Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
161/14.1T9PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME
HOMICÍDIO
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
PREVENÇÃO GERAL
CULPA GRAVE
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RP20170308161/14.1T9PVZ.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 11/2017, FLS.29-35)
Área Temática: .
Sumário: I - A finalidade primeira da aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos.
II - Na estrutura da criminalidade em Portugal os crimes cometidos por negligência, por desrespeito de regras básicas, sobretudo os cometidos a conduzir ou manobrar veículos com motor, têm uma expressão significativa e por isso são muito sentidas exigências de prevenção geral.
III - A pena de 4 meses de prisão diminuta e quase simbólica para quem como o arguido ligou o motor da viatura sem estar as respectivos comandos – para poder carregar no pedal da embraiagem – pois que estava de pé do lado de fora da viatura, sabendo que o travão de mão tinha uma avaria que impossibilitava o seu correcto funcionamento, quando no mesmo dia já havia executado acção idêntica sendo, por isso facilmente previsível, que voltasse a acontecer o mesmo - que a viatura desse, como deu, um solavanco, quando foi ligado o motor - e, assim veio a colher a vítima que se encontrava a descarregar lenha a cerca de 80 cm entre a frente da viatura e a parede do edifício.
IV - No caso 16 meses de prisão é o mínimo reclamado pelas necessidades de prevenção geral, seja, pela reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada, sendo que de modo alguma, excede a medida da culpa, grave, do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 161/14.1T9PVZ.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 161/14.1 T9PVZ, corre termos pela Secção Criminal (J1) da Instância Local de Vila do Conde, Comarca do Porto, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal.
C…, devidamente identificada nos autos, requereu e foi admitida a intervir como assistente.
Por seu turno, o Centro Hospitalar D…, EPE, deduziu pedido de indemnização (reembolso de despesas hospitalares) contra o arguido.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foi proferida sentença, datada de 20.04.2016 (fls. 748 e segs.) e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais,
Quanto à instância criminal:
Julgo a acusação provada, procedente e em consequência condeno B…, pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artº 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, cuja execução suspendo, pelo período de 1 (um) ano;
As custas referentes à instância criminal ficam a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (mínimo legal);
Quanto à instância cível:
Julgo o pedido de reembolso de despesas hospitalares deduzido pelo Centro Hospitalar D…, EPE provado, mas improcedente, pelas razões atrás explanadas (ilegitimidade substancial), e por isso absolvo B… desse pedido”.
Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “O presente recurso é restrito ao segmento da sentença relativo à medida da pena.

2. Considerando os factos dados como provados na sentença, ora em crise, não deveria o Tribunal ter optado por aplicar ao arguido uma pena de quatro meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de um ano.

3. Esta pena não se afigura adequada a satisfazer as finalidades da punição, existindo uma errada interpretação das disposições legais ínsitas nos artºs 40º, 70º e 71, do CPenal.

4. São elevadas as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, – aquela que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação da validade da norma jurídica violada, justificando-se, in casu, uma pena adequada a assegurar a confiança efectiva da comunidade na validade das normas jurídicas.

5. Na determinação da medida concreta da pena, há que ponderar factores, tais como:

a) A ilicitude dos factos praticados pelo arguido e as suas consequências;
- que, in casu, assumem especial gravidade, que dispensa mesmo qualquer adjectivação, na medida em que o arguido causou um prejuízo humano elevadíssimo e irreparável
- a morte de um jovem
- e o revelar de um sentimento de desrespeito firme pelas regras de segurança a que estava adstrito, que podia e devia respeitar, já tinha conhecimento técnico e profissional que a tal o obrigava.

b) O grau da culpa que, mesmo tendo em conta que o arguido agiu com negligência inconsciente, traduz-se na violação de deveres elementares de cuidado que lhe era exigível e que estava ao seu alcance observá-los, atenta a sua formação técnica e conhecimento do funcionamento da máquina/Dumper; tanto mais que, no mesmo dia, da parte da manhã, o arguido manuseou o mesmo Dumper, da mesma forma e este deu um solavanco -conforme consta do ponto 15 dos factos provados-.

c) As condições de vida do arguido - familiarmente e profissionalmente integrado, sem antecedentes criminais.

d) A personalidade do arguido, o comportamento anterior e posterior aos factos, não tendo este verbalizado arrependimento.

e) As necessidades de prevenção geral positiva ou de integração – aquela que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação da validade da norma jurídica violada – que, in casu, são elevadas, justificando uma pena adequada a assegurar a confiança efectiva da comunidade na validade das normas jurídicas.

