Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
326/11.8PASJM.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: FURTO QUALIFICADO
OBJETO COLOCADO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RP20160928326/11.8PASJM.P2
Data do Acordão: 09/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1023, FLS.167-177)
Área Temática: .
Sumário: Integra o crime de furto qualificado p.p. pelo art.º 204º 1 al. b) CP na versão de 1995, a apropriação de uma carteira que se encontrava no interior de um veículo automóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 326/11.8PASJM.P2
Origem: comarca de Aveiro- Stª Mª da Feira- instância central, 2ª secção criminal- J3

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
O Ministério Público acusou, em processo comum com intervenção de tribunal coletivo, B…, nascido a 11-10-1988, e C…, nascido a 28-10-1990, imputando: ao primeiro arguido, em concurso efetivo, a coautoria material de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1, do Código Penal, e de 1 (um) crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, n.º 2, 73º, 154º, n.º 1 e n.º 2, e 155º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; e, ao segundo arguido, a coautoria material de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1, também do Código Penal.
A final da audiência de julgamento (desconsiderando aqui um primeiro julgamento anulado por esta Relação, com vista ao cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal) foi proferido acórdão em que se decidiu:
- condenar o arguido B.., pela prática, em coautoria material, de um crime de roubo previsto e punido no artigo 210º nº 1 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, absolvendo-o do crime de coação agravada na forma tentada que lhe era imputado na acusação;
- condenar o arguido C…, pela prática, em coautoria material, de um crime de roubo previsto e punido no artigo 210º, nº 1 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Inconformados com o acórdão condenatório, dele vieram ambos os arguidos interpor recursos, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
A) Recurso do arguido C…:
«
1. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito do acórdão proferido nos presentes autos em que o arguido tendo sido acusado pela prática em coautoria de um crime de roubo da previsão do artigo 210º do CP, veio a ser condenado na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa por igual período;
2. Ponto de facto incorretamente julgado:
a)- “Ao avistarem ali o mencionado D… e, apercebendo-se de que o mesmo estava sozinho, os arguidos acordaram entre eles abordá-lo, com o propósito de se assenhorearem de dinheiro que o mesmo tivesse consigo, com recurso à violência e intimidação.”
3. A prova que impõe decisão diversa da recorrida é o depoimento prestado pela testemunha de acusação, em audiência de julgamento, gravadas, constantes do CD áudio.
a)- D…, depoimento registado no CD áudio, minutos 1:23 a 1:57, 2:29 a 2:57, 8:41 a 8:53, 12:37 a 13:00, 15:07 a 15:24 e 19:51 a 20:36.
4. Na verdade, do depoimento da referida testemunha é inequívoco de que o mesmo não estava sozinho, bem como não houve qualquer violência ou intimidação;
5. Quando na douta decisão se refere que os arguidos se aperceberam que “o ofendido estava sozinho, acordaram abordá-lo”, tal denota a intenção de fazer depender da condição de estar sozinho a consecução do crime. Ora, a verdade é que é a própria testemunha que refere várias vezes, a várias instâncias, que não estava sozinho, “estava com um amigo”.
6. E também não resulta provado que tenha havido qualquer violência ou intimidação, desde já porque o ofendido não estava sozinho e, por outro lado, porque do depoimento do mesmo não resulta qualquer tipo de violência, nomeadamente, física, tendo a mesma sido considerada não provada pelo próprio tribunal.
7. Relativamente à violência psíquica diga-se que a mesma também não resulta provada, pois nem sequer é especificada no douto acórdão, concretamente quanto à sua factualidade.
8. Assim, o facto referido foi incorretamente julgado como provado.
9. O crime de roubo é um crime em que são elementos constitutivos, (i) a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, (ii) subtrair ou constranger a que lhe seja entregue, (iii) coisa móvel alheia, (iv) por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir.
10. Não havendo violência não se encontra preenchido o tipo legal de crime de roubo, pelo que o arguido deveria ter sido absolvido do mesmo, com o que se violou o disposto no artº 210º nº 1 do CP.
11. Sem prescindir, o Tribunal a quo baseou a sua convicção quase apenas no depoimento do ofendido, única testemunha da acusação, que segundo o mesmo tribunal fez um depoimento seguro, esclarecedor, sem hesitações, descrevendo apenas aquilo de que se lembrava, demonstrando isenção.
12. No entanto, o ofendido foi quem apresentou queixa, prestou declarações na sequência da mesma, e foi com base nas suas declarações, quase única e exclusivamente, que foi elaborada a acusação.
13. Dessa acusação, o Tribunal veio a considerar não provados os seguintes factos:
1- Ato contínuo, após o arguido C… parar e imobilizar o veículo automóvel em que se faziam transportar, em 2a fila, junto ao referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, pertença do mencionado D…, saíram ambos do seu interior, abeiraram-se daquele e, já junto deste, o arguido B… perguntou "Tens dinheiro? ... Onde está o dinheiro?", ao que aquele respondeu negativamente.
2- Após a resposta negativa do mencionado D…, os arguidos rodearam-no e posicionaram-se de forma a impedir que se pusesse em fuga, agarraram-no e seguraram-no com força e passaram ambos a revista-lo, contra a sua vontade, passando-lhe as mãos pelo corpo e introduzindo-lhe as mãos nos bolsos das peças de vestuário que trajava.
3- Não obstante, os arguidos agarraram-no e, mediante o uso da força, empurraram-no e afastaram-no do seu caminho.
