Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
661/19.7JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE DE COABITAÇÃO ENTRE ARGUIDO E VÍTIMA
Nº do Documento: RP20230111661/19.7JAPRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – A circunstância da coabitação entre agente e vítima como agravante do crime de abuso sexual de criança, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) não é de funcionamento automático.
II – Tal agravação supõe uma relação de autoridade do agente ou de dependência ou confiança da vítima.
III – Essa relação não se verifica no caso vertente, em que o arguido e a vítima residiam no mesmo lar ambos em regime de acolhimento residencial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 661/19.7JAPRT.P1


Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto


O arguido AA vinha acusado da prática de dois crimes de Violação, p. e p. nos artigos 164.º, n.º 1 a), agravado pelo artigo 177.º, n.º1 b) e n.º 7, ambos do Código Penal, relativamente ao ofendido BB; quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. nos artigos 171.º, n.º 3 a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1 b) e 7, ambos do Código Penal, relativamente ao ofendido CC; um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º e 171.º, n.º2 e n.º 5, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1 b) e 7, todos do Código Penal, relativamente ao ofendido CC; um crime de violação, e p. no artigo 164.º, n.º 1 a), agravado pelo artigo 177.º, n.º 1 b) e 7, ambos do Código Penal, relativamente ao ofendido DD; e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos artigos 143.º, n.º1, 145.º, n.º 1, a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, c), todos do Código Penal, relativamente ao ofendido DD;
Realizado o julgamento e respectiva produção de prova foi o arguido condenado em concurso real pela prática de dois crimes de violação relativamente ao ofendido BB, nas penas parcelares de 2 anos e de 2 anos e 4 meses de prisão, improcedendo a agravação prevista na alínea b) do n.º1 do artigo 177.º do Código Penal; pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, relativamente ao ofendido CC, na pena de parcelar de 10 meses de prisão, improcedendo as agravantes da alínea b) do n.º 1 e nº 7 do artigo 177.º do Código Penal, por via da convolação jurídica da prática dos quatro crimes de abuso sexual de crianças pelo quais vinha acusado; pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, relativamente ao ofendido CC, na pena parcelar de 12 meses de prisão; e em cúmulo jurídico aplicar-lhe a pena única de 4 anos de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, mediante regime de prova aí elencado;
Absolver o arguido da prática de um crime de violação, p.e p. no artigo 164.º, n.º 1 a), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1 b) e 7 , ambos do Código Pena relativamente ao ofendido DD, assim como absolver o arguido do crime de ofensa à integridade física agravada praticado contra o mesmo ofendido.
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Inconformados com esta decisão, dela vieram interpor recurso o MP e a Assistente, alegando em síntese:

- O Ministério Público impugna a matéria de facto relativa à absolvição, invocando o vício do erro notório na apreciação da prova, e a improcedência das agravações dos crimes praticados pelo arguido relativamente aos ofendidos BB e CC.
Quanto à impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada na parte absolutória do acórdão recorrido, entende o recorrente que deveriam ter sido dados como provados os factos dados como não provados no acórdão recorrido e elencados nas alíneas h), i ), l), m) o ), p), q).
Segundo o recorrente, é esta a prova que impunha uma decisão diversa em termos de fixação da matéria de facto dada como provada e não provada:
-o teor das declarações do menor DD para memória futura, nas quais o mesmo consegue localizar os factos no tempo e espaço, descrever o modo de execução da conduta de que foi alvo e qual o seu autor;
- o depoimento da testemunha EE, prima do ofendido DD, quando refere que se apercebeu que o seu primo tinha medo do arguido; que questionando sobre o motivo desse medo o mesmo terá dito que o arguido lhe foi “ao cuzinho”; que contou o que se passou ao diretor do colégio; que o mesmo sonha como AA e diz o seu nome de noite;
- o depoimento da testemunha FF, irmã do ofendido DD, que ouviu directamente de um amigo do seu irmão e da gravação feita pela sua prima o que tinha acontecido com ele; e verificou que anda a ser acompanhado por psicologia e psiquiatria;
-o depoimento da testemunha GG, mãe do ofendido DD, que confirmou ter ouvido o seu filho dizer que o arguido lhe terá “ido ao cuzinho”.
-o teor da perícia médico-legal de psicologia realizada ao ofendido, nomeadamente, que « o menor além de outros acontecimentos de circunstâncias sexualmente abusivas relatou os acontecimentos de que tinha sido vítima por parte do arguido AA ainda que o mesmo expresse uma narrativa parca, sem detalhe ou ajustado enquadramento espácio-temporal, o que tal não deve servir a conclusão de que o depoimento não terá ocorrido: não obstante as limitações de DD referidas na perícia em apreço, tal não deve servir a conclusão de que o evento não terá ocorrido”.
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Na impugnação de direito, considera que o tribunal a quo não teve em conta a verificação da agravante prevista na alínea b) do n. º1 do artigo 177.º do Código Penal, que dispõe que as penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas se a vítima se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela, ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento de tal relação.
Entende o recorrente M.ºP.º que o ofendido DD e as restantes vitimas, viviam numa relação de coabitação, dado que todos eles se encontravam institucionalizados na Fundação ..., partilhando todos eles os mesmos espaços, com à vontade e livremente, o que facilitou a prática criminosa, aproveitando-se o arguido dessa proximidade, invocando o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Março de 2022.
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A Assistente GG, em representação do seu filho menor DD, impugna a matéria de facto nos mesmos termos que o fez o MP.
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Da Decisão recorrida, na parte que aqui nos interessa, resulta o seguinte:

Factos dados como provados pelo Tribunal:
1. O arguido AA nasceu a .../.../2002 e residiu, em regime de acolhimento residencial, na Fundação ..., com instalações sitas na Rua ..., concelho ..., desde meados de 2008 até 18-02-2020, data em que ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva no âmbito dos presentes autos. 2. A referida medida cessou os seus efeitos em 13-04-2020, data em que o arguido passou a integrar o agregado do seu progenitor.
3. O ofendido BB nasceu a .../.../2005 e, desde 22/08/2013, reside, também naquele mesmo regime de acolhimento, na Fundação ..., a quem compete a respetiva representação legal.
4. Por sua vez, o ofendido DD, nascido a .../.../2010, residiu igualmente sob o regime de acolhimento residencial na referida instituição, entre o primeiro trimestre de 2018 e 29/08/2019, data em que foi transferido para a ....
5. Pelo menos desde 03-12-2020, passou o menor DD a residir com a sua mãe, GG, a quem compete a respetiva representação legal, no Bairro ..., ..., em ....
6. O ofendido CC, nascido a .../.../2008, reside em regime de acolhimento residencial na mesma Fundação ..., desde 14/09/2017, a quem compete a respetiva representação legal.
7. Em data não concretamente apurada do mês de janeiro de 2019, durante a noite, no interior das instalações da Casa de Acolhimento ..., o arguido dirigiu-se junto do ofendido BB, à data com 13 anos de idade, que se encontrava ao fundo de um corredor, deitado sobre um colchão que ali havia colocado diretamente no chão.
8. Aí chegado, o arguido deitou-se naquele mesmo colchão, ao lado do ofendido BB e ordenou ao ofendido BB que retirasse as calças e cuecas e se deitasse no colchão de barriga para baixo, afirmando que, caso a isso se opusesse, o pisava e o agredia com murros no corpo, pelo que, este, amedrontado, acabou por obedecer.
9. De imediato, o arguido despiu totalmente as suas calças e cuecas, colocou-se por trás e em cima do ofendido, de frente para as suas costas e, aproveitando o seu ascendente de força física, agarrou-lhe os braços com as suas mãos, manietando o ofendido BB e impedindo que este se conseguisse libertar, apesar dos seus esforços nesse sentido.
10. Ato contínuo, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus do ofendido BB, contra a vontade deste, e apesar de este se debater fisicamente para se libertar, o arguido efetuou, com a zona pélvica, movimentos contínuos de trás e para a frente, e manteve coito anal como mesmo, desconsiderando os pedidos do ofendido BB para o libertar e parar.
11. Em dia não concretamente apurado do mês de Fevereiro de 2019, entre as 12h00 horas e as 14h00 horas, o arguido, aproveitando a ausência do monitor da instituição Fundação ... que tinha ido buscar o almoço, dirigiu-se ao campo de futebol daquela instituição onde estava o ofendido BB, sozinho, a jogar futebol.
12. Uma vez nesse local, o arguido mandou o ofendido BB dirigir-se para uma zona recatada do parque e após confirmar que mais ninguém ali se encontrava, baixou as calças e cuecas do ofendido, despindo-o da cintura para baixo e, com o uso de força física, encostou-o à parede, colocando-se atrás deste, de frente para as suas costas.
