Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
673/17.5JAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
AGRAVAMENTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
NECESSIDADE PREVENTIVA GERAL
Nº do Documento: RP20190109673/17.5JAAVR.P1
Data do Acordão: 01/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º785, FLS.62-76)
Área Temática: .
Sumário: I – Tendo o arguido cometido um crime de homicídio voluntário agravado, na forma tentada, ocorrido no seio familiar, com recurso a arma de fogo, em concurso com um crime de detenção de arma proibida, ainda que as necessidades de prevenção especial permitam se faça um juízo de prognose favorável à substituição da pena de prisão pela suspensão da execução dessa pena, não é possível fazer-se tal juízo de prognose em face do bem jurídico violado (o direito á vida), e tendo em conta ainda as necessidades de prevenção geral - de integração, de reforço da consci­ência jurídica comunitária, do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida - e a necessidade de estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida.
II - Dificilmente a comunidade aceitaria com paz jurídica, uma pena de prisão suspensa na sua execução, após tomar conhecimento da intensa gravidade dos factos perpetrados e praticados pelo arguido, sendo patente o alarme social que tal decisão causaria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 673/17.5JAAVR.P1.
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Acordam em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº 673/17.5JAAVR.P1, do Juízo Central Criminal de Aveiro (Juiz nº 6), foi o arguido B… julgado em Tribunal Colectivo, sendo proferida a seguinte decisão:
Condenar o arguido B…:
a) Como autor de um crime de homicídio agravado na forma tentada, previsto e punível pelos arts. 23º, nº 1 e 2, e 73º, nº1 als. a) e b) e 131º, todos do Código Penal e 86º, nº 3 do RJAM na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
b) Como autor de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art. 86º, nº 1 al. c) e nº 2 da Lei nº 5/2006 de 23.02, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
Operando o cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenar o arguido B… na pena única de 5 (cinco) anos de prisão que se suspende na sua execução por igual período com regime de prova, impondo-se neste, nos termos do disposto nos arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 1º, ambos do Código Penal, as seguintes obrigações e regras de conduta:
Responder às convocatórias que lhe sejam feitas no âmbito deste processo por magistrado judicial e/ou técnico de reinserção social; Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; Informar o técnico de reinserção social e o Tribunal sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso; Inscrever-se no centro de emprego ou em cursos de formação de modo a melhor se preparar para uma plena inserção no mercado laboral.
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Desta decisão, recorre o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (sic), que balizam e limitam o âmbito do recurso (Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do Art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”):
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1º O presente recurso vem interposto do acórdão proferido nos autos à margem referenciados, em 17/09/2018 (refª 103126388), pelo qual o Tribunal a quo, na sequência do julgamento a que o mesmo foi submetido, veio a condenar o arguido B…, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova, com as inerentes obrigações e regras de conduta ali melhor especificadas e em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais no respectivo plano de reinserção social.
2º Tal condenação teve como fundamento a prática pelo arguido, como autor material e em concurso efectivo, de:
- Um crime de homicídio agravado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 23º, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a) e b), e 131º, todos do Código Penal, e 86º, nº 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006 de 23/02, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. c), e nº 2, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006 de 23/02, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
3º O Ministério Público discorda do acórdão sob recurso na parte atinente à suspensão da execução da pena única de prisão, porquanto se entende não estarem reunidos todos os pressupostos legais de que depende a aplicação do instituto da suspensão da pena.
4º Das disposições conjugadas dos artigos 40º, nº 1, e 50º, nº 1, do Código Penal, resulta que, para que uma pena de prisão (igual ou inferior a 5 anos) possa ser suspensa na sua execução, o tribunal tem de concluir que ficam acauteladas as finalidades da punição, tanto na perspectiva das necessidades de prevenção especial (reintegração do agente na sociedade), como na perspectiva das necessidades de prevenção geral (protecção de bens jurídicos).
5º Não basta, pois, um juízo de prognose positivo relativamente ao comportamento futuro do arguido, devendo a suspensão da execução da pena, cumulativamente, acautelar que não sejam postas em causa as expectativas comunitárias na efectiva validade e vigência das normas jurídicas violadas – por forma a que não se comprometa a imagem social da importância dos bens jurídicos postos em crise com a prática da(s) infracção(ões) que fundamentam a condenação, nem se promovam sentimentos comunitários de impunidade e/ou indulgência perante tais infracções.
6º No caso ora em apreciação, verifica-se que o Tribunal a quo se ateve, por um lado, exclusivamente, a considerações de prevenção especial – formulando um juízo de prognose favorável ao arguido, do qual discordamos – e por outro lado, desvalorizou e desconsiderou de forma inaceitável a exigência legal de satisfação das exigências de prevenção geral.
7º No que respeita às considerações de prevenção especial, os factos dados como provados, atinentes ao circunstancialismo que rodeou os factos, evidenciam traços de personalidade do arguido que não permitem fazer um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro - pois são reveladores de impulsividade por parte do arguido e de uma tendência para solucionar pela violência situações de conflitualidade em que se veja envolvido.
8º A factualidade dada como provada - nomeadamente aquela convocada pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão de suspensão - não permite concluir que a pena suspensa seja suficientemente intimidadora para o agente e que, com elevado grau de probabilidade, ele não voltará ao cometimento de crimes, nomeadamente crimes contra a vida e integridade física.
9º No tocante às exigências de prevenção geral, há que ter em consideração, em primeiro plano, estar em causa, além do mais, a prática de um crime de homicídio, ainda que na forma tentada - ou seja, actos atentatórios de uma vida humana, bem jurídico que a nossa Lei Fundamental alcandora ao primeiro lugar em matéria de direitos, liberdade e garantias (artigo 24º da Constituição da República Portuguesa) - sendo nesta matéria elevadíssimas as exigências de prevenção geral.
10 º Levando em conta que está em causa a prática de um crime de homicídio,ainda que na forma tentada, ocorrido no seio familiar, com recurso a arma de fogo, e com as concretas motivações pelas quais o arguido se determinou – o que se pode concluir é que a comunidade em geral dificilmente suportará, em contraponto às expectativas jurídico-sociais vigentes quanto à efectiva prevenção, punição e repressão de tal tipo de actos, que a condenação redunde numa pena de prisão cuja execução fica suspensa.
11º A imagem comunitária que tal concreta sanção (pena suspensa) acarreta é, por um lado, de grande indulgência na determinação da sanção perante factos de particular gravidade, e por outro lado, de que na perspectiva das entidades jurisdicionais a violação das normas proibitivas pressupostas pela incriminação é de algum modo aceitável - não ficando suficientemente acauteladas as finalidades de protecção dos bens jurídicos e de reafirmação da efectiva validade e vigência das normas jurídicas violadas.
12º Aliás, no acórdão sob recurso, o Tribunal a quo, depois E APESAR DE afirmar que no caso concreto as exigências de prevenção geral são elevadas, não tem uma única palavra para justificar em que medida, com a pena suspensa, essas mesmas exigências ficarão acauteladas – mantendo a tal respeito um absoluto e ensurdecedor silêncio.
13º No caso concreto dos autos, a execução da pena de prisão fixada mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na efectiva validade e vigência das normas jurídicas violadas – sendo que, em contraponto, a opção pela suspensão da execução da pena de prisão redunda in casu, inexoravelmente, numa efectiva defraudação das finalidades de prevenção, mormente das exigências de prevenção geral.
14º Pelo exposto, entende-se que ao suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido B…, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 40º, nº 1, e 50º, nº 1, do Código Penal.
15º Deve, portanto, ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se o acórdão recorrido no sentido de:
a) Revogar a decisão de suspender a execução da pena única de 5 (cinco) anos de prisão;
b) Manter-se a condenação na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, determinando que a mesma seja de execução efectiva.
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Respondeu o arguido, tecendo considerações contra a tese do recurso e concluindo que estão reunidos todos os pressupostos para manter a suspensão da execução da pena de prisão, até pelo “perdão” do ofendido, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente.
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No seu parecer, o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto acompanha o recurso do Ministério Público, incluindo a justificação do alarme social e assim propendendo para o provimento do recurso.
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Ainda respondeu o arguido, mantendo a mesma tese já explanada na sua resposta e concluindo do mesmo modo.
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Do acórdão recorrido, são estes os factos e a respectiva motivação:
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1. Pelas 19h00m do dia 9 de Outubro de 2017, no acantonamento de indivíduos de etnia cigana sito na Rua …, …, em …, no município C…, área desta Comarca de Aveiro, no exterior das casas ali existentes, D… e o seu filho E…, ambos residentes naquele acantonamento, envolveram-se em discussão com o arguido B…, ali também residente, irmão do referido D… e tio do referido E….
