Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1018/14.1TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: CRIME DE DESCAMINHO
SUBTRACÇÃO
VENDA DOS BENS PENHORADOS
FIEL DEPOSITÁRIO
Nº do Documento: RP201605041018/14.1TAVFR.P1
Data do Acordão: 05/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 677, FLS.77-84)
Área Temática: .
Sumário: I – Para que o não cumprimento da apresentação dos bens no prazo concedido possa emergir como “ subtração” dos bens e tornar-se passível de constituir a acção típica do crime de descaminho (artº 355º CP) forçoso é que a situação revele uma intenção clara por parte do agente de, com caracter definitivo, impedir ou inviabilizar o acesso aos bens pelo poder publico.
II - Não comete tal crime o fiel depositário que apesar de não ter entregue os bens que lhe foram solicitados, se vem a verificar que os bens foram vendidos pelo agente de execução na qualidade de encarregado da venda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)

- no processo n.º 1018/14.1TAVFR.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 4 de maio de 2016, o seguinte:
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 1018/14.1TAVFR, da Secção Criminal (J1) – Instância Local de Santa Maria da Feira, Comarca de Aveiro, em que é arguida B…, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos [fls. 122]:
«(…) a) Condenar a arguida B… pela prática, como autora material e na forma consumada de um crime de descaminho de objecto penhorado previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal na pena de 7 (sete) meses de prisão que se substitui pela pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo um total de € 1680,00 (mil seiscentos e oitenta euros);
(…)»
2. Inconformada, a arguida recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 140, v.º e 141]:
«A. No entendimento da recorrente, o tribunal recorrido interpretou o art. 355.º do Código Penal no sentido de que preenche o conceito de "subtracção ao poder público" qualquer acção ou omissão, intencional ou não, do depositário que não seja a entrega do bem, quando o mesmo lhe for solicitado. Contudo, não integra o crime de descaminho, previsto e punido no art. 355.º do Código Penal, a não entrega dos bens penhorados ao encarregado da venda. Tal crime exige uma acção directa sobre a coisa, isto é, uma actuação que a destrua, inutilize ou impeça a sua entrega em definitivo.
B. E igualmente não integra o crime de descaminho, na forma de dolo eventual, prevista no n.º 3 do art. 14.º do Código Penal, deixar os bens penhorados nas diversas casas da arguida e de amigos, em local ou locais diversos da morada primária, a qual foi entregue ao banco por dificuldades financeiras. Para preencher tal previsão legal exige-se uma acção directa sobre os bens, ainda que não intencional, que conduzisse à destruição, inutilização ou impedimento de sua entrega em definitivo.
C. Os factos provados na sentença recorrida não permitem concluir que a arguida cometeu um crime de descaminho pelo qual vinha acusada. Nem podem fundamentar a aplicação à arguida da pena de prisão na qual foi condenada, substituída por multa.
D. Ressalta do teor da decisão condenatória a insuficiência da prova. Por outro lado, devia o tribunal a quo ter-se pronunciado (o que não fez) sobre o alegado pela arguida quanto ao facto de ter-se mudado de residência, obrigando-se a ter de entregar a casa onde se encontravam os bens penhorados, salvaguardando, no entanto e sempre, os bens que acabou por apresentar e foram susceptíveis de serem vendidos, arrecadando valores financeiros para o processo executivo.
E. Pelo que a sentença proferida é nula, nos termos do art. 379.º n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
F. Sem condescender, acresce que a arguida beneficiou, sempre da condescendência do encarregado da venda, o qual facilitou e negociou com a arguida a venda dos bens em detrimento da apresentação dos mesmos, o que criou expectativas na própria arguida e abriu a possibilidade dos bens serem liquidados em detrimento da sua devolução, o que acabou por acontecer; - A arguida não se recusou em tempo algum a entregá-los; - Muito menos foi advertida de que a não apresentação dos bens fosse cominada com o crime de descaminho; O tribunal a quo ao não relevar tais factos essenciais para o cumprimento dos requisitos formais, materiais e subjectivos do crime, errou na apreciação da prova, violou o art. 410º, n.º 2, al. c) do CPP. Deve, por isso, a arguida ser absolvida.
