Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20580/15.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
COMUNICAÇÃO AO SENHORIO
Nº do Documento: RP2018102220580/15.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º682, FLS.245-255)
Área Temática: .
Sumário: I - Os contratos e a lei que os disciplina fazem emergir, ao lado dos deveres principais, os chamados “deveres acessórios” que podem assumir a designação de “deveres de proteção”, sendo que todos eles podem agrupar-se na noção ampla proposta pela lei alemã de “deveres de consideração”.
II – No âmbito do contrato de arrendamento, a comunicação escrita da cedência do gozo da coisa por meio de trespase, a cargo do trespassante e arrendatário (art. 1112.º, n.º 3 CC) constitui um daqueles deveres de consideração. Tal comunicação implica a necessária a remessa ao senhorio da cópia ou de um exemplar do contrato de trespasse.
III – Não cumpre a obrigação de comunicação o inquilino, dono do estabelecimento, que não deu a conhecer ao senhorio o teor integral do trespasse, nomeadamente remetendo-lhe cópia do contrato, limitando-se a referir genericamente um trespasse e identificando a pessoa do trespassário.
IV – Tal incumprimento constitui o inquilino/trespassante na obrigação de indemnizar o senhorio pelos prejuízos decorrentes da quebra negocial, mormente os relativos à ocupação do locado (as rendas), ainda que o imóvel venha sendo ocupado por terceiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 20580/15.5T8PRT.P1
Origem: Comarca do Porto
Relatora: Fernanda Almeida
1.º Adjunto Des. António Eleutério
2.ª Adjunta Des. Isabel Soeiro

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
.......................................................................
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I – Relatório
AUTORA: Sociedade B…, SA, com sede na Av. …, n.º …, …., Porto.

RÉUS: C…, SA, com sede na Av. …, ….
E
D… Unipessoal, Ldª, com sede na Rua …, n.º .., …

Por via da presente ação declarativa, pretende a A. obter a condenação solidária das Rés no pagamento de rendas vencidas, no montante de €13.000,00, com juros de mora desde a citação e, ainda, no valor de €30.000,00, com juros desde a citação.
Alegou para tanto ter sido a primeira Ré sua arrendatária em imóvel no qual se situava um estabelecimento de pastelaria até que, a 27.2.2014, lhe comunicou ter trespassado o estabelecimento à segunda Ré, sem que tivesse junto o contrato de trespasse. Nessa altura, porém, mercê de comunicação remetida pela A. para efeitos de aumento da renda, respondeu-lhe a Ré, na mesma data em que informa do trespasse, avançando com contraposta de que foi aceite pela A. que informou aquela uns dias depois. O valor aceite nunca foi liquidado pela primeira Ré em qualquer das rendas posteriores, tendo o estabelecimento sido ocupado pela segunda Ré desde 1.3.2014. A segunda Ré não pagou as rendas devidas desde maio a dezembro de 2014 e de abril a maio de 2015, no total de €13.000, 00, tendo entregue o espaço à A. a 16.6.2015. Considera serem as Rés responsáveis solidariamente pelo pagamento das rendas.
Ademais, o imóvel foi entregue à A. apresentando os mais diversos danos para cuja reparação será necessário montante não inferior a €30.000,00.

Contestou a primeira Ré afirmando ter a A. conhecimento da identificação da trespassária por tal lhe haver sido indicado aquando da comunicação para exercício do direito de preferência, embora tenha ficado consignado em contrato que tal obrigação caberia à trespassária.
Alega, ainda, que o fim essencial de comunicação ao locador é não só o de dar a conhecer a senhorio a pessoa do seu novo arrendatário mas também o de lhe proporcionar a fiscalização da real natureza do acto de transmissão que subjaz à cedência do prédio e esse conhecimento prévio já havia sido anteriormente facultado ao Senhorio, com a comunicação das condições do negócio de trespasse para o exercício do direito de preferência.
Acrescentou, além disso, ter a A. aceite da trespassária as rendas de março e abril de 2014, quando esta última já se encontrava no locado. Conclui nada dever à A.

A segunda Ré não contestou e, a fls. 140 e v.º, foi a lide julgada extinta quanto à mesma, por inutilidade superveniente decorrente da sua declaração de insolvência reconhecida por sentença já transitada.

Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e selecionados os temas de prova (fls. 154 e 155).

Após julgamento foi proferida sentença, datada de 19.4.2018, julgando improcedente a ação e absolvendo a primeira Ré do pedido.
Os fatos aí elencados como provados são os seguintes:
1. A autora é dona do imóvel situado na Av. …, nº …/… e Praça …, n.º …/…, união de freguesias de … e …, concelho do Porto, inscrito na matriz predial sob o artigo 2291 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 370/20030926.
2 - Através de contrato de compra e venda datado de 2 de Fevereiro de 2010, a aqui Ré, C…, S.A, adquiriu o estabelecimento comercial denominado “ E…“, sito na Avenida … n.º …, no Porto.
3 - Nesse acordo, foi estabelecido que a ré C…, S.A, teria igualmente direito ao arrendamento do locado.
4 - No dia 21 de Janeiro de 2014 a aqui A. recebeu carta da Ré C… em que esta lhe concedia direito de preferência, na qualidade de senhoria, no trespasse do estabelecimento comercial denominado “E…” que iria efectuar à aqui 2ª Ré pelo valor de €250.000,00.
5 - A aqui A. não exerceu direito de preferência.
6 - Em 27 de Fevereiro de 2014, a autora recebeu uma carta da 1.ª Ré, C…, a comunicar-lhe que tinha trespassado o estabelecimento situado no … do nº … da Avª … à sociedade D…, Lda, no dia 24 de Fevereiro de 2014.
7 - Nessa carta a ré não enviou cópia do contrato de trespasse realizado com D… Unipessoal, Ld.ª, à autora.
8 - A aqui 1.ª Ré não liquidou qualquer renda mensal de €1.000,00 mensais.
9 - O estabelecimento comercial sito no … do nº … da Avenida … começou a ser ocupado a partir de 1 de Março de 2014 pela aqui 2.ª Ré D… Unipessoal, Ld.ª.