6. Assim, ponderada a ilicitude global do facto, a culpa do arguido e as exigências de prevenção requeridas no caso concreto e à medida da culpa do arguido, entendemos que a pena a ser aplicada nunca deverá ser inferior a um ano e quatro meses de prisão.

7. A suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos formais e materiais.

8. Não estará excluída a possibilidade de suspensão quando as circunstâncias especiais do caso concreto fundamentem de forma suficientemente segura um juízo de prognose positiva no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão se mostram como muito provavelmente adequadas a realizarem de forma bastante as concretas exigências de prevenção especial, e desde que assegurada a indispensável satisfação das necessidades concretas de prevenção geral.

9. No presente caso, como revelam os factos provados, as consequências graves da violação do dever de cuidado pelo arguido (exclusivo responsável), as suas condições pessoais e de atitude como enfrentou os factos, o que a decisão recorrida salienta, as exigências de prevenção especial não são relevantes; sendo elevadas as exigências de prevenção geral, porém, não o são a ponto de inviabilizarem a aplicação do artigo 50º, nº 1 do Código Penal, devendo, pois, ser aplicado o instituto da suspensão da execução da pena.

10. Entende o Ministério Público que o Tribunal “a quo” violou o disposto nos artºs 40º, 70º e 71º, do Código Penal, ao condenar o arguido na pena de prisão de 4 meses, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

11. Ponderando tudo quanto vem explanado, ao arguido nunca deverá ser aplicada uma pena de prisão inferior a 1 ano e 4 meses, suspensa na sua execução por igual período”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 812) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, apenas o arguido apresentou resposta à respectiva motivação[1], pugnando pela sua improcedência e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
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Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que sufraga a posição assumida pelo Ministério Público na 1.ª instância, pois considera que o complexo factual provado é revelador de “grave descuido” do arguido e por isso a pena aplicada é “diminuta”, assim concluindo que o recurso merece provimento.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem qualquer resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, pelo que cumpre apreciar e decidir.

II Fundamentação
É, geralmente, aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[2] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
O recorrente não impugna a decisão em matéria de facto e aceita o seu enquadramento jurídico-penal.
Ninguém questionou a espécie de pena (prisão), mas o recorrente insurge-se contra a respectiva medida, que considera inadequada face às necessidades de prevenção, embora aceite a pena de substituição (suspensão da execução da pena).
Assim, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se, no doseamento da pena, o tribunal teve na devida conta os critérios ou parâmetros legais, designadamente as exigências de prevenção e a culpa do arguido.
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Delimitado o thema decidendum, é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
Factos provados:

1. À data dos factos que a seguir se descrevem, B…, arguido nos presentes autos, desempenhava as funções de 1º Sargento … de Serviços do Exército Português, sita na Rua …, em …, ….

2. No dia 9 de Outubro de 2014, cerca das 15.30 horas, os Soldados E… e F… e o assistente operacional G…, que ali também trabalhavam e constituíam a equipa de trabalho da Secção de Conservação e Obras daquela …, foram incumbidos de proceder ao carregamento e ao descarregamento de lenha para as traseiras da Secção de …, no acesso … à Messe dos Oficiais.

3. Para tanto, recorreram ao auxílio da viatura militar Dumper com a matrícula MX-..-.., destinada à execução de trabalhos de carga exclusivamente no interior da Escola ….

4. No decurso dessa operação, o arguido, que tinha comandado aquela Secção, dirigiu-se ao local, de forma a solicitar às restantes pessoas atrás indicadas que, depois de findarem a operação, procedessem ao carregamento de um armário/estante destinado a ocupar lugar na Secção do arguido.