G. O Tribunal "a quo" optou pela pena única de 210 dias de multa. Atentas as circunstâncias do crime e o facto de se tratar de arguida com uma condição financeira muito débil (beneficia do apoio judiciário), considera-se que foram violados os determinativos da medida da pena (art. 71º do CP), os quais deveriam ter sido levados mais em conta, ou seja mais brandamente, pelo tribunal singular. A pena deverá ser alterada para uma pena única de 120 dias de multa, à taxa diária mínima exigível por lei. O juiz a quo violou o art. 71º do CP.
O Recurso interposto deve, por conseguinte, proceder, assim se fazendo a melhor e sã justiça.
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos da motivação de recurso, salientando que os factos provados preenchem o tipo objetivo do crime pelo qual a arguida vem condenada, pela subtração dos bens verificada, uma vez que lhes deu “sumiço” [fls. 153]; e quanto à medida da pena, conclui que a mesma se mostra justa e adequada às circunstâncias apuradas. Pugna pela manutenção do decidido [fls. 148-160].
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto considera que a argumentação da motivação de recurso não procede, emitindo parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso [fls. 167-168].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [fls. 105-113]:
«(…) Produzida a prova e discutida a causa, o Tribunal tem como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 25 de Maio de 2007, cerca das 17h00m, no âmbito do processo n.º 781/07.0TBVFR (execução comum) que correu termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, foram penhorados na residência da arguida, aí executada, na Rua …, n.º.., Urbanização …, em …, nesta cidade de Santa Maria da Feira, os bens melhor descritos no auto de fls. 3 a 6 para o qual se remete e se dá por integralmente reproduzido e em concreto:
a) 2 candeeiros de mesa de sala de jantar, 2 candeeiros de mesinha de cabeceira, 1 candeeiro de pé, um candeeiro de mesa, 1 candeeiro de quarto, 1 armário tipo sapateira de cor branca, 2 mesinhas de cabeceira, uma de cor branca e outra em madeira no valor global de €50,00 (cinquenta euros);
b) duas televisões de marca Sony, 1 aparelhagem de marca Denver, com duas colunas, 7 CD’s de música, 1 mesa com o tampo branco e estrutura azul e uma mesa de computador no valor de €75,00 (setenta e cinco euros);
c) um sofá de 3 lugares, cor-de-rosa, dois espelhos de casa de banho com 2 lâmpadas, 1 cadeira de rodas azul turquesa, um monitor de computador no valor de €100,00 (cem euros);
d) doze livros no valor de €200,00 (duzentos euros);
e) quarenta e dois livros e uma mesa de cabeceira no valor de €200,00 (duzentos euros).
2. Esses bens ficaram depositados nesse local e, nessa mesma data, foi nomeada fiel depositária daqueles objectos a arguida B… que foi expressa e pessoalmente advertida dos deveres inerentes a esse cargo, nomeadamente de que aqueles bens ficavam à sua guarda e que deveria proceder à sua entrega quando tal lhe fosse exigido, sob pena de incorrer em procedimento criminal.
3. De tudo isto, a arguida tomou conhecimento e ficou ciente, assinando o respectivo auto.
4. Nessa ocasião foi agendado o dia 02 de Junho de 2007 para a remoção dos bens penhorados, mas tal diligência foi julgada sem efeito devido ao facto de ter sido celebrado acordo naquela acção e requerida a suspensão da instância.
5. Entretanto, não tendo sido cumprido o acordo aqueles autos prosseguiram e a arguida foi notificada de que no dia 14 de Janeiro de 2009, pelas 15h00, deveria apresentar os bens para que fossem removidos, mas, no dia anterior a arguida apresentou-se no escritório do agente de execução efectuou o pagamento de parte do montante em dívida e, perante a sua afirmada vontade em pagar o restante, a diligência foi desmarcada.
6. Tendo a arguida informado o agente de execução que tinha mudado de residência, mudando os seus bens para uma casa sita na Pct …, n.º…, em …, no dia 01 de Abril de 2009 o agente de execução deslocou-se àquele local para verificar da situação dos bens.
7. Aí chegado, o agente de execução verificou que a arguida tinha retirado do local onde tinham ficado depositados, isto é, na Rua do …, em …, todos os bens acima indicados em 2), com excepção de 7 cd´s de música (verba n.º2), sofá cor-de-rosa (verba n.º3), 3 unidades de dicionário enciclopédico, Koogan La Rousse Selecções (verba 4), e todos os bens da verba 5 do auto de penhora, não os possuindo consigo na residência para onde tinha mudado.