4- Que os arguidos revistaram o referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM.
5- Que os arguidos rodearam o mencionado D… e posicionando-o entre eles, agarrando-o, segurando-o com força e revistando-o contra a sua vontade, e, depois, mediante o uso da força, agarrando-o, empurrando-o e afastando-o do seu caminho.
6- Que ao actuar da forma acima descrita em 110 da acusação, o arguido B… quis, mediante a ameaça com a prática de crime contra a vida, constranger o mencionado D… a não apresentar queixa e a não denunciar à P.S.P ou a outro órgão de polícia criminal ou às autoridades judiciárias os factos por ele acabados de cometer juntamente com o arguido C….
7. Os factos dados como não provados e constantes da acusação são todos eles essenciais ao crime de que os arguidos são acusados; não fazendo apelo a factos novos, como fez, o Tribunal a quo teria que absolver os arguidos do crime de roubo de que vinham acusados.
8. Ora, se a testemunha de acusação, ofendido nos autos, não confirma os factos constantes da acusação, factos esses essenciais à prova do crime de que os arguidos são acusados e que supostamente apenas a própria testemunha de acusação viveu diretamente, como pode o Tribunal afirmar que a mesma fez um «depoimento seguro, esclarecedor, sem hesitações, descrevendo apenas aquilo de que se lembrava, demonstrando isenção».
9. Pelo contrário, a testemunha de acusação ao infirmar a grande maioria dos factos constantes da acusação, factos supostamente passados diretamente com a mesma, veio demonstrar que o seu depoimento é inseguro, hesitante, desconhecedor, no fundo sem qualquer credibilidade.
10. As testemunhas são inquiridas sobre factos de que possuam conhecimento direto e que constituam objeto da prova, devendo responder com verdade às perguntas que lhe são feitas.
11. Se é verdade que não se pode esperar um depoimento absolutamente imaculado, sem discrepâncias, não se pode, nem se deve, contudo, admitir que sobre pormenores factuais simples, evidentes, essenciais e até pessoais, o próprio ofendido, em sede de audiência, possa negar ou não recordar factos passados diretamente com o mesmo.
12. Assim, existe um vício na formação da convicção do Tribunal a quo, na medida em que estamos, no nosso entender, perante uma violação do princípio da livre apreciação da prova estipulada no artº 127º do CPP.
13. Atento o depoimento impreciso prestado pela testemunha de acusação/ofendido em audiência de julgamento relativamente aos factos constantes da acusação, prejudicada fica a apreciação daquele depoimento no sentido da condenação do arguido.
14. A constatação, pelo Tribunal, do teor daquele depoimento, em si mesmo, deveria ter conduzido à absolvição do arguido com base no princípio consagrado constitucionalmente do ‘in dubio pro reo’.»
B) Recurso do arguido B…:
«
1. O arguido B… interpõe o presente recurso da douta decisão do Tribunal a quo que decidiu:
- “Condenar este arguido pela coautoria material de 1 (um) crime de roubo p. e p. pelo artº 210º nº 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e seis meses de prisão …”
2. A convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica e essencialmente da Prova Testemunhal do Ofendido;
3. Há erro notório quando há divergência, mesmo leve, da prova produzida em audiência de julgamento, bem como das regras da experiência, decidindo-se em sentido oposto com o provado ou não provado ou aceite como provado;
4. Não andou bem o Tribunal a quo quando deu como provado que:
“Os arguidos já eram conhecidos do ofendido, que sabiam que os mesmos se dedicavam à prática de crimes de furto e roubo e que eram de índole violenta.
Sabia que se reagisse podia ser agredido.
Ao atuarem da forma acima descrita, os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, a referida quantia monetária que o mencionado D… trazia na respetiva carteira, que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam contra a vontade e sem autorização do respetivo dono.
Para o efeito, não se coibiram de recorrer à violência psíquica, para entrarem, também contra a sua vontade, no referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, onde se encontrava a respetiva carteira com a referida quantia monetária, querendo sempre colocá-lo numa situação de inferioridade que o impediu de reagir como queria e anular a capacidade de o mesmo obstar à concretização de tal intento, o que sabiam conseguir atuando da forma acima descrita.”
5. Da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente das declarações da testemunha ofendida D… tal não resulta expressamente nem implicitamente, nem tal se pode aferir das regras da experiência.
6. A decisão recorrida enferma de vício de erro notório na apreciação da prova, que, em face da prova produzida em julgamento, conjugada com as regras da experiência, impunham ao Tribunal a quo, uma decisão diversa, pois que julgou contra o que se provou e não provou, incorrendo no vício previsto no artº 410º nº 2 alínea c) do CPP.
7. Os factos provados e não provados, não ficaram demonstrados os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal em causa – a violência física ou psíquica – pelo que se impõe a absolvição do arguido relativamente a este crime.
8. O crime de roubo é um crime de dano e resultado. É condição para o tipo legal de crime se preencher, é necessário que tenha havido subtração de, ou que tenha sido entregue ao agente, coisa móvel; mas é ainda necessário que tenha havido efetivo constrangimento (também ele um resultado e um dano desta feita para bens pessoais), é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação entre o conseguir a coisa móvel alheia e os meios utilizados e assim, que estes meios tenham provocado um efetivo constrangimento à tolerância da subtração.