13. Em seguida, o arguido baixou também as suas calças e cuecas abaixo da zona dos joelhos e introduziu o seu pénis erecto no ânus do ofendido, contra a vontade deste, efetuando, com a zona pélvica, movimentos contínuos de trás para a frente, e manteve coito anal com o mesmo, enquanto exercia força sobre o ofendido de modo a impedi-lo de se libertar,
14. Em datas não concretamente apuradas, no período compreendido entre setembro de 2018 e 6 de junho de 2019, o arguido, num número não inferior a quatro e não superior a seis ocasiões diferidas no tempo, sentou-se num sofá, na Casa de Acolhimento ..., e chamou o ofendido CC, à data com dez anos de idade, para que se sentasse ao seu lado, o que este fez.
15. Nessas circunstâncias, o arguido colocou as suas mãos nas nádegas do ofendido CC, apalpando-as sobre as calças que aquele trazia vestidas.
16. Sendo que em datas não concretamente apuradas, mas também ocorridas entre Setembro de 2018 e 6 de Junho de 2019, nas demais circunstâncias referidas em 14 e 15, supra e em algumas dessas ocasiões o arguido pediu ao ofendido CC para lhe tocar e mexer no seu pénis e também lhe chegou a pedir colocar o seu pénis no interior da boca do ofendido, o que este recusou.
17. Sabia o arguido que ao manter relações sexuais de coito anal com o ofendido BB, cuja idade conhecia, através do uso de violência, força física e ameaças à sua integridade física, o fazia contra a vontade deste, impedindo-o de fugir e de resistir, causando-lhe dores, medo e desconforto, sabendo que violava a liberdade e a autodeterminação sexual do mesmo, aproveitando a circunstância de coabitarem no mesmo espaço para concretizar os atos sexuais, no interior do espaço residencial de ambos, não obstante estar ciente da idade, imaturidade e inexperiência sexual do ofendido, e de que o fazia contra a sua vontade, tendo perfeita consciência que os atos que praticou punham em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da personalidade do ofendido BB, designadamente na esfera sexual, o que quis.
18. Ao tocar e apalpar as nádegas do ofendido CC, cuja idade conhecia, e ao pedir que este lhe mexesse no pénis, o arguido atuou com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais, bem sabendo que a idade daquele não lhe permitia autodeterminar-se sexualmente, agindo com desconsideração pela autodeterminação sexual do ofendido, o que quis, bem sabendo que os atos que pretendia praticar sem o ter logrado dada a recusa do ofendido, punham em causa do desenvolvimento integral da sua personalidade, designadamente na esfera sexual, o que quis.
19. O arguido agiu com intenção de manter relações sexuais com CC, concretamente coito oral, apesar de conhecer a idade deste e bem sabendo que o mesmo não tinha capacidade para avaliar o sentido desse ato e que tal atentava contra a sua autodeterminação sexual, visando o arguido, com tal conduta, a satisfação dos seus impulsos sexuais, o que não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade.
20. O arguido agiu em todas essas ocasiões de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
Com relevo, referimos aqui também os factos provados, tendo por referência o pedido civil formulado pelo ofendido/ assistente DD
1. O demandante é uma criança que se encontra constantemente triste, em baixo, deprimida e que evita contactos sociais com outras pessoas.
2. As (outras) agressões sexuais e físicas de que foi vítima provocaram-lhe transtornos na sua personalidade.
3. Necessita de apoio psicológico e psiquiátrico, sendo que se encontra a ser acompanhado no Centro de Saúde da sua área de residência e bem assim acompanhado no Hospital ....
4. É igualmente acompanhado por psicólogas e técnicas da ACIP-....
5. Encontra-se medicado, tomando 0,5 mg de Rispedridona diariamente.
6. Padece de perturbação de desenvolvimento intelectual, com impacto em termos de linguagem expressiva, compreensiva e aprendizagem.
7. Às quais acrescem dificuldades de gestão emocional, com externalização desadequada.
8. O seu QI verbal, de realização e de escala completa foram classificados como ‘Muito Inferior’.
9. Tem diagnosticadas dificuldades ao nível da expressão e regulação de afectos em adequar as mesmas às experiências vivenciadas.
10. Padece de baixa capacidade de regulação de impulsos e de diminuta tolerância à frustração.
11. As (outras/demais) agressões de que foi vítima o demandante são do conhecimento dos demais que habitam nas redondezas da sua residência.
12. As crianças da idade do demandante, fruto da crueldade provocada pela imaturidade derivada da tenra idade, referem ao demandante que “já lhe foram ao cú” e que o demandante “tem o cú furado”
13. Tais circunstâncias provocam profunda tristeza e humilhação ao demandante, sendo que este, quando tais episódios se sucedem, chega a casa a chorar, refugiando-se no seu quarto, apenas contando posteriormente o que se passou.
14. O demandante sente vergonha de si próprio por força das (outras/demais) agressões sexuais que sofreu, não obstante tais actos terem sido praticados contra a sua vontade.
15. Por outro lado, o demandante sofrerá sempre sequelas nefastas do ponto de vista do seu desenvolvimento sexual, encontrando dificuldades de relacionamento e de exploração desse lado da sua vida.
Apurou-se também que O ofendido DD
16. Apresenta dificuldades de concentação e de atenção.
17. Apresenta ainda limitações nos recurso cognitivos e funcionamento psicológico para aludir a experiências autobiográficas.
18. Tem limitações das suas capacidades mnésicas de retenção, sendo como tal a evocação dos conhecimentos passados condicionados.
19. A sua narrativa é parca e sem detalhe, não consegue discernir as memórias e não é capaz de prestar declarações de forma consistente.

Foram dados como não provados, entre o mais, os seguintes factos:
h. Em data e hora não concretamente apurada, entre Setembro de 2018 e Maio de 2019, o arguido dirigiu-se ao campo de futebol existente nas instalações ... onde se encontrava o ofendido DD, nascido em .../.../2010, menor de 10 anos na data da prática dos factos.
i. O arguido aproximou-se, então, do ofendido DD e pediu-lhe que o acompanhasse até ao parque existente no interior daquela instituição, o que o mesmo fez.
j. Uma vez aí chegados, numa zona mais recatada, o arguido, após confirmar que mais ninguém ali se encontrava, mandou o ofendido DD baixar as calças e cuecas, o que este fez e, fazendo uso do seu ascendente de força física, agarrou-o com as suas mãos, manietando-o, de modo a impossibilitar que este se libertasse e pudesse fugir daquele espaço.
k. Seguidamente, o arguido baixou, também, as suas calças e cuecas abaixo da zona dos joelhos e colocou-se por detrás do ofendido DD, de frente para as suas costas.
l. De imediato, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus do ofendido DD, contra a vontade deste, e manteve coito anal com o mesmo, efectuando movimentos contínuos de trás para a frente, típicos de cópula, apesar das contínuas súplicas do ofendido DD para que o arguido o libertasse.
m. Em data não concretamente apurada, mas posterior aos factos atrás aludidos e anterior a Maio de 2019 o arguido, após ter tomado conhecimento que o ofendido DD o havia denunciado a terceiros, aproximou-se daquele no interior das instalações ... e, aproveitando o seu ascendente físico em razão da idade, desferiu-lhe uma violenta bofetada na face, causando-lhe dores
n. Sabia o arguido que ao manter relações sexuais de coito anal com o ofendido DD cuja idade conhecia, contra a vontade deste, impedindo-o de fugir e de resistir, através do uso de força física do mesmo, violava a liberdade e a autodeterminação sexual do mesmo, visando satisfazer os seus impulsos sexuais, com total desconsideração pela integridade física e pela liberdade e autodeterminação sexual do ofendido.
o. Sabia ainda o arguido que o mesmo sentia por si medo e temor reverencial, atenta a diferença de idades e ascendente de força física do arguido perante si, bem como pelo facto de ambos coabitarem no mesmo local, aproveitando essas circunstâncias para concretizar os actos sexuais, no interior do espaço residencial de ambos, não obstante estar ciente da idade, imaturidade e inexperiência sexual do ofendido DD, e que o fazia contra a sua vontade, tendo perfeita consciência que os actos que praticou punham em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da sua personalidade, designadamente na esfera sexual, o que quis.
p. O arguido conhecia a idade do ofendido DD e a sua especial fragilidade devido à sua tenra idade, agindo com o propósito concretizado de atingir o corpo do ofendido e de lhe provocar dores físicas.
q. Tendo agido nestas ocasiões (também) de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.
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“Motivação
A convicção do Tribunal é sempre formada, para além dos dados objectivos obtidos através dos documentos ou outras provas constituídas/produzidas de carácter técnico-científico, também por declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e ainda das suas lacunas, contradições, im/parcialidades, coincidências, coerências e quaisquer mais in/verosimilhanças que transpareçam – sempre em audiência.
