Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5544/11.6TAVNG-K.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO RIBEIRO COELHO
Descritores: BURLA TRIBUTÁRIA
REPARAÇÃO
Nº do Documento: RP201604075544/11.6TAVNG-K.P2
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 995, FLS.68-72)
Área Temática: .
Sumário: A causa extintiva do procedimento criminal prevista nos art. 206º, n.º 1 e 217.º, n.º 4, do Cód. Penal [Restituição ou reparação], não é aplicável ao crime de Burla tributária, do art. 87.º, n.º 1, RGIT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 5544/11.6TAVNG-K.P2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
Por decisão de proferida em audiência de julgamento, no dia 25/9/2015, o tribunal de primeira instância declarou extinto, nos termos do Art.º 206.º, n.º 1, do Código Penal, o procedimento criminal relativamente aos arguidos B…; C…, D…, E…, F…, G… e H…, que se encontram acusados pela prática de crimes de burla tributária, tal como p. c p. pelo Art.º 87.º do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias).
Não se conformando com esta decisão, dela o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação:
1.º O Ministério Público discorda da decisão que determinou a extinção do procedimento criminal contra os arguidos B…; C…, D…, E…, F…, G… e H…, e o consequente arquivamento dos autos por força da aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla tributária, p. e p. pelos arts. 87º nº 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, de quem vinham respectivamente acusados, por força da aplicação subsidiária àquele diploma legal avulso das disposições legais enunciadas no Código Penal, conforme art. 3º a) do RGIT.
2.º O Ministério Público defende que o disposto no art. 206º do Código Penal não é aplicável aos ilícitos criminais tipificados no Regime Geral das Infracções Tributárias porquanto sendo uma lei especial a mesma não contempla a possibilidade de aplicação do mencionado normativo, tipificado no Código Penal apenas para crimes contra o património e propriedade, e sem remissão da sua aplicação a crimes tipificados em legislação avulsa, ainda que de natureza análoga aos tipificados na legislação comum.
3.º A remissão realizada pelo art. 3º a) do RGIT contempla apenas uma remissão para as normas gerais do Código Penal passíveis de aplicação a qualquer ilícito criminal, ainda que tipificados em legislação avulsa, e não para normas específicas, como é o caso do art. 206º do Código Penal, aplicável a um núcleo restrito de ilícitos comuns.
4.º O bem jurídico protegido no crime de burla tributária à Segurança Social de que os arguidos se encontram acusados, p. e p. pelo art. 87º do RGIT, não visa apenas a protecção do património do Estado, como parece ter sido o entendimento perfilhado no despacho recorrido, e, por isso, passível de ter um tratamento idêntico ao património e propriedade dos particulares afectados pelo acto criminoso, mas antes a protecção do erário público enquanto interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo Estado, a quebra da relação de confiança em que assenta a relação fiscal entre o beneficiário e o Estado, não se limitando o legislador a criminalizar o recebimento indevido de um beneficio, para o qual a lei prevê a utilização dos cabais mecanismos em sede de execução fiscal, mas sobretudo o sancionamento criminal de comportamentos dolosos dos contribuintes que atentem contra a lealdade e cooperação para com o Estado.
5.º A reparação dos prejuízos causados pelos arguidos à Segurança Social pela sua actuação apenas poderia ter sido objecto de valoração no âmbito do regime consagrado pelos arts. 22º e 44º do RGIT que prevêem expressamente a possibilidade de uma aplicação aos arguidos do instituto da dispensa de pena, ou porventura, a atenuação especial da mesma ou o arquivamento com dispensa de pena.
6.º Se fosse intenção do legislador permitir a extinção do procedimento criminal nos ilícitos de natureza fiscal tipificados no RGIT e, mormente no caso em apreço, da burla tributária por força da aplicação do art. 206º do Código Penal expressamente o teria feito consignar no corpo do art. 87º do RGIT acrescentando um novo número àquele normativo ou introduzindo no corpo daquele art. 206º do Código Penal um número que permitisse a sua aplicação subsidiária aos crimes nele tipificados em legislação avulsa de natureza análoga.