5. Essa operação também seria efectuada com o auxílio da viatura Dumper, com conhecimento e ordem do arguido.

6. Entretanto, o arguido aproximou-se do Dumper e, colocado de pé, do lado de fora da viatura, junto ao lugar do condutor, iniciou o movimento de rotação da chave da ignição do motor, com a intenção de baixar a caixa de carga da viatura.

7. Nesse momento, C… encontrava-se a trabalhar, a descarregar lenha, num espaço de cerca de 80 cm entre o Dumper e a parede do edifício.

8. Ao efectuar o movimento de rotação da chave da ignição do motor do Dumper, pelo facto de a caixa de velocidades estar engrenada na 3ª velocidade, a viatura em causa foi movida/impulsionada no sentido frontal, dando, assim, um forte solavanco.

9. Acto contínuo, essa viatura embateu no corpo de F…, projectando-o e entalando-o contra a parede.

10. Tendo em conta a distância, F… não teve possibilidade de reagir, tendo caído, de imediato, ao solo.

11. Como consequência do embate atrás descrito e consequente projecção, F… sofreu as lesões descritas no relatório da autópsia médico-legal de fls. 166 a 169 deste processo, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

12. Essas lesões foram causa directa e necessária da morte de F…, verificada no mesmo dia.

13. O Dumper tinha danos no travão de parque/de mão que impossibilitavam o seu correcto funcionamento, como era do conhecimento, designadamente e no que ora interessa, do arguido.

14. O assistente operacional G…, condutor habitual da referida viatura, tinha comunicado essa avaria.

15. Antes de transitar para o Pelotão de …, o arguido tinha desempenhado funções na Secção de Conservação e Obras, chegando a conduzir o Dumper já com a referida avaria, o que sucedeu, nomeadamente, na manhã do dia 9 de Outubro de 2014, tendo essa viatura dado um solavanco quando o arguido ligou o motor.

16. Apesar de ter conhecimento desses factos e dos riscos que a viatura apresentava, bem como de se ter dado conta da existência de outras pessoas próximo do Dumper, o arguido não adoptou as necessárias medidas de cuidado, como podia e devia, nomeadamente, ao ligar a viatura, colocar o pé na embraiagem e colocar a caixa de velocidades em ponto-morto, de forma e evitar solavancos e, consequentemente, não provocar o embate e a queda de F….

17. O arguido tinha o Curso de ….

18. Ao actuar da forma atrás descrita, o arguido agiu com falta de consideração pelas regras de segurança relativas à utilização do Dumper e, ao não ter colocado o pé na embraiagem e não colocar a caixa de velocidades em ponto-morto, mas antes fazendo um uso desatento e descuidado da viatura, não agiu com a diligencia que lhe era exigível e que estava ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.

19. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

20. Logo a seguir ao acidente, o arguido acudiu F…, procurando socorrê-lo, pedindo água e chamando a enfermeira.

21. Na viatura particular do arguido, não é possível accionar a ignição com uma mudança engrenada.

22. No Exército Português, os graduados, habitualmente, não conduzem viaturas militares.

23. O Dumper atrás indicado tem mais de 20 anos.

24. Nada consta do registo criminal do arguido.

25. O arguido adoptou uma postura correcta e colaborante em audiência de julgamento.

26. Tem actualmente 39 anos de idade.

27. É casado.

28. Tem dois filhos, menores de idade.

29. Vive com a sua mulher e os seus filhos.

30. É 1º Sargento de … do Exército Português, desempenhando presentemente funções no Regimento …, em ….

31. Foi voluntário e integrou as forças de paz que o Exército Português deslocou para o Líbano, no âmbito da operação das Nações Unidas (ONU) denominada United Nations Interim Forces in Lebanon (UNIFIL), e para o Kosovo, no âmbito da operação da North Atlantic Treaty Organization (NATO) denominada Kosovo Force (KFOR).