Dito de uma outra forma, a prova em processo penal é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º C.P.P.). Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária porquanto tem como pressupostos valorativos, o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.
Assim, os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros supra referidos e em função das considerações que infra iremos tecer.
Começamos por apresentar um ‘recenseamento’ dos documentos/autos/relatórios médicos/periciais de que se socorreu o Tribunal, a saber: relatórios da perícia médico-legal de avaliação psicológica dos menores BB - fls. 705 a 709; CC – fls. 789 a 793; DD – fls. 832 a 835; relatório de pedopsiquiatria forense relativo ao arguido AA –fls.367a 373;cópias das decisões e processado no âmbito do processo de promoção e protecção de arguido de fls. 632 a 653 e de fls. 933 a 974; informação de fls. 102; exame de psiquiatria forense de infância e adolescência de fls. 288 e ss; declaração do Centro Hosp. Porto EPE de fls. 232; declaração de fls. 233 do Centro de Medicina Física e Reabilitação de ...; declaração da Terapia da Fala; informação clínica de fls 897 e ss – tudo relativo ao arguido AA; crc de fls. 921; informação de fls. 929 verso; transcrições das declarações para memória futura e respectivos CD’s com a gravação das mesmas de fls. 598 e ss (menor DD), fls. 604 e ss (menor BB) e fls. 997 e ss (menor CC); relatório de avaliação e intervenção da ACIP-Saúde de fls. 868-869 relativo ao menor DD. Tudo, cujo teor e dizeres objectivos saiu naturalmente incólume da audiência de discussão e julgamento, atenta a sua natureza, origem, dizeres e como tal valor probatório e científico (quanto aos meios de prova de carácter pericial/médico), sem que tal tenha sido questionado em sede de julgamento/produção de prova – como tal transcrevemos o que de relevo resulta de tais meios probatórios. Ressalvadas outras considerações que infra se farão constar sobre o alcance e consequências desse mesmo teor e dizeres, mormente e em especial quanto à perícia médico-legal.
Finalmente o relatório social entretanto elaborado pela DGRS junto a fl.s 986 e ss também foi valorado positivamente (tanto mais que saiu incólume do julgamento o seu teor, as informações, circunstâncias descritas e apreciações aí contidas).
Em súmula e dos depoimentos prestados em audiência importa atentar: EE
Conhece o arguido porque o viu uma vez. É prima do DD
A prima FF, irmã do DD, é que lhe contou o sucedido. Era responsável por ir buscar os primos ao colégio ao fim-de-semana.
Num fim de semana, em 2019, foi só ao sábado buscar os primos ao lar. Foram tomar pequeno almoço. O arguido pediu-lhe um cigarro e ela disse que não dava e ofereceu um bolo – em 2019. Reparou então na reacção estranha dos primos. O DD revelou medo. A prima contou que o menino ‘fez coisas’ ao irmão. Confrontou o DD que lhe contou que ele ‘lhe foi ao cuzinho’. Confrontou a tia, mãe dos primos, por saber e nada lhe dizer. O seu primo disse-lhe que contou a um tal Dr. HH que será ‘alguém que manda no colégio’. Mais acrescenta que o primo pode ser activo e explosivo mas mal o viu nem quis comer mais. A prima, FF, disse-lhe que teria acontecido há 2 ou 3 meses atrás.
Soube-se no bairro e o miúdo tem vergonha por causa dos comentários. Ele (o DD) sonha de noite e chama o nome AA – dito pela tia, sua mãe. Está a ser acompanhado em psicologia e em psiquiatria; acha que toma medicamentos. Ele precisa e de apoio e tem dificuldades a aprender. A tia tentou falar com o DD mas não sabe o que ele disse e se desabafou mais. E ainda hoje se lhe perguntar algo a tal propósito ele não responde. Depois de a testemunha ter tomado conhecimento do sucedido, eles (os primos) só ficaram na instituição dois ou 3 meses e mudaram.
FF – irmã do DD
Esclarece que mudaram de colégio quando isto aconteceu – em 2019 ou em 2018.
Ouviu boatos que AA tinha violado crianças, nomeadamente pela irmã do BB; perguntou à II (irmã do BB) e foi perguntar ao irmão se ele também foi vitima do AA – ele sorriu e fugiu dela. Depois, um amigo dele que dormia no mesmo sítio disse que ele também foi violado – um tal DD. O irmão tinha 8 ou 9 anos quando isso sucedeu. Foi então ter com a Drª JJ que disse que ia marcar reunião e que ele ia precisar de ajuda. Depois desta reunião e de saber isto é que ocorreu episódio na confeitaria com a prima/anterior testemunha. AA apareceu e pediu cigarro à prima, o que ela negou, oferecendo-lhe um bolo – assim foi e ele saiu e agradeceu. A própria baixou cabeça e o irmão parou de comer e disse que não queria comer mais – a prima percebeu e perguntou. A própria disse que o AA tinha feito ‘coiso’ ao menino. A prima usou o telemóvel para gravar e o irmão disse que ele ‘meteu pilinha no rabinho dele’ – foram essas as suas palavras. A testemunha disse que mãe já sabia por via da Drª JJ. Ainda ficaram no colégio uns 3 ou 4 meses – mudaram por causa do sucedido – no âmbito processo no tribunal de família.
Esclarece ainda que o seu irmão andava mais tímido e mais calado e nem corria para ela para ela para lhe dar um beijo. Depois ele nunca mais foi a mesma pessoa. Ele tem ajuda de psicologia - semanal e psiquiatria – mensal. Faz medicação. Durante o sono mexe muito na cama e chama pelo nome AA- Chama pela mãe porque não o consegue ver assim. Não consegue aprender na escola e tem apoio. Irmão convive mas quase sempre chega a casa a chorar porque as pessoas gozam com ele. Dizem que ele é gay e que já lhe ‘foram ao cu’. Tem agora 11 anos. GG Mãe do DD e da anterior testemunha – esteve 1 ano e meio na instituição
Soube do sucedido porque a Drª JJ que é assistente social, lhe ligou para ir ao colégio e disse que ‘o menino’ precisava de psicólogo e apoio. Mas nada explicou em concreto. Recebeu depois chamada da tia dos meninos a perguntar se lhe disseram alguma coisa em concreto porque houve crianças violadas no colégio. Ficou surpreendida. Disse-lhe que o filho tinha sido violado no quarto. Não disse que tivesse acontecido mais nada. Drª JJ até mentiu porque disse à FF que tinha contado à mãe, o que não foi verdade. Foi então à GNR fazer a queixa e falou do tal vídeo que a sobrinha fez em que filho contava o que aconteceu.
Ele não estava bem e a querer chorar mas só depois de se saber. Toma medicamentos. Continua no psicólogo 1 x semana. Recebeu agora marcação para ir o psiquiatra – nunca tinha ido antes – ‘taparam buraco’. Há 15 dias foi para hospital com ataque de choro. No bairro dizem-lhe que ‘foram ao cu’ – ele foge e vem para o quarto chorar.
Ia visitar o filho 1 vez por semana ao colégio.
Nunca foi ao colégio pedir uma explicação sobre o que sucedeu ao filho.
Ele não dorme bem. A filha chama-a porque ele tem pesadelos e começa a chorar de forma frequente durante a semana. Ele começa a dizer ‘sai de cima de mim.’
Tem problemas de aprendizagem; é muito agressivo; fica muito triste na escola também. KK – educadora social
Iniciou funções no Lar ... em 2008
Viu alguns actos descritos no livro de registos por parte do auxiliar de acção educativa e para passagem de turno e a instituição denunciou a situação – terá sido o monitor LL que fez tal registo. Algum utente falou que o AA praticou acto sexual com o jovem BB. Não falou com os meninos – nenhum deles. A MM – técnica que denunciou a situação terá falado com o BB.
Foi a própria que apresentou queixa na qualidade de representante do CC que ainda está na instituição.
CC não tem, que conheça, limitações cognitivas.
Nada percebeu de mudanças na atitude do jovem. Ele já tinha apoio psicológico antes. Não teve apoio acrescido. Quis ser neutra e não se envolver.
Do DD falou-se que ele teria dito a uma colega que teria ‘chupado a pila’ do AA e não se falou de qualquer outro acto consumado.