9. No caso concreto, não se encontram preenchidas as condições para o tipo legal de crime se preencher, incorrendo no vício previsto no artº 410º nº 2 alínea a) do CPP, com a consequente anulação do julgamento.
10. Dos elementos típicos objetivos e subjetivos provados pode-se apenas considerar que o arguido terá praticado em coautoria um crime de furto p. e p. pelo artº 203º do CP.
11. Subsidiariamente, e para o caso de assim não se entender, sempre se dirá que, de igual modo, o Tribunal a quo não atendeu aos normativos legais previstos nos artºs. 70º, 71º, 72º, 73º e 56º do CP.
12. A pena aplicada ao arguido B… Resende revela uma visão retributiva do fim das penas, uma “ideia pura de justiça” que “esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao delinquente como compensação ou de expiação do mal do crime”.
13. Resulta dos autos – relatório social – o arguido “… detém condições para beneficiar de medida de execução na comunidade, para o que se manifesta recetivo, de molde a que interiorize o desvalor da sua conduta e reflita sobre a necessidade de uma alteração comportamental”.
14. Atendendo às circunstâncias atuais da vida do arguido, deve concluir-se que uma pena não limitativa da liberdade, é importante e essencial para a reintegração do arguido na sociedade e cumpre os requisitos gerais e especiais da finalidade da pena.
15. O acórdão recorrido violou entre outras as seguintes disposições legais: artºs. 70º, 71º, 72º, 73º, 56º, 210º nº 1 do CP, os artºs. 127º, 410º nº 1 al. c) do CPP.»
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Na 1ª instância, o Ministério Público respondeu às motivações de ambos os recursos, concluindo que os mesmos devem ser julgados improcedentes.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que os recursos não merecem provimento.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
No entanto, efetuado exame preliminar e entendendo-se que aos factos apurados cabia uma qualificação jurídica diversa da efetuada no acórdão agora recorrido, foram notificados os arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no nº 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal.
Cumpre, pois, decidir em conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Assim, de acordo com as conclusões formuladas pelos recorrentes, as principais questões a decidir consistem em saber:
- se a decisão da matéria de facto enferma de erro (arguido C…) ou mesmo de erro notório (arguido B…);
- se, em todo o caso, a qualificação jurídica dos factos apurados se mostra incorreta, por se não verificar o elemento da violência pessoal que caracteriza o crime de roubo (ambos aos arguidos);
- se a medida da pena e/ou o regime de cumprimento da pena imposta ao arguido B… se não mostra ajustada às circunstâncias apuradas, devendo uma eventual pena de prisão ser suspensa na sua execução.
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A decisão da matéria de facto do Tribunal recorrido
Visando o recurso interposto também a decisão da matéria de facto, há que reproduzir, previamente, a parte do acórdão recorrido que lhe corresponde.
O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos: [transcrição]
«No dia 18 de maio de 2011, pelas 19H30, D… estacionou o seu veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, marca Seat, modelo …, de cor preta e matrícula ...-…-IM, na Rua …, junto à “…”, nesta cidade e Comarca, saindo do seu interior e aguardando junto ao mesmo pela chegada de um colega.
Pouco depois, aproximarem-se do referido local os arguidos B… e C…, fazendo-se transportar num veículo automóvel, também marca Seat, modelo …, conduzido pelo mencionado C….
Ao avistarem ali o mencionado D… e, apercebendo-se que o mesmo se encontrava sozinho, os arguidos acordaram entre eles abordá-lo, com o propósito de se assenhorearem de dinheiro que o mesmo tivesse consigo, com recurso à violência e intimidação.
Para o efeito, o arguido C… parou e imobilizou o veículo automóvel em que se faziam transportar, em 2ª fila, junto ao referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-...-IM, pertença do mencionado D…, saindo ambos do seu interior.
Os arguidos resolveram ir procurar dinheiro ao referido veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, pertença do ofendido.
Nesse mesmo momento, o mencionado D… deslocou-se em direção ao seu referido veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, no intuito de impedir que os arguidos nele entrassem.
Não obstante, os arguidos entraram, contra a vontade daquele, no referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM.
Ato contínuo, encontraram ali a carteira do mencionado D…, que se encontrava na respetiva consola, junto à alavanca das mudanças, contendo no seu interior, pelo menos, a quantia de €580,00, em notas do Banco Central Europeu, pertença deste.
Ato contínuo, também, retiraram do interior daquela carteira a referida quantia de € 580,00, em notas do Banco Central Europeu, abandonaram o interior do referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, entraram no veículo em que se faziam transportar e puseram-se em fuga, levando com eles aquela quantia monetária.
Antes, porém, de entrarem no veículo em que se faziam transportar e se colocarem em fuga, o arguido B… voltou-se para o mencionado D… e disse-lhe: “Se fores fazer queixa à Polícia, matamos-te!…”.
Os arguidos eram já conhecidos do ofendido, que sabia que os mesmos se dedicavam à prática de crimes de furto e de roubo e que eram de índole violenta.
Sabia que se reagisse podia ser agredido.
Ao atuarem da forma acima descrita, os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, a referida quantia monetária que o mencionado D… trazia na respetiva carteira, que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam contra a vontade e sem autorização do respetivo dono.
Para o efeito, não se coibiram de recorrer à violência psíquica, para entrarem, também contra a sua vontade, no referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, onde se encontrava a respetiva carteira com a referida quantia monetária, querendo sempre colocá-lo numa situação de inferioridade que o impediu de reagir como queria e anular a capacidade do mesmo de obstar à concretização de tal intento, o que sabiam conseguir atuando da forma acima descrita.
