Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
23399/19.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RISCO DE CULPA DO LESADO
ESPECIAL VULNERABILIDADE
VÍTIMA
PEÃO
CICLISTA
VEÍCULO ELÉCTRICO
AUSÊNCIA DE RUÍDO
ATROPELAMENTO DE PEÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nº do Documento: RP2021071423399/19.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Atualmente o art.º 505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que não implica uma impossibilidade absoluta e automática de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação do veículo.
II - Excecionalmente, em situações de especial vulnerabilidade das vítimas (peões, ciclistas) será de admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. É necessário que o perigo latente no exercício desta atividade se desencadeie.
III - O risco não se presume. A não demonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objetiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade menos os da culpa e da ilicitude do facto.
IV - Nos veículos automóveis elétricos, a ausência do ruído (típico dos motores de combustão) e a sua reduzida utilização, leva facilmente os peões de normal condição a convencerem-se que à não audição de um ruído de motor de combustão corresponde a ausência de veículos, agindo descuidadamente em conformidade, nomeadamente ao iniciarem a travessia das faixas de rodagem.
V - Dependendo das circunstâncias de cada caso, não é de excluir a possibilidade de concorrência de culpa do peão no atropelamento que o vitimou mortalmente e o risco próprio da circulação de um veículo movido a energia elétrica, com motor silencioso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 23399/19.0T8PRT.P1 (Apelação – 3ª Secção)
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – J2

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I.
B… e cônjuge, C…, residentes em ../.. Avenue …, ….., …, França, por si e na qualidade de únicos herdeiros da sua filha D…, instauram ação declarativa de condenação, com processo comum, contra COMPANHIA DE SEGUROS E…, S.A., com sede no Largo …, .., ….-… Lisboa, alegando essencialmente que são os únicos herdeiros daquela sua filha, vítima de um atropelamento por um veículo ligeiro de passageiros quando era conduzido por uma trabalhadora ao serviço e sob as ordens e direção da sociedade sua empregadora, proprietária do veículo.
O atropelamento deu-se numa avenida quando, conduzindo com pouca atenção, distraída e apenas a cerca de 30 cm do passeio, a condutora embateu com o vértice dianteiro direito do veículo contra a vítima, D…, que ali estava imobilizada, causando-lhe a morte, ocorrida dois dias depois do acidente.
Para compensar os danos não patrimoniais próprios, os AA. pretendem o pagamento de uma indemnização de €30.000,00 para cada um deles.
Pela perda do direito à vida filha, defendem a atribuição de uma indemnização de €60.000,00.
Pelo sofrimento tido pela vítima entre o momento do acidente e a morte, entendem que deve ser fixada uma indemnização no valor de €30.000,00.
Terminam pedindo a condenação a R. no pagamento de uma indemnização total no valor de €150.000,00, acrescida dos respetivos juros de mora, vencidos desde a citação.
Citada, a R. seguradora contestou a ação, impugnando grande parte dos factos alegados na petição inicial, designadamente quanto ao acidente, narrando-o de modo diferente, e ainda relativamente ao quantum indemnizatório, concluindo pela total improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, seguido de identificação do objeto do litígio e dos temas de prova, de pronúncia sobre os meios de prova e designação de data para a realização da audiência final.
Realizada esta audiência, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Tudo ponderado, nos termos expostos e ao abrigo das disposições legais acima referidas, julgo esta acção interposta pelos autores B… e esposa, C…, contra Companhia de Seguros E…, SA, totalmente improcedente, absolvendo o réu de todos os pedidos contra si formulados pelos autores.
*
Custas da acção pelos autores.
(…)».
