Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1871/17.7T8VNG.1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO DOS CREDORES
LEGITIMIDADE PARA INSTAURAR A ACÇÃO PARA COBRANÇA DO CRÉDITO
Nº do Documento: RP202101261871/17.7T8VNG.1.P1
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Durante o processo de insolvência, só o administrador da insolvência tem legitimidade para propor e fazer seguir as ações, inclusive de natureza executiva, que tenham em vista indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1871/17.7T8VNG.1.P1
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
1- Declarada, no dia 06/03/2017, a insolvência da sociedade, B… – Unipessoal, Ldª, veio a credora, C…, S.A., requerer que tal insolvência seja qualificada como culposa, o que sucedeu, por sentença proferida no dia 28/02/2019, na qual, para além do mais, se decidiu condenar a afetada, D…, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos incluídos na lista definitiva de credores (apenso B).
2- Baseando-se nesta sentença, a aludida credora instaurou, no dia 16/07/2019, por apenso ao referido processo de insolvência, execução para cobrança coerciva da quantia de 93.233,64€.
3- Desencadeados os procedimentos tendentes à penhora de bens, foi, depois, no dia 14/05/2020, proferido despacho que rejeitou a presente ação executiva, determinando-se ainda o levantamento das penhoras eventualmente realizadas.
Na base desta decisão está a consideração de que a dita credora não tem legitimidade para instaurar esta execução, porque só a tem o administrador da massa insolvente, e, ainda que assim não fosse e “se pudesse defender que a exequente, com o encerramento do processo de insolvência, passou a ter legitimidade activa para executar o direito de crédito que invoca”, sempre a presente execução seria inviável na instância recorrida por a mesma não ser competente para o efeito.
4- Inconformada com esta decisão, dela recorre a exequente, que termina as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente Recurso interposto do despacho proferido a 14.05.2020, que rejeitou a ação executiva, ficando prejudicada a apreciação dos requerimentos apresentados, determinando-se, ainda, o levantamento das penhoras eventualmente realizadas. Todavia, sem qualquer razão.
D.1. DA LEGITIMIDADE ATIVA DA RECORRENTE
2. O art. 82.º, n.º 3, al. b) do CIRE, invocado pelo Dig. Tribunal “a quo”, não tem o sentido que esse Tribunal lhe deu.
3. Durante a pendência do processo de insolvência, a substituição processual da sociedade insolvente pelo administrador da insolvência só opera relativamente às ações sociais previstas no artigo 82º, n.ºs 3 e 4, do CIRE e naquelas em que se apreciem questões de natureza patrimonial relativas a bens integrantes da massa insolvente, cujo resultado possa influenciar o valor da massa (art. 85.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo compêndio legal).
4. Resulta do referido normativo que se concentrou na instância insolvencial a apreciação das atuações dos gerentes ou administradores, de facto ou de direito, e dos fundadores, membro dos órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, perante a insolvente (n.º 3, al. a), como corolário da perda de poder de disposição e de administração pela insolvente, prevista no art. 81.º, n.º 1, do CIRE) e perante os credores sociais (neste caso, como consequência direta da exclusividade da instância insolvencial para a reclamação dos créditos, ao abrigo do art. 82.º, n.º 3, als. b) e c)).
5. Estipula-se, unicamente, que na pendência do processo de insolvência, quem tem legitimidade, ao abrigo do direito societário, para propor as ações previstas no art. 82º, n.º 3 do CIRE, encontra-se privado de legitimidade ativa para propor e fazer seguir ação social de responsabilidade contra os gerentes ou administradores de facto ou de direito, afastando-se a aplicação do art. 75.º, n.º 1, do CSC, segundo o qual “a ação de responsabilidade proposta pela sociedade depende de deliberação dos sócios, tomada por simples maioria”.
6. Todavia, estamos aqui perante a instauração de um processo executivo que visa o pagamento coercivo de uma indemnização específica em que a gerente da sociedade insolvente foi condenada.
7. A execução não se destina “à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência” e não são aqui apreciadas quaisquer questões de natureza patrimonial, já tendo as mesmas sido decididas em sede declarativa, de Reclamação de Créditos e de Qualificação da Insolvência.