10 - No dia 11/04/2014 e no dia 13/05/2014, foram realizadas duas transferências bancárias pela sociedade D… Unipessoal, Ld.ª, cuja identificação constava nessa operação, à autora, no valor de €343,50, cada, com referência a “rendas”.
11 - Foram ainda realizados pela sociedade D… Unipessoal, Ld.ª, nos dias 9/6/2014 e 14/07/2014 dois depósitos em numerário, na mesma conta da autora, no valor de €343,50, não constando a identificação daquela na dita operação.
12 - A sociedade D… deixou o imóvel pertencente à A. com os móveis, balcões, armários, refrigeradores, arrancados das paredes e do chão.
*
Foram considerados não provados os seguintes fatos:
a) Que as paredes ficaram danificadas bem assim o chão do locado.
b) Que foram destruídas portas interiores do locado, bem como o telhado do armazém interior existente no mesmo encontra-se deteriorado e em risco de ruir a qualquer momento.
c) Que a aqui A. para repor o locado no estado em que foi entregue à 1ª Ré necessita de realizar obras que orçam em quantia não inferior a €30.000,00.

É desta sentença que recorre a A.
As conclusões de recurso sintetizam-se assim:
Consta dos autos que a A. /Recorrente recebeu, a 24 de fevereiro de 2014, uma carta da Ré C… comunicando-lhe que teria efetuado trespasse.
Consta igualmente dos autos, sob Doc. 5, carta da mandatária da Ré C… em que esta comunicava que discordava da duração do contrato bem como do valor da renda proposto e aceitava um valor de renda mensal de €1.000,00.
Deve dar-se como provado o artigo 7.º da PI, ou seja: “ A Autora recebeu no dia 27 de Fevereiro de 2014 carta da mandatária da 1ª Ré em que esta lhe comunicava que discordava da duração do contrato bem como do valor de renda proposto (€4.500,00) e aceitava um valor de renda mensal de €1.000,00 “.
Após o pretenso trespasse (que ocorreu em data anterior a 27 de Fevereiro de 2014), a Ré C…, assumindo a qualidade de Arrendatária, aceitou liquidar uma renda mensal de €1000,00 à aqui Recorrente.
Deve igualmente ser considerado como provada a matéria vertida no artigo 11.º da PI, ou seja, a A. e Recorrente enviou em 16 de Outubro de 2014 carta à Ré C… a solicitar à mesma o pagamento das rendas de €1.000,00, cada uma vencida desde 1 de Maio de 2014.
Deve ser considerado como provado o artigo 11º da PI, ou seja, “ A Autora nunca recebeu qualquer cópia do pretenso contrato de trespasse, pelo que nunca aceitou que a Ré C… fosse locatária do estabelecimento, e exigiu através de carta de 16 de Outubro de 2014 à Ré C… o pagamento das rendas mensais que estavam vencidas desde 1 de Maio de 2014 “.
O comportamento omissivo (ausência de resposta) da Ré C… criou a convicção na Autora de que nenhum trespasse tinha existido pois, se tivesse ocorrido o mesmo, o comportamento normal seria a C… ter respondido à carta a referir que não tinha qualquer obrigação de pagamento das rendas vencidas e juntava o respetivo contrato de trespasse.
A sentença recorrida refere que “não exige a lei que a comunicação seja acompanhada dos documentos comprovativos do trespasse, pelo que não se vislumbra qualquer consequência pelo seu não envio, não obstando tal a que a comunicação não produza os seus efeitos “.
O artigo 1112.º n.º 3 do Código Civil refere que “ A transmissão deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio “.
Por sua vez, consta do artigo 1038.º alínea g) do Código Civil que “são obrigações do locatário: Comunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada“.
O entendimento correto é que com a comunicação deve ir junto o respetivo título.
A exigência do acto notificativo “não deriva nem do carácter sublocatício do trespasse, nem da necessidade de permitir ao senhorio quer o exercício do direito de opção, quer o benefício da elevação da renda : deriva do interesse do senhorio de fiscalizar o trespasse, para saber se a cessão do arrendamento é imperativa. A lei impõe-lhe a cessão do uso do imóvel, mas na condição de se transmitir o estabelecimento como um todo. Para controle disto, é que ele tem de saber o que se fez” (Orlando Carvalho, “Critério e Estrutura do Estabelecimento”, pág. 623).
Deverá assim a sentença recorrida ser revogada e a Ré C… ser condenada a pagar à recorrente a quantia peticionada de €13.000,00.
A sentença recorrida violou os artigos 1038.º g) e 1112.º n.º 3 do Código Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi recebido nos termos legais e, já nesta Relação, os autos correram Vistos.
Cumpre conhecer do mérito da apelação.
Objeto do recurso:
É finalidade do presente acórdão decidir se os artigos 1038.º g) e 1112.º n.º 3 do Código Civil impõem que a comunicação ao senhorio do trespasse realizado deverá ser acompanhada do respetivo contrato e se, não o sendo, o trespassante responde pelas rendas que vierem a vencer-se depois do trespasse.
II – Fundamentação
1. Fundamentação de fato
No que respeita aos fatos dados como provados, entende a A. que foram omitidas referências fatuais que, na sua maioria, resultam como demonstradas de documentos juntos aos autos e cujo conteúdo não foi impugnado.
Quanto ao fato relativo ao recebimento pela A. de carta subscrita por mandatária da 1.ª Ré, o documento em apreço encontra-se a fls. 10 e 11 e a Ré não o impugnou, pelo que se acrescenta à matéria provada o seguinte ponto (13):
Com data de 27.2.2014, foi remetida à A., que a recebeu, a carta de fls. 10 v.º e 11, onde se lê, entre o mais, o seguinte: Na qualidade de mandatária da sociedade comercial C…, SA. (…), comunicou-lhe vossa intenção que contrato de arrendamento existente transite para o NRAU e que passe a ter duração de um ano e com o novo valor de renda de Eur. 4.500,00. Nos termos e para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 51 do NRAU, dos artigos 52 e 33, n.º1 (…) cumpre-me informar V.Excia de que a minha constituinte:
a) Discorda da submissão do citado contrato para o NRAU, bem como tipo de duração do contrato de 1 ano, bem com do valor da renda propostos;
b) (…)
c) pelo que proponho que a renda passe a Eur. 1.000.00 euros mensais e que se fixe a duração em 5 anos.
