Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0834898
Nº Convencional: JTRP00041780
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: REGULAMENTO
RECONHECIMENTO
FUNDAMENTOS DE RECUSA
VIOLAÇÃO
ORDEM PÚBLICA
NOTIFICAÇÃO DO REQUERIDO REVEL
Nº do Documento: RP200810090834898
Data do Acordão: 10/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 771 - FLS 224.
Área Temática: .
Sumário: I – Constituem fundamentos de não reconhecimento/não executoriedade da decisão estrangeira abarcada pelo sobredito Regulamento os que constam dos arts. 34º e 35º do mesmo Regulamento.
II – De acordo com o TCE, o recurso à cláusula de ordem pública só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental, não havendo lugar à respectiva invocação quando ocorram outros fundamentos de recusa de reconhecimento.
III – O tribunal (de origem) pode condenar o R. à revelia mesmo que não possa ser apresentada nenhuma certidão que prove que o R. foi notificado do acto que iniciou a instância, desde que se prove que para o efeito foram efectuadas todas as diligências junto das autoridades competentes do Estado em cujo território se situa o domicílio do R., de modo a contactar esse R. em tempo útil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rel.: Barateiro Martins
Adjs.: Espírito Santo e Madeira Pinto


N.º …./08-3
..º Juízo de Mirandela

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório
I – B………., sociedade por quotas de direito holandês, com sede em ………., n.º …, ………., Holanda, requereu contra C………., lda, com sede na ………., n.º …, ……., ………., Mirandela, a declaração de executoriedade ou exequatur da sentença proferida, em 07/11/2002[1], pelo Tribunal de Comarca de Roermond (Holanda), que “anulou” um negócio de compra e venda (de uma máquina de impressão) celebrado entre ambas e que condenou a requerida na importância de € 56.722,53, acrescida de custos processuais e de juros de mora comerciais.
Invocou os artigos 1094.º e ss. do CPC e 31.º e ss. da Convenção de Lugano – e designou o processo como acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira – razão pela qual se declarou a existência de erro na forma de processo e se determinou “que os autos passem a seguir termos como pedido de declaração de executoriedade ao abrigo do Reg. (CE) n.º 44/2001 do Conselho”
Foi assim notificada a requerente para juntar a certidão a que alude o art. 54.º do Reg. (CE) n.º 44/2001 do Conselho (conhecido e designado como Reg. Bruxelas I).
Junta a certidão emitida pelo tribunal do Estado-Membro onde foi proferida a decisão, de acordo “com o formulário uniforme constante do anexo V” ao Reg. Bruxelas I, a Ex.ma Juíza declarou a executoriedade da sentença proferida, pelo Tribunal de Comarca de Roermond (Holanda), em 07/11/2002, contra a requerida, no procedimento com o número de rol ....../HA ZA 02-622.
Notificada a requerida de tal decisão, veio dela interpor recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que negue o exequatur.
Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:
1 - A declaração de executoriedade da sentença deveria ter sido recusada, nos termos do art. 34.º n°s 1 e 2 do Regulamento (CE) n° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, adiante designado apenas por Regulamento, entendendo a recorrente que o reconhecimento determinado na douta sentença recorrida é manifestamente contrário à ordem pública material e processual portuguesa.
2 - Assim, citada para a acção, em data que pode situar entre 5 e 8 de Agosto de 2002 e não tendo qualquer possibilidade de comparecer ou fazer-se representar por um procurador na audiência pública civil do Tribunal de Roermond, a ora recorrente elaborou, fez traduzir para neerlandês e enviou tempestivamente - em 11 de Setembro de 2002 /cfr. docs. 7 e 8 - a competente contestação, em neerlandês e português — (…) acompanhada de seis documentos, procuração e com indicação de três testemunhas para inquirição por carta rogatória em Portugal
3 - Tendo a citação sido requerida por um advogado e procurador, nos termos que constam do doc. 4, o envio da contestação foi efectuado simultaneamente para o domicílio do referido procurador indicado para o processo, ou seja “... o escritório do Dr. D………. (…)
4 - E, por mera cautela, tal contestação foi ainda remetida para o Tribunal de Roermond, com a morada de “Rechtabank Van Roermonde, Willem II Singel, 67,6040 Roermond, Nederland - cfr. doc. 8.