2. Tal discussão foi motivada pelo facto de, no dia 8 de Outubro de 2017, F… ter voltado a residir naquele acantonamento, em comunhão de mesa, cama e habitação com o ofendido E…, contra a vontade do arguido, sendo que no decurso daquela discussão, o arguido, dirigindo-se ao ofendido E… e referindo-se a F…, companheira deste, disse-lhe: ”Se não saíres daqui com ela vou buscar a arma e mato-te!”
3. Cerca das 20h00m desse mesmo dia, na sequência desta discussão que se vinha desenrolando entre eles, depois de o E… ter dito ao arguido que nem ele nem a aludida F… abandonariam aquele local e de ambos se terem mantido na casa onde habitavam, sita naquele acantonamento, o arguido B… dirigiu-se para junto da sua habitação, contígua àquela, e dali retirou:
3.1. A espingarda caçadeira semiautomática, com cano de alma lisa, de calibre 12, da marca KFC e modelo Auto 5, com o número de série ……., de origem japonesa;
3.2. Dezassete (17) cartuchos de caça carregados, de calibre 12, da marca REMINGTON, de origem nos EUA, com copela metálica de 15mm e corpo em plástico de cor …, apresentando indicação de carregamento de granulometria n.º 6 e as inscrições “…”;
3.3. Quarenta e oito (48) cartuchos de caça carregados, de calibre 12, da marca START SHOT, de origem espanhola, com copela metálica de 7mm e corpo em plástico de cor …, apresentando indicação de carregamento de granulometria n.º 1 e as inscrições “…”.
4. Com a arma referida em 3.1. na sua posse, o arguido municiou-a com pelo menos 4 (quatro) dos 48 (quarenta e oito) cartuchos referidos em 3.3. e, empunhando aquela arma, caminhou na direção da casa onde habitava o E…, seu sobrinho, com a sua companheira e os seus pais, contígua à sua, contornando o muro em alvenaria que separa lateralmente os pátios de ambas as residências e, depois, a estrutura amovível existente na parte frontal do pátio da residência do ofendido, até se abeirar do portão de pequenas dimensões existente na entrada deste pátio.
5. Quando se encontrava junto deste portão, o arguido, empunhando aquela arma de fogo, apontou a mesma para o ar e efetuou dois disparos.
6. Depois, o arguido, empunhando aquela arma, regressou ao pátio da sua residência e, uma vez aí, apontou a mesma para o ar e efetuou um terceiro disparo.
7. De imediato, quando se encontrava a cerca de 10 (dez) metros das escadas exteriores de acesso à porta da residência do E…, escadas essas localizadas num patamar superior relativamente ao muro em alvenaria referido em 4, o arguido visualizou o ofendido, que então se encontrava no cimo daquelas escadas e junto daquela porta, apontou a arma referida em 3.1. na direção do ofendido e disparou um quarto tiro tendo um dos chumbos projetados atingido o E… na cabeça.
8. Após ter disparado este quarto tiro e com ele ter atingido o ofendido, o arguido fugiu dali e escondeu aquela arma e respetivas munições num pinhal envolvente, a cerca de 100 (cem) metros daquele local, onde, por indicação sua, aquela arma e munições vieram mais tarde a ser localizadas e apreendidas.
9. Da relatada conduta do arguido resultaram direta e necessariamente para E… as seguintes lesões:
– Duas escoriações lineares paralelas entre si, muito superficiais, rodeadas de halo de queimadura de cor negra, no bordo superior do hélix do pavilhão auricular esquerdo, medindo a maior 0,7cm de comprimento e a menor 0,3cm de comprimento, ocupando o conjunto de tais lesões uma área com 0,8cm x 0,5cm e encontrando-se rodeadas de discreta equimose rosada medindo 3cm x 1.5cm;
– Solução de continuidade coberta por crosta sanguínea, de morfologia circular, na região temporal esquerda, medindo 0,3cm de diâmetro, rodeada de orla de contusão equimótica arroxeada, excêntrica de predomínio posterior, com tumefação subjacente, medindo 1,5cm x 0,9cm;
– Presença de estrutura metálica (chumbo) nos tecidos moles da região temporal esquerda e ligeiro espessamento dos tecidos moles a este nível.
10. Tais lesões determinaram para o ofendido um período de 7 (sete) dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional e sem consequências permanentes.
11. O arguido conhecia as características da arma de fogo que disparou na direção do ofendido, bem como dos projéteis lançados a partir da mesma, estando ciente das potencialidades letais de tal arma e projéteis, que utilizou.
12. O arguido disparou na direção do E… na sequência da discussão encetada e por este não ter acatado a sua vontade, permanecendo naquele acantonamento na companhia da sua companheira F….
13. O arguido ao efetuar o referido disparo, atenta a distância a que se encontrava do E…, a forma como o direcionou e a natureza do meio que utilizou, admitiu como possível que aquele era adequado a provocar lesões suscetíveis de conduzir à morte do ofendido, conformando-se com tal resultado, sem que, contudo, tal tenha sucedido por razões alheias à sua vontade.
14. A arma supra referida pertence a G… e foi furtada do interior da residência deste, sita na Rua …, n.º …, em …, Oliveira do Bairro, no dia 19/04/2017, estando tais factos a ser investigados no âmbito do processo-crime n.º 164/17.4GBOBR, a correr termos na Secção Local de Oliveira do Bairro do DIAP da Comarca de Aveiro.
15. O arguido deteve e guardou consigo a arma e os cartuchos supra referidos desde data não concretamente apurada mas pelo menos desde Julho de 2017 e até ao sobredito dia 09/10/2017, não se encontrando aquela arma manifestada nem registada, nem possuindo o arguido licença de uso e porte desta arma e munições, bem sabendo ser proibida a detenção e porte daquela arma e respetivas munições sem manifesto e registo e sem que possuísse licença de uso e porte das mesmas, o que representou.
16. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e constituía crime.
17. Anteriormente aos factos viveu na casa contígua à do arguido uma sobrinha do arguido de nome H….
18. O arguido e seus familiares e bem assim a vítima e seus familiares pertencem à etnia cigana.
19. O arguido não concordava com o facto de o seu sobrinho E… ter voltado a viver com a F…, na casa ao lado da sua, após esta ter saído previamente de casa para viver com outro individuo, e por estar convencido que esta se relacionou amorosamente com vários homens ao longo da sua vida, entendendo que essa atitude do seu sobrinho e o retorno daquela à casa contigua à sua, podia influenciar negativamente o comportamento futuro das suas filhas.
20. Nesse mesmo dia três indivíduos também da etnia cigana (I…, J… e K…, haviam-se deslocado a casa do pai de E…, para conversar com este no sentido de, por esse motivo, ele determinar a saída da referida F… da sua casa.
21. Após os disparos, o arguido apresentou-se voluntariamente às autoridades policiais.
22. No dia dos factos o E… dirigiu-se às urgências do Hospital L…, mas abandonou aquele local sem ser assistido.
23. O arguido reconciliou-se com o seu sobrinho E… e com o seu irmão D….
24. O E… em requerimento dirigido ao presente processo refere ter perdoado o tio e nada querer do mesmo tendo informado que não era de sua vontade que o processo prosseguisse (Cfr. documento de fls. 307 a 309 que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos).
25. O arguido B… nasceu e cresceu em …, Aveiro, no seio de um agregado familiar constituído pelos progenitores e sete descendentes, educado pelos valores e tradições da comunidade cigana a que pertence.
26. A família do arguido era de condição socioeconómica humilde e subsistia da venda ambulante, de porta em porta, e da prática da mendicidade.
27. O arguido não ingressou na escola senão quando já tinha 22 anos de idade, iniciando um curso de alfabetização em regime noturno, em C…, que frequentou até ao 6.º ano sem, no entanto, o concluir.
28. Enquanto frequentava o curso de alfabetização, B… contribuía para a subsistência da família de origem realizando trabalho indiferenciado numa vacaria de C…, com uma retribuição incertas e irregular.
29. No plano da sua intimidade, identifica como significativa a relação com M… com quem “casou”, de acordo com as tradições ciganas, quando ela tinha apenas 15 anos de idade, e com quem teve sete filhos.
30. Em Janeiro de 2000, com a primeira reclusão do arguido, M… deixou o agregado familiar ficando os filhos do casal sob a tutela da avó paterna.
31. O arguido regressou à liberdade em Setembro de 2005, residindo com a família de origem e os seus filhos ainda menores.
32. Cerca do ano de 2016, B… iniciou uma relação íntima com N…, com 24 anos de idade, da qual resultou uma filha que tem presentemente 9 meses de idade.
33. O arguido iniciou o consumo de estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, aos 16 anos de idade, no contexto de grupos de amigos fora da comunidade cigana, e refere ter realizado tratamento para este problema em meio prisional, entre 2000 e 2005, mantendo-se abstinente desde então.