Também se conhece o teor da resposta que a esta carta foi remetida pela A. à Ré, pelo fax de 10.3.2014, que se acha a fls. 10 e não foi impugnado, onde se lê o que também passará a constar dos fatos provados (ponto 14) porquanto a sua pertinência surge do aditamento do teor da carta que agora fica constando do mesmo elenco fatual:
Por fax de 10.3.2014, o mandatário da A. remeteu à mandatária da 1.ª Ré o fax de fls. 10, onde se lê: Anoto a recepção da carta que enviou para a minha supra referida cliente no passado dia 27 de Fevreiro de 2014.
(…)
Por outro lado, a minha constituinte aceita o valor da renda proposta de € 1.000, 00 mensais.
Do mesmo modo, porque se acha junta aos autos a carta datada de 16.10.2014, remetida pela A. (a que acresce cópia do registo de envio pelos CTT com a mesma data e constante de fls. 11 v.º), não tendo aquela impugnado tal factualidade, adita-se à factualidade provada um novo item (15) com o seguinte teor:
Com data de 16.10.2014, a A. remeteu à primeira Ré a carta de fls. 12 (à qual a Ré não respondeu) onde se lê, entre o mais, o seguinte:
(…)
Como é do vosso conhecimento e na sequência de carta de aumento de renda ao abrigo do NRAU (carta datada de 23 de janeiro de 2014) foi aceite pela minha cliente a vossa contraproposta de liquidação de uma renda mensal de €1.000,00.
Sucede que, as rendas de €1.000,00 cada uma vencidas em de Maio, 1 de Junho, 1 de Julho, 1 de Agosto, 1 de Setembro e 1 de Outubro de 2014 encontram-se por liquidar.
Solicito assim que no prazo de cinco dias, liquidem as rendas vencidas (…).
Pretende, ainda, a A. se dê como provado:
Não ter a mesma recebido qualquer cópia do contrato de trespasse;
Não ter aceite que D… fosse locatária do estabelecimento;
E que exigiu o pagamento das rendas em atraso à primeira Ré por carta de 16.10.2014.
Iniciando a apreciação do pretendido pela parte final, vemos que o assunto da carta de 16.10.2014 ficou já deferido, tendo-se aditado o pertinente fato ao elenco dos provados.
Quanto a eventual não aceitação pela A. da posição da D… como locatária, impõe-se considerar que não se trata propriamente de um fato mas da alegação conclusiva relativa a um estado subjetivo da demandante que sequer terá relevo em si mesmo, mas tão-só aquando da apreciação jurídica do encadeamento da sequência de eventos que rodeou a transmissão do estabelecimento e a posterior sucessão de acontecimentos. Nesta parte improcede, pois, a pretensão da recorrente.
Depois, porque resulta da alegação da petição inicial – art. 5.º - que a Ré não contesta, sendo que esta não refere ter remetido à A. cópia do contrato de trespasse (alega que a obrigação de remessa teria ficado sendo da responsabilidade da trespassária), adita-se aos fatos assentes a seguinte indicação fatual (16):
A A. não recebeu qualquer cópia do contrato de trespasse.
Informação a que acresce, por rigor à verdade, e porque se verifica ser um elemento fatual importante para a boa aplicação do pertinente direito, a informação sobre o teor do contrato de trespasse que se acha a fls. 111 e ss. Assim, adita-se um último fato ao conjunto dos provados com o seguinte conteúdo (passará a ser o ponto 17):
Com data de 24.2.2014, C…, como primeira outorgante, F…, como segunda outorgante e D…, como terceira outorgante, celebraram o contrato cuja cópia de acha a fls. 111 e ss. e onde se lê, entre o mais, o seguinte:
I - QUESTÃO PRÉVIA
CONSIDERANDO QUE
a) (…)
b) (…)
c) O presente acordo, ACORDO DE REVOGAÇÃO DO CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO INDUSTRIAL E COMERCIAL, apenas e tão só, diz respeito aos seguintes estabelecimentos:
(…)
3) Estabelecimento comercial designado como “E…”, sito na Avenida …, n.º …/…, Porto;
(…)
b) A PRIMEIRA E SEGUNDA OUTORGANTE acordam em revogar, nos termos do artigo 1082.º do Código Civil, o contrato de cessão de exploração entre ambos existente e tendo por objecto os estabelecimentos supra identificados, com efeitos imediatos/efeitos a partir de assinatura do presente contrato.
(…)
2 – DO TRESPASSE
PELA PRIMEIRA E TERCEIRA OUTORGANTES FOI DITO QUE CELEBRAM ENTRE SI UM CONTRATO DE TRESPASSE, REDUZINDO-O AO PRESENTE TÍTULO E SUBORDINANDO-O ÀS CLÁUSULAS SEGUINTES:
CLÁUSULA PRIMEIRA
(Legitimidade)
1. A Primeira Outorgante é dona e legítima titular de 7 estabelecimentos comerciais (…).
Estabelecimentos comeriais sitos em:
(…)
d) Estabelecimento comercial designado como “E…” (…)
(…)
CLÁUSULA SEGUNDA
(Objecto)
Pelo presente contrato a Primeira Outorgante trespassa à Terceira, esta toma-lhe de trespasse, os já identificados estabelecimentos, com todos os elementos que o integram, incluindo (…).
(…)
CLÁUSULA TERCEIRA
(Valor)
O preço do trespasse é pelo valor global de EUR. 218.000,00 (…), sendo atribuído às existências e aos equipamentos um valor de EUR. 52.000,00 (…) e o valor do negócio equivale à responsabilidade pela manutenção dos postos de trabalho dos trabalhadores.
CLÁUSULA QUARTA
(Pagamento)
A referida quantia será paga pela Terceira Outorgante à Primeira Outorgante na data da assinatura do presente contrato, a quantia de Eur. 12.000,00, cfr. cheque se anexa.
A restante quantia será paga em prestações mensais e sucessivas (…) de Eur. 1.000,00.
(…).