32. O arguido recebeu:
- Em 14 de Fevereiro de 2004, uma referência elogiosa pelos serviços prestados na instrução ministrada no Batalhão …;
- Em 9 de Março de 2004, uma medalha de cobre por comportamento exemplar;
- Em 20 de Fevereiro de 2006, um louvor pelos serviços prestados no Regimento …;
- Em 26 de Junho de 2006, uma referência elogiosa pelos serviços prestados nas Cerimónias Militares e no Concerto de Gala … e de …, respectivamente;
- Em … de 2008, uma medalha por serviços especiais nas Forças Armadas;
- Em … de 2008, um louvor pelos serviços prestados no Líbano, no âmbito da operação UNIFIL;
- Em … de 2009, uma medalha Dom Afonso Henriques – 4ª Classe;
- Em … de 2009, um louvor pelos serviços prestados no Kosovo, no âmbito da operação KFOR;
- Em … de 2009, uma medalha por serviços especiais nas forças armadas;
- Em … de 2010, uma medalha da ONU;
- Em … de 2010, uma medalha da NATO;
- Em … de 2013, uma medalha de prata por comportamento exemplar; e
- Em … de 2013, um louvor pelos serviços prestados na Escola ….

33. Nada consta do registo disciplinar militar do arguido.

34. Aufere actualmente um vencimento mensal aproximado de €1.200 (Mil e duzentos Euros).

35. O seu agregado tem um Ford … e um Volkswagen ….

36. O Centro Hospitalar D…, EPE é uma instituição hospitalar integrada no Serviço Nacional de Saúde que tem por fim a prestação de cuidados de saúde.

37. No exercício da sua actividade, prestou assistência médico-hospitalar a F….

38. Essa assistência hospitalar custou €138,33 (Cento e trinta e oito Euros e trinta e três cêntimos).

Factos não provados:
1. Que nas circunstâncias de espaço e tempo atrás descritas, F… estivesse a trabalhar de costas para o Dumper.

2. Que nas referidas circunstâncias, antes de accionar a ignição do Dumper, o arguido tivesse advertido todas as pessoas que se encontravam no local que iria descer a báscula da viatura, a fim de facilitar o trabalho de descarga.
*
O recorrente censura a sentença recorrida porque, na sua perspectiva, o tribunal a quo, na determinação da pena concreta, não respeitou as orientações legais definidas no artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, porquanto:
- a gravidade da ilicitude da conduta do arguido é manifesta (“dispensa mesmo qualquer adjectivação”);

- o grau de culpa é elevado, mesmo considerando que agiu com negligência inconsciente, pois violou elementares deveres cuidados que podia, e estava obrigado, a observar;

- são elevadas as necessidades de prevenção geral.

Vejamos, então, se foram devidamente ponderados na sentença recorrida estes factores de determinação da medida da pena.
Depois de uma introdução sobre os parâmetros de determinação da pena e de considerar que, no caso, são “médias” as exigências de prevenção geral e “muito reduzidas” as necessidades de prevenção especial, ponderou-se na sentença recorrida:
“No caso concreto, além das circunstâncias já apreciadas aquando da escolha da natureza das sanções, cumpre salientar as seguintes:
- O arguido actuou com mera negligência inconsciente, nem sequer tendo chegado a prever a morte de F…, nem mesmo o acidente (embora o pudesse e devesse prever);
- Mesmo dentro do tipo legal simples do crime de homicídio por negligência previsto no artº 137º, nº 1, do Código Penal (negligência simples, não grosseira), a violação dos deveres objectivos de cuidado foi pouco grave;
- Logo a seguir ao acidente, o arguido acudiu F…, procurando socorrê-lo, pedindo água e chamando a enfermeira, expressão de solidariedade humana natural, espontânea e prontamente manifestada;
- Nada consta do registo criminal do arguido, nem do seu registo disciplinar enquanto militar do Exército Português;
- O arguido adoptou uma postura correcta e colaborante em audiência de julgamento;
- Tem actualmente 39 anos de idade;
- É casado;
- Tem dois filhos, menores de idade;
- Vive com a sua mulher e os seus filhos;
- É 1º Sargento …, desempenhando presentemente funções no Regimento …, em …;
- Foi voluntário e integrou as forças de paz que o Exército Português deslocou para o Líbano, no âmbito da operação das Nações Unidas (ONU) denominada United Nations Interim Forces in Lebanon (UNIFIL), e para o Kosovo, no âmbito da operação da North Atlantic Treaty Organization (NATO) denominada Kosovo Force (KFOR); e
- No seu percurso profissional, recebeu quatro louvores e sete medalhas, para além de referências elogiosas dos seus superiores hierárquicos.