7.º A aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal há-de resultar de factos que inequivocamente exprimam um sentimento espontâneo, livre e não pressionado ou determinado por condicionalismos exógenos de restituição ou de reparação, como sucedeu, no caso dos arguidos em que que subjacente à aludida reparação esteve sobretudo procurarem obter a regularização da sua carreira contributiva junto da Segurança Social em ordem a que no futuro continuassem a poder beneficiar do pagamento de prestações contributivas e não a expiação da sua culpa pela reparação do mal causado e reconhecimento do desvalor da sua acção.
8.º Em relação ao arguido G… não tendo o mesmo procedido a qualquer reparação voluntária ao Instituto da Segurança Social de valores devidos àquele organismo mas, pelo contrário, sido o Instituto de Segurança Social a transaccionar com o arguido, no âmbito de acção pendente no TAF, a restituição àquele de prestações sociais que lhe eram devidas, não poderiam os Mmos. Juízes aplicar, no caso em apreço, o disposto no art. 206º do Código Penal, extinguindo, quanto ao mesmo, o procedimento criminal por não se verificarem os pressupostos de aplicação do mencionado normativo.
9.º Ainda que porventura fosse passível de aplicação o disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla qualificada tributária de que os arguidos se encontravam acusados, o que só por mera hipótese se pode considerar, sempre se nos afiguraria ser indispensável a realização quanto aos mesmos de julgamento pelos factos de que os mesmos se encontravam acusados porquanto sempre a actuação dos mesmos seria passível punição pelo eventual crime de falsificação de documento consubstanciado no envio de declarações de remunerações falsas ao Instituto de Segurança Social, do qual poderia vir a resultar, em sede de uma alteração da qualificação jurídica a operar nos termos do art. 358º do Código de Processo Penal, a condenação daqueles, tal como previsto pelo art. 87º nº 4 do RGIT.
10.º Violaram pois os Mmos Juízes as normas tipificadas nos arts. 3º a); 22º, 44º e 87º nº 1, 2 , 3 e 4 do RGIT ; art. 206º do Código Penal e 358º do Código de Processo Penal ao interpretarem as mencionadas normas no sentido de que a reparação dos prejuízos causados à Segurança Social pelos arguidos conduziria, por força da aplicação subsidiária das normas do Código Penal enunciadas no art. 3º a) do RGIT e do disposto no art. 206º do Código Penal, à extinção do procedimento criminal pelo crime de burla tributária de que os arguidos vinham acusados, nos termos do art. 87º nº 1, 2 e 3 do RGIT, e, consequentemente, não daria lugar à aplicação, no caso em apreço, do disposto no art. 22º do RGIT, mas de imediato à extinção do procedimento criminal contra os mesmos, sem a possibilidade daqueles serem julgados com eventual alteração da qualificação jurídica do ilícito de que vinham acusados, nos termos do art. 358º do CPP.
11.º O sentido com que os Mmos. Juízes interpretaram aqueles normativos no entender do Ministério Público contraria a vontade do legislador sendo que a única interpretação que se nos afigura consentânea com o texto daquelas normas a de que a aplicação subsidiária das normas enunciadas no Código Penal e Processual Penal, a que alude o art. 3º a) do RGIT, refere-se apenas e tão só às normas gerais enunciadas naqueles normativos, aplicáveis a todos os crimes quer tipificados em legislação avulsa quer crimes comuns, e, por isso, não seria passível a aplicação do disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla tributária de que os arguidos vinham acusados, tipificados no art. 87º do RGIT, por se tratar de uma norma aplicável apenas aos crimes nela enunciados e aos crimes onde a mesma se encontra expressamente prevista, sem a possibilidade da sua remissão para os crimes de natureza fiscal tipificados no RGIT, que pela natureza do seu bem jurídico não permitem a aplicação daquele normativo com a consequente extinção do procedimento criminal, mas apenas e tão só, havendo lugar a uma reparação do prejuízo, a possibilidade de aplicação do instituto da dispensa de pena ou da atenuação especial da pena ou do arquivamento por dispensa de pena, conforme previsto nos arts. 22º e 44º do RGIT.