Finalmente, indefere-se o pretendido pela A. e recorrente quanto a dar como provado a criação da convicção à A. de que nenhum trespasse havia sido efetuado em resultado da não resposta pela Ré à carta da A. datada de outubro de 2014. Por um lado, porque não é indicada qualquer prova direta ou indireta deste fato. Por outro, porque esse fato será conclusivo, cabendo apreciar as consequências da omissão da resposta (fato que a Ré não contesta) sem sede de apreciação jurídica.
*
FATOS PROVADOS após conhecimento do recurso no que toca à matéria de fato
1. A autora é dona do imóvel situado na Av. …, nº …/… e Praça …, n.º …/…, união de freguesias de … e …, concelho do Porto, inscrito na matriz predial sob o artigo 2291 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 370/20030926.
2. Através de contrato de compra e venda datado de 2 de Fevereiro de 2010, a aqui Ré, C…, S.A, adquiriu o estabelecimento comercial denominado “ E…“, sito na Avenida … n.º …, no Porto [doc. de fls. 19 e ss.].
3. Nesse acordo, foi estabelecido que a ré C…, S.A, teria igualmente direito ao arrendamento do locado.
4. No dia 21 de Janeiro de 2014 a aqui A. recebeu carta da Ré C… em que esta lhe concedia direito de preferência, na qualidade de senhoria, no trespasse do estabelecimento comercial denominado “E…” que iria efectuar à aqui 2ª Ré pelo valor de €250.000,00. Nessa carta de fls. 8 v.º lê-se, entre o mais: «O trespasse do sito estabelecimento comercial será feito a favor da interessada “D… – Unipessoal, Ldª”, com todos os elementos que o integram, incluindo, obviamente, o direito ao arrendamento pelo preço de €250.000, 00, a pagar integralmente na data da outorga do respectivo contrato de trespasse, o qual deverá ser celebrado até ao próximo dia 21 de Fevereiro de 2014”.
5. A aqui A. não exerceu direito de preferência.
6. Em 27 de Fevereiro de 2014, a autora recebeu uma carta da 1.ª Ré, C…, a comunicar-lhe que tinha trespassado o estabelecimento situado no … do nº … da Avª … à sociedade D…, Lda, no dia 24 de Fevereiro de 2014. Na carta de fls. 9 v.º lê-se, entre o mais: «A partir da referida data [24 de fevereiro de 2014], a trespassária desse estabelecimento comercial, a sociedade comercial D…, Ld.ª, passará a ser a nova inquilina. Assim sendo, no dia 08 de Março de 2014, será a nova inquilina a efectuar o pagamento da respectiva renda relativa ao mês de Março.»
7. Nessa carta a ré não enviou cópia do contrato de trespasse realizado com D… Unipessoal, Ld.ª, à autora.
8. A aqui 1.ª Ré não liquidou qualquer renda mensal de €1.000,00 mensais.
9. O estabelecimento comercial sito no … do nº … da Avenida … começou a ser ocupado a partir de 1 de Março de 2014 pela aqui 2.ª Ré D… Unipessoal, Ld.ª.
10. No dia 11/04/2014 e no dia 13/05/2014, foram realizadas duas transferências bancárias pela sociedade D… Unipessoal, Ld.ª, cuja identificação constava nessa operação, à autora, no valor de €343,50, cada, com referência a “rendas”.
11. Foram ainda realizados pela sociedade D… Unipessoal, Ld.ª, nos dias 9/6/2014 e 14/07/2014 dois depósitos em numerário, na mesma conta da autora, no valor de €343,50, não constando a identificação daquela na dita operação.
12. A sociedade D… deixou o imóvel pertencente à A. com os móveis, balcões, armários, refrigeradores, arrancados das paredes e do chão.
13. Com data de 27.2.2014, foi remetida à A., que a recebeu, a carta de fls. 10 v.º e 11, onde se lê, entre o mais, o seguinte:
Na qualidade de mandatária da sociedade comercial C…, SA. (…), comunicou-lhe vossa intenção que contrato de arrendamento existente transite para o NRAU e que passe a ter duração de um ano e com o novo valor de renda de Eur. 4.500,00. Nos termos e para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 51 do NRAU, dos artigos 52 e 33, n.º1 (…) cumpre-me informar V.Excia de que a minha constituinte:
a) Discorda da submissão do citado contrato para o NRAU, bem como tipo de duração do contrato de 1 ano, bem com do valor da renda propostos;
b) (…)
c) pelo que proponho que a renda passe a Eur. 1.000.00 euros mensais e que se fixe a duração em 5 anos.
14. Por fax de 10.3.2014, o mandatário da A. remeteu à mandatária da Ré Ventura o fax de fls. 10, onde se lê:
Anoto a recepção da carta que enviou para a minha supra referida cliente no passado dia 27 de Fevereiro de 2014.
(…)
Por outro lado, a minha constituinte aceita o valor da renda proposta de € 1.000, 00 mensais.
15. Com data de 16.10.2014, a A. remeteu à primeira Ré a carta de fls. 12 (à qual a Ré não respondeu) onde se lê, entre o mais, o seguinte:
(…)
Como é do vosso conhecimento e na sequência de carta de aumento de renda ao abrigo do NRAU (carta datada de 23 de janeiro de 2014) foi aceite pela minha cliente a vossa contraproposta de liquidação de uma renda mensal de €1.000,00.
Sucede que, as rendas de €1.000,00 cada uma vencidas em de Maio, 1 de Junho, 1 de Julho, 1 de Agosto, 1 de Setembro e 1 de Outubro de 2014 encontram-se por liquidar.
Solicito assim que no prazo de cinco dias, liquidem as rendas vencidas (…).
16. A A. não recebeu qualquer cópia do contrato de trespasse.
17. Com data de 24.2.2014, C…, como primeira outorgante, F…, como segunda outorgante e D…, como terceira outorgante, celebraram o contrato cuja cópia de acha a fls. 111 e ss. e onde se lê, entre o mais, o seguinte:
II. QUESTÃO PRÉVIA
CONSIDERANDO QUE
d) (…)
e) (…)
f) O presente acordo, ACORDO DE REVOGAÇÃO DO CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO INDUSTRIAL E COMERCIAL, apenas e tão só, diz respeito aos seguintes estabelecimentos:
(…)
3) Estabelecimento comercial designado como “E…”, sito na Avenida …, n.º …/…, Porto;
(…)
b) A PRIMEIRA E SEGUNDA OUTORGANTE acordam em revogar, nos termos do artigo 1082.º do Código Civil, o contrato de cessão de exploração entre ambos existente e tendo por objecto os estabelecimentos supra identificados, com efeitos imediatos/efeitos a partir de assinatura do presente contrato.