Agiram ambos os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços, a fim de melhor alcançarem os seus intentos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
O relatório do arguido B… conclui: «vivenciou um processo de desenvolvimento marcado pela deficitária condição económica e pelo ambiente familiar de especial conflitualidade e desproteção.
A inexistência de quadro familiar de apoio sustentado e a partilha de contextos associais terão condicionado, precoce e negativamente, a sua vivência, cuja conduta criminal associada a este quadro, conduziu ao cumprimento de uma pena de prisão efetiva, com a existência de outros processos, que, no entanto, e apesar de algumas reservas, poderão surtir um efeito suficientemente significativo para o afastar de uma trajetória de risco.
Todavia, não obstante verbalização da motivação para a mudança, que o arguido vem referindo, a mesma carece de maior consolidação e consistência das capacidades pessoais e de condições para adotar um percurso normativo efetivo no tempo».
O arguido tem antecedentes criminais pelos crimes de condução sem carta, roubo e furto simples; tendo cumprido pena de prisão pelo crime de roubo (CRC de fls. 169 a 178, aqui tido por inteiramente reproduzido).
Provou-se ainda:
A DGRS conclui a propósito do arguido C…: «desenvolve um modo de vida sem especial proeminência, balizada por padrões económicos modestos e desfavorecidos, mas suportados nalguns aspetos estruturantes e com apetência para o promover na adoção de condutas socializantes, consubstanciando-se em fatores de proteção, sendo de salientar a proximidade afetiva à companheira e à irmã E…, a sua atitude cumpridora em termos profissionais e o reconhecimento da censurabilidade adjacente aos factos denunciados nos autos, pese embora a sua referenciação negativa a este nível junto da autoridade policial».
O arguido tem uma condenação por condução sem carta (CRC de fls. 179/180, aqui tido por reproduzido).
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Foram considerados não provados os seguintes factos: [transcrição]
Ato contínuo, após o arguido C… parar e imobilizar o veículo automóvel em que se faziam transportar, em 2ª fila, junto ao referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, pertença do mencionado D…, saíram ambos do seu interior, abeiraram-se daquele e, já junto deste, o arguido B… perguntou “Tens dinheiro?... Onde está o dinheiro?”, ao que aquele respondeu negativamente.
Após a resposta negativa do mencionado D…, os arguidos rodearam-no e posicionaram-se de forma a impedir que se pusesse em fuga, agarraram-no e seguraram-no com força e passaram ambos a revista-lo, contra a sua vontade, passando-lhe as mãos pelo corpo e introduzindo-lhe as mãos nos bolsos das peças de vestuário que trajava.
Não obstante, os arguidos agarraram-no e, mediante o uso da força, empurraram-no e afastaram-no do seu caminho.
Que os arguidos revistaram o referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM.
Que os arguidos rodearam o mencionado D… e posicionando-o entre eles, agarrando-o, segurando-o com força e revistando-o contra a sua vontade, e, depois, mediante o uso da força, agarrando-o, empurrando-o e afastando-o do seu caminho.
Que ao atuar da forma acima descrita em 11º da acusação, o arguido B… quis, mediante a ameaça com a prática de crime contra a vida, constranger o mencionado D… a não apresentar queixa e a não denunciar à P.S.P ou a outro órgão de polícia criminal ou às autoridades judiciárias os factos por ele acabados de cometer juntamente com o arguido C…,
O que só não conseguiu por razões estranhas à sua vontade, designadamente por o mencionado D… ainda assim ter resolvido deslocar-se à Esquadra de … da P.S.P e ali denunciar o sucedido, com o intuito de poder vir a recuperar o dinheiro que lhe fora subtraído.
Sabia que tal anúncio era idóneo e apropriado a constranger este a não apresentar queixa, com receio de que levasse a cabo o mal anunciado, e a afetar a sua liberdade de determinação, bem como que o mal anunciado configurava, em si mesmo, um crime contra a vida, punível com pena de prisão superior a 3 anos.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: [transcrição]
«A convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica e conjugada dos seguintes meios de prova:
Declarações dos arguidos.
Os arguidos não prestaram declarações.
Prova testemunhal.
D….
O ofendido fez um depoimento seguro, esclarecedor, sem hesitações, descrevendo apenas aquilo de que se lembrava, demonstrando isenção, pelo que mereceu toda a credibilidade perante o Tribunal.
Prova documental.
O Tribunal valorizou também todo o acervo documental junto aos autos.
Os factos não provados advieram da sua não confirmação em audiência por parte do ofendido.»
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A) Erro ou erro notório de julgamento em matéria de facto
No seu recurso, o arguido C… alega que não se pode dar como provado que os arguidos se tenham apercebido de que o ofendido estava sozinho e de que pretendessem apoderar-se do seu
património com recurso à violência e intimidação (refere-se, como facilmente se verifica, ao 3º § da factualidade dada como provada).
Assim, quanto à primeira circunstância, teria sido o próprio ofendido a afirmar que estava acompanhado por um amigo.
Por outro lado, especifica este recorrente que também não resultaria provado que tenha havido qualquer violência ou intimidação, desde logo porque o ofendido não estava sozinho e, por outro lado, porque do depoimento do mesmo não resulta o exercício de qualquer tipo de violência, nomeadamente física, tendo a mesma sido considerada não provada pelo próprio tribunal.
