Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
971/17.8T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RP20200324971/17.8T8STS.P1
Data do Acordão: 03/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
II - O montante mensal retido para o Insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que terá de ajustar a sua situação sócio-económica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
III – Os valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal devem ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 971/17.8T8STS.P1
Comarca: [Juízo de Comércio de Santo Tirso (J1); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha

Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

B…, residente na Rua …, n.º .., 4.º Lateral Esq., …, veio apresentar-se à insolvência, com exoneração do passivo restante, tendo sido declarada insolvente.
No requerimento inicial, a Requerente alega, para tanto, que aspira pôr termo às dívidas pendentes e/ou acções executivas que poderão, entretanto, surgir e ter o mínimo de dignidade e condições que todo o cidadão merece ter.
Afirma auferir de rendimento a quantia de € 627,57, necessitando desse montante para satisfazer as suas mais básicas necessidades, nomeadamente com alimentação, água, luz, telefone e vestuário.
Acrescenta despender cerca de € 70,00/mensais em transportes para se deslocar de casa para o trabalho e vice-versa. Bem como cerca de € 60,00/mensais em medicação.
Afirma dispor-se a observar todas as condições previstas na lei.
O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor à admissão liminar de tal pedido de exoneração do passivo restante, sugerindo que, atendendo às circunstâncias actuais do quotidiano desta, seja excluído do rendimento disponível o equivalente a 1 e ¼ do SMN.
Em sede de Assembleia de Credores foi votada favoravelmente a proposta de o processo prosseguir com a liquidação do activo e, quanto à exoneração do passivo restante, votaram contra os credores “C…, S.A.” e “D…, S.A.”.
Oportunamente, com data de 21/11/17, foi proferido despacho a admitir o pedido de exoneração do passivo restante, determinando-se quanto ao rendimento disponível a ceder: “O rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário, nos termos do artigo 239.º/2 e 3 do C.I.R.E., é integrado por todos os rendimento que ao devedor advenham, a qualquer título com exclusão, e no que à economia da presente decisão importa, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (artigo 239.º/3, b), i) do C.I.R.E.) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (artigo 239.º/3, b), iii) do C.I.R.E.). No caso da devedora, sabemos que não tem filhos dependentes e aufere € 627.57. Nesta medida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239.º do CIRE, determina-se que o rendimento da devedora que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional por mês, seja cedido ao Exmo. Administrador de Insolvência que neste acto se nomeia para exercer as funções de fiduciário.”
Entretanto, em 29/11/17, a Insolvente veio alegar que a sua residência se sita no município de Gondomar e o seu local de trabalho em Vila do Conde, necessitando de efectuar deslocações diárias e refeições fora de casa.
Defende que estas despesas ficam exclusivamente a seu cargo e acabam por absorver uma grande parte do seu vencimento.
Requer a indisponibilidade integral do seu salário, alterando-se o rendimento disponível para 1 SMN e ½.
O Administrador da Insolvência veio pronunciar-se, declarando nada ter a opor ao requerido.
Foi proferido despacho, em 29/11/19, a indeferir o requerido, mantendo-se o valor atribuído na decisão proferida nos autos.
A Insolvente veio apresentar novo requerimento nos autos, com data de 05/12/19, alegando que os cálculos dos valores para efeitos de cessão deveriam ter por referência um critério anual ao invés de mensal.
Requer que se ordene a fixação do critério para o cálculo dos valores para efeitos de cessão, face ao rendimento disponível fixado de 1 SMN, dado o entendimento da jurisprudência actual, a fim de se sanar a situação da Insolvente e deferir-se a exoneração do passivo restante peticionado.
Sequencialmente, com data de 14/01/20, foi proferido despacho complementar ao despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, com a seguinte fundamentação: “Requerimento de 05.12.2019 – Considera-se o Salário Mínimo Nacional reportado a 12 meses, ou seja, os valores recebidos a título de 13.º e 14.º mês devem ser tidos como rendimento disponível, e, assim, adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário, com a única excepção de o rendimento mensal ser inferior a Salário Mínimo Nacional e com a divisão do 13.º e 13.º mês por 12 meses não ultrapassar, mensalmente, o Salário Mínimo Nacional.”
Inconformada com esta decisão, a Insolvente veio recorrer, pedindo que o despacho recorrido seja alterado considerando retribuição mínima nacional anual e constituída pela RMMG multiplicada por 14, não devendo ser considerado subsídios de férias e de Natal, como rendimentos disponíveis a entregar à Sr.ª Fiduciária, tendo formulado as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, resume-se em apreciar de que forma se devem contabilizar os valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO (factos considerados provados na decisão em recurso)

1) A requerente apresentou-se à insolvência no dia 20.03.2017 e, por sentença proferida no dia 22.03.2017 declarou-se tal insolvência;
2) A requerida tem um passivo de € 108.174,41.
3) Os bens da devedora foram apreendidos nos autos.
4) Aufere a remuneração de € 627,57.
5) Nunca foi condenada pela prática de qualquer crime.
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IV – FORMA DE CONTABILIZAÇÃO DOS VALORES DOS SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL PARA EFEITOS DE CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL

A Insolvente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido, no sentido de que o Salário Mínimo Nacional é reportado a 12 meses, sendo os valores recebidos a título de 13.º e 14.º mês tidos como rendimento disponível.
Sustenta que o Tribunal deveria ter considerado 14 meses e não apenas 12 meses, uma vez que não resulta do despacho judicial inicial de exoneração do passivo restante em que se fixou o rendimento cedido à Recorrente se esse rendimento deverá ser retido 14 (catorze) vezes ou 12 (doze) vezes ao ano.
Afirma que tudo o que aufere são montantes de extrema necessidade para garantir o seu sustento.
Defende que, sendo a RMMG recebida 14 vezes no ano, podemos afirmar que o seu valor anual é constituído pelo montante mensal multiplicado por 14, artigo 263º e 264 nº1 e 2 do Código de Trabalho.
Acrescenta que esta interpretação é conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional a que alude o artigo 3º do decreto lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “ o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o nº1 do artigo 266 do Código de Trabalho, multiplicado por 14 meses”
A insolvência judicial tem por propósito o de se obter a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores do insolvente, através da repartição dos bens deste ou da aprovação de um plano de insolvência.
Por sua vez, a exoneração do passivo restante trata-se de uma medida especial de protecção do devedor pessoa singular e traduz-se esquematicamente na desvinculação dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Tal como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2003, de 18 de Março, é uma solução que se inspirou no modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.
O devedor mantém-se por um período de cessão, equivalente a cinco anos, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos e obriga-se, durante esse período, no essencial, a ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário, que afectará os montantes recebidos ao pagamento aos credores.
Decorre do disposto no art. 239.º, n.º 3, al. b), i., do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa[2] que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, em três vezes o salário mínimo nacional.
Esta exclusão referente ao “sustento minimamente digno”, segundo Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3], radica na protecção constitucional da dignidade humana.
Complementarmente, explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/16, tendo como Relator Fonseca Ramos[4]: "Jogam-se no art.º 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da "segunda oportunidade" concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos."
Há, portanto, que ter presente que o montante mensal retido para o Insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação sócio-económica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
A omissão do legislador no que respeita ao limite mínimo deste conceito amplo, permite que seja avaliado e ponderado, em cada caso, as reais necessidades do insolvente e do respetivo agregado familiar.
A jurisprudência maioritária tem optado por atender, nesta matéria, a critérios objectivos adjuvantes do juízo a formular, designadamente ao salário mínimo nacional.
A referência ao salário mínimo nacional fundamenta-se no entendimento que o Tribunal Constitucional tem explanado no sentido de constituir uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador[5].
Em resumo, na decisão a proferir, deverá imperar um equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno, tendo por valor de referência mínima o salário mínimo nacional.
Feita esta análise geral e indo directamente ao fundamento do presente recurso, diremos, desde logo, que – em nosso entendimento – os subsídios de férias e de Natal não podem ser analisados à luz das regras laborais e, por inerência, considerados como integrantes na retribuição e vencendo-se progressivamente em cada mês do ano, como pretendem os Recorrentes.
O direito do trabalho é um direito especial de direito privado que regula as relações jurídicas entre empregador e trabalhador, tendo por base o princípio da protecção deste último, enquanto parte presumivelmente mais fraca.
O direito insolvencial é um outro direito especial de direito privado que, como se refere acima, regula os mecanismos de satisfação dos direitos dos credores em caso de insolvência do devedor, através da repartição dos seus bens ou da aprovação de um plano de insolvência.
São áreas do direito absolutamente autónomas entre si, não havendo qualquer fundamento jurídico para entender aplicáveis as regras jurídicas especiais privativas de uma à outra.
Ficando assente esta delimitação negativa, a forma de contabilização dos valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão do rendimento disponível deve ser decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Tal como realça Luís M. Martins[6], o n.º 3 do art.º 239.º do CIRE é claro quando refere que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.
Os subsídios de férias e de Natal são incontestavelmente rendimentos disponíveis do devedor e traduzem-se, como se sabe, num complemento à retribuição auferida nos 12 meses do ano com a função de auxiliar nas despesas potencialmente acrescidas em época de férias ou no período do Natal.
Devem, por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno dos Insolventes e do seu agregado familiar.
Em face dos interesses em presença, esta será a forma concreta mais justa de adaptar a situação a situação sócio-económica da Recorrente à condição jurídica especial em que se encontra, conjugando o valor necessário para assegurar o sustento condigno desta nos 12 meses do ano com a máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
Veja-se, neste sentido e a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 07/05/18, tendo como Relator Augusto de Carvalho, proferido no Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1 e os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/02/14, tendo como Relator Carlos Moreira, proferido no Processo n.º 467/11.1TBVND-C.C1 e de 13/05/14, tendo como Relator Luís Cravo, proferido no Processo n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1[7].
Conclui-se, portanto, que a decisão da primeira instância é conforme à teleologia e aos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Decide-se, pois, confirmar integralmente a mesma.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente/Insolvente (art.º 527.º do CP Civil).

Registe e notifique.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto, 24 de Março de 2020
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] Doravante designado apenas por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 788, Quid Juris.
[4] Proferido no Processo nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1 e disponível em dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[5] Decidiu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/07/2002, proferido no Processo nº 177/2002, que "O salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o "mínimo dos mínimos" não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário."
[6] In Processo de Insolvência, 2017, 4.ª Edição, Almedina, pág. 552.
[7] Todos disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.