(…)
2 – DO TRESPASSE
PELA PRIMEIRA E TERCEIRA OUTORGANTES FOI DITO QUE CELEBRAM ENTRE SI UM CONTRATO DE TRESPASSE, REDUZINDO-O AO PRESENTE TÍTULO E SUBORDINANDO-O ÀS CLÁUSULAS SEGUINTES:
CLÁUSULA PRIMEIRA
(Legitimidade)
2. A Primeira Outorgante é dona e legítima titular de 7 estabelecimentos comerciais (…).
Estabelecimentos comerciais sitos em:
(…)
d) Estabelecimento comercial designado como “E…” (…)
(…)
CLÁUSULA SEGUNDA
(Objecto)
Pelo presente contrato a Primeira Outorgante trespassa à Terceira, esta toma-lhe de trespasse, os já identificados estabelecimentos, com todos os elementos que o integram, incluindo (…).
(…)
CLÁUSULA TERCEIRA
(Valor)
O preço do trespasse é pelo valor global de EUR. 218.000,00 (…), sendo atribuído às existências e aos equipamentos um valor de EUR. 52.000,00 (…) e o valor do negócio equivale à responsabilidade pela manutenção dos postos de trabalho dos trabalhadores.
CLÁUSULA QUARTA
(Pagamento)
A referida quantia será paga pela Terceira Outorgante à Primeira Outorgante na data da assinatura do presente contrato, a quantia de Eur. 12.000,00, cfr. cheque se anexa.
A restante quantia será paga em prestações mensais e sucessivas (…) de Eur. 1.000,00.
(…)
2. Fundamentação de Direito
A sentença recorrida absolveu a Ré trespassante da obrigação de pagamento de rendas devidas pela ocupação do estabelecimento de pastelaria após o trespasse, fundando-se no seguinte raciocínio:
- a Ré deu a conhecer à autora os pontos fundamentais do objeto do contrato que pretendia realizar (indicou o negócio em concreto, o preço e o comprador);
- não exige a lei que a comunicação seja acompanhada dos documentos comprovativos do trespasse, pelo que não se vislumbra qualquer consequência pelo seu não envio, não obstando tal a que a comunicação não produza os seus efeitos;
- será sobre a posterior arrendatária, agora insolvente, que impenderá a eventual obrigação de pagar aos autores as rendas vencidas e reclamadas nestes autos, bem como a eventual obrigação de reparação do locado.
As normas aplicáveis ao caso são as decorrentes dos arts. 1038.º CC e 1112.º, n.º 3, ambos do CC.
O primeiro estatui serem obrigações do locatário:
a) Pagar a renda ou aluguer;
(…)
g) Comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada;
h) (…)
Por sua vez, o art. 1112.º dispõe:
1 - É permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio:
a) No caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial;
b) A pessoa que no prédio arrendado continue a exercer a mesma profissão liberal, ou a sociedade profissional de objecto equivalente.
(…)
3 - A transmissão deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio.

A obrigação aqui em causa é a prevista na al. g) do primeiro dos normativos: comunicação da cedência do gozo da coisa; sendo que o segundo dos normativos trata, ao mesmo tempo, da forma do contrato de trespasse e da obrigatoriedade de comunicação ao senhorio.
Antes de entrar na dilucidação do que seja e que conteúdo revista a dita comunicação, importa conhecer a natureza deste dever.
Não se trata de um típico dever principal de prestar emergente do contrato. Sabemos que no arrendamento constitui dever principal, a cargo do inquilino, o relativo ao pagamento atempado das rendas.
Contudo, não ignoramos também que os contratos e a lei que os disciplina fazem emergir ao lado dos deveres principais os chamados deveres acessórios que, na sua formulação negativa (enquanto dirigidos à preservação das posições e interesses das partes que podem ser postos em causa com as ações ou omissões da contraparte), assumem a designação de deveres de proteção, sendo que todos eles podem agrupar-se na noção ampla proposta pela lei alemã de deveres de consideração, deveres estes que se “enxertam na relação contratual”, mas “não fazem parte do programa contratual propriamente dito”[1].
Estes deveres guardam “uma certa independência face à eficácia dos compromissos negociais: permanecendo, por exemplo, em caso de ineficácia destes, ou sobrevivendo à sua extinção (o campo da culpa post factum finitum)[2].
Com efeito, a autonomia privada, princípio cunhado pelo pensamento jurídico oitocentista, não tem um alcance ilimitado, já que a ética individualista e a ideia de liberdade contratual não podem deixar de ser enquadradas por exigências de justiça social, pela via, por exemplo, da figura da boa-fé contratual (art. 762.º, n.º 2, do Código Civil) e da ideia de deveres de proteção.
Em caso de violação destes deveres, a responsabilidade pela sua infração não cabe na responsabilidade delitual ou extracontratual propriamente dita, nem integra a responsabilidade contratual, mas, constituindo uma terceira via ou de responsabilidade intermédia, segue o regime da responsabilidade obrigacional (art. 798.º CC). Estes deveres estão fora do âmbito contratual, mas a sua violação determina a produção de danos (danos acompanhantes ou paralelos) do que deriva uma responsabilidade de tipo obrigacional, independente, no entanto, da aplicação das regras do incumprimento contratual, porque tais deveres são alheios à relação de prestação[3].
O art. 1038.º contém no seu elenco deveres de consideração que defluem de uma relação de “solidariedade” e de “cooperação” emergente do arrendamento e radicados na relação entre arrendatário e senhorio[4].
Entre estes, está o relativo à obrigação de comunicação da cedência da posição de arrendatário que, no caso de compra e venda de estabelecimento, ocorre por efeito do trespasse, estabelecendo o art. 1112.º, n.º 3 CC, que a transmissão por trespasse deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio.