*
Inconformados, recorreram os AA., em matéria de facto e de Direito, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1ª. Provando-se, como se provou, que a viatura QG pertencia à sociedade comercial F…, Lda e era conduzida por G…, ao serviço daquela entidade empregadora, é indubitável que estamos perante a presunção de culpa da condutora pela sua circulação;
2ª. Por tal motivo se impondo à condutora o ónus de provar que nenhuma culpa lhe advém do deflagrar do acidente e das suas consequências;
3ª. Sendo mister, por isso, de demonstrar em sede de recurso que a decisão sobre a matéria de facto e sobre a matéria de direito não foi correctamente julgada;
4ª. Assim, em primeiro lugar, é incorrecto o fixado no item 7 dos factos provados quando se deu como provado que “o veículo automóvel QG circulava a uma velocidade não superior a 50 Km/h”:
5ª. Já que a testemunha condutora do veículo, apenas afirmou que “ia devagar” (momento 00:05:27 da gravação do seu depoimento);
6ª. E a outra testemunha, H… apenas respondeu “por volta disso” e “ia a velocidade normal” (momento 00:04:21 e momento 00:04:40 da gravação);
7ª. Não podendo, assim, o Mmo Juiz “a quo” extrair e fixar como assente que a condutora não circulava a mais de 50 Km/h;
8ª. Devendo, por isso, em consequência eliminar-se aquela matéria fixada;
9ª. Em segundo lugar, é incorrecto o fixado no item 10 da matéria de facto onde se afirma que a D… desceu do passeio sem olhar para a via de trânsito e sem cuidar se circulava algum veículo;
10ª. Esta matéria teve como suporte o depoimento da testemunha condutora do veículo, G…, mas o seu depoimento é destituído de credibilidade;
11ª. Não só porque esta testemunha afirmou no inquérito policial que a D… estava distraída a fazer uso do telemóvel;
12ª. Mas também porque no seu depoimento, continuou a afirmar e a reincidir na mentira tendo dito ao momento 00:07:16 da gravação do seu depoimento “sei que o telefone voou”;
13ª. Assim entrando em contradição com o depoimento das restantes testemunhas, que afirmaram categoricamente que a D… não fazia uso do telemóvel, já que o mesmo se manteve dentro da sua carteira ou mochila;
14ª. Tendo, na verdade, a testemunha I…, ao momento 00:07:07 da gravação afirmado eme não vinha ao telemóvel, pois o mesmo estava dentro da sua carteira;
15ª. Bem como a testemunha J… que referiu ao momento 00:05:19 que tinha sido ela própria, testemunha, ir buscar o telemóvel da D… à carteira dela;
16ª. Como corolário também da falta de credibilidade da condutora é o facto de também afirmar no seu depoimento que foi a D… que embateu no lado lateral direito da viatura;
17ª. Bastando atentar na falsidade do seu depoimento ao momento 00:09:31 onde afirma “eu já estava apossar e ela bateu-me do lado do carro, eu não bati de frente”;
18ª. E ao momento 00:16:13 da gravação voltou a referir “quando dou por ela já me bateu de lado”;
19ª. Quando, na verdade, o que ficou provado nos autos é que a viatura embateu contra o corpo da D… com a parte dianteira direita (cfr. matéria de facto provada no item 11);
20ª. Por conseguinte, o Mmo Juiz “a quo”, com fundamento naquela testemunha, nunca poderia dar como provado que a D… desceu do passeio sem olhar para a via de trânsito e sem cuidar se circulava algum veículo, pelo que deverá este concreto ponto de facto ser eliminado;
21ª. O mesmo se diga quanto à falta de credibilidade daquela testemunha no que se refere à matéria provada no item 12 da matéria de facto, onde se deu como provado que a condutora nada pôde fazer para evitar o embate;
22ª. Devendo também ser eliminada a matéria dada como provada no item 12 da matéria de facto;
23ª. Já que, no item 11 da matéria de facto se provou que “logo que desceu do passeio foi de imediato colhida pela esquina da frente direita do automóvel QG”;
24ª. Assim se desconhecendo se a D… iria fazer o atravessamento da via e de forma inopinada ou apressada, já que lhe foi tolhido o seu movimento ao ser imediatamente embatida pela viatura, logo que desceu do passeio;
25ª. Por outro lado, deve também tomar-se em consideração o que ficou provado no item 6 da matéria de facto onde expressamente se dá como provado que “o arruamento por onde circulava aquele veículo tem boa visibilidade, uma largura de cerca de 9 metros e sendo ladeado por passeios dos dois lados, com pista de velocípedes de ambos os lados da faixa de rodagem;