8. No dia 24.04.2012 o Agente de Execução deslocou-se à residência da arguida na Rua … em Santa Maria da Feira e verificou que a arguida tinha retirado os bens do local onde tinham ficado depositados e que apenas tinha naquele local 2 televisões constantes da verba 2 do auto de penhora não indicando o local onde se encontravam e não os apresentando no prazo concedido de 10 dias nem posteriormente.
9. Na verdade, a arguida, em data não concretamente determinada mas seguramente nesse ano de 2009, retirou aqueles bens do local onde tinham ficado depositados na Rua …, em …, todos os bens e, ocultou-os, colocando-os em outro local que se recusou a indicar, assim os extraviando e subtraindo do poder público a que estavam submetidos.
10. Posteriormente, a arguida foi notificada para no dia 21 de Março de 2011, no dia 20 de Novembro de 2012, no dia 08 de Janeiro de 2013 e em 05 de Fevereiro de 2013 para apresentar e entregar aqueles bens, o que a arguida nunca fez, tendo-se deles apropriado, dando-lhes o destino que quis, como se de coisa sua se tratasse e como se não estivessem submetidos ao poder público como estavam, o que a arguida sabia.
11. A arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente ao retirar os bens penhorados do local onde estavam depositados, ocultando-os ao coloca-los em local que não foi possível apurar, não os tendo apresentado apesar de lhe ter sido solicitado por diversas vezes, bem sabendo que aqueles objectos se encontravam penhorados em processo judicial e tinham sido colocados à sua guarda, agindo com o propósito, conseguido, de os subtrair ao poder público e impedir a finalidade prosseguida com a penhora dos bens acima referidos e que era a de, através da venda dos mesmos, obter dinheiro suficiente para o pagamento da quantia exequenda, o que representou e quis.
12. Mais sabia que esta conduta era proibida e punida por lei penal.
13. A arguida foi condenada por sentença transitada em 27.04.2011 pela prática em 02.01.1995 de seis crimes de abuso de confiança contra a segurança social e de dois crimes de abuso de confiança fiscal na pena de 450 dias de multa à taxa diária de 43,40€ no total de 19.530,00€.
14. A arguida foi condenada por sentença transitada a 29.04.2013 pela prática em 25.10.2008 de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 5,00€.
15. A arguida trabalha há cerca de 10 anos para C… fazendo feiras onde vende bolo do caco, auferindo cerca de 40,00€ por cada dia de feira, ganhando uma média de 300,00€ por mês.
16. A arguida reside com o marido e filha em casa arrendada pagando 300,00€ mensais de renda; estudou até ao 12.º ano de escolaridade, o marido trabalha numa fábrica de cortiça como broquista e ganha cerca de 300,00€ a 400,00€ mensais, recebendo ainda uma reforma de 399,00€ mensais;
17. Os bens penhorados foram vendidos à filha da arguida, D… no dia 09.11.2015, os quais se encontravam na sua posse.
B – Factos não provados
- Não há facto por provar.
C – Fundamentação
O Tribunal formou a sua convicção com base na prova documental constante dos autos, desde logo o auto de penhora de fls. 3 e ss.do qual consta designadamente os bens penhorados, a morada da penhora e depósito dos bens, Rua …, bem como a data de penhora – 25.05.2007 e a assinatura da arguida e ainda a menção da nomeação desta como fiel depositária dos mesmos bens. Teve-se em conta os demais documentos, desde logo o teor de fls. 48 e 49, sendo que foi agendado pelo agente de execução tendo a arguida sido devidamente notificada, o dia 02.06.2007 para remoção dos bens (cfr. fls. 6) não tendo tal ocorrido em virtude de acordo das partes para pagamento da quantia exequenda (cfr. fls. 48 1.º parágrafo e fls. 49).
Face ao incumprimento do acordo, foi posteriormente agendado o dia 14.01.2009 para remoção dos bens penhorados (cfr. fls. 9) sendo que tal não ocorreu uma vez que a arguida foi ao escritório do Agente de execução e abateu 100,00€ à quantia exequenda (cfr. fls. 48 2.º parágrafo e fls. 50).