É inequívoco que a obrigação em apreço não é principal, mas deflui da relação de solidariedade de cooperação que é própria do arrendamento. Veja-se, aliás, que com a transmissão da posição de arrendatário e entrega da coisa ao trespassário, cessam os deveres que cabem ao primitivo arrendatário e, por conseguinte, também os inerentes à obrigação de pagamento das rendas.
De modo que, transmitido o arrendamento a terceiro, por via do trespasse, a eventual violação da obrigação de comunicação da transmissão ao senhorio não acarreta a manutenção da obrigação de pagamento das rendas a cargo do primitivo arrendatário. Com o trespasse e entrega da coisa ao trespassário findou a relação locatícia que ligava o senhorio ao trespassante.
Restaria, como fazem alguns, considerar que o incumprimento da comunicação - cuja finalidade é permitir ao senhorio conferir a legalidade da transmissão, desde logo, se foi transferido o mínimo caraterizador do estabelecimento necessário para que possa falar-se de trespasse – torna ineficaz a transmissão relativamente ao senhorio [5] e se é fundamento de resolução do contrato e despejo do anterior e/ou do novo locatário[6].
Ora, uma das vias de resolução nasce da consideração do dever de comunicar como um dever acessório ou de proteção, donde deflui que a sua violação faz incorrer o trespassante em responsabilidade pelo incumprimento, sendo que o fato donde promana tal responsabilidade não é propriamente já o contrato, porque extinto com a transmissão do estabelecimento e sua entrega ao novo locatário, mas o complexo relacional nascido com o negócio de arrendamento e que se mantém mesmo após transmissão do estabelecimento. O regime deste incumprimento seria, todavia, o regime próprio do incumprimento contratual: indemnização por danos.
Assim, nos termos do arts. 798.º e ss. CC, o trespassante que não cumpre a obrigação de comunicar ao senhorio a transmissão do estabelecimento responde pelos danos que resultem da impossibilidade de fiscalização por este do negócio de trespasse, mormente pela falta de pagamento das rendas devidas após o trespasse não comunicado. E esta conclusão é independente daquela outra – que não recolhe unanimidade na doutrina – e que reside em saber se do não cumprimento da comunicação resulta a ineficácia do trespasse perante o senhorio (sendo que, na situação vertente, uma e outra das soluções, levaria ao mesmo resultado – a responsabilização da trespassante relapsa pelo cumprimento da obrigação de pagamento das rendas vencidas após o trespasse não comunicado).
E, in casu, a trespassante não cumpriu a obrigação de comunicação do trespasse?
A resposta a esta questão depende de se saber qual quanto a forma exigível para proceder a esta mesma comunicação e qual o conteúdo da própria comunicação.
A lei não exige, à partida, forma especial. Nomeadamente não refere que com a comunicação deverá seguir cópia do contrato de trespasse.
Significa isto que a lei não exige que o trespassante comunique ao senhorio os termos exatos do contratado – partes e objeto do negócio – e o faça por escrito, mormente remetendo cópia do contrato de trespasse?
Estamos em crer que a resposta a estas questões deverá ser positiva, por ser isso mais consentâneo com a finalidade da comunicação.
Vejamos:
A forma escrita para a comunicação resulta da aplicação do princípio expresso no art. 9.º, n.º 1 NRAU que alude às comunicações entre as partes relativas à cessação e prescreve-lhe a forma escrita.
E, na situação que nos ocupa, a trespassante comunicou à A por escrito o trespasse em casa para terceira pessoa que identifica.
Já no tocante ao conteúdo, consideramos, com Gravato de Morais, que é necessária a remessa ao senhorio da cópia ou de um exemplar do contrato de trespasse[7].
Desde logo porque atualmente, com o fim da necessidade de realizar escritura pública (DL 64-A/2000, de 22.4), não é já possível indicar ao senhorio o lugar e hora da celebração da escritura de trespasse, como seria anteriormente, mormente aquando da notificação para o exercício do direito de preferência. Para além disso, só o envio do contrato permite ao senhorio conhecer os exatos termos do contratado, nomeadamente quanto à natureza do contrato (trespasse, simples locação de estabelecimento ou outro negócio) garantias (ex. fiança para pagamento de rendas), preços, prazo de pagamento, inclusão do arrendamento, destino a dar ao estabelecimento etc…[8]
Veja-se que a transmissão da posição do arrendatário em caso de trespasse, ao contrário do que sucede com o regime geral de cessão da posição contratual (art. 424.º CC), não carece de autorização pelo senhorio, o que tem em vista facilitar a circulação do estabelecimento comercial, “contribuindo deste modo para incentivar a circulação dos bens no domínio das actividades mercantis”, de modo que “o interesse do senhorio foi sacrificado tutela do estabelecimento”[9].
Com efeito, esse desvio à regra do consentimento do cedido tem um motivo específico. Como refere Ricardo Costa, “a tutela do estabelecimento instalado no prédio continua a ser o fundamento principal da ponderação legislativa efectuada nas duas primeiras formas, respeitante ao arrendamento para fins comerciais”, acrescentando depois que essa tutela especial do estabelecimento “representa mais uma vez uma ideia-força do regime específico desse arrendamento, sendo um tópico essencial na interpretação, integração e aplicação das normas respectivas”, que sempre atenderão em primeira linha à valorização jurídica da “posição locativa como um elemento instrumental da empresa”[10].
Vistas as razões pelas quais a lei obriga a comunicação, pode afirmar-se com aquele jurista que “a norma especial do art. 1112.º, n.º 3, 2.ª parte, contribui para o fechar do círculo normativo de tutela da circulação da empresa do trespassante-arrendatário. Um círculo agora constituído pelo art. 1112.º, n.ºs 1, al. a), 2, 5 e 3, 2.ª parte, e visualizado nos seguintes passos: dispensa de consentimento do senhorio, existência de verdadeiro trespasse e/ou manutenção do destino geral, possibilidade de fiscalização pelo senhorio dessas existência e manutenção”. Assim sendo, será “defensável exigir ao obrigado à comunicação o envio ao senhorio de cópia do próprio contrato de trespasse celebrado: a) atenta a ratio do preceito, convém o senhorio ter acesso às cláusulas do contrato, nomeadamente depois de a dispensa de escritura pública ter terminado com o acesso ao documento depositado no cartório notarial; b) por analogia com o disposto no art. 1107.º, n.º 1, aplicável à transmissão por morte do arrendamento não habitacional pela remissão do art. 1113.º, n.º 2, que intima que a transmissão deve ser comunicada ao senhorio «com cópia dos documentos comprovativos»”[11].