34. O arguido atribui a condenação a que foi sujeito no passado aos problemas resultantes da sua condição de toxicodependente.
35. À data dos factos, o arguido residia com a sua companheira N… e os oito filhos na rua …, …, em ….
36. Este agregado residia num espaço de tipologia 2 em que os filhos do arguido se distribuíam pelos dois quartos existentes e o casal pernoitava na sala da habitação, no contexto de uma comunidade cigana alargada habitando em construções abarracadas, com condições muito humildes de habitabilidade e salubridade, cujos residentes partilham um contrato de eletricidade comum.
37. Este agregado familiar subsistia do rendimento social de inserção (€730 mensais), dos abonos dos menores (cerca de €500 mensais), de vários apoios sociais e da bolsa de estudo e subsídio de almoço auferidos pelo arguido pela frequência de um curso de formação profissional na área da jardinagem, promovido pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, interrompido com a atual reclusão.
38. O agregado familiar do arguido manifesta disponibilidade para o apoiar e ajudar durante a reclusão e em liberdade, sentimento partilhado pelos restantes membros da comunidade cigana circundante.
39. B… ingressou no Estabelecimento Prisional O… em 11 de Outubro de 2017, no âmbito dos presentes autos, e recebe visitas regulares do agregado de origem e da família alargada.
40. Apresentou motivação para aderir a atividades proactivas dentro do Estabelecimento Prisional, tendo integrado e concluído, entre Novembro e Dezembro de 2017, um curso de formação profissional de Operador de Manutenção Hoteleira, dinamizado pelo Centro Protocolar de Justiça.
41. Em Novembro de 2017, formalizou pedido de colocação laboral em meio prisional, aguardando a existência de uma vaga.
42. No momento do seu ingresso, realizou testes de despistagem ao consumo de estupefacientes, os quais apresentaram resultados negativos – presentemente, é acompanhado pelos serviços de saúde do Estabelecimento Prisional para problemas de ansiedade.
43. Em termos disciplinares, em Maio de 2018, o arguido foi punido com a medida disciplinar de permanência obrigatória no alojamento, pelo período de 15 dias, pela apreensão de um aparelho de telemóvel, em Dezembro de 2017.
44. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
Factos não provados:
1. A arma e munições referidas em 3 dos factos provados estivessem guardadas no interior da casa de habitação o arguido.
2. O arguido atuou com o propósito de tirar a vida a E…, bem sabendo que o disparo que efetuou, atenta a distância a que se se encontrava deste, a forma como o direcionou e a natureza do meio que utilizou, era adequado a provocar, de forma direta e necessária, lesões suscetíveis de conduzir à morte do ofendido, sem que, contudo, haja logrado os seus intentos por razões alheias à sua vontade.
3. A discussão havida entre o arguido e o seu sobrinho E… estivesse diretamente relacionada com a circunstância de a F… (companheira do E…) se relacionar com vários homens em simultâneo, o que gerava descontentamentos e mau ambiente para as filhas do arguido.
4. A sobrinha do arguido de nome H… quando morava na casa contígua à do arguido dedicava-se à prostituição no …, atividade que mantém.
5. Esse facto fez com que o arguido ficasse muito preocupado pela educação das suas filhas.
6. O arguido temia que estranhos, relacionados com a atividade da sua sobrinha H… ou com a F… que procurassem a casa do seu irmão D… (contígua à sua) fizessem mal às suas filhas designadamente delas abusassem sexualmente, o que o deixava muito ansioso.
7. A atividade de prostituição a que se dedicava a H… e o comportamento da F… estavam relacionados com o consumo de drogas e produtos estupefacientes dos seus companheiros, designadamente do E….
8. Antes de o arguido ter ido junto da sua casa buscar a rama foi agredido com uma enxada num joelho pelo E… e foi disparada uma arma na sua direção pelo seu irmão D….
9. Foi a circunstância de ter sido agredido e de estar sozinho que o determinou a ir buscar a arma.
10. Ao pegar na arma pretendeu o arguido disparar para o ar e todos os disparos que efetuou foram para acalmar todos os intervenientes na discussão, desde logo porque já tinha sido utilizada uma arma contra si e porque estava sozinho.
11. O E… estivesse na altura da discussão na presença de toda a sua família.
12. O E… foi atingido pelo ricochete efetuado pelo chumbo, que bateu primeiro na parede.
13. O arguido ausentou-se do local após o disparo por ter ficado muito assustado.
14. O arguido perdeu a vontade de ir viver para o local dos factos.
15. O arguido decidiu ir viver para casa dos pais da companheira sita em Estarreja, com esta e com os oito filhos.
16. O arguido é pessoa muito educada e que se pauta por princípios de vida nobres, sendo muito honesto, leal, muito bom pai e cuidador dos seus filhos.
Motivação:
A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal. O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
O arguido prestou declarações reconhecendo apenas parte dos factos que se lhe imputam.
Na verdade, o arguido confirmou a existência da discussão com o seu sobrinho E… e com o seu irmão D…, embora afirmando que ali foi alvo de uma agressão por parte do E… com uma enxada e que o seu irmão disparou um tiro na sua direção.
Reconheceu ter disparado quatro tiros, embora afirme que o primeiro foi dado nas traseiras da sua casa, os segundo e terceiro no caminho de acesso ao portão da casa do seu irmão e o último (o que veio a atingir o seu sobrinho) no pátio da sua casa.
Relativamente a este último tiro, afirmou que o disparou a cerca de dois metros do muro divisório das casas e afirmou “eu sem querer apertei o gatilho e acho que bateu no topo da casa” afirmando que “disparou sem querer”.
Questionado referiu que levava a arma com o cano virado para a casa do irmão “a ponta do cano da arma estava virada mais para o ar para o lado da casa do irmão”.
Referiu não saber com quantas cartuchos carregou a arma, admitindo 3, 4 ou 5 cartuchos, sendo que mais adiante afirmou que apenas carregou a arma quando a foi buscar às traseiras da casa e veio para o caminho (o que não surge muito consentâneo com a circunstância de a arma ter sido apreendida municiada com cinco cartuchos e terem sido já disparados quatro tiros).
Reconheceu que a arma lhe pertence e que a havia adquirido em julho desse mesmo ano (dizendo que a comprou ao E…). Neste contexto afirmou não ter licença de uso e porte de arma e invocou - de forma que não mereceu a nossa credibilidade não saber que tal constituía conduta proibida e punida pela lei penal.
Negou que tivesse a intenção de matar o seu sobrinho E… argumentando que se o pretendesse fazer tinha tido oportunidade quando esteve junto ao portão.
Prestou ainda declarações quanto à sua situação pessoal e profissional, tendo sido confrontado com o teor do relatório social junto aos sutos.
Foram reproduzidas e valoradas ainda as declarações prestadas pelo arguido em sede de 1.º Interrogatório Judicial de arguido detido e aquelas prestadas perante a Digna Magistrada do Ministério Público em inquérito, as quais se mostraram dissonantes das ora prestadas, designadamente quanto ao último disparo, na medida em que diversamente do ora declarado em julgamento não referiu que a arma se disparou “ sem querer” ou acidentalmente referindo expressamente “mandei dois tiros no ar. Depois mandei um na parede e os chumbos é que foram ao E….”
Estas declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial (e nesta parte reiteradas perante a Digna Magistrada do Ministério Público) no que concerne à voluntariedade do quarto disparo, mostraram-se mais consentâneas com a restante prova produzida e até com as concretas características da arma empunhada, não sendo crível que sem qualquer circunstância externa, como fosse um empurrão, um tropeçar ou outra (e o arguido negou-as) a arma se viesse a disparar como o arguido quis fazer crer. Veja-se ainda que no exame pericial efetuado não se apurou que esta arma padecesse de qualquer defeito ou falha técnica, estando em condições de bom funcionamento.
Acresce que mesmo as declarações do arguido em audiência de julgamento são em si contraditórias, pois afirmando que pretendia com este disparo apenas assustar o seu sobrinho E…, não se percebe como se compatibiliza esta sua intenção (de assustar) com o alegado disparo acidental.
Porém, na parte em que as declarações do arguido não foram confessórias o tribunal atendeu aos seguintes meios de prova, que conjugados entre si permitiram:
Relativamente às características da arma e munições apreendidas nos autos, o auto de apreensão de fls. 34, o auto de exame direto de fls. 42 e 43, bem como o relatório de exame de pericial (balística) de fls. 161 a 167 (pontos 3 a 3.3 dos factos provados).