Acrescenta que, relativamente à violência psíquica, é também o próprio Tribunal recorrido que não especifica qualquer facto em que a mesma se consubstancie.
Finalmente, alega que a única testemunha de acusação, “ao infirmar a grande maioria dos factos constantes da acusação, factos supostamente passados diretamente com a mesma, veio demonstrar que o seu depoimento é inseguro, hesitante, desconhecedor, no fundo sem qualquer credibilidade”.
O arguido B…, por sua vez, faz incidir o seu inconformismo sobre a matéria de facto levada aos §§ 11, 12, 13 e 14 da factualidade assente, alegando que da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente do depoimento do ofendido D…, não resulta, expressa ou implicitamente, abonada a versão fixada, nem a mesma se pode aferir das regras da experiência, pelo que se está perante o vício de erro notório na apreciação da prova, a que se refere o artigo 410º/2/c do Código de Processo Penal.
Pois bem.
Conforme se verifica da antecedente transcrição da decisão sobre a matéria de facto, o acórdão recorrido motivou o apuramento dos factos que deu como provados, basicamente, no depoimento do ofendido, não transcrevendo ou sequer resumindo qualquer das suas passagens – apresentando, neste aspeto, uma feição totalmente remissiva para o que a testemunha disse e que se encontra gravado – e referindo-se a tal depoimento do seguinte modo: “O ofendido fez um depoimento seguro, esclarecedor, sem hesitações, descrevendo apenas aquilo de que se lembrava, demonstrando isenção, pelo que mereceu toda a credibilidade perante o Tribunal”.
Ouvida a gravação, afigura-se-nos que as objeções invocadas pelos arguidos têm efetiva consistência, não porque entendamos que o depoimento do ofendido não tenha, em geral, credibilidade, mas porque, dando-se o mesmo como consistente e fiável, o seu teor intrínseco – que deve entender-se como integrado na sentença recorrida – interpretado à luz das regras da experiência, afasta ou, pelo menos, não é suficiente para que se deem como inteiramente provados os itens factuais isolados pelos recorrentes.
Não estamos, assim, perante o mero erro de julgamento a que se referem os nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, mas perante o erro notório na apreciação da prova a que alude o artigo 410º/2/a do mesmo diploma.
Com efeito, no § 3º do rol de factos dados como provados plasmou-se que “Ao avistarem ali o mencionado D… e, apercebendo-se de que o mesmo se encontrava sozinho, os arguidos acordaram entre eles abordá-lo, com o propósito de se assenhorearem de dinheiro que o mesmo tivesse consigo, com recurso à violência e intimidação.”
Ora, quanto à afirmação de que o ofendido estava sozinho quando o abordaram, a mesma não tem qualquer apoio no depoimento em causa. Na verdade, a testemunha refere – várias vezes e sem qualquer tergiversação – que não estava sozinho, que estava com um amigo.
Repare-se, desde logo, no seguinte extrato (de 1’27’’ a 1’49’’ da gravação): “(…) Eu estava cá fora, tinha o carro estacionado, com o meu colega cá fora, e eles entraram no carro e vasculharam-me o carro. Pegaram na carteira, que a carteira estava no meio do carro, onde tem um sitiozinho no meio do carro, estava lá a minha carteira e eles pegaram na carteira…”.
E, mais adiante, esclarece tal questão com mais detalhe (de 8’41’’ a 9’11’’ da gravação): “(Então o Sr. estava sozinho?) Não. Estava com o ‘F1…’, o F…. (Como é que o chama, o nome dele?) O F…, acho que é o F…, conhecido por ‘F1…’ (E o Sr., quando apresentou queixa, não apresentou esse seu colega como testemunha?) Na altura, era meu amigo e ele pediu-me muito – que não queria ter problemas com tribunais e com medo deles – pediu-me muito para eu não o pôr como testemunha.”
É, assim, por demais evidente que o Tribunal recorrido cometeu erro notório ao consignar, no referido § 3º, que o ofendido estava sozinho.
Por outro lado, também não nos parece haver fundamento probatório para que se possa dar como provado que os arguidos pretendessem agir “com recurso à violência e intimidação”, mormente se entendida como prévia à apropriação de bens do ofendido.
Tal resulta, desde logo, da segunda parte da passagem do depoimento em causa situada entre 1’27’’ e 1’49’’, já acima transcrita, que tenha havido qualquer violência (designadamente física) ou intimidação expressa antes de os arguidos se apoderarem do dinheiro que estava guardado no veículo. Mas tal também se extrai do conjunto do depoimento do ofendido e mesmo de outras passagens do mesmo, como a que se pode ouvir entre 17’25’’ e 17’30’’: “(Portanto, não houve qualquer tipo de violência…) Não…Não.”
É certo que o ofendido dá, de seguida, a sua interpretação para o (não) ocorrido, como se encontra registado de 17’31’’ e 17’44’’: “(Chegaram, foram direitos ao sítio e foram-se embora…) Não houve qualquer tipo de violência, porque aquilo é um grupo, hã, e ninguém se mete com aquele grupo…”
Ora, mesmo que esta última observação do ofendido tenha correspondência numa realidade de terror coletivo, os termos da acusação, a vinculação temática e a exiguidade da prova produzida sobre essa suposta “fama” grupal constituem outros tantos impedimentos da sua consideração no âmbito destes autos.