12.º A decisão proferida no sentido da extinção da responsabilidade criminal dos arguidos violou ainda o disposto no art. 358º do CPP ao considerar que estando os factos pelos quais os arguidos vinham acusados apenas tipificados no crime de burla tributária não poderiam os Mmos. Juízes conhecer dos factos que lhes eram imputados em sede de audiência de julgamento, o que, a nosso ver, contraria o disposto no art. 358º do CPP, considerando que sempre haveriam os Mmos. Juízes que, em face dos factos imputados, procederem á realização da audiência de julgamento e dando-se como provados os factos ali descritos, imputados aos arguidos, procederem à eventual alteração da qualificação jurídica para um crime de menor gravidade, como seria o de falsificação de documento, por força do disposto no art. 358º do CPP e art. 87º nº 4 do RGIT.
Nestes termos, e nos demais que V. Excias. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por decisão que determine o prosseguimento dos autos com vista à designação de datas para a realização da audiência de julgamento em relação aos arguidos B…; C…, D…, E…, F…, G… e H…pelos factos e crimes pelos quais os mesmos se encontram acusados.
Por seu turno, na sua resposta, o arguido F… pugna pela manutenção da decisão extintiva do procedimento criminal, concluindo as suas alegações dizendo que não vislumbrava no recurso quaisquer razões que possam fundamentar a sua pretensão, já que o despacho em recurso fez correcta apreciação da matéria factual e aplicou os comandos jurídicos atinentes a tal matéria.
Nesta sede o Ex.mo Procurador-geral adjunto pugna pela procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente na sua motivação, sendo que, para além disso, poderão ser conhecidas questões de conhecimento oficioso por parte deste tribunal de recurso. Neste recurso cumpre apreciar se estavam verificados os requisitos legais para que fosse declarado extinto o procedimento criminal dos arguidos e, mais precisamente, qual a aplicação do invocado Art.º 206.º do Código Penal em matéria de crimes fiscais.
***
Importa antes de mais atentar no teor da decisão recorrida.
“(…)
Após, o Mmo. Juiz Presidente proferiu o seguinte
DESPACHO
Face à posição de concordância hoje assumida pela Assistente Instituto de Segurança Social e ao disposto nos art° 206°, 217° e 218° do C. Penal, aplicáveis ao caso, no entender do Tribunal, por força do disposto no art° 3°, al. a) do RGIT, verificando-se a reparação integral dos prejuízos causados, e a concordância da ofendida Instituto de Segurança Social, o Tribunal colectivo delibera declarar extinta a responsabilidade criminal dos arguidos (…), pela prática do crime de burla tributária de que vinha pronunciado.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique.
(…) ”
****
É este circunstancialismo que há-de ser considerado, fundamentalmente, para bem decidir o recurso.
A única questão que se coloca é de direito e consiste em saber se a causa extintiva do procedimento criminal prevista nos Art.ºs 206.º, n.º 1, 217.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável ao crime de burla tributária, p. e p. pelo Art.º 87.º, n.º 1, do RGIT.
Atentas as razões invocadas pelo Ministério Público no seu recurso, acolhida a argumentação ali desenvolvida, que genericamente sufragamos, consideramos que deve ser dada resposta negativa à questão suscitada e que, portanto, a pretensão formulada neste recurso merece inteiro provimento.
O despacho recorrido declarou extinta a responsabilidade criminal dos arguidos identificados, pela prática do crime de burla tributária de que vinha pronunciado, “ao abrigo do disposto nos Art.ºs 206.º, 217.° e 218.°, todos do Código Penal, aplicáveis ao caso (…) por força do disposto no Art.º 3.º, al. a) do RGIT”. O Tribunal a quo aplicou assim, sem justificação atendível, o disposto no Art.º 206.º do Código Penal, partindo do pressuposto que existiria uma lacuna de regulamentação ou uma aplicação subsidiária do regime penal comum.
Mas trata-se de um pressuposto que não é verdadeiro.
Vejamos.
Desde 1976 que o legislador português assumiu expressamente a necessidade de criminalizar os comportamentos que põem em causa os interesses fiscais do Estado. Fê-lo, pela primeira vez, com o Decreto-Lei n.º 619/76, de 27 de Julho, aí tendo assumido a necessidade de um direito penal tributário ou fiscal, reportado então e apenas aos fenómenos da evasão e da fraude fiscal.