8. Também não estamos perante uma ação relativa a bens que integram a massa insolvente, pois uma coisa é a massa insolvente (na aceção do art. 46.º do CIRE) e outra, bem diferente, é o património da afetada D… (na aceção do art. 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE).
9. O administrador da insolvência só representa o falido relativamente a bens integrantes da massa insolvente, com a finalidade de proteger os credores concursais.
10. Todavia, a indemnização devida aos credores não integra a massa insolvente.
11. O montante em causa no presente processo executivo, que surgiu por via da condenação da gerente da insolvente ao abrigo do disposto no art. 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, sendo proveniente de indemnização por responsabilidade pessoal ou própria da mencionada Sra. D…, não é bem da insolvente à data da declaração de insolvência, nem é bem pela insolvente adquirido na pendência do processo.
12. Além disso, como resulta daquele art. 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, a responsabilidade legal dos afetados é estabelecida em benefício dos credores da insolvente.
13. Assim, tendo tal montante indemnizatório destinatários específicos assinalados, também não é o mesmo integrável na massa insolvente por força da menção “salvo disposição em contrário” prevista no art. 46.º, n.º 1, do CIRE.
14. A recuperação de créditos não satisfeitos não é executada no âmbito de uma ação coletiva, mas sim por iniciativas individuais de cada um dos credores.
15. Uma vez que o processo de insolvência foi encerrado, a apelante tem legitimidade ativa para executar o direito que lhe foi reconhecido na decisão do incidente de qualificação.
16. Resulta, assim, que o valor indemnizatório sub judice nunca integrou a massa insolvente, tendo a Recorrente legitimidade ativa para, por sua própria iniciativa individual, instaurar o presente processo de execução de sentença, o que se requer seja superiormente declarado.
D.2. DA COMPETÊNCIA MATERIAL DO JUÍZO DE COMÉRCIO
17. Dispõe a Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei de Organização do Sistema Judiciário - LOSJ), no seu art. 128.º, n.º 1, que compete aos juízos de comércio preparar e julgar os processos de insolvência.
18. Ao abrigo do seu n.º 3, essa competência abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
19. Adicionalmente, estabelece o art. 129.º, n.º 1, da LOSJ que compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no CPC, mais dispondo o seu n.º 2 que estão excluídos dessa competência os processos atribuídos aos juízos de comércio.
20. Em face do disposto no art. 128.º da LOSJ, são os Juízos de Comércio, e não os Juízos de Execução, os materialmente competentes para executarem as decisões proferidas no âmbito das ações que neles correram termos.
21. Do exposto se conclui dever ser declarado materialmente competente para a execução em causa o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 5, o que desde já se requer e confiadamente se aguarda.
D.3. DA (NÃO) ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
22. A credora “C1…, S.A.” é parte legítima na presente ação executiva e o Tribunal “a quo” é o materialmente competente.
23. Não obstante, ainda que assim não fosse (o que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio), sempre se diria que cessa o disposto no mencionado n.º 1 do art. 278.º do CPC “quando o processo haja de ser remetido para outro tribunal e quando a falta ou a irregularidade tenha sido sanada” (cfr. n.º 2 do mesmo preceito).
24. Em primeiro lugar, e nesta sede subsidiária, sempre passaria a ora Recorrente, com o encerramento do processo de insolvência, a ter legitimidade ativa para executar o direito de crédito que invoca, pelo que sempre se encontraria a (alegada) irregularidade sanada.
25. Em segundo lugar, poder-se-ia igualmente obstar ao efeito típico da absolvição da instância através da remessa do processo (permitindo-se que a execução continuasse, embora noutro Tribunal).
26. Afirma ainda o art. 278.º, n.º 3, do CPC que as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º.
27. Mais. Ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
28. A verificação da possível relevância de uma exceção dilatória (caso da ilegitimidade) não impede que seja proferida uma decisão de mérito, nos termos do art. 278.º, n.º 3, do CPC, se esta se mostrar favorável à parte cuja proteção é visada pela aludida exceção.
29. In casu, ainda que se verificasse alguma exceção dilatória (de incompetência material – portanto, absoluta – e/ou de ilegitimidade da Recorrente – cfr. arts. 96.º, al. a) e 577.º, als. a) e e) do CPC), o que não se concede e apenas se avança numa hipótese subsidiária, sempre deveria o Dig. Tribunal admitir a ação executiva.