Mais esclarece que todos os dias fica um monitor a vigiar cada ala – feminina e masculina. À data estavam 20 crianças no Lar .... Refeitório, cozinha e sala de lazer tem vistas para campo de futebol. O AA chegou a ir passar o Natal com o pai mas não sabe em que anos. Telemóvel é entregue antes de irem dormir. Nos fins-de-semana e feriados tem telemóvel até mais tarde. Existe sala de convívio com sofá. Normalmente estavam sempre vários meninos. Por vezes poderiam estar só um ou dois porque os outros estavam na escola e estava o monitor que ia sempre passando por lá. NN foi professora e esteve no Lar em 2018 e 2019 – antes da pandemia – a dar apoio aos meninos em acompanhamento de estudo, durante duas horas por dia.
Conhece AA de vista mas não foi professora dele 3 jovens aqui ofendidos/vitimas iam às tais aulas de apoio. Sempre mesmo horário – 2 horas ao final do dia, mas não todos os dias – 2ª a 5 a feira.
Nada sabe sobre quaisquer actos sexuais em relação aos menores. Pois nada presenciou. Percebeu que mais novos tinham sempre medo dos mais velhos até pediam ajuda. Os meninos não tinham comportamentos constantes; variavam sempre entre a apatia e a agressividade. Havia sempre burburinhos e ‘contos e ditos’ dos miúdos – porque vinham de casa; porque alguém batia no lar em alguém. Todos os dias havia alguma peripécia que justificava a variação de humor.
Não se recorda se houve alguém que tivesse dito que o AA abusava de menores – quando muito havia os tais ‘contos e ditos’.
Reportou à PSP maus tratos, falta de condições, incluindo na instituição.
Sempre falou abertamente com o Dr HH por ser director da instituição, sobre tais situações. Quanto ao DD revelou medo específico do AA – mas houve situação em que AA esteva da parte de fora e DD pediu para não deixarem o AA entrar.
(em sede de defesa)
OO -irmã do arguido estava também com o irmão no Colégio/.... Durante o dia estavam juntos os meninos e as meninas. Em 2018/2019 estava ainda no Lar.
Confirma a existência de um recreio e campo de futebol. Do refeitório dava para ver o campo de futebol. Havia monitores no recreio e nas instalações.
Nunca passaram Natal na instituição, iam sempre a casa do pai. Iam a 24 e vinham a 26 à noite. O mesmo sucedendo na passagem de ano – iam a 31 e regressavam dia 1 ao final dia.
A sala de convívio era partilhada por meninos e meninas. Havia sempre um monitor a ver. Tinha sofás e uma televisão.
O seu irmão foi violado por um tal PP várias vezes; PP ficou de castigo isolado no quarto dos monitores.
Não se podia nem deixavam levar colchão para corredor – isso no lar das raparigas não era possível.
Havia boatos contra o irmão e ouviu falar sobre o que está em causa no processo mas ela não se acreditava.
QQ Psicóloga
Acompanha AA desde meados de2011 quando estava institucionalizado. Foi a instituição o que fez acompanhamento. Fez avaliação psicológica para perceber dificuldades. Tinha défice cognitivo bastante acentuado. Teve também terapia de fala dadas as dificuldades que também revelou. Foi encaminhado por pedospiquiatria – foi até Pedopsiquiatra que fez a avaliação. Actualmente e devido à idade é acompanhado por uma outra psiquiatra.
Tem labilidade funcional; não consegue ter sentimentos; não consegue entender as coisas como elas são para nós básicas; ele demora o seu tempo e deve estra sempre ao cuidado de terceiros. AA esteve também medicado com estabilizadores de humor mas já há bastante tempo, pois tinha pensamentos paranóides e de perseguição; não distinguia a realidade da imaginação ou ficção.
Havia suspeita de abuso sexual por parte da instituição por parte e da autoria do AA e aí perceberam que talvez tivesse sido também vítima de abusos sexuais.
Maturidade do AA aos 16 anos (?) – intelectual e emocional estaria numa idade inferior. AA sabe o certo e o errado do abuso sexual. Mas como foi vítima não entende o alcance e por isso até chega a confundir com a paranóia da invenção – ‘eram todos mentirosos’, como ele o dizia. (da demais prova instruída pelo Tribunal)
MM – técnica superior/assistente social que trabalhou na instituição ... – de 2011 até 30.09.2019.
Conheceu o arguido; assim como os ofendidos; fez acompanhamento do BB e do CC; o processo do DD era de outra colega.
Só pode falar do BB que efectivamente acompanhou.
Houve um registo do colega monitor que teve conversa com BB e falou da ocorrência. BB verbalizou que o AA o obrigou a determinados actos sexuais. Comunicou ao processo de promoção do BB e encaminhou a queixa para a polícia. Não teve conhecimento de nenhuma situação com o CC
RR – educadora social na ... – DD foi para esta instituição depois de sair do Lar .... Sabe que o menor falou mas não aprofundou situação – havia meninos que lhe faziam mal. Mas não dizia o quê; chorava a contar. Entretanto, o menino foi entregue à mãe.
JJ – técnica superior na segurança social. Coordenadora dos processos de promoção e protecção junto da segurança social.
Soube que BB disse a um monitor que teve contactos sexuais com o AA. Em Março foi AA que disse ter tidos contactos com o DD. No Verão de 2019 o CC inicialmente recusou falar do assunto; disse que AA lhe pediu mas que ele recusou a abordagem. Falou com o BB – ao longo do ano de 2019 não perguntando nada em concreto porque ele já tinha dito à instituição o que se passou; só lhe perguntou se sentia seguro, ele disse que sim e que não queria ser transferido porque cresceu lá. Falou com o DD para perceber como se sentia, se gostava mais ou menos de algum jovem sem direcionar discurso; ele tem limitações cognitivas; nunca lhe transmitiu nenhum desconforto – em março de 2019.
Com o AA falou em Março e Abril de 2019, após ele ter informado a técnica que teria tido contacto com DD, explicando que ele assumiu o contacto de sexo oral que o DD lhe fez a ele, AA. AA perguntou/pediu e o DD não se recusou. Havia coerência de postura do AA no que assumia e relatava – perguntava e os jovens aceitavam ou não. Propôs mudar o AA de instituição mas não havia vaga.
Quanto ao DD, o juiz do processo entendeu mudar o menor e a irmã, já que não havia vaga para mudar o AA.
Falou também com a irmã do DD que aceitou a mudança e que disse que o irmão não lhe contou directamente mas que ouviu falar do que lhe sucedeu.
SS – técnica assistente social que acompanhou AA e DD.
Teve conhecimento no início do ano de 2019 da situação do BB –monitor escreveu no livro de registo que um outro jovem lhe terá dito que o AA terá abusado sexualmente do BB. A MM falou com o BB. Teve instruções da PJ para não interferir nem falar com o AA do assunto. Fizeram maior vigilância ao AA.
Soube que DD pediu a um outro miúdo no lar para lhe fazer sexo oral na casa de banho. AA foi dizer-lhe que o DD lhe fez sexo oral e que isso aconteceu – não soube data. Mas AA contou em Março de 2019.
Na escola o DD já era suspeito de ser abusado em casa pelo irmão; e de na escola mostrar o pénis e pedir para lhe fazerem sexo oral. Era um rapaz difícil de conversar porque não mantinha conversação e eram palavras soltas, sem diálogo. As perguntas tinham que ser muito directas de sim e não e ele depois confirmou que sim (que foi abusado) mas pouco ou nada mais do que isso. Distinguia, quando muito, ‘pila’ e ‘piça’ como sendo em estado normal e erecta, respectivamente.
Sendo que o arguido optou legitimamente por se remeter ao silêncio, não tendo prestado declarações nem no início nem no final da produção de prova e alegações, pese embora devidamente esclarecido a tal propósito.
Em abstracto e genericamente, tal como faz notar Germano Marques da Silva, a livre valoração da prova não deve «ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão» (Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 2008, p. 151). E tal como também salienta Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, p. 140), há que assumir que na convicção desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis, como seja a credibilidade que se concede a um certo meio de prova. Neste contexto, a actividade do juiz, como julgador, não é naturalmente a de mero espectador de depoimentos, antes devendo fazer incidir sobre os mesmos um olhar crítico em que se atenda à multiplicidade de factores a que já nos vimos referindo – mormente e em especial quando analisamos as declarações do arguido (quando opte por as prestar) e os depoimentos dos ofendidos. Cumpre desde logo referir que, pela sua própria natureza, os crimes sexuais, em sede de sua demonstração, não assentam geralmente em prova directa, donde que, por via disto, assume, neste campo, papel decisivo o princípio da livre convicção na apreciação da prova, posto que se traduza em termos inculcadores de não ser essa convicção estribada em meras presunções ou em impressivos simplesmente mentais, resultado de um imotivável juízo apreciativo mas, antes, numa base de apoio objectiva, criteriosa e susceptível de motivação e controlo.