Com os sucessivos diplomas criminalizadores, onde se destacam o RJJFNA e o actual RGIT, o legislador, a doutrina e a jurisprudência sempre assumiram a existência de um Direito Penal Fiscal, especial porque sempre diferenciado das normas incriminadoras do Código Penal. E, como verdadeiro ordenamento jurídico especial que é em relação ao direito penal comum, o intérprete deve sempre cingir-se às normas do direito penal especial e não às normas do direito penal comum que apenas serão aplicadas em moldes subsidiários.
As condutas em infracção às normas fiscais têm um tratamento autónomo em face do direito penal comum, ou seja o RGIT, tal como já sucedia com o RJIFNA, contém um direito penal especial que rege de forma tendencialmente integrada e plena a tutela criminal dos interesses tributários do Estado.
Foi, de resto, no reconhecimento desta especialidade que se fixou jurisprudência no sentido de que sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado não se verifica concurso real entre os crimes fiscais e os crimes comuns, mas somente concurso aparente de normas com prevalência das que prevêem os crimes de natureza fiscal (cfr. Ac. do STJ n.º 3/2003).
E esta consideração é verdadeira tanto para o preenchimento dos tipos de ilícito como para efeitos do preenchimento das causas extintivas da responsabilidade criminal.
O direito penal comum constitui direito subsidiário do direito penal tributário, como, de resto, de todos os outros ramos de direito penal especial e contraordenacional, o que apenas significa que na falta de regulamentação do RGIT se aplicam as normas do direito penal comum constantes do Código Penal e são elas a maioria das constantes da parte geral Código Penal, nomeadamente as respeitantes ao dolo, à negligência, à comparticipação, às causas gerais de exclusão da ilicitude e da culpa c mesmo estas apenas e só quando dos diplomas especiais do direito penal tributário não constem normas específicas.
Tudo vale por afirmar que a citada norma do Art.º 3.º, alínea a), do RGIT não permite o recurso indiscriminado às normas do Código Penal e muito menos a normas que, também elas, são especiais por se reportarem a concretos tipos de ilícito previstos na parte especial daquela regulamentação.
O Ministério Público, aqui recorrente, entende que não existe qualquer lacuna, pois o RGIT regula exaustivamente, nos seus Art.ºs 22.º e 44.º, as consequências do pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, prevendo expressamente a possibilidade de dispensa da pena ou arquivamento dos autos, com dispensa da pena. Argumenta ainda o MP que, mesmo a ser aplicável o Art.º 206.º do Código Penal, não era possível, nesta fase do processo (isto é, durante a audiência de discussão e julgamento) julgar extinto o procedimento criminal, pois o comportamento do agente poderia vir a ser punido pela prática do crime de falsificação, tal como previsto no Art.º 87.º, n.º 4, do RGIT.
Analisemos este ponto.
O n.º 1 do Art.º 206.º do Código Penal, sob a epígrafe “Restituição ou reparação”, refere o seguinte:
1. Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 204º e no n.º 4 do artigo 205º, extingue-se responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados”.
Relativamente ao crime burla, o n.º 4 do Art.º 217.º do Código Penal refere o seguinte: “É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º”. Idêntica remissão é feita no n.º 5 do Art.º 218.º, sob a epígrafe “Burla relativa a seguros”.
Por seu turno, o mencionado Art.º 3.º do RGIT diz-nos que são aplicáveis subsidiariamente, “Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar”.
A questão de saber se o Art.º 206.º, 1 do Código Penal é (ou não) aplicável, é assim a de saber se o RGIT, relativamente aos efeitos da reparação integral dos prejuízos causados, contém (ou não) uma lacuna. Colocada a questão noutra perspectiva, o que importa é saber se o RGIT regula toda a matéria relativa à relevância do pagamento integral do prejuízo causado.
Na verdade, perante um complexo normativo que pode qualificar-se como lei geral (Código Penal) e um outro que pode qualificar-se como lei especial (RGIT), a dificuldade interpretativa radica em saber se a circunstância de a lei especial não se referir à extinção do procedimento criminal, quando o agente proceda à reparação integral dos prejuízos, até à publicação da sentença em 1ª instância, é uma lacuna a preencher pela aplicação subsidiária do Código Penal (Art.º 3.º do RGIT), ou não é lacuna nenhuma, mas sim uma derrogação da lei geral.
O Ministério Público tem razão na argumentação expendida. Na verdade, o RGIT é uma lei especial relativamente ao direito penal comum (Código Penal) e regulou de forma expressa a questão relativa à reposição da verdade fiscal e pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, nos seus artigos 22.º e 44.º.