Assim, dando acolhimento a esta parte do recurso do arguido C…, decide-se dar ao 3º parágrafo da factualidade provada a seguinte redação:
Ao avistarem ali o mencionado D…, os arguidos acordaram entre eles abordá-lo, com o propósito de se assenhorearem de dinheiro que o mesmo tivesse ali disponível.”
Não provados ficam, pois, os segmentos daquele parágrafo “(…) apercebendo-se de que o mesmo se encontrava sozinho (…)” e “(…) com recurso à violência e intimidação”.
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A problemática subjacente à parte do recurso do arguido B… que se refere à matéria de facto, mostra-se, de algum modo, idêntica à acima considerada.
Assim, nos 11º, 12º, 13º e 14º parágrafos da matéria de facto dada como provada, consignou-se:
(11) Os arguidos eram já conhecidos do ofendido, que sabia que os mesmos se dedicavam à prática de crimes de furto e de roubo e que eram de índole violenta.
(12) Sabia que se reagisse podia ser agredido.
(13) Ao atuarem da forma acima descrita, os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, a referida quantia monetária que o mencionado D… trazia na respetiva carteira, que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam contra a vontade e sem autorização do respetivo dono.
(14) Para o efeito, não se coibiram de recorrer à violência psíquica, para entrarem, também contra a sua vontade, no referido ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-IM, onde se encontrava a respetiva carteira com a referida quantia monetária, querendo sempre colocá-lo numa situação de inferioridade que o impediu de reagir como queria e anular a capacidade do mesmo de obstar à concretização de tal intento, o que sabiam conseguir atuando da forma acima descrita.
No que se refere ao § 11, embora se entenda que o depoimento do ofendido permite afirmar que este já conhecia os arguidos (no sentido vulgar ou comum da expressão), já não é suficiente para que se possa afirmar que estes se dedicavam à prática de crimes de furto e de roubo, tanto mais que só o arguido B… se mostra condenado por essa espécie de crimes e que o ‘conhecimento’ invocado pelo D…, a este nível, se apresenta como indireto, por ter ouvido dizer, por lhe terem contado, pois, não se refere a nenhum concreto caso que tivesse testemunhado.
Entende-se, assim, que este ponto de facto deve ser reformulado, em termos consonantes com esta apreciação.
Quanto aos factos levados ao § 12, merecem também reformulação, reduzindo a afirmação objetiva inerente à expressão verbal “sabia” à existência de uma mera convicção pessoal no sentido de que poderia ser agredido.
A redação do § 13 não merece qualquer alteração, embora o seu sentido se altere, por via indireta, por referência às alterações aos factos dos parágrafos anteriores, a que também se refere implicitamente.
No que respeita aos factos levados ao § 14, impõe-se a sua supressão do rol dos factos provados, pois inexiste suporte objetivo, no depoimento do ofendido, que permita dar como provada qualquer violência psíquica anterior aos atos referentes à apropriação.
Consequentemente, dando parcial provimento a este segmento do recurso do arguido B… e mantendo a redação do § 13º (cuja alteração de sentido será apenas indireta), decidimos suprimir os factos do § 14 da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância e alterar o teor dos §§ 11 e 12, que passará a ser o seguinte:
(11) Os arguidos eram já conhecidos do ofendido, que estava convencido de que os mesmos se dedicavam à prática de crimes de furto e de roubo e que eram de índole violenta.
(12) Estava ainda convencido de que, se reagisse, podia ser agredido.
(13) Ao atuarem da forma acima descrita, os arguidos quiseram fazer sua, como fizeram, a referida quantia monetária que o mencionado D… trazia na respetiva carteira, que sabiam não lhes pertencer, cientes de que assim atuavam contra a vontade e sem autorização do respetivo dono.
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B) O enquadramento típico dos factos
Vinham os arguidos condenados, pela 1ª instância, como coautores materiais de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1, do Código Penal.
Porém, salvo o devido respeito, mesmo olhando para a versão dos factos que, então, se considerou, era mais do que duvidoso se pudesse julgar presente o elemento pessoal de violência, ameaça ou coartação da possibilidade de resistir exigida por este tipo legal de crime.
Na verdade, o que ‘convivia’ com os verdadeiros factos era um conjunto de expressões conclusivas e de factos subjetivos que não encontravam correspondência em quaisquer factos objetivos substanciadores da suposta violência psíquica.
Com a versão dos factos agora fixada, encontra-se, todavia, mais clarificada a inexistência de factos aptos a subsumir-se ao elemento pessoal caracterizador do referido crime de roubo.
Diga-se, ainda, que a ameaça tendente a obstar a que o ofendido apresentasse queixa (que pode ver-se na factualidade vertida no § 10 do rol de factos provados) não é idónea para qualificar o crime cometido como de roubo, visto que este elemento pessoal só é relevante se for anterior à apropriação ou contemporâneo da mesma, facilitando-a.
Sendo posterior, só poderia integrar o crime de violência depois da apropriação a que se refere o artigo 211º do Código Penal, se constituísse um meio para conservar ou não restituir o objeto furtado [2] – o que se não verificou no caso – ou um crime de coação dos artigos 154º e 155º do mesmo diploma (crime de resultado, que, no caso, se não verificou), de que o arguido B…, aliás, foi já absolvido pela 1ª instância.
Pelo que se vem dizendo, os arguidos têm que ser absolvidos do crime de roubo de que vinham acusados e por que foram condenados pela 1ª instância.