5 - Na contestação apresentada a ora recorrente invocou factos, razões e circunstâncias susceptíveis de derrogar a pretensão da demandante, sendo que nunca mais, até à presente data, a recorrente teve conhecimento de tal processo.
6 - Desta forma, a recorrente jamais foi notificada da existência ou não de alguma tomada de posição por parte da demandante relativamente aos factos invocados na sua contestação, designadamente: jamais teve conhecimento da designação de data para julgamento, jamais foi notificada para prestar a prova testemunhal que indicou e que suportariam a sua posição e jamais foi notificada da respectiva sentença.
Acresce que
7 - Conforme resulta do documento 1 que agora se junta, na parte relativa à petição de execução formulada pela demandante B………., a recorrente teve também agora conhecimento que esta invocou que “ 7. Regularmente citada a Requerida não apresentou contestação “, facto que é totalmente falso.
8 - Desta forma, a declaração de executoriedade da sentença ora recorrida deveria ter sido recusada, nos termos do art° 34.º, nos 1 e 2 do Regulamento (CE) no 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 — que resultou violado
9 - Entendendo-se que tal reconhecimento determinado na douta sentença recorrida é manifestamente contrário à ordem pública material e processual portuguesa, já que o respectivo procedimento processual da causa violou de forma grave e insuprível princípios fundamentais do ordenamento jurídico-privado nacional.
10 - Designadamente o principio do contraditório — cfr. art. 3.º do Código do Processo Civil ; o principio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva — art° 20° da Constituição da República Portuguesa — e o principio da segurança e da confiança jurídicas, ínsitas na ideia do Estado de Direito Democrático, consagrado no art° 2° da Constituição da República Portuguesa — preceitos legais que resultaram violados.
11.º - Impondo-se a revogação da declaração de executoriedade da decisão, nos termos dos 45°, n° 1 e 34.º, n°s. 1 e 2, do Regulamento.
Acresce ainda que
12.º - Na procuração forense constante doc. 1, fls. 10, a sociedade demandante, a B………., foi representada pelo invocado representante legal, o Sr. E………. — cfr. doc. 1, fls. 10.
13.º - Porém, na certidão de descrição da mesma demandante, constante de doc. 1, fls. 16, é referido que” ... No caso da direcção consistir de mais que uma pessoa, assenta a responsabilidade de representação em dois directores conjuntamente, no sentido de um ou mais directores ser/serem nomeados plenipotenciários, qualquer director plenipotenciário é atem disso autonomamente competente para representar a sociedade extrajudicialmente” — cfr. doc. 1, fls. 16 e 17.
14.º - Pelo que entende-se que a procuração outorgada apenas por um dos directores enferma de irregularidade, que traduz falta de mandato, donde resulta que a demandante não se encontrava validamente representada em juízo.
15.º - Circunstância que constitui excepção dilatória e deveria ter conduzido á absolvição da instância da requerida, nos termos conjugados dos art. 21.º, n° 1, 494°, al. h) e 288°, n.º 1, al. e), do CPC.
- E que, salvo melhor opinião, justifica também a revogação da decisão recorrida, por constituir facto manifestamente contrário à ordem pública processual nacional — cfr. art. 45.º, n° 1 e 34.º, no 1, do Regulamento.

A requerente/recorrida apresentou alegações, defendendo a manutenção do decidido. Termina com as conclusões seguintes:
1 A citação respeitou o Regulamento (CE) N.º 1.348/2000, de 29 de Maio de 2000, foi expedida por carta registada nos idiomas neerlandês e português, tendo ainda sido remetidos 2 exemplares ao Secretario de Justiça do Tribunal da Comarca de Mirandela, bem como o formulário a que se refere o art° 4, n° 3 daquele Regulamento.
II A recorrente foi notificada para comparecer na audiência (19.09.2002, às 10:30h) em país, cidade, tribunal e morada especificados, com antecedência superior a três meses, sobre a data de audiência designada.
III A recorrente confessa ter sido citada com mais de 30 dias, sobre a data da audiência, conforme prescreve o art. 115 do Código de Processo Civil Neerlandês, e que da mesma constava expressamente que deveria fazer-se representar em juízo em 19.09.2002 às 10:30 da manhã, em pessoa ou representada por procurador.