Sobre este âmbito de aplicação, consultem-se Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário (Relatório) – Sobre as Responsabilidades das Sociedades e dos Seus Administradores Conexas com o Crime Tributário, 2009, Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 125-129; e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEF, n.º 5, 3.ª Edição, Coimbra: Almedina.
Por outro lado, a norma do mencionado Art.º 206.º, n.º 1, do Código Penal, não deixa de prever uma causa especial de extinção da responsabilidade criminal. Especial porque apenas prevista para os tipos de ilícito das alíneas a), b) e e) do n.º 1 e a) do n.º 2 do Art.º 204.º e n.º 4 do Art.º 205.º (alguns dos subtipos dos crimes de furto e abuso de confiança), 212.º n.º 4 e 213.º n.º 3 (alguns dos subtipos dos crimes de dano), 216.º n.º 3 (alteração de marcos), 217.º n.º 4 e 218.º n.º 3 (alguns dos subtipos dos crimes de burla) e que se traduz na reparação integral dos prejuízos causados.
São pressupostos desta solução legal, que se vem designando como justiça restaurativa (a reparação do dano, sobretudo nos crimes patrimoniais, seria adequada e suficiente para satisfazer as necessidades de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade das normas violadas):
- que tenha sido cometido um crime em que a norma incriminadora expressamente contemple este regime;
- que haja restituição da coisa ou a reparação integral dos prejuízos causados, sem dano ilegítimo de terceiro; e
- que a extinção da responsabilidade criminal por esta via tenha a concordância do(s) ofendido(s) e do(s) arguido(s).
A verificação cumulativa destes requisitos até à publicação da sentença da l.ª instância determina automaticamente (ope legis) a extinção da responsabilidade criminal.
Ora, como muito bem refere o Ministério Público, aqui recorrente, em nenhum dos ilícitos tipificados no RGIT se prevê expressamente a possibilidade de extinção do procedimento criminal nos termos consagrados no Art.º 206.º do Código Penal, quer pela via da remissão para esta norma quer pela consagração de norma específica a contemplar essa hipótese.
Termos em que não só porque, como supra já se referiu, o direito penal tributário é especial, como especial é também a citada causa de extinção do procedimento criminal prevista no Art.º 206.º do Código Penal não há fundamento jurídico válido para a sua aplicação aos crimes ele burla tributaria de que os recorridos se encontram acusados.
Nem a similitude entre os elementos típicos do crime de burla tributária e o crime de burla comum o permitem, nem existe lacuna. Ainda que lacuna existisse o seu preenchimento nunca se poderia fazer pela via da aplicação de norma do direito penal comum exclusivamente prevista para um numerus clausus de tipos de ilícito.
Mas um outro tipo de argumento foi adicionado a esta conclusão.
Quer a burla comum, quer a burla tributária constituem crimes de resultado e de execução vinculada, porém o legislador tributário, diferentemente do que fez o legislador do Código Penal, concretizou a "matriz" dos meios fraudulentos tendentes a induzir o erro ou engano, donde se não confundem aqueles tipos de ilícito. O crime de burla tributária não é apenas um crime contra o património, mas também um crime contra os interesses fiscais ou parafiscais do Estado. Tutelando o crime de burla tributária também o património público, necessariamente tutela por via mediata ou reflexa, os valores a ele associados de igualdade e justiça social, pelo que a sua regulamentação se contém no direito penal tributário. Ao contrário da burla comum, a burla tributária é sempre crime público.
Como escreve Susana Aires Sousa, in Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexões sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 299, “o bem jurídico-penal protegido pelos crimes fiscais coincide (...) com a obtenção de receitas fiscais. (...) Trata-se de um bem jurídico coletivo cuja titularidade pertence à comunidade dos indivíduos, por meio do Estado que se compromete a realizar uma gestão adequada e a prosseguir objetivos económicos e sociais reconhecidos como fundamentais pela sociedade”. Consultar, também, quanto ao tipo de bem e aos elementos do tipo, Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, in Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco (Orgs.) Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume 2, Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 412-414, em anotação ao Art.º 87.º do RGIT.