Quanto às lesões sofridas pela vítima E…, os fotogramas de fls. 5 e 6, os relatórios de exame médico-legal realizado na pessoa deste de fls. 155 e 156 e 311/312, os elementos clínicos de fls. 244 e o relatório de exame radiográfico de fls. 313 (pontos 9 e 10 dos factos provados).
Ainda (em conjugação com a prova testemunhal produzida) os seguintes documentos:
A comunicação da notícia de crime de fls. 2 e 3;
O auto de notícia de fls. 133/134 e fotogramas anexos de fls. 135 e 136 elaborado pela GNR.
O Relatório de inspeção judiciária de fls. 7 a 12 e 13 a 22;
Quanto à respetiva identificação do arguido e ofendido o “Print” de fls. 23 (bilhete de identidade do arguido); o “Print” de fls. 26 (bilhete de identidade do ofendido); bem como a- Certidão de Assento de Nascimento do arguido junta a fls. 84 e a Certidão de Assento de Nascimento do ofendido junta a fls. 85/86.
Relativamente ao boné apreendido nos autos e suas características o auto de exame direto de fls. 171.
Relativamente à dinâmica do evento o relatório de reconstituição fotográfica de fls. 74 a 77;
Quanto à inexistência de armas registadas em nome do arguido e bem assim à inexistência de licença de uso e porte de arma ou da sua detenção no domicílio o teor da Informação prestada pelo NAE da PSP P… a fls. 230;
Relativamente à propriedade da arma e circunstâncias do seu desaparecimento da casa do respetivo proprietário o teor da certidão extraída dos autos de inquérito nº 164/17.4GBOBR que constitui as folhas 1 a 190 do Anexo I.
Os depoimentos das testemunhas:
- Q…, Inspetor da Polícia Judiciária, em exercício de funções no DIC de …, que por estar de piquete à data da ocorrência dos factos que se apreciam fez a inspeção ao local a que se refere o relatório de inspeção judiciária de fls. 7 a 11 e 13 a 22.
Esclareceu que se deslocou ao local acompanhado do especialista S…, tendo esclarecido as diligências ali realizadas, designadamente por confronto com as fotografias juntas a fls. 13 a 22 designadamente explicando os vestígios que foi encontrando nos diversos locais.
Confrontado com a possibilidade de um dos cartuchos encontrados provir de um tiro disparado nas traseiras da casa, referiu de forma credível, porque sustentada em dados objetivos [como sejam a largura da própria casa e sua altura e o modo como os cartuchos são ejetados (para a direita - o que confirmou analisando a imagem de fls. 163) e a distância a que são ejetados] referiu ser muito difícil que os cartuchos encontrados no pátio do arguido (fls. 15 foto nº 12) proviessem de um disparo efetuado desse lugar.
Explicou as características de luminosidade do local nessa noite, esclarecendo que apesar de haver pouca luminosidade quer do caminho de terra batida quer do pátio da casa do arguido se conseguia ver o primeiro andar da casa contígua (onde se encontrava a vítima) tanto mais que é branca.
Com relevo, sobretudo em face do declarado pelo arguido mencionou, com a rente seriedade, não se recordar de o arguido ter dito que o irmão havia disparado ou que lhe pedisse para fazer o teste “ da pólvora” ao referido irmão.
- T…, Inspetora da Polícia Judiciária, em exercício de funções no DIC de …, que acompanhou o especialista S… e as testemunhas (U… e V…) que procedeu á diligência documentada a fls. 74 a 77 dos autos, esclarecendo o modo como esta ocorreu.
De forma aparentemente séria e coerente, disse não ter memória de ter encontrado quaisquer outros vestígios que entendesse relevantes para a investigação, afirmando que ninguém lhe referiu que outra pessoa, para além do arguido, tivesse andado aos tiros no local.
Mencionou com seriedade ter efetuado uma busca à residência do ofendido e que as indicações que tinha era também para ver se encontravam armas.
U…, Inspetor chefe da Polícia Judiciária, em exercício de funções no DIC de …, que igualmente teve intervenção na diligência a que se refere o expediente de fls. 74 a 77.
Esclareceu que juntamente com a sua colega T… efetuou a inspeção complementar ao local, procurando ver à luz do dia se haveriam outros vestígios, que todavia, não foram encontrados. Neste particular esclareceu que se focou na zona da porta – designadamente para ver se a “bagada” teria atingido mais algum local, mas não encontrou qualquer outro vestígio, para além dos já assinalados e recolhidos na noite anterior.
Esclareceu, tendo em conta a sua experiência, que conclusão retirou da ausência de vestígios dessa bagada, designadamente em face das características da arma utilizada, admitindo que esta possa ter passado do telhado para cima uma vez que para baixo não havia vestígios.
Confirmou a existência do orifício no boné (fotografia de fls. 12 e 13) esclarecendo a sua posição relativa (lado da frente parte esquerda, ligeiramente sobre o início da pala).
De forma assertiva referiu que do local indicado pelo ofendido como sendo o do disparo era visível o topo das escadas da casa ao lado e vice-versa.
Referiu, por referência ao relatório de reconstituição fotográfica que o ofendido foi dando indicações e foi-se colocando nos diversos locais, onde na sua perspetiva ocorreram os factos e o especialista S… foi tirando as respetivas fotografias. Sob esta perspetiva estimou entre cerca de 10 a 15 metros a distância entre a posição em que o ofendido colocou o atirador e o topo das escadas onde o ofendido referiu estar (sendo que o arguido e julgamento declarou estar um pouco mais próximo do muro).
Relativamente à busca realizada a casa do ofendido E…, esclareceu que não tinham qualquer indicação específica para a sua realização, mas como havia a notícia de que poderia haver mais armas e os problemas teriam a ver com comportamentos alegadamente ilícitos por parte do ofendido, decidiram fazer essa busca.
Esclareceu que “pouco falou com o arguido” mas que não tem ideia de lhe ter sido transmitido que teriam havido outras armas envolvidas no evento justificando, de forma clara e lógica, que se assim fosse teria feito uma busca a outras divisões e não só ao quarto do arguido.
- V…, Inspetor da Polícia Judiciária, em exercício de funções no DIC de …, que a partir de dado momento, teve a seu cargo a investigação.
A testemunha esteve no local no dia seguinte à ocorrência dos factos com as testemunhas U…, T… e S….
Esta testemunha esclareceu a razão de ser da busca efetuada a casa do ofendido, clarificando a este propósito que esta se inseriu na notícia que havia de que os desentendimentos entre o B… e o ofendido passavam por o arguido não gostar da relação que o ofendido mantinha com a companheira e também por o E… alegadamente andar envolvido em assaltos a idosos, e por isso aproveitaram para ver se obtinham o consentimento do E… no intuito de ver se ali haveria vestígios desses assaltos ou armas. Foi assertivo quando referiu que, nesse momento, nada lhe foi dito quanto à existência no dia anterior de um disparo com uma outra arma.
Esclareceu – tal como a testemunha U… – que procuraram ver se havia vestígios que não tivessem sido observados na noite anterior mas que nada encontraram.
Disse a propósito da reconstituição fotográfica, que a posição em que o ofendido colocou o atirador era compatível com os vestígios encontrados.
Deu conta de terem recolhido o boné que o ofendido alegadamente utilizada e de ter verificado neste uma perfuração de cerca de 1mm que admite possa ter sido causada por um bago de chumbo.
Fazendo apelo à sua experiência e aos vestígios encontrados, salientou que não lograram encontrar a marca principal (aquela proveniente do grosso dos bagos expelidos no disparo), referindo de forma honesta não poder afirmar se esta foi projetada mais para cima ou mais para o lado, por não ter dados que lho permitam afirmar. Foi no entanto seguro quando referiu que tendo em conta a posição em que o ofendido colocou o atirador o tiro nunca poderia ter sido dado para o ar.
S…, Especialista Adjunto, em exercício de funções no DIC de …, que efetuou a inspeção judiciária a que se refere o relatório de fls. 7 a 12 e 13 a 22 e interveio igualmente na diligência a que se dizem respeito as folhas nº 74 a 77 dos autos.
Esclareceu que na própria noite dos factos o arguido foi levado ao local e então efetuou a recolha de resíduos de disparo, mencionando com aparente sinceridade que ninguém lhe referiu que houvesse outra pessoa a disparar no local, especificando que o arguido não lhe disse para fazer a recolha ao irmão, nem os indícios apontavam para a existência de uma segunda arma ou um segundo atirador (justificando convenientemente esta sua afirmação, designadamente com as características dos cartuchos encontrados).
Tal como a testemunha Q… explicou a zona de impacto encontrada, designadamente por confronto com a foto nº 27 a fls. 18, bem como os restantes vestígios assinalados e fotografados.