Em face de todos estes factores de determinação da medida concreta da pena, o Tribunal considera necessária, suficiente, adequada e proporcional uma pena de 4 (quatro) meses de prisão”.
Como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Tende a ser praticamente consensual na jurisprudência o acolhimento da doutrina[3] de que a pena visa finalidades, exclusivamente, preventivas (de prevenção geral e de prevenção especial), cabendo à culpa a função de impedir excessos, sendo pressuposto (não pode haver pena sem culpa) e limite inultrapassável da pena (em caso algum a medida desta pode ultrapassar a medida da culpa).
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
A finalidade primeira da aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos[4].
Prevenção geral positiva ou de integração, tendo-se em vista uma concepção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.
É esta ideia de prevenção geral positiva, enquanto finalidade primordial visada pela pena, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa.
São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a chamada “moldura da prevenção” (em que o quantum máximo da pena corresponderá à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior é aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar), dentro da qual cabe à prevenção especial (por regra, positiva ou de (res)socialização) determinar a medida concreta.
A determinação da medida da pena em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto e as chamadas consequências extra - típicas) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado, etc.
É bem sabido que na estrutura da criminalidade em Portugal os crimes cometidos por negligência, por desrespeito de regras básicas, sobretudo os cometidos a conduzir ou manobrar veículos a motor, têm uma expressão significativa e por isso são muito sentidas exigências de prevenção geral.
Aliás, a elevada sinistralidade rodoviária foi a razão adiantada pelo legislador de 1995 para o agravamento da pena do homicídio negligente (vd. preâmbulo do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março).
A esse propósito, o Professor Figueiredo Dias (“Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, p. 351) referia a existência de “requisitório em favor de um tratamento jurídico-penal cada mais severo de certos factos negligentes; ao ponto de não faltar mesmo quem preconiza para eles molduras penais cujo máximo exceda o limite mínimo do correspondente facto doloso”.
Sobre a justificação político-criminal da punição da negligência no crime de homicídio, o mesmo autor refere que esse se tornou «fenómeno maciço, dadas as inúmeras fontes de perigo para a vida imanentes à “sociedade do risco” contemporânea», com destaque para a circulação rodoviária.
São fortes as exigências de prevenção geral, já que, apesar de todas as campanhas, não obstante o forte agravamento das reacções penais (como aconteceu com a Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, que aumentou para 3 meses a três anos a moldura da pena acessória da proibição de conduzir) é muito frequente a prática destes ilícitos.
Cremos poder afirmar que era ideia generalizada que, no âmbito da instituição militar, em matéria de observância de elementares regras de segurança e diligência, prevalecia o rigor, senão mesmo a intolerância face ao laxismo e ao facilitismo.
Este caso, e outros de que se vai tendo notícia[5], contraria essa ideia.
Em suma, quer pela sua frequência, quer pelas graves consequências que, geralmente, andam associadas a este tipo de crimes, são prementes as exigências de prevenção geral, a justificarem que a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar se situe na segunda metade da moldura penal, assim se divergindo da afirmação contida na sentença recorrida de que são, apenas, “médias” essas necessidades.
A finalidade preventivo-especial da pena é evitar que o agente cometa, no futuro, novos crimes. Evitar a reincidência, portanto.
Sendo primordial a função de socialização, a tarefa que se impõe ao juiz é averiguar se o agente está carecido de socialização.
Quando o agente não revela carências de socialização, como nos diz o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 244), “tudo será questão, em termos de prevenção especial, de conferir à pena uma função de suficiente advertência do agente, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico, ou mesmo que com ele coincida. Se é certo que esta função de advertência joga o principal papel em tema de penas de substituição, ela pode relevar igualmente, e de forma decisiva, no âmbito de medida da pena”.