26ª. Tornando-se, por isso, incompatível, a prova de que a condutora não tinha opções para evitar o embate, com a matéria fixada nos itens 6 e 11 da matéria provada;
27ª. Ora se o arruamento dispunha de passeios em ambos os sentidos e ainda uma pista de velocípedes situada em ambos os lados da faixa de rodagem, isso faz ressaltar à evidência que a D…, logo que pôs um pé fora do passeio, ainda ficou posicionada na pista de velocípedes, não tendo, por isso atingido a faixa de rodagem;
28ª. A ser assim, como parece evidente, fica demonstrado que a viatura circulava muito próximo do passeio, em flagrante desrespeito pelo artigo 13° do Código da Estrada e sobre a aludida pista de velocípedes;
29ª. Sucedendo ainda que a condutora do QG tinha obrigação de circular mais pelo interior da faixa de rodagem, já que, se o arruamento tinha 9 metros de largura, a sua hemifaixa possuía 4,5 metros de largura;
30ª. O que a prudência lhe recomendava, tendo em consideração que havia muitas pessoas no local, que saiam dos seus empregos, como foi provado no item 7 da matéria de facto;
31ª. E na circulação da viatura deveria afastar-se o mais possível daquele aglomerado de pessoas, onde também estava a D…;
32ª. Assim prevenindo qualquer possível contacto do automóvel com o corpo de alguma daquelas pessoas, incluindo a D…;
33ª. Ora, em vez disso, arriscou a condutora circular demasiado próxima do amontoado de pessoas quando se lhe impunha o dever de cuidado;
34ª. Já que conduzia um veículo eléctrico e, por isso, silencioso, devendo advertir as pessoas para a sua presença, nomeadamente buzinando e reduzindo ao mínimo a sua velocidade;
35ª. Não fazendo sentido em ter-se dado como provado que a condutora nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efectuar para evitar o embate;
36ª. Era sua obrigação agir de outra forma, tanto mais, que tripulava uma viatura silenciosa, fazendo elevar o risco da sua circulação;
37ª. Em vez disso, não tomou os comportamentos normais de uma condutora diligente, pois não abrandou a marcha da viatura, não travou, não se desviou do aglomerado de pessoas, nem buzinou para alertar a presença do carro eléctrico;
38ª. Assim se demonstrando que a condutora do QG não logrou ilidir a presunção legal de culpa ao conduzir a viatura da sua entidade empregadora;
39ª. Por outro lado, também não está demonstrado nos autos que a responsabilidade pelo acidente radicasse na culpa exclusiva da vítima D…;
40ª. Sucedendo ainda que, para além da presunção de culpa da condutora, não está também afastada a responsabilidade pelo risco, face ao binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utilizadores das vias públicas;
41ª. Acrescentando-se ainda que a utilização em massa dos veículos eléctricos faz aumentar o risco de perigo que representam, por serem silenciosos, apanhando desprevenidos os outros utentes das vias públicas, como é o caso dos peões;
42ª. Bem se sabendo que o moderno direito rodoviário apresenta-se hoje como garante de uma maior protecção aos lesados, alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco;
43ª. Consagrando a protecção das vítimas dos acidentes de viação, numa sociedade em que o excesso de veículos, quer estacionados, quer em circulação, criam desequilíbrios, limitando o espaço pedonal e aumentando potencialmente a sinistralidade;
44ª. Ora a condutora do veículo não agiu com grau de destreza, atenção e toda a diligência normal para evitar o atropelamento que se deu entre a parte dianteira direita da viatura contra o corpo da malograda vítima;
45ª. Não estando, assim, apurado nos autos que seja imputável à falecida D… a culpa exclusiva pelo acidente, como erradamente se decidiu;
46ª. Bem pelo contrário, o embate verifica-se, não se apurando a velocidade da viatura, mas provando-se que manteve a mesma velocidade de que vinha animada;
47ª. Não travando, nem abrandando, não buzinando para assinalar a sua presença de veículo eléctrico silencioso, nem se desviando apesar de circular numa via com 9 metros de largura;
48ª. E ocupando o espaço da pista de velocípedes que ladeava a faixa de rodagem, circulando, até, muito próximo do passeio;
49ª. Tudo isto apesar da existência de um aglomerado de pessoas que na altura saíam dos seus empregos, o que aconselhava, a um condutor prudente, redobrados deveres de atenção e conduta estradal;