IV A recorrente não compareceu nem se fez representar. Limitou-se a apresentar defesa escrita que contudo não era admissível e extemporânea à luz do direito processual neerlandês, porque deveria ter sido apresentado no próprio dia da audiência pelo procurador/mandatário forense, porquanto a representação forense é obrigatória na Holanda.
V As contestações apresentadas pela recorrente não surtiram qualquer efeito, inadmissíveis à luz da lei processual neerlandesa aplicável.
VI Ao procedimento no tribunal holandês não se aplicam as regras processuais portuguesas, pelo que o tribunal de Roermond [só tinha de analisar a nota de citação e os demais requisitos formais supra alegados à luz da lei neerlandesa e dos Regulamentos da CE aplicáveis, incluindo o Regulamento CE 44/2001 de 22.12.2000. E, porque regularmente citada, foi a recorrente condenada, à revelia, no pedido, dado que a falta de contestação implicou a confissão dos factos.
VII Nos termos da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, art 5, n 1, era competente o tribunal de Roermond dado que é com a Holanda que o contrato objecto dos autos tinha mais pontos de afinidade.
VII A alegada invalidade do mandato judicial conferido ao ora subscritor decorre de mero lapso de tradução. A certidão de registo comercial holandesa prevê expressamente que a sociedade pode ser validamente representada, em juízo e fora dele, por qualquer dos três directores mandatados, nela mencionados, de que o outorgante da procuração é um deles.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – Factos Provados
Encontram-se provados documentalmente os factos seguintes:
A) Por sentença do Tribunal de Roermond (Holanda), proferida em 07/11/2002, na Causa n.º …../HA ZA 02-622, foi a recorrente condenada a pagar à recorrida “a importância de € 58.991,43, quantia esta a ser aumentada com os juros legais a partir de 30/09/2001 até à satisfação sobre € 56.722,53” e “os custos do processo (…) orçamentados em € 1.121,00 em direitos de Secretariado Judicial, € 65,18 em custos do mandato judicial de citação e € 771,00 em honorários para o procurador”.
B) Causa para a qual a aqui recorrente foi convocada – através de carta regista com A/R e do pedido de citação ou notificação previsto no art. 4.º, n.º 3, do Reg. (CE) n.º 1348/2000 – para comparecer no dia 19/09/2002, às 10,30 horas, na sessão pública civil do Tribunal de Roermond, a ser realizada nessa hora e nesse lugar numa das salas do Edifício de Justiça e “que se a citada não comparecer no processo no modo prescrito a esse efeito ou faltar a designar um procurador, o juiz declarará a citada em revelia e concederá a petição a não ser que esta lhe pareça contrária à lei ou sem fundamentos”.
C) Causa motivada pelo incumprimento dum contrato de compra e venda dum máquina de impressão (pelo preço de € 56.722,53); em que a recorrida invocava ter pago a totalidade do preço e a não entrega da máquina por parte da vendedora/recorrente (bem como a não devolução do preço).
D) Sentença de cuja fundamentação consta, segundo a tradução, o seguinte:
“(…) A autora apresentou a este Tribunal uma reivindicação contra a R..
A citação foi comunicada à R., no modo como estipulado pela lei. Uma cópia dessa citação vai anexa a esta sentença.
Na citação foi indicado que a R. tem a possibilidade de apresentar uma contestação. A R. foi notificada a esse respeito que um procurador (advogado) devia apresentar-se na data mencionada na citação. Nessa data não se apresentou qualquer procurador para agir pela R. Por isso foi anotado no rol das causas que a R. não compareceu neste Tribunal.
Visto que a R. não compareceu em Tribunal, o Juiz deduz que a R. não deseja apresentar uma contestação contra a reivindicação. Essa reivindicação não parece, ao juiz, contrária à lei ou sem fundamentos, de modo que essa será concedida”.
E) Sentença de que não foi interposto recurso e que transitou em julgado.
F) Entre 5 e 8 de Agosto – através do pedido previsto no art. 4.º, n.º 3, do Reg. (CE) n.º 1348/2000, a que se faz referência na alínea B) – foi a aqui recorrente citada do “acto introdutório da instância” da causa identificada em A).
G) Não comparecendo nem se fazendo representar “no dia 19/09/2002, às 10,30 horas, na sessão pública civil do Tribunal de Roermond, a ser realizada nessa hora e nesse lugar numa das salas do Edifício de Justiça”.