Na sentença sob recurso afirma-se que “são muito reduzidas as exigências de prevenção especial” porque o arguido não tem antecedentes criminais, está “perfeitamente integrado na sociedade”, é militar do Exército Português com “uma folha de serviço exemplar, fora do comum, acima da média” e teve “uma postura correcta e colaborante em audiência de julgamento”, pelo que “o perigo de reiteração criminosa é praticamente nulo”.
Dos factos apurados é possível concluir que, realmente, o arguido não revela graves carências de socialização.
No entanto, uma boa inserção social requer, também, uma boa capacidade de auto - censura e de auto - crítica, uma predisposição para interiorizar o desvalor da conduta punível, essenciais para se poder afirmar que o perigo de repetição de condutas criminosas é inexistente ou diminuto, mas da factualidade apurada não resulta que o arguido reúne essas características.
Nada, nessa factualidade, revela que teve manifestações de genuíno arrependimento, sequer que o verbalizou (como faz notar o recorrente), e a interiorização da censurabilidade da conduta punível é o primeiro passo para se redimir.
Aliás, na resposta que apresentou, imputa, parcialmente, a outrem a culpa pela morte que (só ele) causou, precisamente a quem não teve culpa alguma: o funcionário civil G… (condutor habitual da viatura) que fez aquilo que devia ter feito, ou seja, comunicar a avaria.
Estas circunstâncias, se não são suficientes para lançar a dúvida sobre a sua sensibilidade à pena e sobre a susceptibilidade de ser por ela influenciado, levam-nos a encarar com reservas a generosa conclusão, a que se chegou na 1.ª instância, de que o perigo de reiteração criminosa é inexistente.
Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, mais uma vez, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit, 245), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto].
Com a tipificação do crime cometido pelo arguido tutela-se um bem eminentemente pessoal: a vida.
O grau de ilicitude da conduta do arguido é significativamente elevado, não só pela natureza do bem jurídico jurídico lesado, mas também porque ceifou a vida de um jovem.
A negligência revela-se muitíssimo intensa, já que a conduta do arguido ultrapassa a falta de destreza ou a imperícia, podendo falar-se de “uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez”[6].
Também aqui divergimos, frontalmente, da decisão da 1.ª instância que considerou que o ter actuado “com mera negligência inconsciente” torna menos censurável a conduta do arguido.
Como é sabido, a negligência inconsciente pode ser uma forma mais grave de realização do facto e, no caso concreto, raia o grosseiro.
A este propósito, o Professor José de Faria Costa (“Direito Penal Especial – Contributo a uma sistematização dos problemas “especiais” da Parte Geral”, Coimbra Editora, 2004, 95) é bem claro:
“Nesta tentativa de captura do âmago da negligência grosseira vai já expresso, todo ele, também, o nosso pensamento sobre o modo como ela se deve articular com a negligência consciente e com a negligência inconsciente.
Com efeito, poder-se-ia pensar o comportamento negligente - a nosso ver erradamente - à luz de uma escala de desvalor ascendente: a negligência inconsciente encontrar-se-ia no extremo da menor gravidade, no centro estaria a consciente e, no limite do desvalor máximo, desvendar-se-ia a negligência grosseira. Uma tal compreensão em crescendo da negligência levar-nos-ia à conclusão de que a negligência grosseira, por força da sua localização naquela escala, teria de possuir as notas caracterizadoras da negligência consciente e algo mais que justificasse a exasperação do desvalor. Não seria, assim, pensável a qualificação como grosseira de uma negligência - a inconsciente - vista como um minus à luz daquela gradação.