E não se diga que o direito penal tributário não regulamenta a situação de se verificar na burla tributária a reparação dos prejuízos sem dano ilegítimo de terceiro porque o fez, embora em termos diversos dos previstos para a burla comum.
Por opção legislativa, compreensível em razão da diversa natureza dos ilícitos e dos bens jurídicos protegidos, nos crimes de burla tributária a restituição dos benefícios injustificadamente obtidos apenas dá lugar a atenuação especial ou dispensa de pena se o crime for punível com pena de prisão até 3 anos, ou seja apenas no caso do n.º 1 do Art.º 87.º do RGIT, desde que a ilicitude do facto e a culpa do agente não sejam muito graves e à dispensa da pena se não oponham razões de prevenção – cfr. Art.º 22.º do RGIT.
A decisão recorrida violou assim a opção do legislador contida no Art. 22.º do RGIT, criando para os crimes de burla tributária uma causa extintiva do procedimento criminal com requisitos menos exigentes do que aqueles que: o legislador impôs para a atenuação ou dispensa de pena, o que, para além do mais já exposto, se traduz em solução manifestamente ilegal e por isso se impõe a sua revogação.
Constatamos ainda que as consequências da reparação integral do prejuízo são diversas no RGIT e no Código Penal, sendo o regime previsto no RGIT mais exigente. Exigência acrescida que decorre, desde logo, de só ser admissível o arquivamento do processo (situação similar à extinção do procedimento criminal no Código Penal) desde que se verifiquem os pressupostos da dispensa da pena previstos no Art.º 22.º, entre os quais se destacam a ponderação da gravidade da ilicitude e das razões de prevenção (cfr. Art.ºs 44.º e 22.º). Ou seja, no domínio da criminalidade fiscal, nem sequer basta (i) o pagamento e (ii) o acordo da Administração Tributária ou da Segurança Social, para que o processo possa ser arquivado, nos termos do Art.º 44.º
As diferenças de regime justificam-se pela diversa natureza dos bens jurídicos protegidos nos crimes de burla e nos crimes de burla fiscal; neste último está em causa um bem jurídico público, relativamente ao qual nem a Administração Fiscal nem a Segurança Social podem dispor livremente. E justificam-se ainda pelas necessidades de prevenção geral, muito mais acentuadas no domínio da criminalidade fiscal, até por razões históricas de menos consciencialização pública da ilicitude fiscal.
Deste modo, encontramos diferenças claras sobre a relevância jurídica da restituição do benefício ilegítimo, nos regimes previstos no Código Penal e no RGIT, sendo que este último mostra um maior cuidado e exigência na apreciação de tal questão. Com efeito, nos casos em que é admissível o arquivamento do processo (Art.º 44.º do RGIT), o julgador só o poderá fazer quando a ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves e a tal se não opuserem razões de prevenção.
Esta diferença de regimes e sua razão de ser mostram-nos que não estamos perante uma qualquer lacuna de regulamentação do RGIT (a preencher pela aplicação subsidiária do Código Penal), mas sim perante uma regulamentação expressa, diferente e enquanto tal justificada.
Do exposto decorre que existem razões para se concluir que o legislador quis regular exaustivamente no RGIT a situação decorrente do pagamento da dívida tributária ou da restituição do benefício ilegitimamente obtido, uma vez que (i) regulou expressamente a relevância de tal comportamento em todas as fases do procedimento (inquérito, instrução até ao julgamento, decisão final ou prazo nela fixado); (ii) fez essa regulamentação de modo diverso do previsto no Código Penal (iii) a justificação dessas diferenças adequa-se à natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação e pelas especiais razões de prevenção.
Nestes termos, impõe-se conceder provimento ao recurso do MP, uma vez que não estamos perante uma lacuna (oculta) a preencher pela aplicação subsidiária do Código Penal (Art.º 3.º do RGIT) e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos
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III. DECISÃO
Pelo exposto decide este Tribunal da Relação do Port, em julgar provido o recurso apresentado pelo Ministério Público, e, consequentemente, revogar o despacho recorrido de extinção do procedimento criminal, o qual deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos no que respeita aos arguidos aqui em questão.
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Sem custas.
Notifique-se.
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Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (cfr. Art.º 94.º, n.º 2, do CPPenal).

Porto, 7 de Abril de 2016
Nuno Ribeiro Coelho
Renato Barroso