50.º Assim, as descritas circunstância do atropelamento, apontam irremediavelmente para a responsabilidade da condutora do veículo automóvel que nem tão pouco ilidiu a sua presunção de culpa;
51ª. Devendo, assim, ao contrário do decidido, ser julgada procedente a acção e a Ré seguradora condenada no pedido;
52ª. A sentença proferida violou as disposições legais contidas no artigo 13° do Código da Estrada e artigo 503° do Código Civil.» (sic)
A R. ofereceu contra-alegações, mas foram rejeitadas por terem sido apresentadas fora de prazo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação dos AA., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil).

Somos chamados a decidir as seguintes questões:
1. Erro de julgamento em matéria de facto;
2. Culpa da condutora do veículo no acidente;
No caso de responsabilidade da seguradora, fixação das indemnizações peticionadas.
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III.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância[1]:
1- No dia 24 de Outubro de 2017, pelas 17.50h, na Avenida … Gondomar junto ao nº 345, da União de freguesias de …, ocorreu um acidente de viação;
2- No qual foi interveniente o veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula ..-QG-.., movido a energia eléctrica, pertencente à Sociedade Comercial F…, Lda.;
3- O veículo automóvel era, naquele momento, conduzido por K…, ao serviço da sua entidade empregadora, a Sociedade Comercial F…, Lda, sob as ordens e direcção desta;
4- O veículo matrícula .. – QG - .. circulava naquele dia e àquela hora pela Avenida … de Gondomar, no sentido descendente, ou seja, no sentido Norte-Sul, fazendo-se a sua condutora acompanhar de dois filhos menores de idade;
5- A zona do acidente configura uma recta com inclinação descendente relativamente ao sentido de marcha do veículo .. – QG - ..;
6- Tendo o arruamento por onde circulava aquele veículo boa visibilidade e uma largura de cerca de 9 metros e sendo ladeado por passeios dos dois lados, com pista de velocípedes de ambos os lados da faixa de rodagem e lugares de estacionamento para cada sentido do trânsito, como transparece do croquis de fls. 74, que se dá aqui por integrado;
7- O veículo automóvel QG, circulava a uma velocidade não superior a 50 km/hora, na sua hemifaixa de rodagem, em momento em que circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos e em que a D…, tal como diversas outras pessoas, saíam dos seus locais de trabalho;
8- A D… pretendia atravessar para o outro lado da rua, em local em que a aguardava uma colega de trabalho, estacionada com o seu veículo automóvel em “segunda fila”;
9- A D… circulava no passeio, no sentido descendente, de costas para os veículos automóveis que nesse momento circulavam no mesmo sentido descendente, enquanto falava para colegas suas que se encontravam nessas imediações;
10- No momento em que decide descer do passeio e iniciar a travessia da via, ainda de costas para os veículos automóveis que circulavam nesse sentido de marcha, fê-lo sem olhar para a via de trânsito e sem cuidar se circulava algum veículo;
11- Assim, logo que desceu do passeio foi de imediato colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG, como transparece das marcas do veículo na foto de fls. 80, que se dá aqui por integrada;
12- Atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela D… e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efectuar para evitar o embate;
13- Em consequência do embate, a D… foi projectada, caiu desamparado no chão, perdeu os sentidos e, após, foi transportada em ambulância para o Hospital Geral L…, no Porto, onde ficou internada e a ser tratada aos ferimentos recebidos, os quais, pela sua gravidade, vieram a ocasionar a sua morte, ocorrida no dia 26 de Outubro de 2017;
14- A D… era filha dos autores, sendo estes os seus únicos e universais herdeiros;
15- O decesso de sua filha, causou aos autores grande dor e abalo psicológico;
16- Os autores eram muito afeiçoados à sua filha, sendo também esta muito afeiçoada aos seus pais;
17- Entre o momento do acidente e o seu decesso, a D… sofreu dores mercê das lesões graves causadas;
18- Pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº ………, o proprietário do veículo matrícula .. – QG - .. tinha transferido a garantia da responsabilidade por danos causados a terceiros com a sua circulação, para a ré Companhia de Seguros E….