Não se nos afigura, porém, adequada, por desconforme com a realidade, uma arrumação de tal modo espartilhada desta categoria dogmática que é a negligência. É, de resto, do mais elementar senso comum a ideia de que a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode ser, em si mesma, muito mais desvaliosa; será, com efeito, assim, sempre que a probabilidade de ocorrência daquele resultado se apresenta de tal modo evidente que o cidadão comum, medianamente consciente e cumpridor dos comandos normativos, teria, de forma clara, evitado a conduta violadora do dever de cuidado. Caberão, assim, inequivocamente, na categoria da negligência grosseira, à luz do esboço de definição que há muito propusemos (e a repetição tem no caso um mero valor de reafirmação), também os casos em que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o Outro”.
Cabe aqui referir que o autor citado entende que é no domínio da ilicitude que a negligência grosseira tem o seu particular recorte, verificando-se “…sempre que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, ou por força de uma profunda ausência de cuidado elementar, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o «outro»” (Op. Cit, 94).
Diverge, assim, do pensamento do Professor Figueiredo Dias, segundo o qual a negligência grosseira releva não só ao nível do ilícito como da culpa, pois reconhece razão a Roxin quando este defende que “…o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito. A nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada” (“Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, 668-669)[7].
O facto de o arguido ter efectuado o movimento de rotação da chave da ignição do motor da “Dumper” sem estar aos respectivos comandos (pois estava, de pé, do lado de fora da viatura) e estando o infeliz F… a descarregar lenha num espaço de cerca de 80 cm entre a frente da viatura e a parede do edifício (sendo por isso perfeitamente visível para o arguido[8]), já podia considerar-se uma acção particularmente perigosa e censurável, reveladora de negligência temerária.
Mas o arguido tinha conhecimento de que o travão de serviço ou “travão de mão” da viatura tinha uma avaria que impossibilitava o seu correcto funcionamento, pelo que não seria difícil prever que, parada, tivesse engrenada uma das primeiras velocidades.
Mais: no mesmo dia (09.10.2014), de manhã, já o arguido havia executado acção idêntica e o resultado foi que o “Dumper” deu um solavanco quando foi ligado o motor.
Por isso, era facilmente previsível para o arguido que, à tarde, quando voltou a ligar o motor da viatura, sem estar aos respectivos comandos (para poder carregar no pedal da embraiagem), acontecesse o mesmo e, com o solavanco, a viatura atingisse, como atingiu, o F….
A conduta do arguido revela, assim, um “alto e inqualificável teor de imprevisão” e, portanto, um grau de negligência particularmente intenso.
Por tudo isto, é diminuta (como a qualifica a Ex.ma PGA no seu parecer), quase simbólica, a pena de 4 meses de prisão cominada ao arguido na primeira instância.
Tem, pois, inteira razão o recorrente ao considerar, manifestamente, desadequada, a pena aplicada e a pena por que pugna (16 meses de prisão) é o mínimo reclamado pelas necessidades de prevenção geral (ou seja, a reposição e reforço das expectativas comunitárias na validade da norma violada exige esse quantum de pena) e, de modo algum, excede a medida da culpa (grave) do arguido.

III Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, mantendo-se a condenação do arguido B… pela autoria material de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, alterar, no entanto, a medida da pena, que agora se fixa em 16 (dezasseis) meses de prisão, com suspensão da respectiva execução por igual período.
Sem tributação.

Porto, 8/3/2017
Neto de Moura
Ana Bacelar
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[1] De que não forneceu cópia em suporte digital.
[2] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[3] Cujo expoente máximo é, sabidamente, o Professor Figueiredo Dias (cfr. a sua obra “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, 75 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto).
[4] Com uma perspectiva diversa, defendendo que «encontrar a “justa retribuição”, a pena “merecida” para o delinquente constitui a finalidade primeira da sanção, embora logo seguida das necessidades preventivas, especial e geral», A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 501.
[5] O hermetismo da instituição militar não permite que se saiba muito do que lá se passa.
[6] Figueiredo Dias, Op. Cit., 669.
[7] Adoptando, também, este entendimento, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 111).
[8] Aliás, está provado que o arguido se apercebeu da existência de várias pessoas próximo do “Dumper”.