Referiu com clareza que a posição indicada pelo ofendido, na inspeção complementar, como sendo a que se encontrava era coerente com os vestígios hemáticos encontrados no local e que a posição indicada como sendo a do atirador era também uma das possíveis face aos vestígios encontrados.
Transmitiu a ideia de que o bago encontrado junto à porta e o que atingiu o ofendido seriam bagos periféricos, admitindo que possa ser um tiro em que a bagada foi mais alto ou foi mais longe, no que foi claro.
Colocado perante a questão de um dos cartuchos encontrados no pátio provir de um tiro disparado nas traseiras da casa, referiu que “seria muito difícil que os cartuchos ali viessem parar”, tanto mais que a arma em causa ejeta para a direita (isto é o cartucho seria ejetado para longe da casa e não a ultrapassaria vindo cair no pátio).
Afirmou que nessa mesma noite efetuou com recolha de vestígios e no dia seguinte voltou ao local, para se certificar se lhe havia escapado alguma coisa e bem assim para fazer uma reconstituição com a vítima.
E…, com a alcunha de “E1…”, que prestou um depoimento eivado de muitas hesitações e sobretudo da tentativa de transmitir a ideia de que já não se recordava corretamente dos factos, numa clara tentativa de branquear a atuação do seu tio e ora arguido e onde foi notório o seu constrangimento, visível nas expressões usadas e também na postura corporal com que se apresentou.
Neste seu discurso evasivo inicialmente negou a existência de outros tiros, designadamente no caminho de acesso à casa onde habitava, acabando, no entanto, por vir a reconhecê-los designadamente quando confrontado com a diligência de reconstituição cujo relatório fotográfico está junto aos autos.
Mesmo relativamente ao tiro disparado do pátio, afirmou, de forma que não mereceu credibilidade que via o seu tio mas não via a arma, o que nos pareceu manifestamente incongruente.
Confirmou que trazia o boné que se encontra apreendido e que o furo que este apresenta resultou da penetração de um chumbo proveniente do disparo efetuado pelo arguido, confirmando ainda a zona onde sofreu o ferimento, e a sua posição no cimo das escadas.
Mais adiante no seu depoimento acabou por referir que num momento mais inicial da discussão saiu de casa e foi pedir ajuda ao outro acampamento que se situa perto altura em que ouviu dois tiros, justificando assim ter dito aos inspetores da Polícia judiciária de onde teriam sido disparados (numa argumentação confusa) referindo ainda que depois quando voltou e já em casa ouviu mais dois tiros.
Negou ter atingido o arguido com uma enxada ou que o seu pai tivesse disparado qualquer arma.
Concluiu o seu depoimento afirmando ter a perceção que o seu tio não o quis matar e que não pretende que o seu tio fique preso por este facto.
Relativamente ao motivo da discussão afirmou que o seu tio não queria que estivesse junto com a F…, esclarecendo que a F… já ali tinha morado e tinha saído, “que as pessoas podiam falar por eles estarem outra vez juntos”.
Este seu depoimento mostrou-se claramente omisso em muitos aspetos e contraditório noutros e por isso não pode ser considerado, por si só, fundamental para a formação da convicção, sendo, no entanto atendido na parte em que os restantes elementos de prova o sustentam.
F… (companheira do ofendido E…), que por estar no local no dia e hora em causa depôs sobre factos de que tinha conhecimento direto.
Esta testemunha de forma aparentemente honesta esclareceu que após ter morado naquela mesma casa com o seu companheiro, havia “fugido de casa” com um outro homem, cuja relação terminou, e então o E… a “ foi buscar” de novo, o que aconteceu no dia anterior ao da discussão.
Esclareceu que o motivo da discussão era precisamente a circunstância de o arguido não querer que o E… se voltasse a juntar com a depoente e ficassem naquela casa.
Mencionou que o B… ficou muito zangado quando o E… lhe disse que ele ali não mandava, que quem mandava era o pai e que “ameaçou”, concretizando mais adiante a concreta expressão mencionada pelo arguido.
Depôs também de forma contraída cremos que motivada pela relação de parentesco do arguido com o seu companheiro, o que resultou de muitas expressões usadas, em que de forma não conseguida tentava branquear a atuação do arguido, como seja: “ele deu os tiros para o ar e acertou para ele”.
Acabou no entanto por - com uma linguagem simples - conseguir transmitir uma versão clara e coerente do ocorrido. De facto, apesar de usar estas expressões veio a descrever quando questionada como tinha o arguido a arma quando disparou referindo(e fazendo o gesto) “tinha arma assim de lado no cotovelo e apontou com a arma um bocadinho para cima”, permitindo uma visão da posição do arguido e da arma.
Explicou que a dado momento o companheiro (E…) lhe disse “vai para dentro que ele ainda nos mata”, referindo que este episódio efetivamente lhe causou algum medo.
Negou a utilização por parte do E… de uma enxada e que o pai este tivesse disparado um tiro com uma arma de fogo.
Questionada quanto aos momentos iniciais da discussão mencionou que quando estava no interior da casa ouviu o B… “a falar sozinho”, “a falar alto”. Mencionou ainda que a dada altura da discussão o B… falava muito alto e olhava para ela o que lhe causou medo e a levou a deslocar-se para o piso superior da casa dos pais do E….
A testemunha D… (pai do ofendido E… e irmão do arguido) não prestou depoimento ao brigo do disposto no art. 134º do Código de Processo Penal.
W… (mãe do ofendido E…), que apesar de se encontrar algo contraída e cautelosa nas respostas, sobretudo quando estas poderiam ser prejudiciais ao arguido (irmão do seu companheiro) e também eventualmente ao seu companheiro, depôs, ainda assim, de forma que nos mereceu credibilidade, relatando os factos de que teve conhecimento direto e que encontram sustentação na restante prova produzida.
Esclareceu a razão da discussão, mencionando a este propósito que esta “foi por causa da minha nora F…, o B… não a queria lé, queria que a mandasse embora com o meu filho”.
Dizendo não poder concretizar as concretas expressões proferidas, afirmou com credibilidade que a discussão “azedou” quando o filho lhe disse que não ia embora.
Afirmou não ter visto o E… a sair dali durante a discussão, o que não se mostrou coincidente com o declarado pelo seu próprio filho e pela testemunha X… a que infra faremos referência, o que todavia, não abalou a credibilidade do restante relato, na medida em que este se mostra sustentado, não só noutra prova testemunhal, como também nos vestígios encontrados no local.
Disse onde se encontrava com o marido (no pátio à fogueira) e o que se apercebeu da discussão. Concretizou ter ouvido os tiros mas não ter visto os disparos, esclarecendo convenientemente a razão por que não via o B… do local onde se encontrava (o que surge consentâneo com as fotografias do local).
Não conseguiu precisar se quando começou a discussão o B… tinha ou não uma arma na mão, podendo apenas afirmar que quando ele veio ao portão, após ter dado tiros para o ar já vinha com ela, referindo em esclarecimentos que este portão estava fechado.
Negou que o B… tivesse sido agarrado pelo seu filho Y… (afirmando que este não se encontrava no local) que o E… o tivesse atingido com uma enxada ou que o seu companheiro tenha disparado um tiro na direção do B….
Questionada a esse propósito afirmou ser verdade que a F… “tivesse fugido com um homem uns tempos antes” e negou que ali se deslocassem homens a sua casa para a F… ter sexo com eles.
X… (primo do arguido B… e em segundo grau do ofendido E…). Esta testemunha – tal como referido pela vítima E… e pela testemunha F… – confirmou ter levado o E… ao Hospital após o ocorrido.
Esta testemunha mencionou que o E… se deslocou ao acampamento onde habita, que se situa próximo ao local onde os factos ocorreram pedindo ajuda, por estar a haver uma discussão entre o B… e o seu pai.
Referiu que o arguido voltou para casa e que o próprio entretanto pegou no carro e foi até próximo das casas, afirmando que quando estava no caminho de acesso às casas viu o B… junto ao portão da casa onde habitava o E… e viu-o a “ mandar um ou dois tiros para o ar”, após afastando-se para a sua casa.
Afirmou que então “ dei marcha atrás” e “acho que ainda ouvi um ou dois disparos e depois passado um bocadinho veio o E… a correr com um pano na mão e sangue e levei-o ao Hospital”.
Esclareceu que nessa altura o E… vinha acompanhado da F… e que lhe disse “levei um tiro, leva-me ao Hospital”.
Foram ainda ouvidos as seguintes testemunhas de defesa:
Z…, que conheceu o arguido em janeiro de 2018 no Estabelecimento Prisional e esteve preso com o E…, em Leiria em 2015/2016.
Esta testemunha não assistiu aos factos, nada sabendo destes por conhecimento direto.