30. Desde logo, porque deve o pedido da Recorrente ser considerado procedente (reclama a Exequente a quantia aproximada de €93,233,64; quantia esta reconhecida por sentença transitada em julgado proferida na ação declarativa que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, J2, sob o n.º 4088/13.6TBGDM; montante em que a afetada D… foi condenada, por sentença datada de 28.02.2019, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, J1, por referência ao montante dos créditos não satisfeitos, incluídos na lista definitiva de credores do Apenso B – Reclamação de Créditos.
31. Encontra-se a Recorrente, assim, munida de título executivo suficiente e bastante para a instauração da execução.
32. Adicionalmente, porque a Recorrente nunca poderia obter uma tutela jurisdicional mais favorável do que a assegurada pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, juízo este onde já decorreram o processo de insolvência de pessoa coletiva (Proc. 1871/17.7T8VNG), o Incidente de Qualificação da Insolvência (Proc. 1871/17.7T8VNG-A) e o Incidente de Reclamação de Créditos (Proc. 1871/17.7T8VNG-B).
33. O despacho recorrido (proferido quase 1 ano depois da apresentação do Requerimento Executivo e notificado à Exequente cerca de meio ano após a sua prolação!!!) não se coaduna com o dever de gestão processual a que o Dig. Tribunal “a quo” se encontra vinculado (cfr. arts. 6.º e 590.º do CPC).
34. Entendimento contrário colidiria com o disposto no art. 3.º, n.º 3, do CPC e a proibição de decisões-surpresa, que visa atingir uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
35. O despacho recorrido põe em causa o direito fundamental da Recorrente de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva (cfr. art. 20.º da CRP).
36. Razão esta pela qual deve ser revogado e substituído por outro que considere a (alegada) falta/irregularidade sanada, decidindo-se (eventualmente) o mérito da causa.
37. Em último caso, e a título subsidiário, sempre deverá o processo executivo ser remetido ao Tribunal considerado competente.
38.Termos em que, o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes exposto, por ter violado por erro de interpretação e/ou aplicação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais (designadamente, os arts. 46.º, n.º 1, 81.º, n.º 1, 82.º, n.º 3, als. a), b) e c), 85.º, n.ºs 1 e 3, 130.º, n.º 3, 189.º, n.º 2, al. e), 230.º, n.º 1, al. d), 232.º, 233.º, n.º 1, als. b), c) e d) do CIRE, 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 2, 10.º, n.º 5, 96.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. d), n.ºs 2 e 3, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, als. a) e e), 590.º, 703.º, n.º 1, al. a), 704.º, 726.º, n.º 2, al. b), 734.º, 855.º, n.º 2, do CPC, 75.º, n.º 1 do CSC, 20.º da CRP e 128.º, n.º 3 e 129.º da LOSJ), tudo com o consequente prosseguimento do andamento da presente ação executiva”.
5- Não consta que tivesse havido resposta.
6- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
A- Definição do seu objeto
O objeto dos recursos é, em regra e salvo questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC)].
Seguindo esta regra, cinge-se este recurso a saber se:
1) A Apelante tem legitimidade para instaurar esta execução;
2) A instância recorrida é competente para a execução;
3) Em qualquer dos casos, qual a consequência jurídica e processual.
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B- Fundamentação de facto
1- Na instância recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
a) A 28 de Fevereiro de 2019 foi proferida sentença, transitada em julgado, que qualificou a insolvência da devedora “B… – Unipessoal, Ldª” como culposa, declarou afetada por tal qualificação, D…, decretou a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 3 (três) anos, determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela mesma e condenou-a a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, bem como a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos incluídos na lista definitiva de credores (apenso B);
b) A exequente reclama o pagamento do crédito reclamado no montante de 79.758,31 euros, acrescido de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, incluído na lista de credores reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência – apenso B;
c) A ação executiva deu entrada em juízo a 16 de Julho de 2019.
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2- Resulta ainda do processo de insolvência que o mesmo foi encerrado, por despacho proferido no dia 11 de maio de 2020, devido à insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da mesma massa (fls. 200).