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O tribunal deu como não provada a seguinte matéria[2]:
- Que, quando o veículo automóvel embateu contra o corpo da D…, esta se encontrasse imobilizada no interior da via de trânsito dos veículos;
- Que a condutora do veículo automóvel conduzisse naquele momento com pouca atenção ao trânsito ou distraída;
- Que, àquela hora, o trânsito naquela artéria fosse pouco intenso;
-Que, no momento do acidente, a D… estivesse a utilizar um telemóvel.
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IV.
Ab initio est ordiendum.
1. Erro de julgamento em matéria de facto
Os recorrentes deram cumprimento ao ónus de impugnação previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.
Defendem que os pontos:
- 7º deve ser eliminado;
- 10º deve ser eliminado;
- 12º- deve ser eliminado.
Para a obtenção da alteração da decisão que preconizam, os AA. indicam as seguintes testemunhas, com referência a passagens determinadas da gravação, com a respetiva temporização:
- A condutora do veículo, G…;
- H…;
- I…; e
- J….
Os factos provados evidenciam também alguma incongruência quando se conjugam os respetivos pontos 6 e 11. Disso mesmo dão conta os apelantes, tratando-se de matéria que não pode deixar de ser apreciada pela Relação, em ordem a conferir lógica e coerência aos factos provado, fazendo prevalecer a substância sob a forma (princípio pro actionem).
Se o veículo transitava na hemifiaxa de rodagem que lhe era destinada, se havia uma ciclovia de ambos os lados da faixa de rodagem e se a vítima foi colhida logo que desceu do passeio, é necessário conhecer a localização da ciclovia e se a vítima foi colhida nela o na faixa de rodagem.

Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes[3], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelos recorrentes e, se necessário, outras provas, como sejam as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Ex.mo Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, se necessário, a decisão em matéria de facto.
Ensina Vaz Serra[4] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação.
Vejamos então!
Numa situação como a presente, em que se discute a dinâmica do acidente e o tribunal fundamenta os factos relacionados com as respetivas circunstâncias também noutros depoimentos – M…, N…, J…, O… e P… - a audição exclusiva das curtas passagens da gravação que os apelantes indicam poderia conduzir a uma situação de descontextualização e desconsideração de depoimentos ou excertos de depoimentos relevantes, pelo que, ao abrigo dos poderes oficiosos previstos na 1ª parte da al. b) do nº 2 do art.º 640º do Código de Processo Civil, foi ouvida toda a prova oralmente produzida em audiência relativa à ocorrência do acidente.