Mas precisamente por estarem em causa crimes de natureza sexual vamos começar a análise crítica pela/na perspectiva das vítimas/aqui ofendidos. Considerando até que em audiência de discussão e julgamento o arguido, numa opção perfeitamente legítima, optou pelo silêncio até final da produção de prova e alegações, mesmo depois de questionado e devidamente advertido a tal propósito de forma que pensamos adequada à sua idade, postura e registo intelectual.
A circunstância de os (3) menores/vítimas terem sido ouvidos em declarações para memória futura não belisca o princípio do contraditório, sendo certo que na tomada de tais declarações foi sempre assegurada a realização do contraditório que salvaguardou o direito de defesa do arguido (art.º 271.º, n.ºs 3 e 5, do C.P.P., art.º 1º, n.º 5, da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, art.º 33.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, e art.º 24.º, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro).
Em suma, estamos indiscutivelmente perante um meio de prova lícito, processualmente obtido de forma igualmente licita e regulamentar, porquanto dando cumprimento aos normativos supra citados.
Mas vamos precisamente retomar e apreciar em concreto o teor de tais declarações de cada uma das vítimas/aqui ofendidos, ultrapassando e dando de barato o cumprimento de todos os formalismos processuais na forma de obtenção de tal meio probatório essencial e até determinante no caso sub-judice.

Quanto ao resultado e teor de cada um dessas provas, constatou o Colectivo uma diferença clara entre, por um lado, as declarações do CC e do BB e, por outro lado, as declarações do DD. Enão apenas devido à diferença de idade, claramente mais jovem deste último menor.
Com efeito, constatamos que do resultado das gravações e teor das transcrições de fls. 790 e ss e 997 e ss, os menores CC e BB relatam de forma espontânea, com enquadramento circunstancial suficiente os eventos de que foram vítimas; não denotaram problemas de memória especificamente a tal propósito, não transmitiram ressentimentos ou sentimentos de vingança ou exageros, não foram, ou pelo menos de todo aparentaram sugestionabilidade, foram suficientemente afirmativos e seguros quando questionados, sendo feito apelo ao que sabiam e conseguiam descrever, sem qualquer sugestão ou pergunta mais direcionada ou indicativa da necessidade do Tribunal de obter determinadas respostas ou as pretensas ‘respostas certas’.
Esta mesma apreciação e valoração positiva do Colectivo acha-se reforçada quando atentamos no teor das respectivas avaliações psicológicas do INML a que foram os menores sujeitos e que mesmo reconhecendo certas e determinadas problemáticas em termos emocionais, certos obstáculos intelectuais e cognitivos e dificuldades psicológicas com diversas manifestações, concluem, com segurança, os peritos médicos pela capacidade de estes menores prestarem declarações deforma consistente, distinguindo a realidade da fantasia, sendo capazes de relatar as experiências autobiográficas e eventos passados traumáticos como os que se encontram em apreciação nos autos. Nessa medida, o Tribunal reteve e deu por assente o que os mesmos relataram para memória futura, com exclusão de alguns factos de pormenor ou enquadramento circunstancial descritos na acusação mas a que os menores não se referiram directa ou reflexamente ou que até pelos mesmos resultou contrariado, desconhecendo-se se antes, em momentos anteriores em fase de inquérito a que o Tribunal não pode atentar em que tenham sido ouvidos/inquiridos, o tenham referido e por isso tenham sido vertidos no libelo acusatório. Apreciação em sentido diverso foi o Tribunal ‘forçado’ a tomar relativamente ao menor DD. Ficamos desde logo alertados para as conclusões bem distintas da perícia de avaliação psicológica onde salientamos as conclusões opostas às supra elencadas quanto aos dois outros menores, considerando as suas evidentes incapacidades e limitações de memória, de raciocínio, de recursos cognitivos com inerentes dificuldades na narrativa e descrição dos eventos em causa. Como ou o que aferir das declarações para memória futura de quem foi avaliado medicamente como incapaz de prestar declarações de forma consistente (?!). Sendo que essa percepção da forma básica e rudimentar de se expressar e de relatar o que possa ou não recordar-se ou até confundir, foi também claramente transmitida pela testemunha SS que com o mesmo contactou directamente e a propósito do sucedido, como supra se alcança. Acresce que durante as declarações para memória futura que prestou, este menor dá respostas pouco ou nada elaboradas quando comparativamente com as respostas dos dois outros menores como acima analisamos; as mais das vezes muito simples com o básico ‘sim’ ou ‘não’ ou de confirmação do que lhe é transmitido. Pior, se nos é permitido assim referir, as questões são colocadas ao menor contendo já a descrição das respostas ou do teor do que se pretende apurar, sendo questões em nosso entender sugestionáveis e indutoras da confirmação rudimentar por parte do menor. De certo terá sido a única forma encontrada para ‘extrair’ declarações ao DD (?). Ante todas as limitações e dificuldades desta vítima, de forma alguma poderá o Colectivo considerar que o mesmo tenha relatado o que quer que seja, sequer se tendo a certeza se o mesmo tinha noção do teor e alcance daquilo a que respondia afirmativamente ou sequer se tinha memória do que lhe era transmitido ou ‘relembrado’ com tal técnica de ‘interrogatório’ em que algumas questões são já afirmações no sentido propugnado pela acusação. Mais ainda quando infelizmente (permita-se-nos este desabafo) este menor foi institucionalizado na sequência de anterior/es evento/s de todo em todo semelhantes ao descrito nos autos, pois que foi vítima de um seu irmão e até terá sido vítima de um outro menor também institucionalizado – ou seja a falta de memória e de discernimento de tudo quanto tem vindo a ser vítima como evidenciado na avaliação psicológica, como denotado pelos adultos/técnicas que com o mesmo lidam, aliado ao teor e ‘tentativas’ de obtenção do seu depoimento em sede de declarações para memória futura, redundam na inviabilização deste meio probatório com o sentido e alcance indicado e instruído a final pelo Ministério Público antes devendo ser considerado em necessário benefício do arguido, com o consequente afastamento de todo o acervo de factos que relativamente ao mesmo lhe vinha imputado.
E não se diga que os depoimentos das testemunhas GG, EE e FF contrariam esta nossa apreciação e raciocínio, considerando o supra resumido do teor dos mesmos. Na realidade, a mãe do menor pouco ou nada relatou no sentido de que tivesse abordado directamente com o seu filho sobre o que está em causa nos autos. A sua irmã transmitiu apenas uma reacção que aquele teve quando tentou questioná-lo ou abordar o assunto que andava a comentar-se na instituição, sobre o que estaria a acontecer entre alguns menores e alegadamente perpetrado pelo aqui arguido. E a sua prima refere uma vez mais uma reacção do menor à presença do arguido e a iniciativa que teve de até efectuar a tal gravação por telemóvel – saliente-se, depois de FF ter feito referências ou uma descrição algo vaga ao suposto abuso sexual e de terem questionado o menor DD a tal propósito – de certo e mais uma vez pelas suas limitações descrevendo algo/acto de forma que desconhecemos, para que este repetisse ou confirmasse, minando assim a sua possível e já de si limitada espontaneidade. Em suma, sempre estaremos perante depoimentos mais vagos e difusos e de, em certa medida, ouvir dizer ou mais correctamente de interpretação e percepção muito sugestionada e com as limitações emotivas de quem é familiar próximo – das reacções ou respostas limitadas por parte do DD. Não deixando agora neste sede de se referir que nenhuma destas testemunhas, de certo sem qualquer intenção e/ou de forma que diremos protectora, aludiu às limitações das capacidades do menor e sobretudo aos demais traumas a que o mesmo tem vindo a ser sujeito e que justificam a sua institucionalização e, mais ainda, os consequentes acompanhamentos especiais no ensino, a nível psicológico e psiquiátrico – tudo aspectos e circunstâncias que diremos objectivas e indiscutíveis, com sustento probatório médico e documental a que não fomos alheios mas que distanciamos do directo co-relacionamento com os eventos em particular descritos neste processo e tidos por não demonstrados, sequer indiciados e muito menos inequivocamente comprovados/demonstrados como o exigem as regras probatórias processuais penais. E ainda nesta sede de consequências e nefastos efeitos psicológicos, comportamentais e psiquiátricos de que padece este menor, não esquecemos o pormenor aludido pelas testemunhas de que o mesmo tem pesadelos e que refere o nome do AA - nesta parte permitimo-nos duvidar se o chama efectivamente, se com a preocupação de acudir ao menor a irmã e mãe assim o percepcionam ou entender ouvir durante a noite e até se era só esse o nome balbuciado nos sonhos/pesadelos e se por essa razão pretendida transmitir, de ter sido abusado sexualmente ou simplesmente por outra forma maltratado pelo aqui arguido. Repare-se que o menor, quando avaliado no INML, faz alusão a vários eventos traumáticos, por vezes com descrições de actuações semelhantes, por vezes com relatos mais confusos em que são intervenientes o seu irmão TT, um tal LL e o aqui arguido; e precisamente quando refere de forma tosca e básica as práticas sexuais que lhe terão sido infligidas, faz ainda mais confusão de nomes e momentos, circunstâncias, como bem se alcança da transcrição dos seus relatos que aqui nos dispensamos de reproduzir e para onde nos remetemos (fls. 833 e ss).