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Posto isto, não pode deixar de entender-se que os factos assentes, preenchendo todos os requisitos típicos do crime de furto previsto no nº 1 do artigo 203º do Código Penal – como os próprios recorrentes admitem – consubstanciam, além disso, o crime de furto qualificado previsto no artigo 204º, nº 1, alínea b), do mesmo diploma.
Nem se diga – como o faz o recorrente C…, louvando-se em anotações constantes do Comentário Conimbricense do Código Penal, na versão de 1995 – que o furto só poderia ser qualificado se o veículo do ofendido pudesse ser qualificado como um transporte coletivo.
É que, se já naquela versão de 1995 do Código Penal, a alínea b) do nº 1 do artigo 204º abrangia também, inequivocamente, os veículos particulares (embora exigisse uma relação de transporte), a versão desta alínea introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/9, eliminou qualquer tipo de dúvidas.
Com efeito, na versão de 1995, a qualificativa em causa referia-se a coisa móvel alheia “transportada em veículo ou colocada em lugar…”, o que não permitiria afirmar o respetivo preenchimento relativamente a coisas que se encontrassem no veículo quando este se encontrasse estacionado e/ou que ao mesmo se encontrassem funcionalmente ligadas – autorrádios, colunas de som, GPS, etc. [3].
Terá sido para obviar a este estado de coisas, por muitos entendido como uma lacuna de previsão que não podia ser suprida judicialmente, que o legislador veio introduzir a atual redação da alínea, que veio a consagrar a versão “colocada ou transportada em veículo ou colocada…”, podendo mesmo ler-se na proposta de lei nº 98/X, que deu origem à referida Lei 59/2007: “Em sede de qualificação de furto, equipara-se a colocação no interior de veículo ao transporte de coisa, pois se trata de condutas identicamente graves e censuráveis”.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque [4], “estão incluídas no âmbito da tipicidade três situações: a subtração da coisa que é transportada dentro ou sobre o veículo; a subtração da coisa que se encontra dentro ou sobre um veículo com vista a ser transportada, encontrando-se o veículo parado; a subtração de coisa que foi colocada dentro ou sobre um veículo, não para transporte, mas para utilização (…)”.
M.Miguez Garcia e J.M.Castela Rio [5] especificam que fica assim abrangida a subtração das coisas deixadas num automóvel, independentemente de virem ou não a ser transportadas.
É, pois, quanto a nós, inequívoco que nos encontramos, no caso vertente, perante a comissão, em coautoria, pelos arguidos, de um crime de furto qualificado previsto pelo artigo 204º, nº 1, alínea b) do Código Penal, aí declarado punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Procedem, assim, nesta vertente, ainda que parcialmente, os recursos dos arguidos.
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C) Escolha e medida das penas
Conforme resulta do que anteriormente se explicou, os arguidos cometeram um crime diverso e abstratamente menos grave do que aquele por que foram condenados pela 1ª instância.
Tal implica, naturalmente, a necessidade da reponderação das penas a aplicar.
No atual artigo 70º do Código Penal, estabelece-se que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como frisa Figueiredo Dias [6], as referidas finalidades da punição são exclusivamente preventivas – de prevenção especial e de prevenção geral – e não finalidades de compensação da culpa.
As necessidades de prevenção geral são as habituais para este tipo de criminalidade, dada a sua frequência.
Já quanto às necessidades de prevenção especial, entende-se que elas devem ser individualizadas relativamente a cada um dos arguidos.
O arguido C… encontra-se integrado laboralmente, possui uma retaguarda familiar razoavelmente positiva e tem como único antecedente criminal uma condenação por crime de condução sem carta.
Já o arguido B… não beneficia de qualquer apoio familiar sustentado e partilha de contextos associais. Acresce que tem antecedentes criminais pelos crimes de condução sem carta, roubo e furto simples, tendo cumprido pena de prisão pelo crime de roubo, conforme se extrai do seu certificado de registo criminal folhas 169 a 178.
Assim, se no que respeita ao arguido C… ainda se entende ainda como adequada e suficiente a pena de multa até 600 dias, é patente que o mesmo se não pode dizer quanto ao arguido B…, a quem se aplicará pena de prisão até 5 anos.
De acordo com o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta das penas assumem especial relevância as necessidades de prevenção geral e especial, mas em caso algum aquelas podem ultrapassar a medida da culpa dos arguidos.
Assim, em termos funcionais, o grau de culpa determina, dentro de cada uma das molduras abstratas, o limite superior que as penas concretas não podem ultrapassar, as necessidades de prevenção geral marcam o limite inferior abaixo do qual a pena não já não afirmará perante a comunidade a validade ou efetividade da norma violada, enquanto as necessidades de prevenção especial servirão de derradeiro critério na fixação das medidas das penas entre aqueles limites mínimo e máximo.
Nos casos concretos, estando-se em presença de um crime cometido em coautoria, muitas das circunstâncias diretamente ligadas à sua prática são comuns a ambos os arguidos.
Assim, é elevado o grau de ilicitude, tributário do montante objeto de apropriação (pelo menos 580 euros em numerário), bem como do à-vontade revelado pelos arguidos na subtração ao ofendido do seu salário, revelando um chocante desprezo pelo ‘outro’.
O dolo é direto e fortíssimo, sendo a motivação criminosa a mera obtenção de dinheiro.