Prestou um depoimento que se nos afigurou parcial e pouco digno de credibilidade, traçando uma imagem negativa da testemunha F…, sem que todavia as conclusões vertidas pela testemunha se mostrassem sustentadas em dados objetivos e concretos.
Procurou trazer a ideia de que a testemunha “era um pouco oferecida e picante” concretizando que retirou essa conclusão pelas roupas que ela vestia que entendia serem provocatórias, e por esta por vezes piscar o olho ou por a língua de fora quando ia visitar o companheiro ao estabelecimento prisional.
Procurou ainda lançar a ideia que o E… oferecia fotografias aos reclusos da F… com um número de telefone, mas pedindo-se que concretizasse essa sua afirmação e a razão de ser de tal entrega, referiu que a F… estava vestida nas fotografias e quanto à razão de ser do número de telefone apenas referiu “era para ligarem para ela, sei lá!”, nada mais concretizando a tal propósito.
Em suma, este depoimento porque transmitiu apenas a perceção da testemunha e uma série de conjeturas e suspeições, sem qualquer suporte objetivo, não teve grande valia.
AB…, pai da atual companheira do arguido B…, que transmitiu de uma forma aparentemente honesta a boa imagem que detém do arguido.
De forma simples referiu que o B… lhe havia contado que” tinha uma filha para criar e a sobrinha F… estava lá “que ela já tinha tido outros maridos”, “que não era certa com o marido”, e que isso o fazia temer que a filha tomasse o mesmo caminho, sendo essa a razão que lhe avançou para querer que se fossem dali embora.
E, neste contexto, mais adiante referiu que o problema do genro com a F… era “porque ela apanha um marido e depois apanha outro” e tinha medo que ela fosse um mau exemplo.
Esclareceu que nunca o B… lhe mencionou que a F… levasse lá para casa vários homens.
Referiu que na noite dos factos o B… lhe telefonou, dizendo que se queria entregar e que então o levou ao Posto da GNR C…, afirmado que sempre o B… lhe disse que não o queria matar, mas apenas assustar.
Mostrou-se disponível para lhe dar apoio quando este sair da cadeia.
I…, que conhece o arguido desde criança, tendo vivido durante vários períodos nos mesmos acampamentos.
Traçou uma imagem positiva da personalidade e conduta do arguido.
Mencionou que o B… o abordou por a F… estar na casa do D… e andar a “ fazer má vida” e então foi falar coim o D… para mandar a “nora embora”.
Mais adiante concretizou que o medo do B… era o de que a F… os comportamentos que esta havia tido pudessem influenciar a sua filha a fugir de casa.
Esclareceu que teve essa conversa com o D… na manhã dos factos – justificando essa sua atitude com a circunstância de acordo com os costumes ciganos, havendo quaisquer problemas com os filhos ou com a mulher estes terem que ser resolvidos pelo elemento masculino, no caso o pai ou o marido – e que aquele se dispôs a mandar a “nora embora”.
Mencionando a este propósito “O D… disse que mandava embora, mas a F… não foi, então a culpa e dele (D…) ”.
J…, que cresceu no mesmo acampamento que o arguido.
Traçou uma imagem positiva da personalidade e conduta do arguido.
Esclareceu esta testemunha que o B… o abordou a si, à anterior testemunha e ao K…, no sentido de irem falar com o D…, porque a “ F… tinha apanhado quatro ou cinco homens e tinha medo que estragasse a sua miúda”. A este propósito esclareceu que o que lhe transmitiu o B… foi que ela tinha estava com um homem e depois com outro e que tinha medo que ela desencaminhasse a sua filha, mas que nunca ouviu dizer “que fazia poucas vergonhas” nem ele “ comentou que paravam lá carros com homens”.
Nada sabia a testemunha sobre os factos por a eles não ter assistido.
K…, primo do arguido, que tal como as anteriores testemunhas relatou a conversa havida com D… a pedido do B….
Mencionou que o B… lhe pediu para falar com o D… porque não queria lá a F…, porque “ ela não era boa, porque tinha casado já com quatro ou cinco rapazes e não a queria lá no acampamento, porque tinha lá uma filha e não queria que ela seguisse o mesmo caminho”.
Relatou que nessa conversa o D… acedeu em mandar a F… embora.
Traçou igualmente uma imagem positiva da personalidade e integração social do arguido.
Assim conjugando toda a prova produzida e colhendo os contributos da prova testemunhal foi possível concluir que a discussão inicialmente não foi apenas com o E… mas também com o seu pai D… (veja-se o depoimento da testemunha X… em conjugação com os depoimentos das testemunhas K…, I… e J…) – pontos 1, 2 e
23.
A razão de ser da discussão e do subsequente disparo na direção do E… resultou clara da conjugação dos depoimentos da testemunha E…, F… e W…, quando conjugadas com os depoimentos das mencionadas testemunhas de defesa (K…, I… e J…), tendo resultado do depoimento da testemunha F… a expressão ali constante.
A dinâmica traçada nos pontos 3 a 6 da conjugação das declarações prestadas pelo arguido B… com os depoimentos das testemunhas E…, F…, W… e X…, dado o conhecimento direto que estas testemunhas tinham destes factos e o relato (que com as limitações já acima apontadas deles fizeram).
Os pontos 7 e 11 resultaram da conjugação das declarações prestadas pelo arguido B… (veja-se a análise já cima efetuada a este propósito) com os depoimentos das testemunhas Q…, T…, U…, V…, S… e o teor dos respetivos relatórios de inspeção juntos aos autos, bem como os relatos das testemunhas E…, e F… a este propósito.
O ponto 8 das declarações confessórias do arguido.
Os pontos 13 e 16 dos factos provados resultaram da conjugação de toda a prova produzida. Na verdade, ponderando os vestígios encontrados e todos os depoimentos prestados foi possível concluir que o arguido disparou na direção do E… e que este veio a ser atingido por um bago “periférico” não se tendo logrado encontrar os vestígios do grosso dos bagos expelidos.
Todavia, considerando a posição indicada quer pelo arguido em audiência de julgamento, quer pelo ofendido quando efetuou a reconstituição (foto nº 7 fls. 75) e tendo em conta os depoimentos dos Srs. inspetores da Polícia Judiciária e do especialista S… foi possível concluir que o disparo foi efetuado a cerca de 10 metros da vítima, resultando das regras da experiência comum que uma espingarda caçadeira disparada a essa distância é suscetível de causar lesões que podem levar à morte.
A conjugação de todos estes elementos levou o Tribunal Coletivo a concluir que o arguido praticou os factos voluntariamente e de forma intencional prevendo que ao disparar àquela distância pudesse atingir mortalmente o seu sobrinho tendo mesmo assim decidido disparar. É também manifesto que o arguido B… é uma pessoa adulta e capaz de compreender o sentido e alcance dos seus atos e de se determinar em função dessa avaliação, bem como de perceber a sua ilicitude penal.
O ponto 14 resultou da análise da certidão extraída do processo 164/17.4GBOBR e que constitui o anexo I.
O ponto 15 resultou em parte das declarações confessórias do arguido em conjugação como teor da informação do Núcleo de Armas e Explosivos, já cima mencionado de onde decorre que o arguido não era titular de licença de uso e porte de arma.
O arguido procurou transmitir a ideia de que não sabia que a circunstância de ter uma arma caçadeira sem licença era crime. Porém, a sua argumentação nesta matéria foi pouco credível.
Afirmou que a adquiriu ao E…, que lhe ficou de entregar os documentos, e que o não fez. Porém, perguntando-se-lhe porque a não de volveu quando viu que não lhe era entregue, não foi capaz de apresentar qualquer argumentação. No que concerne à circunstância da necessidade de licença de uso e porte de arma apenas afirmou não saber da sua necessidade e que a detenção sem a mesma constituía crime, no que também não convenceu.
Na verdade, as regras da experiência comum apontam-nos precisamente para o sentido inverso, atenta a ampla divulgação junto da população e dos meios de comunicação social da proibição do uso de armas como aquela apreendida ao arguido, sem a correspetiva licença.
Deste modo, concluiu o tribunal pela forma vertida no ponto 15 e 16.
O ponto 17 resultou do depoimento da testemunha W… que o referiu.
O ponto 18 resultou das declarações do arguido e do depoimento da testemunha AB… que o acompanhou ao posto da GNR.
O ponto 19 resultou do declarado pelas testemunhas E… e F… que o confirmaram.
Os pontos 20 e 21 do confronto das declarações do arguido com as do ofendido E… e ainda o teor de fls. 307 a 309 dos autos.
Os pontos 22 a 40 da conjugação do teor do Relatório social junto aos autos com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas I…, J… e K….
O ponto 41 da análise do CRC do arguido junto aos autos.
Os factos não provados resultaram sobretudo da insuficiência da prova produzida para que se considerasse que assim ocorreram.