Face à ausência de novos pagamentos foi agendado o dia 01.04.2009 para remoção dois bens penhorados (cfr. fls. 10) e do auto de tal diligência resulta que a arguida havia mudado de residência sem ter pedido autorização prévia para remoção dos bens além de faltarem alguns bens, conforme se descreve a fls. 51, sendo tais bens cd´s, livros, uma mesa e um sofá (cfr. fls.48 3.º e 5.º parágrafo e fls. 51) tendo a arguida declarado que estavam embalados por causa da mudança de casa. Do teor de fls. 52 resulta que a arguida nunca veio posteriormente a apresentar estes bens em falta.
Foi depois agendado o dia 21.03.2011, às 15.00h para a arguida apresentar os bens ou para se fazer representar para tal efeito, o que esta não fez, não comparecendo e apenas enviando e-mail datado de 21.03.2015, às 13.56h, alegando estar a trabalhar fora e não poder comparecer (cfr. fls. 53), contudo do teor do auto de penhora consta que os vizinhos informaram que a arguida havia saído nesse mesmo dia de casa pelas 13.30h, tendo sido notificada para estar no local entre as 14.30h e 15.00h – cfr. fls. 52.
Foi efectuado novo agendamento para apresentação dos bens a 20.11.2012, conforme resulta de fls. 13, bem como a dia 08.01.2013 (cfr. fls. 14) e a 05.02.2013 (cfr. fls. 15), sendo que a arguida não apresentou os bens nem em tais datas nem posteriormente tendo comunicados aos autos de execução no dia 10.03.2014 que não podia apresentar os bens por estar a trabalhar fora e que marcaria com o agente no fim de Abril, o que todavia nunca veio a suceder, como o Sr. Agente de Execução atestou – fls. 48 in fine.
Teve-se ainda em conta o auto de diligência de fls. 12, do qual resulta que a arguida mudou pela terceira vez de residência apenas tendo consigo, no que concerne aos bens penhorados, duas televisões, não indicando o local dos demais bens nem os apresentando no prazo que lhe foi concedido para o efeito nem posteriormente.
Tais documentos foram ainda analisados em conjugação com o depoimento do Agente de Execução em audiência de julgamento, o qual confirmou em síntese o teor dos mesmos mais declarando que a arguida verbalizava perante si a vontade de pagar e fazia alguns pagamentos parciais pelo que o processo se foi prolongando face a essa expectativa de pagamento da quantia exequenda. Mais declarou que a arguida apenas mostrou vontade em mostrar os bens na sequência do agendamento da audiência de julgamento nestes autos, tendo a filha da arguida adquirido os bens que declarou estarem em sua posse (cfr. fls. 98 e 99).
No que respeita ao conspecto do elemento subjectivo, foi relevante, nos termos que aliás já vêm referidos, a prova documental e testemunhal produzida sempre em conjugação com as regras da experiência.
De facto, a arguida sabia e não podia deixar de saber que tinha a obrigação de apresentar os bens penhorados de que era fiel depositária sempre que tal lhe fosse solicitado e que o deveria fazer nos 5 dias após a falta à apresentação agendada pelo agente de execução, o que contudo nunca veio a ocorrer comportando-se a arguida como proprietária dos bens desde logo ao retirar os bens penhorados do local onde estavam depositados sem autorização prévia, não os tendo apresentado apesar de lhe ter sido solicitado por diversas vezes, agindo com o propósito claro de impedir a remoção e posterior venda dos mesmos a terceiros. De facto a arguida declarou em sede de audiência que tem um trabalho itinerante em feiras e que passa muito tempo fora de casa contudo o seu marido e filha sempre residiram consigo nas moradas constantes dos autos pelo que sempre poderiam ter apresentado os bens em causa, ao que a arguida respondeu que tal nunca lhe foi proposto, contudo tal não corresponde à verdade face ao teor desde logo de fls. 13, mas ainda que assim não fosse e de acordo com as regras da normalidade e da experiência quando há vontade em cumprir seria óbvio fazer-se representar por outra pessoa para apresentar os bens em causa, pelo que não convence minimamente o argumento invocado pela arguida, denotando antes uma demissão das suas responsabilidades e uma falta de vontade em as assumir e cumprir.
Teve-se em conta o CRC da arguida constante de fls. 87 e ss.