Os arguidos não repararam os danos causados, pois jamais o ofendido recuperou o seu dinheiro.
Os crimes de furto qualificado desta natureza, paredes-meias com o uso de violência, proliferam e estão associados a uma criminalidade juvenil e urbana, que causa alarme social, até porque tem como alvo também outros jovens.
Assim, entende-se que o mínimo da pena aplicável ao arguido C… situa-se em 200 dias de multa e o máximo em 450.
Quanto ao arguido B…, pondera-se um mínimo de 1 ano de prisão e um máximo de 3 anos e meio.
Passando às necessidades de prevenção especial, entende-se que as mesmas são relativamente baixas quanto ao arguido C… – dado que apresenta apenas uma condenação anterior e por um ilícito de gravidade pouco significativa – mas altas no que respeita ao arguido B… (já sofreu várias condenações penais, algumas das quais por crimes de furto e de roubo, violando bens jurídicos semelhantes aos subjacentes à atual, tendo já cumprido um período de prisão efetiva).
Assim, entende-se como ajustada ao arguido C… uma pena de 270 dias de multa à razão diária de 6 euros. Quanto ao arguido B…, julga-se adequada uma pena de 2 anos e 3 meses de prisão.
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C) A requerida suspensão da execução da pena de prisão
Pretende o recorrente B… que a pena que lhe venha a ser aplicada seja suspensa na sua execução.
Na verdade, a pena agora lhe irá ser aplicada (como, aliás, a que já lhe fora aplicada na 1ª instância) é inferior a 5 anos de prisão, pelo que se mostra preenchido o pressuposto formal da suspensão de execução da pena, ao abrigo do disposto no artigo 50º do Código Penal.
A atual redação deste preceito veio sublinhar que a aplicabilidade da pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão não representa uma mera possibilidade ou faculdade a utilizar discricionariamente pelo tribunal – como era sugerido pelo texto do artigo 48º nº 1 do Código Penal de 1982, versão original – antes configurando um poder estritamente vinculado e, portanto, nessa aceção, um poder-dever [7].
O pressuposto substancial deste instituto, porém, consiste num juízo de prognose favorável respeitante ao comportamento futuro do agente, apoiado na ponderação da personalidade deste e nas circunstâncias do facto.
Não estão em causa já considerações de culpa, mas tão só de natureza preventiva – finalidades de prevenção especial de socialização e de prevenção geral positiva ou de integração [8].
No caso em análise, verifica-se que o arguido, para além do seu historial criminal (e também ao nível de ilícitos de tipo semelhante), não apresenta, realisticamente, perspetivas de se afastar da criminalidade, tendo já cumprido, anteriormente, pena de prisão efetiva por crime de roubo, para além de não beneficiar de qualquer fator de proteção relevante a nível familiar ou social.
Deste modo, face à trajetória de vida do arguido e às condenações por ele já sofridas, não é possível fazer um juízo de prognose favorável e concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso do arguido B…, pelo que a pena de prisão aplicada será efetiva.
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III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente providos os recursos interpostos pelos arguidos, e, revogando parcialmente o acórdão recorrido, em:
- absolver os arguidos da coautoria do crime de roubo previsto e punido no artigo 210º nº 1 do Código Penal, por que haviam sido condenados pela 1ª instância;
- condenar o arguido B…, como coautor material de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão efetiva;
- condenar o arguido C…, como coautor material de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 270 (duzentos e setenta) dias de multa à razão diária de 6 (seis) euros, perfazendo a multa global de 1620,00 € (mil seiscentos e vinte euros);
- manter o demais decidido pela 1ª instância.
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Sem custas nesta instância, face ao disposto no nº 1 do artigo 513º do Código de Processo Penal (‘a contrario sensu’).
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Porto, 28 de setembro de 2016
Vítor Morgado
Raul Esteves
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[1] Ver, nomeadamente: os artigos 412º/1 e 417º/3 do Código de Processo Penal; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição, página 347; jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos do S.T.J. de 28.04.99, CJ/S.T.J., ano de 1999, tomo II, página 196 e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Como refere Conceição Ferreira da Cunha – em anotação ao artigo 211º, no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, página 193 – a situação de fuga à justiça por meios violentos não assume qualquer especificidade quando relacionada com o crime de furto, não constando deste tipo legal.
[3] Como exemplo caracterizador da jurisprudência que se afirmou ao abrigo da redação introduzida pela versão de 1995 do Código Penal – hoje postergada, face à posterior alteração legislativa – veja-se o acórdão do STJ de 7/7/2004, in Col.Jur./STJ, ano XII, páginas 250-253, segundo o qual, “face à lei vigente (…), o furto de coisa móvel em veículo, seja auto-rádio ou qualquer outro objeto ou valor, só será qualificado quando a coisa subtraída se encontre numa situação relacionada com a função de transporte do veículo (…)”.
[4] Em Comentário do Código Penal, à luz (…), 2ª edição, outubro de 2010, UCE, página 637.
[5] Em Código Penal - Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, página 844.
[6] Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §557, páginas 363-364.
[7] Neste sentido, mesmo já no domínio do citado artigo 48º do Código Penal de 1982, veja-se Jorge de Figueiredo Dias, no seu já citado Direito Penal Português, Parte Geral, II – As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, página 341.
[8] Neste sentido, ver o acórdão do S.T.J. de 25/6/2003, publicado na Col. Jur./S.T.J., 2003, tomo II, pág. 221.