H) Tendo antes enviado para o escritório do advogado da recorrida e para o Tribunal de Roermond elementos documentais em que, segundo alega, “invocou factos, razões e circunstâncias susceptíveis de derrogar a pretensão da demandante” na causa em que havia sido citada.
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III – Fundamentação de direito
O Direito de Reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras é formado por um complexo normativo que inclui fontes internacionais – as convenções multilaterais e bilaterais, de que são exemplos as Convenções de Haia, Bruxelas e Lugano – internas (aplicáveis fora do âmbito de aplicação das fontes supraestaduais, estando entre nós concentradas no processo especial regulado nos artigos 1094.º a 1102.º do CPC) e comunitárias – de que são exemplos os Reg. (CE) n.º 1347/2000 e 2201/2003, relativos à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação a filhos comuns do casal, e o Reg. (CE) n.º 44/2001, de 22-12-2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial[2], Regulamento este entrado em vigor em 01/03/2002.
Regulamento n.º 44/2001 que, sublinha-se, vincula todos os Estados-Membros da Comunidade Europeia, com excepção da Dinamarca[3]; que se aplica ao reconhecimento de todas as decisões proferidas por um órgão jurisdicional pertencente a um Estado-Membro sobre matéria civil e comercial; e que prevalece sobre o regime interno (entre nós, as disposições constantes dos artigos 1094.º 1 1102.º do CPC), porquanto o regulamento comunitário é uma fonte de direito hierarquicamente superior à lei ordinária.
Assim, estando-se no caso sub-judice perante uma sentença sobre matéria civil, proferida, em 07/11/2002, por um Tribunal da Holanda, em procedimento iniciado em 03/06/2002, é de todo indiscutível que, ao reconhecimento/executoriedade de tal sentença, é aplicável o Regulamento (CE) n.º 44/2001; e não o que resulta dos art. 1094.º e ss. do CPC.
Significa isto, nos termos do art. 33.º de tal Reg., que o reconhecimento da sentença sub-judice é automático ou ipso iure; depois de noutro Estado-membro “ter sido declarada executória, a requerimento de qualquer parte interessada” (cfr. art. 38.º, n,º 1, do Reg. Bruxelas I)”.
Requerimento/processo este que é um processo sumário não contraditório em que a parte requerida não pode apresentar observações (art. 41.º); a apresentar ao tribunal ou à autoridade competente indicada na lista constante do anexo II ao Regulamento (art. 39.º, n.º 1, do Regulamento), que em Portugal é o Tribunal de Comarca.
Bem se andou pois no despacho inicial proferido nos autos, em que se declarou a existência de erro na forma de processo e se mandou seguir os termos processuais que os autos ora apresentam.
Significa isto – explicando o exacto momento processual em que nos encontramos – que o presente recurso é o previsto no art. 43.º do Reg. Bruxelas I, a que se aplica o art. 45.º que dispõe: “o tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo do artigo 43.º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34.º e 35.º”; e “as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito”.
Efectivamente, importa enfatizá-lo, o Regulamento de Bruxelas I representa[4], no seio da Comunidade, um reforço na confiança recíproca na Administração da Justiça por parte dos Estados-Membros.
A ponto de a declaração de executoriedade ser dada após um simples controlo formal e do próprio art. 41.º do Reg. determinar que “a decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53.º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34.º e 35.º”; isto é, há como que uma presunção favorável ao reconhecimento.
Depende pois a apreciação dos fundamentos de recusa de reconhecimento da interposição de recurso, incumbindo à parte que se opõe ao reconhecimento o ónus de alegação de eventuais fundamentos de recusa de reconhecimento bem como de prova dos respectivos factos.
Fundamentos – para o não reconhecimento/não executoriedade da decisão – que são, repete-se, os que constam dos arts. 34.º e 35.º do Reg.; mais exactamente:
1.º - A decisão provir dum tribunal incompetente, segundo as regras do Reg. em matéria de seguros, de contratos com consumidores ou de competências legais exclusivas (art. 35.º, n.º 1)
2.º Ser o reconhecimento manifestamente contrário à ordem pública do Estado do reconhecimento (art. 34.º n.º 1).
3.º Não ter o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer (art. 34.º, n.º 2).