Teve-se ainda em conta as declarações da arguida bem como de C…, amiga e patroa da arguida, quanto às suas condições pessoais e profissionais.
(…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, a recorrente (i) argui a nulidade da sentença por omissão de pronúncia [conclusões D. e E.], (ii) invoca a existência de erro notório na apreciação da prova [conclusão F.]; (iii) contesta a qualificação jurídica dos factos [conclusões A. a C.] e (iv) insurge-se contra a medida da pena fixada – que reputa exagerada [conclusão G.].
2. (i) Nulidade da sentença. Diz a recorrente que a sentença não se pronunciou sobre o alegado pela arguida quanto ao facto de ter mudado de residência, obrigando-se a ter de entregar a casa onde se encontravam os bens penhorados, salvaguardando, no entanto e sempre, os bens que acabou por apresentar e foram suscetíveis de serem vendidos, arrecadando valores financeiros para o processo executivo” – pelo que é nula [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Cód. Proc. Penal] [conclusão D. e E.].
3. Não tem razão. Em primeiro lugar, a recorrente não “alegou” tal matéria na contestação que apresentou [fls. 76]. De todo o modo, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre os factos que resultaram da discussão da causa e que se mostram relevantes para decidir a questão da culpabilidade, em particular, saber se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou e se o arguido atuou com culpa [artigo 368.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Cód. Proc. Penal].
4. Ainda assim, e por mera precisão objetiva, iremos aditar ao ponto 17 dos Factos Provados a expressão “pelo agente de execução”, de modo a garantir uma total transparência acerca do que foi trazido aos autos. Na verdade, durante a audiência de julgamento foi junto aos autos o documento de fls. 99 que dá fé da venda, pelo agente de execução, dos bens em causa à filha da arguida – bens que se encontravam na posse desta. Como dissemos, este facto já integra o ponto 17 da factualidade provada mas a precisão de tal venda ter sido feita pelo agente de execução assume uma importância significativa na avaliação dos pressupostos objetivos da ação relativamente ao crime de descaminho. Este aditamento sempre se imporia porque transmite a verdade dos factos trazida aos autos. Daí que, a final e ao abrigo do disposto no artigo 431.º, b), do Cód. Proc. Penal, determinaremos que o ponto 17 dos Factos Provados passe a ter a seguinte redação: “17. Os bens penhorados foram vendidos pelo agente de execução à filha da arguida, D…, no dia 09.11.2015, os quais se encontravam na sua posse.”
5. (ii) Erro notório na apreciação da prova. Como se sabe, o vício apontado pressupõe que resulte evidente do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, um engano óbvio, uma conclusão contrária àquela que os factos impõem [artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Cód. Proc. Penal]. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para qualquer um, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência [Ac. STJ de 02.02.2011: “I - O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito”]; e Ac. STJ de 15.07.2009: “II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei - vícios da decisão, não do julgamento” em www.dgsi.pt].
Ora, não é isso que resulta da sentença. Na verdade, o texto da decisão é lógico, coerente e não apresenta qualquer desfasamento estrutural capaz de corresponder à situação-tipo do vício apontado [v.g., Ac. RP de 17.09.2003 (Fernando Monterroso), Ac. RP de 19.05.2004 (Manuel Braz) e Ac. RP 12.09.2007 (Élia São Pedo) em www.dgsi.pt].
6. Pode haver erro na qualificação jurídica dos factos atribuída pela sentença, ponto que trataremos em seguida. Mas tal não corresponde ao apontado vício – de avaliação da prova. Pelo que improcede mais este fundamento do recurso.
7. (iii) Erro na qualificação jurídica dos factos. Diz a recorrente que os factos dados como provados não são suscetíveis de preencher os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, do artigo 355.º, do Cód. Penal.