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C- Fundamentação jurídica
No presente recurso está em causa, em primeiro lugar, a questão de saber se a exequente tem legitimidade para a propositura da presente ação; ou seja, para exigir judicialmente a cobrança coerciva do valor que lhe foi reconhecido na sentença de reclamação de créditos, que a executada foi condenada a pagar-lhe em sede de incidente de qualificação da insolvência da sociedade, B…, Unipessoal, Ldª, da qual a mesma foi gerente.
Na decisão recorrida, entendeu-se que não. Que só o administrador da insolvência tem legitimidade para o efeito, posto que a lei assim o determina. E isso por duas razões fundamentais. Por um lado, devido ao “princípio par conditio creditorum – igualdade dos credores perante o devedor, impedindo que algum deles possa obter uma satisfação mais rápida em prejuízo dos demais.
Por outro lado, o valor indemnizatório deverá ser sempre integrado na massa insolvente e distribuído por todos os credores, na respectiva proporção, cujos créditos, reconhecidos, não hajam obtido satisfação”.
A exequente, todavia, defende o contrário; isto é, defende que tem legitimidade para a propositura desta ação, uma vez que na mesma se “visa o pagamento coercivo de uma indemnização específica em que a gerente da sociedade insolvente foi condenada” e não a “indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência”.
Ora, não é este o nosso entendimento.
O artigo 82.º n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), é bem claro a este propósito. “Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente”.
Não se refere, em parte alguma, que as ações executivas estão fora do âmbito deste normativo. Nem fazia sentido que referisse.
Efetivamente, o processo de insolvência, como se refere no artigo 1.º, n.º 1, do CIRE, é um processo de execução universal que está todo ele imbuído da ideia de que os credores devem ver satisfeitos os seus créditos sobre a massa insolvente em condições de igualdade; isto, claro está, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas. Como se refere no preâmbulo deste diploma, no processo de insolvência deve ser dada primazia à “vontade dos credores, enquanto titulares do principal interesse que o direito concursal visa acautelar: o pagamento dos respectivos créditos, em condições de igualdade quanto ao prejuízo decorrente de o património do devedor não ser, à partida e na generalidade dos casos, suficiente para satisfazer os seus direitos de forma integral”.
E esse princípio está consagrado expressamente em diversas normas: na fase do pagamento aos credores (artigo 180.º, n.º 4), na elaboração do plano de insolvência (artigo 194.º) e na interdição de quaisquer execuções durante o período de cessão de créditos (artigo 242.º). Mas, não só. Também é ele que justifica, por exemplo, a “suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente”, bem como a interdição de instauração ou “prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência” (artigo 88.º do CIRE).
Neste contexto, não faria qualquer sentido que, no decurso do processo de insolvência, algum dos credores pudesse ser pago antes dos demais ou mesmo em condições mais vantajosas, sem justificação objetiva.
Nem mesmo, como sucede na situação presente, quando os credores, no incidente de qualificação da insolvência, vejam reconhecido o seu direito a serem indemnizados pelo prejuízo que lhes causou algum dos administradores da insolvente, no exercício dessas funções; melhor dito, na criação ou agravamento culposo da situação de insolvência que originou a insatisfação dos seus créditos. Mesmo nessa hipótese, os valores cobrados devem ser distribuídos por todos os titulares de créditos sobre a massa insolvente (créditos garantidos, privilegiados, comuns ou subordinados), na medida em que ficaram por satisfazer e de acordo com a ordem reconhecida na sentença de verificação e graduação de créditos. Como refere, Maria do Rosário Epifânio[2], “vários argumentos poderão sustentar esta tese. Desde logo, estamos perante uma responsabilidade insolvencial, destinada a satisfazer os interesses dos credores. Depois, um argumento de maioria de razão, a partir das regras concursais que são aplicadas à responsabilidade societária, prevista no art. 82.º”.
É que a ação de responsabilidade para com os credores prevista neste preceito (artigo 82.º do CIRE) “aproveita a todos eles por igual, o que marca uma diferença em relação ao art. 78 [do CSC], perante o qual cada credor age, em princípio, individualmente, no seu exclusivo interesse e benefício”[3]/[4].
Nessa medida, “o pagamento direto a cada credor na pendência do processo de insolvência iria permitir que surgissem violações ao princípio da igualdade ou à graduação de créditos realizada. As indemnizações devem, por isso, integrar primeiro a massa insolvente e, só depois, servirem para pagar aos credores”[5].