4.º Ser a decisão incompatível com uma decisão proferida no Estado de Reconhecimento entre as mesmas partes (art. 34.º, n.º 3)
5.º Ser a decisão inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido (art. 34.º/4)
O que significa que sendo, em tese geral, apenas estes os fundamentos válidos do recurso da decisão sobre o pedido de executoriedade, o objecto do presente e concreto recurso se circunscreve, em face das conclusões da recorrente, à invocação da decisão ser manifestamente contrário à ordem pública do Estado Português e à invocação do acto que iniciou a instância não ter sido comunicado em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa[5].
Quanto à ordem pública:
De acordo com o TCE, o recurso à cláusula de ordem pública só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental.
A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, esse atentado deve, todavia, constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica.
Por outro lado, é o reconhecimento e não a própria decisão que deve ser compatível com a ordem pública do Estado do reconhecimento.
Sendo este o entendimento que tal cláusula merece, não se vislumbra qual seja o princípio fundamental da ordem pública que o reconhecimento da sentença possa violar.
A recorrente foi citado com mais de 1 mês de antecedência – como a próprio reconhece – sobre a data da diligência para que foi convocada, ficando assim exercido o contraditório e o seu acesso à sua defesa e à tutela dos seus direitos.
Aliás – é pertinente referi-lo, até em face da interligação e proximidade entre os 2 fundamentos invocados – é entendimento do TCE que “quando se verifiquem outros fundamentos de recusa de reconhecimento não há lugar para a invocação da ordem pública”[6].
A questão – o não reconhecimento – só poderá pois estar na invocação respeitante à comunicação que deu início à instância.
Fundamento este, de recusa de reconhecimento, que tutela o direito de defesa do réu, no caso de falta de citação ou de citação intempestiva; e que se articula com o disposto no art. 26.º do Reg., que visa acautelar o direito de defesa do réu revel [7].
Por outras palavras, quando, excepcionalmente, as garantias do direito do Estado de origem e do Reg. não forem suficientes, o art. 34.º, n.º 2, permite, em certos casos, que o reconhecimento seja recusado.
Efectivamente, de acordo com o art. 26.º, n.º 2, do Reg. o juiz “deve suspender a instância, enquanto não se verificar que a esse requerido foi dada a oportunidade de receber o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, em tempo útil para apresentar a sua defesa, ou enquanto não se verificar que para o efeito foram efectuadas todas as diligências”.
Isto é, se o réu domiciliado num Estado-Membro não comparecer em tribunal, o tribunal deve verificar oficiosamente se o réu teve a possibilidade de receber a citação ou acto equivalente, em tempo útil para apresentar a sua defesa; e, enquanto não verificar que o réu recebeu o acto ou que para o efeito foram efectuadas todas as diligências, deve suspender a instância.
É justamente a violação deste preceito que é sancionada, em sede de reconhecimento, com o fundamento de recusa previsto no art. 34.º, n.º 2.
Porém, sublinha-se, o próprio art. 26.º, n.º 2 não exige que o réu tenha tido efectivo conhecimento da citação ou acto equivalente em tempo útil; basta que lhe tenha sido dada oportunidade de receber a citação ou acto equivalente, correndo por sua conta os atrasos causados pela sua própria negligência ou pela dos seus colaboradores.
O tribunal pode condenar o réu à revelia mesmo que não possa ser apresentada nenhuma certidão que prove que o réu foi notificado do acto que iniciou a instância, desde que se prove que para o efeito foram efectuadas todas as diligências junto das autoridades competentes do Estado em cujo território se situa o domicílio do réu, de modo a contactar esse réu em tempo útil
Sucede, porém, que, no caso, o acto que iniciou a instância foi mesmo comunicado/transmitido pessoalmente à requerida/recorrente de acordo com o Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho, de 29/05/2000 (Relativo à Citação e à Notificação dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial nos Estados-Membros) constando expressamente da sentença que “a citação foi comunicada à R., no modo como estipulado pela lei” e que “uma cópia dessa citação vai anexa a esta sentença[8].
Não havia pois fundamento para o juiz – nos termos do art. 19.º Regulamento (CE) n.º 1348/2000 – sobrestar no julgamento, nem para – nos termos do art. 26.º, n.º 2, do Reg. Bruxelas I – suspender a instância.