8. Aqui tem razão. A sentença recorrida baseou a condenação, unicamente, na não apresentação ao tribunal dos bens quando solicitados [fls. 115]. Depois de uma desenvolvida referência ao bem jurídico protegido pela norma e aos elementos do tipo objetivo e tipo subjetivo do ilícito, lê-se na fundamentação de direito: “(…) No caso em apreço, verifica-se que a Arguida foi nomeada fiel depositária dos bens penhorados à ordem de um processo de execução sumária em que o mesmo era Executado, e que esses bens não foram apresentados ao tribunal quando solicitados, sendo que tal falta ocorreu de forma reiterada não tendo a arguida vindo a apresentar tais bens nem nas datas agendadas nem em data posterior, como era sua obrigação e de acordo com a notificação do Agente de Execução e bem assim nos termos do art. 854.º/2 do CPC na redação do DL. 226/2008, de 20.11 nos termos da qual ‘Se o depositário não apresentar os bens que tenha recebido dentro de 5 dias e não justificar a falta, é logo ordenado pelo juiz arresto em bens do depositário suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, sem prejuízo de procedimento criminal.’ Assim sendo, a conduta da arguida consubstancia ou subsume-se ao tipo objetivo do crime de descaminho, pelo qual vem acusada pois a arguida apesar de por vezes ter apresentado justificação para a não apresentação dos bens – conforme se deu como provado - a verdade é que nem sempre o fez e nunca apresentou os bens nos dias posteriores à impossibilidade comunicada, sendo que além do mais as justificações da arguida não merecem acolhimento pois como a própria referiu em audiência o marido e a filha estavam a residir diariamente nos locais em causa pelo que sempre se poderia ter feito representar por estes”
9. Não podemos concordar. Diz a Lei [artigo 355.º, do Cód. Penal, sob a epígrafe “Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público”]: “Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objeto de providencia cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” [sublinhado nosso]. Com a previsão deste crime visa-se proteger a autonomia intencional do Estado através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública [Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, anot. ao cit. art.]. A ação típica pode revestir as seguintes modalidades de conduta: destruir, danificar, inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair [Ac. RP de 05.11.2014 (Eduarda Lobo), Ac. RC de 13.11.2013 (Brízida Martins) e Ac. RP de 17.06.2015 (por nós subscrito) em www.dgsi.pt].
10. Pois bem: provou-se que os bens foram vendidos nos próprios autos pelo agente de execução. É o que resulta do ponto 17 dos Factos Provados, conjugado com o documento de fls. 99: os bens foram vendidos no dia 9.11.2015 e quem procedeu à venda foi o próprio agente de execução, conforme se alcança do “Instrumento de venda de bens móveis” por si emitido na qualidade de encarregado da venda – onde declara que procedeu à venda “dos bens móveis que infra se discriminam e que correspondem à totalidade das verbas do auto de penhora de 25.05.2007, pelo preço de 580,00 € (quinhentos e oitenta euros)” [fls. 99].
11. Portanto, ao contrário do que se prefigura na sentença recorrida os bens não foram subtraídos ao poder público: apesar de não terem sido apresentados pela arguida nas datas que lhe foram fixadas, os bens acabaram por ser vendidos pelo agente de execução na qualidade de encarregado da venda, embolsando o produto da referida venda [ponto 17 dos Factos Provados]. Para que o não cumprimento da apresentação dos bens no prazo concedido possa emergir como “subtração” dos bens e tornar-se passível de constituir a ação típica do crime de descaminho, do artigo 355.º, do Cód. Penal, forçoso é que a situação revele uma intenção clara por parte do agente de, com carater definitivo, impedir ou inviabilizar o acesso aos bens pelo poder público. O que, como dissemos, não se verificou no caso presente, pois os bens foram objeto de venda realizada pelo próprio agente de execução.
12. A Lei não prevê que o facto de o agente não ter entregado os bens quando os mesmos lhe foram solicitados, só por si, desacompanhada de outros dados que revelem a intenção firme do agente impedir ou inviabilizar o acesso aos bens (capaz de se traduzir numa efetiva subtração dos bens) integre a ação típica do apontado crime de Descaminho, previsto pelo artigo 355.º, do Cód. Penal.
13. Pelo que, na procedência dos argumentos do recurso, concluímos que a ação descrita nos autos é atípica relativamente ao crime de por que vem acusada (e condenada) a recorrente.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Sem tributação – face à procedência do recurso [artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
• Alterar o ponto 17 dos Factos Provados que passa a ter a seguinte redação: “17. Os bens penhorados foram vendidos pelo agente de execução à filha da arguida, D…, no dia 09.11.2015, os quais se encontravam na sua posse”;
• Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida B…, absolvendo-a do crime de Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, do artigo 355.º, do Cód. Penal, por que vinha acusada.
Sem tributação.

Porto, 4 de maio de 2016
Artur Oliveira
José Piedade