Na situação que nos ocupa, a 1.ª Ré apenas comunicou ao A. haver trespassado o estabelecimento de pastelaria a D…. Nada acrescenta quanto ao negócio.
No mês anterior a esta comunicação escrita, havia notificado a A. para preferir nesse trespasse. Disse, então, que venderia o estabelecimento por €250.000,00, e que esse preço seria pago integralmente na data da outorga do trespasse a 21.2.2014.
Vemos, todavia, que o preço do trespasse não é sequer o indicado na notificação para preferir. Na cláusula terceira lê-se: O preço do trespasse é pelo valor global de EUR. 218.000,00 (…), sendo atribuído às existências e aos equipamentos um valor de EUR. 52.000,00.
Logo aqui, vemos que à A. não foi dado a conhecer um dos elementos essenciais do negócio sobre que poderia exercer direito de preferência: o preço.
Depois, na notificação para preferir, a anterior locatária afirmou que o preço seria pago integralmente na data do trespasse, a 21.2.2014.
Todavia, o trespasse ocorreu a 24.2.2014 e, sobretudo, o preço não foi pago integralmente, sendo que na data da assinatura contrato, foi paga a quantia de Eur. 12.000,00, e o restante seria pago em prestações mensais e sucessivas de Eur. 1.000,00. Coisa bem distinta da indicada para preferir.
Se outros elementos não existissem que tornassem exigível o conhecimento pela A. do teor do contrato de trespasse e, como vimos, há outros elementos, a desconformidade entre a notificação para preferência e o consignado no trespasse já seria mais do que suficiente para à A. ser dado a conhecer o teor integral do trespasse.
Sabemos que a 1.ª Ré não deu a conhecer à A. o teor integral do trespasse, limitando-se a referir-se a um trespasse (figura contratual que apenas perante o clausulado integral se pode considerar, ou não, verificada, independentemente da denominação que os contraentes resolvam dar ao negócio) e identificando a pessoa do trespassário, o que está longe de satisfazer uma norma que é excecional (constitui um desvio à norma da cessão da posição contratual) e, por via disso, de necessário e estrito cumprimento, cumprimento este que deve ser integral e em moldes a satisfazer a teleologia da norma.
Não foi isso que se verificou.
Segue-se que, se o inquilino não cumprir esta obrigação – sem prejuízo de, no entender de alguns[12], assistir ao senhorio legitimidade para promover o despejo do primitivo arrendatário e, por via disso, do trespassário – recai sobre si a obrigação de indemnizar o senhorio pelos prejuízos decorrentes da quebra negocial, mormente os relativos à ocupação do locado sem pagamento da contrapartida pecuniária que são as rendas.
Refira-se, por último, que a notificação para preferência não vale como comunicação do trespasse[13]; o cumprimento dessa obrigação cabe à trespassante – pois é esta que parte da relação negocial que nasce do arrendamento celebrado com o senhorio; e, além disso, o recebimento de uma ou mais rendas pode não revelar da parte do senhorio o reconhecimento da trespassária como locadora, por não ser um ato inequívoco[14] e, no caso, por sequer os valores pagos pela trespassária se referirem ao valor de renda acordado pela A. com a primitiva locatária a propósito da notificação para aumento de rendas, ignorando-se mesmo se a trespassária conhecia o teor das conversações havidas entre A. e 1.ª Ré já depois do início da sua ocupação do locado.
Em conformidade com o exposto, verifica-se ter existido incumprimento pela 1.ª Ré da obrigação que sobre si impendia de comunicar à A. o conteúdo do trespasse efetuado, razão pela qual, seja em função do inadimplemento desse dever acessório ou de proteção, seja porque o trespasse não produziu efeitos relativamente à A., é de proceder a apelação que se refere, tão-só, à obrigação de pagamento das rendas devidas pela ocupante do locado – trespassária relativamente à qual não foi comunicado ao senhorio o teor do contrato de trespasse – durante o período em que, ocupando o locado, não procedeu ao cumprimento de tal obrigação.
Aqui chegados, cumpre verificar a insuficiência da matéria de fato dada como provada (e sem prejuízo das alterações já introduzidas por força do recurso apresentado) para aquilatar das rendas em dívida.
Sabe-se que a trespassária começou a ocupar o estabelecimento em 13.5.2014.
Não se conhece a data em que a mesma deixou o locado (a A. alega que foi em 16.6.2015 e esse fato não foi levado aos temas de prova).
Sabe-se que D… efetuou transferências bancárias em abril, maio, junho e julho de 2014, sendo o valor destas quatro transferências de €343,50, cada.
Ignora-se qual o valor de renda devido antes da atualização da renda.
Diz a A. que a renda de €1.000,00, era devida desde maio de 2015, o que sucedia por tal resultar “dos termos da lei”.
A Lei 6/2006, de 27-02 (posteriormente alterada pelas Leis 31/2012, de 14-08, e 79/2014, de 19-12), aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), onde, para além do mais, estabeleceu um regime especial de atualização das rendas antigas. Consagrou, para esse efeito, uma norma transitória em matéria de atualização das rendas (artigo 27º) a prever a aplicação da nova lei aos contratos de arrendamento celebrados para fins não habitacionais antes da entrada em vigor do DL 257/95, de 30-09.
No caso, não se indica a data de início deste arrendamento (a Ré tomou o estabelecimento por trespasse de 2010), mas o certo é que as partes, nos seus contatos aludem ao processo de atualização previsto nos arts. 50.º e ss. do NRAu, na redação da lei 31/2012, de 14.8. No novo regime e quanto ao momento a partir do qual é devida renda, estabelece o art. 1077.º, n.º2 c) CC, que deverá ser remetida notificação com antecedência mínima de 30 dias sobre a data em que a renda é devida. A A. aceitou os 1.000,00, propostos pela Ré, por carta datada de 10.3.2014, pelo que já se não aplicaria a atualização à renda devida no mês seguinte (abril/2914), mas sim quanto à devida em maio desse ano.