Não obstante outras testemunhas se encontrarem no local no momento do acidente, verdadeiramente só duas delas observaram o atropelamento da vítima e os momentos que o precederam: I… e H…. A primeira, sua colega de trabalho, acabava também de sair da fábrica, estava sentada na zona do passeio e viu a vítima dirigir-se para a zona da estrada com intenção de a atravessar; o segundo conduzia o veículo que circulava imediatamente atrás do veículo ..-QG-.., a cerca de 30 ou 40 m de distância e observou também o momento em que a vítima se dirigiu para a estrada com intenção de a atravessar. Estas testemunhas não deixaram qualquer dúvida de que a D… não estava atenta ao trânsito rodoviário que se fazia na avenida no sentido descendente, no momento em que se aproximou e foi colhida pelo QG.
Ficam sérias dúvidas sobre se a condutora do QG observou efetivamente a vítima em algum dos momentos que precedeu o atropelamento. Embora tenha referido no inquérito criminal e na audiência que a testemunha não parou e não olhou quando entrou na hemifaixa de rodagem onde seguia, assim a surpreendendo com uma conduta inesperada, fica mesmo a dúvida sobre se a G… se apercebeu da presença da vítima, à sua direita, antes do momento do embate.
Os restantes depoimentos, das testemunhas M…, o agente da PSP que compareceu no local, N…, Q…, J… e S…, na sua maior parte colegas de trabalho da vítima, estavam muito próximo ou acorreram ao local logo após acidente (neste caso, o M… e a S…). Não estavam a olhar para ela no momento em que foi atropelada. Estes depoimentos são coadjuvantes na matéria da perceção do acidente, porque todas estas testemunhas, à exceção do M… e da S…, olharam imediatamente para aquele local ao ouvirem o ruído provocado pelo embate do veículo na vítima e mostraram conhecer bem aquela zona, por ali trabalharem e transitarem quase diariamente.
Uma das testemunhas colegas da vítima hesitou quanto à existência de uma ciclovia na avenida, mas revelou ser pessoa distraída. A generalidade das outras testemunhas afirmou a sua existência, pelo menos do lado da estrada onde ocorreu o acidente (lado direito atento o sentido descendente); porém, também em asfalto e delimitada da faixa de rodagem apenas por tracejado pintado no pavimento ,sem qualquer barreira física.
Embora muito próxima da que foi prestada por I…, a versão declarada pela testemunha H… é aquela que se afigura mais objetiva e desinteressada, a mais bem explicada e a mais coerente no conjunto dos depoimentos testemunhais. Era também esta a testemunha que se encontrava mais bem posicionada para observar a faixa de rodagem em toda a sua largura, assim, também a posição relativa do QG e da vítima no momento do acidente e naqueles que o precederam.
Esta testemunha reafirmou o que dissera no processo de inquérito e explicou bem a sua razão de ciência, tendo observado a conduta da vítima, a partir do veículo que estava a conduzir. Na sua deslocação, a D… partiu do passeio para a faixa de rodagem, atravessando a zona de estacionamento e a zona de ciclovia, fazendo-o num movimento contínuo e direto, sem paragem, até ser colhida já na estrada, próximo do seu limite exterior direito. Ao ser colhida foi projetada para a zona de pavimento com paralelepípedos, ou seja, para a zona de estacionamento, onde ficou caída, inconsciente, no solo. Foi perentória ao afirmar que ia distraída e não se apercebeu do trânsito que se fazia na hemifaixa da direita, onde circulava o QG, e ficou convencida que o embate se deu com a zona da ótica do lado direito do veículo.
Ainda na perspetiva daquela testemunha, o QG transitava onde devia transitar, na sua faixa de rodagem, quando embateu no peão.
A versão da testemunha I…, de que o acidente se deu logo que a vítima tirou um pé do passeio e o colocou no asfalto da ciclovia faz também crer em que o embate ocorreu próximo do limite direito da via em que transitava o QG, mas não se coaduna bem com a existência de uma zona de estacionamento existente entre o passeio, a ciclovia e e a faixa de rodagem. Chegou a ser referido, é certo, que no local do atravessamento pelo peão não havia espaço de estacionamento, mas não foi essa o que nos pareceu ser a melhor prova, face a todos os elementos recolhidos, em especial o depoimento de H….