O ponto 1 por não ter resultado das declarações do arguido que a arma estivesse guarda no interior da casa e não haver outra prova que o sustentasse.
O ponto 2 por se ter provado, pelas razões já expostas, uma realidade diversa, transposta para o ponto 13 dos factos provados.
Os pontos 3 a 6 por a prova produzida não ter apontado nesse sentido, remetendo-se aqui sobretudo para a análise dos depoimentos das testemunhas I…, J… e K… e bem assim da pouca credibilidade atribuída ao depoimento da testemunha Z…, ficando assim sem sustentação as declarações do arguido sobre tal matéria.
O ponto 7 por a prova produzida ser manifestamente insuficiente para tal conclusão.
Os pontos 8, 9 e 10 e dada a insuficiência da prova produzida para o efeito, na medida em que apenas o arguido o afirmou e nenhuma outra prova sustentou essa sua afirmação.
O ponto 11 por não ter resultado claro, apesar dos depoimentos prestados, quantos elementos da família do ofendido ali estavam presentes, designadamente no que concerne ao irmão do ofendido de nome Y….
O ponto 12 por a prova produzida, pericial documental e testemunhal não ter permitido tal conclusão (veja-se a análise efetuada aos depoimentos prestados pelos Srs. Inspetores da Polícia judiciária e pelo especialista S…).
Os pontos 13 e 16 por insuficiência da prova produzida, apesar das pessoas ouvidas, para tais conclusões.
*
Decidindo.
O único tema deste recurso é a manutenção, ou não, da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, sendo certo que não há recurso sobre os factos, nem sequer sobre a qualificação do crime ou mesmo da pena concreta.
E com efeito, considerando todo o factualismo descrito no acervo de facto, não se vê outro critério para encarar e qualificar os crimes, senão aquele que foi adequadamente adoptado pela primeira instância, por muitos argumentos profusamente apresentados pelo arguido, mas cuja validade decididamente não colhe.
Não podemos, contudo (e antes de decidir) deixar de manifestar a nossa perplexidade face à abundância desnecessária de reproduções de testemunhos, na motivação de facto: com efeito, não é esse o método mais adequado (sendo certo que a prova se encontra toda ela gravada), nem aquele que se pretende, em sede de análise crítica da prova, nos termos do disposto no Art. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Fica apenas este apontamento, que se reputa de útil e convenientemente acolhido.
*
Vejamos agora a questão fundamental deste recurso:
O arguido foi condenado em primeira instância, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, pela prática, como autor material de um crime de homicídio agravado na forma tentada, previsto nos Arts. 23º, nº 1 e nº 2, 73º, nº 1 alíneas a) e b), 131º, todos do Código Penal, e 86º, nº 3 do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
A tal punição acresce ainda a pena de 2 anos e 3 meses de prisão, como autor material de um crime de detenção de arma proibida, previsto no Art. 86º, nº 1, alínea c) e nº 2, da Lei nº 5/2006 de 23.02.
Feito o respectivo cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, que ficou suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, impondo-se neste, nos termos do disposto nos Arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 1, ambos do Código Penal, várias obrigações e regras de conduta.
Entendeu assim o Tribunal recorrido que estavam verificados todos os pressupostos relativos à suspensão da execução da pena única de prisão, de harmonia com o disposto no Art. 50º do Código Penal.
Entende o Ministério Público que tais pressupostos e requisitos não se encontram verificados, pelo que propõe – mantendo-se a condenação – a condenação do arguido em pena de prisão efectiva.
*
Trata-se de um crime da maior gravidade: está em causa a tentativa de tirar a vida a um ser humano, ou seja, de violar o bem jurídico mais importante e mais valioso; mesmo para aqueles que consideram que não há graduação no valor dos direitos, liberdades e garantias, não haverão de duvidar que a vida humana é aquele bem jurídico que se encontra acima de quaisquer outros; e tanto assim é, que o Código Penal o graduou como expoente máximo em sede de pena abstracta.
Como é consabido, o homicídio é a morte violenta de um ser humano, causada injustamente por outro ser humano (violenta hominis caedes ab homine iniuste patrata); neste crime, o bem jurídico protegido é a inatacável integridade da vida humana, supremo valor do indivíduo e assim aceite pela colectividade.
Temos como facto fulcral deste processo a vontade de matar a vítima, provocada inequivocamente pelo disparo de um projéctil, com arma de fogo; e será a partir deste dogma que faremos o exame dos factos, procurando integrá-los juridicamente.
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Para o crime de homicídio se consolidar, procura-se investigar se os actos praticados pelo agente revelam intenção de matar: tal disposição (repetimos) refere-se, porém, a um conceito médico-legal, que se há-de traduzir em factos concretos de onde resulte esse escopo criminoso; o mesmo é dizer que o Tribunal indaga da finalidade que presidiu à acção criminosa, retirando as conclusões dos elementos factuais disponíveis (ainda que – repete-se aqui com maior pendor - o tipo legal que prevê e pune tal infracção não exija a verificação do dolo específico – na configuração da chamada escola finalista - enquanto especial direcção de vontade, que está para além do dolo genérico).
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Vamos aqui reproduzir – apenas a título de rigor interpretativo – um trecho do acórdão, que urge ter em conta e manter como essencial a toda a decisão posterior:
“…quando se encontrava a cerca de 10 (dez) metros das escadas exteriores de acesso à porta da residência do E…, escadas essas localizadas num patamar superior relativamente ao muro em alvenaria que separa as casas o arguido visualizou o ofendido, que então se encontrava no cimo daquelas escadas e junto daquela porta, apontou a arma referida na direção do ofendido e disparou um quarto tiro tendo um dos chumbos projetados atingido o E… na zona da cabeça, causando-lhe duas escoriações lineares paralelas entre si, muito superficiais, rodeadas de halo de queimadura de cor negra, no bordo superior do hélix do pavilhão auricular esquerdo, medindo a maior 0,7cm de comprimento e a menor 0,3cm de comprimento, ocupando o conjunto de tais lesões uma área com 0,8cm x 0,5cm e encontrando-se rodeadas de discreta equimose rosada medindo 3cm x 1.5cm; uma solução de continuidade coberta por crosta sanguínea, de morfologia circular, na região temporal esquerda, medindo 0,3cm de diâmetro, rodeada de orla de contusão equimótica arroxeada, excêntrica de predomínio posterior, com tumefação subjacente, medindo 1,5cm x 0,9cm; bem como a presença de estrutura metálica (chumbo) nos tecidos moles da região temporal esquerda e ligeiro espessamento dos tecidos moles a este nível, que lhe determinaram um período de 7 (sete) dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional e sem consequências permanentes. O arguido conhecia as características da arma de fogo que disparou na direção do ofendido, bem como dos projéteis lançados a partir da mesma, estando ciente das potencialidades letais de tal arma e projéteis, que utilizou e ao efetuar o referido disparo, atenta a distância a que se encontrava do E… a forma como o direcionou e a natureza do meio que utilizou, admitiu como possível que aquele era adequado a provocar lesões suscetíveis de conduzir à morte do ofendido, conformando-se com tal resultado, sem que, contudo, tal tenha sucedido por razões alheias à sua vontade, agindo de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Esta factualidade integra os atos de execução do crime de homicídio e, com efeito apenas não se verificou o resultado exigido pela norma tipificadora, por circunstâncias alheias à vontade do arguido”.
Ou seja, considerando esta crua realidade, que resulta dos factos provados, é certo que o arguido quis tirar a vida à vítima; só não conseguiu por razões que lhe são estranhas; mas o seu intento era esse mesmo: matar a vítima.
Importa ainda considerar o tipo de instrumento letal usado (uma espingarda caçadeira municiada), o local especialmente visado pelo disparo (a cabeça, local especialmente vulnerável) e o tipo de munição (projécteis letais) com que a arma se encontrava carregada.
Em rigor, só por mero acaso não foi a vítima morta naquele momento, sendo certo que o arguido disparou a arma por quatro vezes; e a não ser arma de repetição (não consta tal facto), teve o arguido de a recarregar com os cartuchos que acabou por disparar contra a vítima: mais uma vez a intenção de matar se mostra provada.
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Estamos perante uma tentativa de homicídio, pondo em crise o bem jurídico mais valioso do nosso ordenamento jurídico, que apenas se não consumou por razões fortuitas e (eventualmente) não previstas pelo arguido.
Recordemos, agora em sede de punição concreta do crime: as sanções criminais são, nas palavras de Eduardo Correia, uma necessidade de afirmar certos valores ou bens jurídicos (Direito Criminal, I, pág. 39): elas podem ser dirigidas à prossecução de diversos fins, porventura mesmo de todos eles, em comum: podem dirigir-se à prevenção de violações futuras, agindo sobre a generalidade das pessoas, intimidando-as e desviando-as da prática de crimes (prevenção geral); podem ainda dirigir-se ao próprio agente, intimidando-o e dando-lhe consciência da seriedade da ameaça penal (prevenção especial); acresce o princípio da ressocialização.