Este último pormenor impele-nos para uma observação que não poderíamos deixar passar, e que se relaciona com a clara percepção que tivemos de que não estamos perante um caso simplista, em que existe um agressor sexual jovem e vítimas mais jovens e débeis pelo mesmo violentadas/agredidas ou
violadas. Na realidade, estamos perante jovens que por razões diversas e infelicidades da vida e como se não bastassem as mais variadas debilidades cognitivas, psicológicas, psiquiátricas, emocionais, são colocados numa instituição para serem acompanhados e para supostamente serem protegidos e pelo Estado, acabando por estar sujeitos a mais provações e por serem expostas e até agravadas as suas fragilidades - tudo redundando numa série de eventos ou acontecimentos que se tornam difusos, mas que indiciam as chamadas ‘falhas do sistema’ e que no caso sub-judice nos permite concluir que o pouco que logramos apurar, ainda que mais restrito em relação ao que vinha inicialmente delimitado como objecto do processo, será uma ponta do iceberg do muito mais que vem sucedendo neste Lar e em instituições semelhantes. Senão, vejamos o que vem referenciado e foi percepcionado ou concluído por algumas das testemunhas – o DD terá dito a um outro colega que ‘chupou a pila do AA’ (vide depoimento da testemunha KK); o AA foi também vítima de abusos sexuais quando era mais novo nesta instituição (vide depoimento da testemunha QQ); o DD dizia que havia meninos que lhe faziam mal (vide depoimento da testemunha RR); o AA teria assumido que praticou sexo oral com o DD, mais assumindo e sendo coerente com a sua postura de questionar ou solicitar os jovens para práticas sexuais (vide depoimento da testemunha JJ); o DD terá praticado sexo oral ao AA (vide depoimento da testemunha SS); o BB também praticou coito anal com o AA (segundo informação de fls. 102 em que o AA diz que ‘o BB também lhe vai ao cu’). A este propósito ainda, relembramos aqui o depoimento emocionado, claramente influenciado e condicionado pela experiência que vivenciou a testemunha NN com reflexos na memória e no registo de pormenores sobre os quais foi questionada e de que espontânea e justificadamente não logrou responder, como bem se compreende tal foi a sua experiência negativa e traumatizante no contacto com estes menores institucionalizados, sentindo-se impotente para os ajudar em tudo quanto necessitavam e o que a levou mesmo a desistir das funções que ali desempenhava.”
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A Sr.ª PGA junto desta Relação é de parecer que os recursos devem proceder.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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- Impugnação da matéria de facto
(Recurso do MP e da Assistente)

Sabemos que o recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial [Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, 7.ª edição, actualizada aumentada, 2008, pág. 105]. Assim, o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes [Cfr. Acs. do TC n.º 59/206, de 18 de Janeiro de 2006, no processo 199/2005, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, e do STJ, de 27 de Janeiro de 2009 e de 20 de Novembro de 2008, tirados respectivamente nos processos n.ºs 08P3978 e 08P3269, disponíveis em www.dgsi.pt, bem como de 17 de Maio de 2007, in CJ (Acs STJ), 2007, II, 197].
Por força do princípio da livre valoração da prova, p. pelo art.º 127.º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Assim, a reapreciação da prova na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos de manifesto erro na apreciação da prova. O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
Assim, a observância do princípio da livre apreciação da prova, começa na fundamentação da decisão de facto feita em primeira instância, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» [Cfr. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.].
Por isso, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas apenas o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham e não apenas sugiram ou permitam, outra decisão.
Por outro lado, temos os vícios constantes do art 410 n° 2 do CPP, que para relevarem, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Efectivamente, os vícios relativos à matéria de facto, referidos nesta disposição, pressupõem que os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e que conste em «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», em «contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão», ou se verifique «erro notório na apreciação da prova».
Porém, repetimos, se a decisão for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela foi proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção, pelo que só nos casos de evidente desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, se deve alterar a convicção alcançada pelo tribunal da lª instância.
Estes vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP não podem, ainda, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127° do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.
Assim, enquanto no artigo 410.º n.° 2, do Cód. Proc. Penal, temos uma impugnação em que o recorrente tem de cingir-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, já no erro de julgamento (impugnação ampla), a apreciação abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.
Porém, o recurso que impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos "concretos pontos de facto" que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (cfr. Acs. do S.T.J., de 14-3-2007 e 3-7-2008, in www.dgsi.pt).
Por último, na violação do princípio “in dubio pro reo”, o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, devendo então beneficiar o arguido.
Este princípio há-de traduzir-se numa «dúvida razoável» do tribunal, apesar de todas as provas reunidas, não podendo a insuficiência destas, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido – um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz a omissão da decisão, tem de ser sempre valorado a favor do arguido (a este respeito, cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão, 1984, pg. 213).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Porém, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe, pois, um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – Ac. STJ de 24-3-99, CJ-STJ 1,247- citado no Ac. do STJ de 5-7-07, in www.dgsi.pt.
Como se diz neste último acórdão do STJ, o princípio in dúbio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.
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Olhando agora para o caso concreto, vimos que entre todas as testemunhas ouvidas, a maioria delas acompanhava o arguido diariamente na Instituição, mas não presenciaram qualquer facto da Acusação.
O depoimento das testemunhas GG, mãe do ofendido, quando ouvida no dia 15 de março de 2022, (entre os minutos 01m:00 a 16:30 seg) e ainda a testemunha FF, irmã do menor DD, quando ouvida no dia 8 de março de 2022, (entre os minutos 01m:00 a 17:00 seg.) evidenciam outra realidade, com afirmações destas testemunhas, contraditórias entre si.
Na verdade, a Testemunha FF (ouvida no dia 8 de março de 2022, entre os minutos 01m:00 a 17:00 seg): (minutos 01:20s), referiu: Na primeira vez, ouvi uns boatos sobre o meu irmão...só depois mais tarde falei com o meu irmão, perguntei-lhe o que se passava com o AA e ele começou a rir-se... os boatos que ouvi foi que ele tinha sido violado no parque do colégio....
Por sua vez, a Testemunha GG (mãe do ofendido, ouvida no dia 15 de março de 2022, entre os minutos 01m:00 a 16:30 seg.), disse: Soube o que aconteceu através da FF, por telefone. Não tive conhecimento nenhum por parte do Colégio. Quando soube da violação fui falar com o DD, mas ele não me disse nada. Foi a FF que me disse, de que ouviu uns boatos...
A história que a FF me contou foi que o DD tinha sido violado no quarto.
Adv. Do arguido (14:02s): Então a história que ouviu não foi que o DD, seu filho, tinha sido violado num parque da Instituição, no interior do Colégio onde estavam os menores?
Testemunha: Não, a violação que aconteceu e que ouvi à minha filha FF, aconteceu no quarto... no parque da instituição nunca ouvi falar...”
Assim, estas duas testemunhas, apesar de serem, irmã e mãe do Ofendido DD, relatam ocorrências contraditórias e distintas, que não vêm elencadas nos factos acusatórios.
Por sua vez, o relatório da avaliação psicológica, feita ao ofendido, DD, como dissemos, evidenciou nele um discurso, desvirtuado, contraditório e com limitações de memória, de raciocínio, e de recursos cognitivos com inerentes dificuldades na narrativa e descrição dos eventos em causa, como se diz na decisão recorrida.
A Testemunha SS, assistente social no Lar ..., que acompanhou o ofendido, DD e o arguido AA, afirmou que para além do défice cognitivo dos dois menores, (arguido e ofendido/recorrente) os mesmos, podiam muito bem prestar declarações de forma bastante rudimentar, podendo até confundir e alterar despropositadamente os acontecimentos.
Esta testemunha SS, em Audiência de Julgamento de 19 de Abril de 2022, disse: (minuto 01: 30s) Fui assistente social no Lar ... e acompanhei o o DD e o AA...(minuto 14:36s) O AA era sempre acompanhado por um adulto...durante a noite existia sempre um monitor que ficava de vigília, (acordado) para manter a segurança dos menores.
A mesma testemunha SS, na Audiência de Julgamento de 19 de Abril de 2022, referiu: (minuto 05: 50s) O AA era sempre acompanhado por um adulto, auxiliar do Lar. (...)
