efeito cominatório e/ou preclusivo associado à inacção processual.
Encontramo-nos, pois, numa zona especialmente sensível à intervenção do legislador ordinário, que obriga a uma ponderação particularmente exigente quando se trate de adoptar mecanismos concretizadores das exigências de simplificação e celeridade do processo, as únicas em que, conforme adiante melhor se verá, poderá à partida basear-se a dispensa de notificação ínsita na norma impugnada.
A tensão que, do ponto de vista do princípio do contraditório, se viu existir entre a norma sob fiscalização e o princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, agrava-se ao confrontarmos a solução impugnada com o princípio da igualdade de armas. E isto porque, se assim se passam as coisas pelo lado do insolvente, o mesmo não sucede já relativamente aos credores cujas pretensões hajam sido preteridas.
Com efeito, a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência é sempre notificada, conforme vimos, aos credores não reconhecidos, bem como àqueles cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, contando-se o prazo de 10 dias de que uns e outros dispõem para exercer a respectiva faculdade de impugnação a partir do terceiro dia útil posterior ao da expedição da carta remetida para aquele efeito.
Ora, sendo manifesto que o insolvente tem um interesse em contestar os créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, no mínimo, idêntico ou equivalente ao interesse que os credores não reconhecidos, ou cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos mais desvantajosos, têm em contraditar a decisão que a tal conduziu, só excepcionais razões poderão justificar a diferença que vimos existir entre os mecanismos processuais àquele e a estes facultados para a defesa das respectivas posições.
Por comprimir o direito ao processo equitativo, tanto na vertente do princípio do contraditório, como na dimensão relativa ao princípio da igualdade de armas, a norma impugnada encontra-se sujeita aos limites que o princípio da proibição do excesso, consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, fixa às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
Conforme salientado na decisão recorrida, o processo de insolvência é um processo de natureza urgente, que se estende a todos os seus incidentes, apensos e recursos (artigo 9.º, n.º 1, do CIRE), opção que concretiza e traduz a preocupação em imprimir celeridade ao procedimento, tornando-o mais flexível e expedito, de modo a assegurar a respectiva eficácia. Sendo esse o único interesse em cuja prossecução poderá residir a dispensa de notificação ao insolvente da lista apresentada pelo administrador da insolvência nos casos em que esta é entregue depois de esgotado o prazo legal para o efeito fixado, o que importa começar por verificar, de acordo com a metódica assente no triplo teste desde há muito seguida na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdão n.º 634/93), é se aquela opção configura, relativamente ao fim visado, uma medida adequada; num segundo momento, impõe-se averiguar se a compressão do princípio do processo equitativo implicada na solução fiscalizada é exigida pela prossecução do fim visado ou, pelo contrário, o legislador poderia ter lançado mão de um outro mecanismo, igualmente eficaz mas menos desvantajoso para o direito atingido; por último, importará determinar se o resultado obtido através dessa limitação é proporcional à carga coactiva que a medida comporta ou se esta se revela, pelo contrário, excessivamente restritiva da posição jusfundamental afectada.
Seguindo de perto a formulação adotada no Acórdão n.º 941/17, pode dizer-se que existirá violação do princípio da proibição do excesso se a medida em análise for considerada, desde logo, inadequada à finalidade que prossegue, conclusão que se imporá perante a convicção clara de que a mesma é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente a esse fim.
Ora, é justamente o que sucede no caso em presença.
Tendo presente que, por força da própria lei, a lista entregue pelo administrador da insolvência tem sempre que ser notificada aos credores não reconhecidos, aos credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos apesar de não reclamados e aos credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, é manifesto que o processo nunca se tornará, nem menos célere, nem menos expedito, se a mesma notificação for dirigida também ao próprio insolvente. Não se trata, assim, de introduzir na sequência de actos que integra o procedimento um qualquer dever de comunicação que não se encontre previsto já no regime que disciplina o processo de insolvência, mas tão-somente de incluir o próprio insolvente no universo daqueles que são destinatários obrigatórios dela.
Por não originar qualquer ganho, efectivo ou potencial, na celeridade do processo, a dispensa de notificação cuja constitucionalidade vem questionada revela-se, pois, em face do próprio regime constante do CIRE, uma medida irrelevante ou supérflua, e por isso inadequada, para a consecução daquele fim. Para além de dificultar de modo excessivo e intolerável a intervenção processual facultada ao insolvente, tal dispensa consubstancia, em suma, um meio imprestável ou impróprio do ponto de vista da finalidade que através dele é prosseguida, envolvendo, desde logo por essa razão, uma compressão dos princípios do contraditório e da igualdade de armas incompatível com o disposto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.”
[5] Cfr. Ac. RP de 28/10/2021, proc. 2422/20.1T8AVR-A.P1, in dgsi.pt.
[6] Ac. STJ de 6/10/2021, proc. 209/18.0T8ACB-B.C1.S1, in dgsi.pt.
[7] V. Ac. RP de 15/2/2011, proc. 3083/10.1T2SNT-C.L1.7, supra referido.
[8] Cfr. Ac. do STJ de 6/10/2021, proc. 209/18.0T8ACB-B.C1.S1, in dgsi, onde se decidiu “… esta problemática constitui uma questão nova que não foi suscitada nem conhecida em primeiro grau e por isso não o poderia ser em sede de recurso de apelação”.
[9] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5ª Edição, Vol. I, 2019 , Almedina, pág 1237
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 593.