Tendo o julgamento sido bem iniciado – tendo o acto que iniciou a instância[9] sido comunicado e em tempo útil – teria a causa que seguir os termos e ser julgada segundo as regras do direito Holandês; pelo que a não aceitação dos elementos enviados pela recorrente (sem a constituição e presença de advogado), a não notificação da decisão, a não notificação para um “julgamento” em momento posterior e a não notificação para prestar prova testemunhal são tudo questões a resolver à luz da Lei Holandesa e perante os Tribunais Holandeses, não podendo constituir, como a recorrente pretende e invoca, fundamentos de não reconhecimento/executoriedade da decisão proferida; de que, lembra-se, nunca foi interposto qualquer recurso.
O único “controlo cautelar” (de competência) que, no Estado de origem, pode não ter sido cumprida tem a ver com o disposto no art. 26.º, n.º 1, do Reg., em que se diz que, “quando o requerido domiciliado no território de um Estado-Membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento”.
Efectivamente, versando a causa, em substância, sobre o incumprimento dum contrato de compra e venda, não é de todo pacífico que os Tribunais Holandeses fossem competentes para a causa, uma vez que, não sendo a R. domiciliada na Holanda, só pelo art. 5.º, n.º 1, do Reg. o poderiam ser e não é líquido que a máquina objecto do contrato devesse ser entregue na Holanda[10].
Em todo o caso – é o que importa realçar – trata-se de questão que deve ser examinada pelo juiz do Estado de origem, mas que não constitui fundamento de não reconhecimento.
A tal propósito, é o art. 35.º do Reg. taxativo.
Por uma lado, diz (n.º 1) que constitui fundamento de não reconhecimento o desrespeito pelas regras de competência do Reg. em matéria de seguros, de contratos com consumidores ou de competências legais exclusivas[11].
E, por outro lado, dispõe no n.º 3 que “sem prejuízo do disposto nos 1.º e 2.º §, não pode proceder-se ao controlo da competência dos tribunais dos Estado-Membro de origem.” Acrescendo mesmo que “as regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do art. 34.º”.

Em conclusão, os fundamentos invocados não preenchem a previsão dos art. 34.º e 35.º do Regulamento Bruxelas I, nada existindo pois que obste ao reconhecimento/executoriedade da decisão proferida contra a recorrente, em 07/11/2002, pelo Tribunal de Comarca de Roermond (Holanda) – que a condenou na importância de € 56.722,53, acrescida de custos processuais e de juros de mora comerciais – improcedendo assim “in totum” o que a recorrente invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio do recurso e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.
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IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Porto, 09/10/2008
António Fernando Barateiro Dias Martins
Luís Filipe Castelo Branco do Espírito Santo
Manuel Lopes Madeira Pinto

______________________
[1] Em processo iniciado em 03/06/2002.
[2] Que vem substituir a Convenção de Bruxelas, salvo nas relações com a Dinamarca.
[3] Com excepção da Dinamarca, nos termos dos art. 1.º e 2.º do Protocolo Relativo à Posição da Dinamarca.
[4] Na linha da Convenção de Bruxelas, que lhe deu origem.
[5] Não fazendo parte do objecto válido do recurso a questão do mandato judicial ser irregular, questão que a recorrida diz decorrer dum lapso de tradução.
Tradução que, sem contender com o fundo das questões do recurso, é de facto um pouco frágil, parecendo em alguns momentos uma tradução automática e acrítica de palavras – sem a preocupação de surpreender o sentido exacto, em português, das expressões holandesas – nem sempre apresentando, em português, um discurso claro.
[6] Cfr. Luís de Lima Pinheiro, Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras, pág. 299.
[7] Daí a sua proximidade com o fundamento que a recorrente configurou como de violação da “ordem pública”.
[8] A própria recorrente “confessa” que, entre 5 e 8 de Agosto, foi citada do “acto introdutório da instância” da causa identificada em A).
[9] E por acto que iniciou a instância deve entender-se todo aquele acto ou actos que dão a possibilidade ao requerido de fazer valer os seus direitos antes de ser proferida no estado de origem uma decisão com força executiva
[10] Embora, salienta-se, também não esteja assente o contrário; o que significa que uma apreciação certa e segura sobre o assunto sempre dependeria do que “de facto” se fixasse e decidisse sobre o local de “perfeição” do contrato.
[11] Dispondo-se, em harmonia, no art. 25.º do Reg. que “o juiz de um Estado-Membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro por força do artigo 22.º, declarar-se-à oficiosamente incompetente” – o que não era o caso da acção que deu origem à decisão sob “reconhecimento”.