Considerando que a reacção criminal tem em vista proteger interesses relevantes (os bens jurídicos protegidos), conservá-los e defendê-los, a sua razão de ser resulta da necessidade de evitar que esses interesses venham a ser violados, ou voltem a sofrer violações.
À luz dos princípios emergentes do Direito Penal constituído, as penas devem reflectir todas essas finalidades de forma harmónica, visando sempre a protecção do bem jurídico que lhes subjaz e a realização dos fins éticos do sistema: tal é a filosofia do Art. 40º do Código Penal, a que acresce a ratio do seu Art. 71º, nº 1.
Como escreveu Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Parte Geral, II, pág. 216), a prevenção significa prevenção geral e também prevenção especial, sendo a culpa que releva para a medida da pena aquela mesma culpa que releva na determinação do sentido, dos limites e dos fins das penas e da sua aplicação. Conclui o autor que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, não podendo a pena ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.
Será ainda de referir que a nossa lei penal respeita os princípios constitucionais da legalidade, da igualdade, da personalidade e da humanidade, nas sanções que prescreve.
Finalizando, dir-se-á que o actual Código Penal ampliou consideravelmente os poderes do juiz no que respeita à escolha e medida da pena, mostrando tal opção do legislador a confiança que legitimamente lhe merecem os magistrados judiciais portugueses.
Nesta vertente, um dos inícios fundamentais reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como desde logo o pronuncia no Art. 13º, ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
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Para além da medida da culpa, importa ainda ter em conta os seguintes elementos de natureza fáctica, aqui com relevância jurídica: o grau de violação, ou perigo de violação do interesse ofendido, o número de interesses ofendidos e das suas consequências, os meios de agressão utilizados, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, o grau de intensidade da vontade criminosa, os sentimentos manifestados na preparação do crime, os motivos determinantes do crime, a conduta anterior ao crime e posterior ao crime, a personalidade do agente, as condições pessoais do agente, a situação económica do agente, os sentimentos manifestados na preparação do crime: eis os elementos e as circunstâncias factuais que caracterizam a atitude interna ou a atitude moral do delinquente e que não cabem no dolo, nem nos motivos ou fins da vontade criminosa, dizendo respeito, mais directamente, à posição do agente perante a própria ordem jurídica (elemento imprescindível da medida da pena): Ac. do STJ, ainda totalmente actual, in BMJ nº 149, pág. 75, cuja atenta leitura se recomenda.
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Resta então o estudo da eventual manutenção da suspensão da execução da pena única de prisão:
A satisfação das exigências de punição do crime, não no sentido de pura retribuição ou castigo (que alguma doutrina e jurisprudência tem vindo a recuperar, mas cujo itinerário não iremos seguir), antes como censura e responsabilização do agente pelo seu acto, há-de continuar a ser um dos objectivos da aplicação das penas, talvez não como outra finalidade, mas como realização da finalidade mesma de prevenção geral (e de integração, ou ressocialização), também como factor de reintegração do agente na sociedade; haverá, pois, de estar nas preocupações do julgador quando considera a verificação dos pressupostos da suspensão da execução da pena (Figueiredo Dias, ob. loc. cit.).
Face ao expendido, cabe agora determinar se há, ou não, fundamento para suspender a execução da pena de prisão infligida ao arguido recorrido (trata-se, aliás, de um poder-dever do tribunal, caso se verifiquem os respectivos pressupostos: Art. 50º do Código Penal); melhor dizendo, para manter a suspensão definida na primeira instância.
No caso em apreço, a conduta factual (interna e externa) provada não permite formular um prognóstico favorável acerca da maneira de ser comportamental do arguido, de forma a prever-se que a ameaça de execução da pena de prisão seja bastante para acreditar na capacidade do arguido em não repetir crimes.
Os elementos que pretende trazer à liça não são convincentes, nem sustentáveis.
Mas, ainda que pudesse concluir-se por um juízo de prognose favorável com base em considerações de prevenção especial e de socialização, as exigências de reprovação de crime tão grave como os dos autos também não permitem concluir que a suspensão de execução da pena de prisão pudesse satisfazer de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tem-se em conta a protecção dos bens jurídicos violados e as necessidades de prevenção geral, de integração, na medida em que esta visa o (como agora sói dizer-se) “reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida”, a “estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, sem esquecer a sempre presente necessidade de reafirmar a prevenção especial, positiva e negativa.
Dificilmente a comunidade – mesmo aquela em que está inserido o arguido – aceitaria com paz jurídica uma pena com execução suspensa, após tomar conhecimento da intensa gravidade dos factos perpetrados e praticados pelo arguido; o alarme social de tal decisão seria patente.
Reproduz-se aqui um período do texto do recurso do Ministério Público, que faz todo o sentido, ao qual este Tribunal superior adere e não poderá ser ignorado:
“Levando em conta que está em causa a prática de um crime de homicídio, ainda que na forma tentada, ocorrido no seio familiar, com recurso a arma de fogo, e com as concretas motivações pelas quais o arguido se determinou – o que se pode concluir é que a comunidade em geral dificilmente suportará, em contraponto às expectativas jurídico-sociais vigentes quanto à efectiva prevenção, punição e repressão de tal tipo de actos, que a condenação redunde numa pena de prisão cuja execução fica suspensa”.
A comunidade onde se insere o arguido não diverge das restantes comunidades, nos seus princípios: o valor da vida é respeitado e a tentativa de o violar importará sempre censura social enérgica, sejam quais forem as razões que motivaram o arguido; os Tribunais não podem distanciar-se da sensibilidade social em sede de respeito pelas regras de conduta, que deles espera punições justas e apropriadas às diversas violações dos bens jurídicos por todos adoptados e defendidos, punindo adequadamente as condutas desviantes.
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Não podemos esquecer, repete-se – sob pena de subversão dos princípios gerais do Direito Penal – que estamos perante a violação do bem jurídico mais importante, mais precioso, qual seja a vida de uma pessoa.
O que aqui nos importa é punir o criminoso com respeito pelo princípio da prevenção especial, mas sobretudo e no que se refere a crimes de homicídio, pelo princípio da prevenção geral:
“Pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e pelo outro no restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectivam tutela penal dos bens tutelados; pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa)”: Ac. R. E., 10.3.2010, www.dgsi.pt.
Uma morte, ainda que tentada, não pode ser encarada de forma leve; ignorar esta questão fundamental é esquecer as razões pelas quais existem Tribunais e se concede a estes a faculdade de julgar e punir.
Estamos a julgar a morte (tentada) de um ser humano.
Estamos a julgar o causador único de tal tentativa de morte.
Considerando todas as circunstâncias (agravantes e atenuantes), aplicar uma pena suspensa na sua execução é – não receamos afirmar tal – esquecer o valor do bem jurídico aqui protegido, bem como (e ainda) o aviso para os demais cidadãos, que deverão manter o respeito e a confiança na norma infringida.
No caso em apreço, não se verificam, em suma, os pressupostos materiais e processuais da suspensão de execução da pena de prisão, como medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, face à aparente personalidade do arguido e à gravidade dos crimes cometidos – navegando sempre à vista dos bens jurídicos violados (e para além das condições e regras de conduta, que aqui sempre se mostrariam irrelevantes e ineficazes).
O mesmo é dizer que não estão minimamente verificados e preenchidos os pressupostos previstos no Art. 50º do Código Penal.
Pelo que a pena única final não será suspensa na sua execução: a simples censura do facto e a ameaça da prisão – atentas a personalidade, as condições de vida e as circunstâncias do crime – não permitem concluir de forma segura, adequada e eficiente que serão respeitadas as finalidades da punição.
Nesta vertente, não se verificando qualquer vício de natureza processual, substantiva ou mesmo constitucional, o recurso do Ministério Público terá de merecer provimento.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, condenar o arguido B…:
1. Como autor de um crime de homicídio agravado na forma tentada, previsto nos Arts. 23º, nº 1 e nº 2, 73º, nº 1, alíneas a) e b), 131º, todos do Código Penal e 86º, nº 3 d da Lei nº 5/2006, de 23.02, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
2. Como autor de um crime de detenção de arma proibida, previsto no Art. 86º, nº 1, alínea c) e nº 2 da Lei nº 5/2006 de 23.02, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão.
3. Operando o cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenar o arguido B… na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
4. Custas pelo arguido, com taxa de Justiça de 3 UC.
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Porto, 9.1.2019.
Cravo Roxo
Horácio Correia Pinto