Assentando que a renda de €1.000,00, era devida desde maio de 2014, terá a D…, efetivamente, ocupado o espaço desde esse mês (ou mesmo desde agosto desse ano, posto que efetuou transferência bancária em julho anterior) até à data de maio de 2015?
E, se assim foi, haverá que descontar ao valor em dívida a título de rendas, as quantias depositadas pelas D… em junho e julho (as quantias anteriormente, pensamos, terão dito respeito às rendas devidas em março e abril de 2014).
Em maio de 2015 teria terminado o contrato de arrendamento?
Da carta de resposta da A. à Ré quando aceita a sua proposta de € 1.000,00, de renda, parece resultar isso mesmo. Lê-se ali: “dada a oposição da sua constituinte ao prazo de duração do contrato chamo a atenção de que o contrato de arrendamento findará em 30 de Maio de 2015”.
Se assim foi, fica claro por que razão pede a A. apenas o pagamento dos valores devidos até essa data e não os restantes eventualmente vencidos até à data em que alega ter-lhe sido entregue o locado pelas D…, isto é, 16.6.2015.
Assim, sendo certo assistir à A. o direito ao recebimento das rendas a pagar pela Ré C…, já o valor exato das rendas devidas deverá apurar-se em liquidação posterior (art. 609.º, n.º 2 CPC).
Com efeito, provada a existência de prejuízos, pode a respectiva quantificação ser remetida para liquidação[15].
III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em revogar a sentença recorrida, condenando a Ré C…, SA, a pagar à A. as rendas devidas pela ocupação do locado durante os meses de maio a dezembro de 2014 e de abril a maio de 2015, em valor a apurar em liquidação posterior, ao qual se subtrairá o já pago à A. pela sociedade D… Unipessoal, Ldª, relativamente às rendas devidas correspondentes a esse lapso temporal.
Custas pela recorrida.

Porto, 22.10.2018
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
_________
[1] Carneiro da Frada, Os deveres (ditos) “acessórios e o arrendamento, in Temas de Direito do Arrendamento, Cadernos O Direito, n.º 7, 2013, p. 67.
[2] Ibidem, p. 72.
[3] Cfr. FRADA, Manuel Carneira, em Contrato e Deveres de Protecção, 1994, descreve exemplos colhidos da jurisprudência alemã em que estão em causa os referidos danos paralelos (p. 144 e ss.) e LEITÃO, Menezes, Obrigações, p. 351, alude a este propósito a uma “auto-responsabilização recíproca”.
[4] Neste sentido, também Menezes Cordeiro, em anotação do art. 1038.º, do CC, in Leis do Arrendamento Anotadas, coord. Menezes Cordeiro, Almeida, 2014, p. 64
[5] Ricardo Costa, O Novo Regime do Arrendamento Urbano e os negócios sobre empresas, in Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Vol. I, p. 504) e Urbano Dias, Transmissão do Arrendamento por Morte e em Vida, in O Direito, ano 140.º (2008), II, p. 345
[6] Assim, José Reis, O arrendameto para fins não habitacionais no NRAU: breves considerações, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, dezembro 2006, p. 515
[7] Novo Regime do Arrendamento Comercial, 2006, p. 150. No mesmo sentido, Paulo Campos da Silva, Tese de Mestrado, 2016, p. disponível em O contrato de trespasse de estabelecimento comercial com reserva de propriedade e a transmissão da posição do arrendatário: Após a celebração do contrato de compra e venda pelo qual se transmita a propriedade do estabelecimento, e admitindo que o senhorio prescindiu do exercício do seu direito de preferência (…), deverá o trespasse ser comunicado, pelo trespassante ou trespassário, ao senhorio no prazo de quinze dias. Devendo, entende-se, a comunicação do trespasse fazer-se acompanhar do contrato que lhe serve de base. Assim, fica cumprido o disposto no art.º1112, n.º3 e no art.º 1038, al. g) ambos do CC.
[8] Escreve Ricardo Costa, O NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO E OS NEGÓCIOS SOBRE A EMPRESA, disponsível em https://ricardo-costa.com/data/FILEP_21_201611918405.pdf: Entende-se o móbil quadripartido das normas (a geral e a especial): dar a conhecer ao senhorio, não ouvido por imposição da lei na cessão da posição contratual de arrendatário fundada em trespasse, a identidade da sua nova “contraparte”; sindicar a existência no caso concreto de um verdadeiro trespasse (se incidiu sobre o estabelecimento) e controlar se efectivamente a cessão tem a qualidade de imperativa (com a faculdade de, em caso de juízo negativo e demonstrando-o, poder o senhorio reagir contra a cessão ilícita); ficar prevenido para uma eventual afectação do prédio a outro destino, desde que não comercial; conhecer, se for o caso — porque não se deu a comunicação ao senhorio do projecto de trespasse e das cláusulas do negócio de transmissão (cfr. art. 416.º) —, esse negócio, a fim de preferir (direito que mantém no art. 1112.º, n.º 4) por via judicial, nos termos do art. 1410.º, n.º 1. – p. 7
[9] Rui de Alarcão, Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário no caso de Trespasse, 47 Bol. Fac. Direito
U. Coimbra 21 (1971), ps. 21-54.
[10] Ricardo Costa, ibidem.
[11] Ricardo Costa, cit., p. 7.
[12] Cfr. Ricardo Costa e doutrina aí recenseada, ps. 7 e 8.
[13] Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª ed., p. 170
[14] – Ac. R., de 19.9.89, VJ; XIV, 4, 64. No mesmo sentido, Ac. STJ, de 24.5.2018, Proc. 7471/15.9T8CBR.C1.SA, em cujo sumário se lê:a existência de um contrato de trespasse formalmente válido nos termos do art. 1112.º, n.º 3, do CC – não permite concluir que, pelo facto de receber rendas da arrendatária, não se ter oposto a obras que esta realizou e ter procedido à sua notificação para o exercício da preferência numa perspectivada venda, ocorreu um reconhecimento relevante [para efeitos do disposto no art. 1049.º].
[15] Ac. STJ, de 10.9.2009, Proc. 08B194.