E isso também no âmbito do processo executivo. De outra forma, poder-se-iam diferenciar os credores, quando, como vimos, o objetivo do processo de insolvência é exatamente o contrário.
Daí que só o administrador da insolvência tenha legitimidade para instaurar aquele tipo de ações (incluindo as executivas, portanto), na pendência do processo de insolvência.
É verdade que, como refere a exequente, não estamos perante uma ação em que estejam em causa bens integrantes da massa insolvente, mas, antes, o património da afetada com a declaração da insolvência. Mas o objetivo continua a ser o mesmo; ou seja, a satisfação dos direitos de crédito reclamados e reconhecidos no processo de insolvência, no qual continua a valer o mesmo principio, que é o da igualdade nos termos já referenciados.
Para assegurar a realização desse princípio, pois, deva seguir-se a regra transcrita, nos termos da qual, durante o processo de insolvência, só o administrador da insolvência tem legitimidade para propor e fazer seguir as ações, inclusive de natureza executiva, que tenham em vista indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência.
O que, aplicado à situação dos autos, determina a ilegitimidade da exequente para a propositura desta ação, uma vez que, nessa altura (16/07/2019), ainda estava em curso o processo de insolvência.
É verdade que depois, no dia 11/05/2020, esse processo veio a ser encerrado, por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da mesma massa. Mas, tanto a legitimidade como os demais pressupostos processuais, devem ser aferidos com referência à data da propositura da ação.
Ora, nessa altura, a exequente não tinha o poder de dispor desta relação processual. Apenas, como vimos, o administrador da massa insolvente. Nessa medida, o aludido pressuposto estava em falta e não podia, nem pode ser sanado. A ilegitimidade singular, com efeito, por regra, não pode ser sanada[6]. E, neste caso, é manifesto que não o pode ser, posto que se trata de um direito processual que a exequente, à data da propositura da presente ação, não tinha na sua esfera jurídica, nem lhe pode ser reconhecido retroativamente.
E não se diga, como faz a exequente, que daqui resulta ofensa ao seu direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, da CRP. Na verdade, a exequente tem direito a esse acesso e tutela, mas por uma outra via, de resto, em tudo semelhante aos demais credores.
Daí que não haja essa ofensa, nem motivos para julgar de modo diferente do ajuizado na decisão recorrida. Ou seja, em resumo, essa decisão é de manter quanto ao aspeto que temos estado a analisar, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas neste recurso.
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III – DECISÃO
Pelas razões expostas, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se o decidido no despacho recorrido.
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- Em função deste resultado, as custas da ação e deste recurso serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 26 de janeiro de 2021
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
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[1] Os sublinhados são da nossa responsabilidade.
[2] Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, Almedina, pág.144.
[3] Manuel A. Carneiro da Frada - A responsabilidade dos administradores na insolvência, consultável em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina.
[4] Como refere, Fábio da Silva Veiga, in Reorientação do princípio par conditio creditorum no processo de insolvência português, Cadernos de Dereito Actual Nº 5 (2017), pp.195-207 ·ISSN 2340-860X Vol. Extraordinario, consultável em http://www.cadernosdedereitoactual.es, “Enquanto o regime jurídico-societário confere legitimidade ativa a vários sujeitos — sociedade (art. 75.º do Código das Sociedades Comerciais - CSC), sócios que detenham as percentagens de capital previstas na lei (art. 77.º, n.º 1, do CSC), credores (art. 78.º, n.º 2, do CSC), sócios minoritários, por intermédio da acção ut singuli (art. 77.º do CSC) –, o CIRE atribui legitimidade exclusiva ao Administrador da Insolvência (adiante, AI) para, durante o processo de insolvência, propor ou fazer seguir a ação social de responsabilidade que legalmente couber aos interessados. Diante disso, verifica-se, que na pendência do processo de insolvência, sociedade, sócios e credores da sociedade encontram-se privados de legitimidade ativa para propor ou fazer seguir ação social de responsabilidade contra os administradores de facto ou de direito”.
[5] Alexandre de Soveral Martins, citado no Ac. RP de 27/01/2020, Processo n.º 650/14.8TYVNG.1.P1, consultável em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, Ac. RC de 16/12/2015, Processo n.º 1430/13.3TBFIG-C.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág.32.