Assim, constatamos que na instituição ..., havia sempre auxiliares com os menores, e durante a noite havia sempre um auxiliar que ficava de vigília na Instituição, para salvaguardar a saúde e segurança dos menores institucionalizados.
A propósito, é ainda referido no Acórdão recorrido, que:
.. ” Durante as declarações para memória futura que prestou, este menor dá respostas pouco ou nada elaboradas quando comparativamente com as respostas dos dois outros menores como acima analisamos; as mais das vezes muito simples com o básico ‘sim’ ou ‘não’ ou de confirmação do que lhe é transmitido. Pior, se nos é permitido assim referir, as questões são colocadas ao menor contendo já a descrição das respostas ou do teor do que se pretende apurar, sendo questões em nosso entender sugestionáveis e indutoras da confirmação rudimentar porparte do menor. De certo terá sido a única forma encontrada para ‘extrair’ declarações ao DD (?). Ante todas as limitações e dificuldades desta vítima, de forma alguma poderá o Colectivo considerar que o mesmo tenha relatado o que quer que seja, sequer se tendo a certeza se o mesmo tinha noção do teor e alcance daquilo a que respondia afirmativamente ou sequer se tinha memória do que lhe era transmitido ou ‘relembrado’ com tal técnica de ‘interrogatório’ em que algumas questões são já afirmações no sentido propugnado pela acusação.”
Assim, tudo leva a concluir que, as respostas que se obtiveram nas declarações para memória futura, apenas surgiram porque, as questões foram colocadas, já contendo a descrição das respostas ou do teor do que se pretendia apurar, sendo formuladas perguntas sugestionáveis e incitadoras a uma resposta que ia ao encontro daquilo que se pretendia, ou seja, a confirmação com uma resposta afirmativa daquilo que se perguntava, como é dito no Acórdão.
Na verdade, os traumas físicos, psicológicos e psíquicos tendo como consequência no desenvolvimento social e sexual do Ofendido/demandante, elencados no seu recurso apresentado, já eram infelizmente notórios no menor antes do surgimento dos factos aqui em apreço, como disse a Dr.ª UU, (relatório de perícia médico legal realizada ao aqui menor no pretérito dia 10.03.2021, junto aos autos):
Em contexto avaliativo a narrativa do DD remete para a vivência de circunstâncias sexualmente abusivas...uma delas em contexto familiar......não se afigura capaz de prestar declarações de forma consistente...”
Infelizmente, o ofendido tinha sido vítima de abusos sexuais em contexto familiar, cujos traumas já acompanhavam o menor desde essa altura.
Resumindo e concluindo, na avaliação psicológica do ofendido, constata-se a sua evidente incapacidade e limitações de memória, de raciocínio, de recursos cognitivos com inerentes dificuldades na narrativa e descrição dos eventos em causa.
Também nas declarações para memória futura há que atender a que o arguido foi avaliado medicamente como incapaz de prestar declarações de forma consistente. A percepção da forma básica e rudimentar de se expressar e de relatar o que possa ou não recordar-se ou até confundir, foi também claramente transmitida pela testemunha SS que com o mesmo contactou directamente e a propósito do sucedido.
Por outro lado, durante as referidas declarações para memória futura que prestou, como se diz na motivação da decisão recorrida, como facilmente pode ser constatado, este menor deu respostas muito básicas, muitas vezes muito simples com o ‘sim’ ou ‘não’ ou de confirmação do que lhe é transmitido. Para além disso, as questões são colocadas ao menor contendo já a descrição das respostas ou do teor do que se pretende apurar, sendo, por isso, questões sugestionáveis e indutoras da confirmação rudimentar por parte do menor, que nessas circunstâncias, talvez fosse a única forma de obter declarações ao DD.
Por isso, perante as limitações e dificuldades desta vítima, desconhece-se se o mesmo tinha noção do teor e alcance daquilo a que respondia afirmativamente ou se tinha memória do que lhe era transmitido ou ‘relembrado’ com tal técnica de ‘interrogatório’ em que algumas questões são já afirmações no sentido propugnado pela acusação.
Ora, este menor foi institucionalizado na sequência de eventos semelhantes ao descrito nos autos, tendo sido vítima de um seu irmão e até de um outro menor também institucionalizado.
Assim, concordamos com o decidido, onde a falta de memória e de discernimento de tudo quanto tem vindo a ser vítima como evidenciado na avaliação psicológica, e notado pelos técnicos que com o mesmo lidam, aliado ao teor e tentativas de obtenção do seu depoimento em sede de declarações para memória futura, conduzem, consequentemente, a uma duvida inultrapassável e, consequentemente, ao principio in dúbio pro reo, em benefício do arguido.
Por outro lado, vimos que a mãe do menor pouco ou nada relatou no sentido de que tivesse abordado directamente com o seu filho sobre o que está em causa nos autos.
A sua irmã transmitiu apenas uma reacção que aquele teve quando tentou questioná-lo ou abordar o assunto que andava a comentar-se na instituição, sobre o que estaria a acontecer entre alguns menores e alegadamente perpetrado pelo aqui arguido.
Estamos, pois, perante depoimentos vagos e difusos, de ouvir dizer, de interpretação e percepção com as limitações emotivas de quem é familiar próximo, e com respostas limitadas por parte do DD.
É de notar ainda que, nenhuma destas testemunhas, talvez por protecção, se referiu às limitações das capacidades do menor e aos demais traumas a que o mesmo tem vindo a ser sujeito e que justificam a sua institucionalização e os consequentes acompanhamentos especiais no ensino, a nível psicológico e psiquiátrico, factos objectivas, com fundamento médico e documental.
Por outro lado, como é referido na motivação da decisão recorrida, foi dito por algumas das testemunhas que o DD terá dito a um outro colega que ‘chupou a pila do AA’ (vide depoimento da testemunha KK); o AA foi também vítima de abusos sexuais quando era mais novo nesta instituição (vide depoimento da testemunha QQ); o DD dizia que havia meninos que lhe faziam mal (vide depoimento da testemunha RR); o AA teria assumido que praticou sexo oral com o DD, assumindo que solicitava os jovens para práticas sexuais (vide depoimento da testemunha JJ); o DD terá praticado sexo oral ao AA (vide depoimento da testemunha SS); o BB também praticou coito anal com o AA (segundo informação de fls. 102 em que o AA diz que ‘o BB também lhe vai ao cu’).
Por isso, o aludido pelas testemunhas de que o mesmo tem pesadelos e que refere o nome do AA, leva a duvidar se o chama efectivamente, ou se com a preocupação de acudir ao menor, a irmã e mãe assim o percepcionam ou entender ouvir durante a noite e até se era só esse o nome balbuciado e se tal quereria dizer que fora abusado sexualmente pelo aqui arguido.
Ora, o menor, quando foi avaliado no INML, faz alusão a vários eventos traumáticos, por vezes com descrições de actuações semelhantes, por vezes com relatos mais confusos em que são intervenientes o seu irmão TT, um tal LL e o aqui arguido; e precisamente quando refere de forma básica as práticas sexuais que lhe terão sido infligidas, faz ainda mais confusão de nomes e momentos, circunstâncias, como bem se alcança da transcrição dos seus relatos (cfr. fls. 833 e ss).
Na verdade, não podemos esquecer que estamos perante jovens que, por razões diversas e contrariedades da vida e com debilidades cognitivas, psicológicas, psiquiátricas, emocionais, são colocados numa instituição para serem acompanhados e para supostamente serem protegidos pelo Estado, acabando por estar sujeitos a mais provações e até agravadas as suas fragilidades.
Assim, repetimos, sem qualquer suporte probatório, com as limitações referidas do ofendido, não é possível afirmar com relativa certeza que o arguido praticou os factos que vinha acusado, na pessoa deste menor, pelo que terá de funcionar o princípio in dúbio pro reo.
Daí que perante toda esta fragilidade probatória, o Tribunal a quo, tivesse dado como não provado que o arguido, tenha cometido um crime de Violação, p. e p. pelo 164.º n.º 1, al. a) e art.º 177.º n.º 1, al. b) e n.º 7 do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143.º, n.º1, al. a) e n.º 2, por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al c), todos do Código Penal, bem como pela improcedência do Pedido de Indemnização Civil, uma vez que não se fez qualquer tipo de prova dos factos elencados na Acusação, que consubstanciam o referido pedido.
Improcede, pois, nesta parte, quer o recurso do MP, quer da Assistente.
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- Matéria de Direito
(Recurso do MP)

O MP discorda ainda da decisão recorrida, na parte que julgou improcedente as agravações dos crimes praticados pelo arguido, previstas no n.º 1 al. b) do art.º 177.º do CP.

Vejamos.
Dispunha o n.º 1 do artigo 177.º, na sua redacção original (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março):
“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela; ou
b) Se encontrar numa relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente, e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.”
Porém, a alínea b) do n.º 1 deste preceito veio a ser alterada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto.
A Lei n.º 59/2007 acrescentou, como factor de agravação, a circunstância de o agente e a vítima se encontrarem numa “relação familiar, de tutela ou curatela” e a Lei n.º 103/2015, também como factor de agravação, a circunstância de estes se encontrarem numa relação de “coabitação”.
Da Proposta de Lei n.º 305/XII, que esteve na origem da Lei n.º 103/2015, visando transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.12.2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil (JOUE L335, de 17.12.2011, rectificada, JOUE L18, 21.2.2012), e dar cumprimento às obrigações assumidas por Portugal com a ratificação (Decreto do Presidente da República n.º 90/2012, de 28.5.2012) da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais (Lanzarote, 25.10.2007), ressalta o propósito de reforçar a protecção das crianças contra “formas graves de abuso e de exploração sexual de crianças” e de tornar o nosso ordenamento jurídico “mais eficaz no combate a uma das mais graves violações dos direitos humanos”, neste sentido se alterando a alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º.
O artigo 18.º, n.º 2, al. b), desta Convenção obriga à criminalização da prática de acto sexual com uma criança “abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre a criança, incluindo o ambiente familiar”, o que, lê-se no respectivo Relatório Explicativo, diz respeito a situações em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança estabelecida com a criança em resultado de uma autoridade natural, social ou religiosa, que permite controlar, punir ou compensar a criança nos planos emocional, económico ou mesmo físico, como normalmente sucede nas relações entre a criança, seus progenitores ou adoptantes, mas que também podem existir nas relações desta com outras pessoas, como as que prestam cuidados ou contribuem para a sua educação. Com o uso da expressão “incluindo o ambiente familiar”, diz-se no Relatório, visou-se realçar as situações mais frequentes e prejudiciais para a criança, salientando-se que o termo “família” se refere à “família alargada” (em www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/treaty/201).
Em face desta Convenção, a Directiva n.º 2011/93/EU adoptou idêntica formulação, obrigando os Estados-Membros da União Europeia a criminalizar a prática de actos sexuais com crianças, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” (artigo 3.º, n.º 5. i)).
Ora, o n.º 1 do artigo 177.º, nas suas diferentes versões, encontra-se estruturado na base da consideração da relevância de diferentes tipos de relação entre o agente e a vítima, que justificam a agravação da pena, havendo que distinguir as relações familiares para efeitos da alínea a) – em que o maior desvalor do tipo de ilícito resulta da sua simples existência, limitada ao círculo constituído por ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente - e as relações familiares para efeitos da alínea b) – em que tal desvalor decorre do aproveitamento de outra relação familiar para a prática do acto sexual ilícito. Incluem-se aqui as relações de parentesco e de afinidade, que se produzem em qualquer grau na linha recta e até ao sexto grau na colateral (artigos 1582.º e 1585.º do Código Civil), para além das relações estabelecidas por vínculos de tutela ou de curatela (artigos 138 ss, 1921.º e 1927 do Código Civil, aqueles substituídos, entretanto, pelo regime de acompanhamento - Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto), bem como das relações de dependência hierárquica, económica ou de trabalho (cfr. Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., Coimbra Editora, Comentário ao artigo 177.º, na versão anterior à resultante da lei n.º 103/2015).
Assim, às relações familiares previstas na alínea b), veio, pois, a Lei n.º 103/2015, como se evidencia dos elementos histórico e sistemático de interpretação, acrescentar um outro tipo de relação, a de coabitação, que, não emergindo de fontes de relações familiares, alarga a tutela penal a situações de facto em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança nos termos anteriormente expostos, em que se incluem as relações constituídas no âmbito do conceito de família alargada.
Ora, o intérprete deve procurar no texto da lei a melhor interpretação consentida no âmbito da harmonia do sistema legal e que a letra da lei se impõe ao intérprete como limite da actividade interpretativa.
Por isso, este preceito exige que o menor tenha sido confiado ao agente do crime, para efeitos de educação e assistência, não se limita tal exigência aos casos em que o menor seja confiado por força da lei ou por decisão judicial, podendo a confiança incluir situações de facto de estreita dependência e subordinação pessoal (neste sentido, Maria João Antunes, ob. cit, p. 848, e Pinto de Albuquerque, Comentário do CP, Católica, 3.ª ed., p. 690, Ac. STJ de 13-2-2019 e Ac. TRC de 17-3-2022, in www.dgsi.pt).
Assim, a alínea b) prevê as situações em que a vítima se encontre numa relação familiar, (que não uma das previstas na alínea anterior, que funcionam automaticamente como agravantes), de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
A evolução do preceituado nas alíneas do nº 1 do art. 177º, como vimos, é conforme com o texto da Directiva 2011/93UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, transposta pela Lei nº 103/2015, de 24 de Agosto, que impõe que os Estados-Membros tomem as medidas necessárias para garantir que na medida em que as circunstâncias que aponta não sejam já elementos constitutivos dos crimes de exploração sexual de crianças, de abuso sexual de crianças e de pornografia infantil, possam, em conformidade com as disposições aplicáveis da legislação nacional, ser consideradas circunstâncias agravantes dos referidos crimes. Indica as diversas circunstâncias agravantes (art. 9º), distribuídas por alíneas, nomeadamente, o cometimento do crime por um membro da família da criança, por uma pessoa que coabita com a criança ou por uma pessoa que abusou de posição manifesta de confiança ou de autoridade (al. b).
Não impondo a Directiva uma formulação ou conteúdo preciso da norma, o legislador nacional incluiu a coabitação no ordenamento já existente, aditando-a ao elenco de situações já previstas na al. b) do nº 1 do art. 177º que, de resto, enquanto circunstância agravante, não se restringe aos crimes sexuais que tenham crianças como vítimas, sendo o seu campo de aplicação constituído pelos crimes previstos nos artigos 163ª a 165º e 167º a 176º do Código Penal.
Assim, não basta a mera coabitação para que haja lugar à agravação do crime, devendo exigir-se, além do mais, que este tenha lugar com aproveitamento da relação de coabitação.

Ora, no caso dos autos, os factos descritos sob os números 1, 3, 4 e 6 dos factos provados no sentido de que todos os menores/jovens, incluindo o arguido, à data das ocorrências dos factos, residiam em regime de acolhimento na tal Fundação ..., não traduz a tal relação de coabitação que o legislador quis acautelar na previsão legal em análise.
A agravante da coabitação, quer as demais circunstâncias aí enunciadas, tem em comum uma ligação ou dependência afectiva, resultante de laços de sangue ou outras ligações familiares, dependências hierárquicas, relativas a situações em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança estabelecida com a criança em resultado de uma autoridade natural, social ou religiosa, que permite controlar, punir ou compensar a mesma nos planos emocional, económico ou mesmo físico.
Isto pode existir nas relações da criança com outras pessoas, como as que prestam cuidados ou contribuem para a sua educação, traduzindo um ambiente familiar.
Porém, nada disto acontece entre os jovens envolvidos neste caso, como facilmente se pode constatar, pois eram todos, apenas alunos daquela instituição.
Outra interpretação, faria esta agravante atuar automaticamente, em todas as situações de coabitação, com o consequente aumento da culpa, desvirtuando a finalidade pretendida pelo legislador.
Assim, todas estas situações mencionadas na alínea b) pressupõem uma relação especial entre a vítima e o agente, que acarrete um maior desvalor da acção, isto é, que condicione o comportamento da vítima que, dada a tal relação, possa levar aquele a não admitir a possibilidade de a vítima denunciar os factos.
A simples coabitação, naturalmente pode facilitar a ocorrência destes factos que aqui nos ocupam, mas não é isso que o legislador pretende, tem de haver a tal relação especial.
Mesmo verificada essa relação especial, os factos ilícitos terão ainda de ser levados a cabo com aproveitamento dessa relação.
Por isso, repetimos, nada disto existe entre os jovens envolvidos no caso em análise, pois apenas eram jovens, que por razões diversas e infelicidades da vida, têm debilidades cognitivas, psicológicas, psiquiátricas, emocionais, e que foram colocados numa instituição para serem acompanhados e para supostamente serem protegidos pelo Estado, acabando por estar sujeitos a mais provações e até ver agravadas as suas fragilidades, onde, nalguns casos, a vítima e agressor se concentram na mesma pessoa.
Assim, inexistem, no caso, as invocadas agravantes da al. b) do art.º 177.º do CP.

Pelo exposto, julgam-se improcedentes, ambos os recursos do MP e Assistente, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas a cargo da Assistente, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs.

Porto,11/1/2023.
Donas Boto
José Carreto
Paula Guerreiro.