Quanto à velocidade, apenas a condutora da QG e a testemunha H… a ela se referiram de forma mais ou menos concretizada, próxima do facto dado como provado. A velocidade seria de cerca de 50 km/hora e não necessariamente igual ou inferior a 50 km/h. A última testemunha usou da comparação com a velocidade que imprimia ao seu veículo para tirar a sua conclusão. Também neste aspeto o seu depoimento se mostrou convincente.
Tudo ponderado entre os depoimentos testemunhais e documentais juntos ao processo, incluindo os fotogramas, a matéria impugnada merece manter-se e alterar-se nos seguintes termos:
O ponto 7 sofre uma ligeira correção:
7- O veículo automóvel QG transitava a cerca de 50 km/hora, na sua hemifaixa de rodagem, no momento em que circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos e em que a D…, tal como diversas outras pessoas, saíam dos seus locais de trabalho.
O ponto 10 altera-se para o seguinte texto:
10- A D… iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito.
O ponto 12 está corretamente decidido e também se mantém.
Em função da alteração do ponto 10, o ponto 11 carece também de ser modificado, passando a ter a seguinte redação:
11- Assim, logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”.
Termos em que procede parcialmente a impugnação da decisão em matéria de facto.
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2. Culpa da condutora do veículo no acidente
Os recorrentes começam por defender a culpa exclusiva da condutora do veículo ..-QC-.. em função da alteração da matéria de facto que propugnaram. Na sua perspetiva, uma vez eliminados os pontos 7, 10 e 11, seria de concluir que a vítima foi colhida pelo veículo muito próximo da berma direita, até mesmo sobre a ciclovia, onde não tinha necessidade de circular nem o podia fazer. Não estaria demonstrado qualquer facto que apontasse para a falta de atenção da vítima.
A versão pretendida pelos recorrentes não logrou adesão de prova. As modificações introduzidas na matéria de facto correspondem apenas a ligeiros acertos e à necessidade de eliminação de incongruências verificadas, até pelos recorrentes, de modo a conferir verdade e coerência aos factos provados.
É no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que nos situamos.
A ilicitude representa a violação de valores da ordem jurídica, um agir objetivamente mal, e não depende necessariamente da direta violação de leis ou regulamentos, embora essa seja a regra.[5] Resulta sempre da violação de um dever jurídico, a omissão de um comportamento devido consubstanciado na prática de atos diferentes daqueles a que se estava obrigado.[6]
Quanto á culpa, o Prof. Galvão Telles[7], numa posição tradicional, define-a como sendo «a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa. Se a culpa produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquica ou moralmente imputável a certo indivíduo, diz-se que agiu com culpa».
Esta conceção tem vindo a ser substituída por uma definição da culpa em sentido normativo, como um juízo de censura ao comportamento do agente. A culpa pode ser assim definida como o juízo de reprovação ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal ou devendo cumprir certo dever, estaria obrigado a adotar e não adotou conduta diferente. Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe[8].
A culpa constitui um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e pressupõe a prática de um facto voluntário e ilícito. Situa-se no âmbito da imputação do facto ao agente e exprime um juízo de reprovação pessoal da sua conduta. Considerando todos os aspetos circunstanciais que interessam à maior ou menor censurabilidade da conduta do agente, olha ao lado individual, subjetivo, do facto ilícito, embora na apreciação da negligência a lei inclua também elementos de carácter objetivo. É a omissão do cuidado exigível nas circunstâncias de cada caso.
Age com culpa, nos acidentes de viação o interveniente que, de modo reprovável, censurável, atua em violação de normas de direito rodoviário; mas também aquele que, não obstante, objetivamente, não ter infringido nenhuma norma legal sobre condução rodoviária, não observa, no exercício da condução, os deveres gerais de diligência exigíveis ao “condutor médio” e faz uma condução imprudente, desleixada ou tecnicamente errada, e, por algum desses motivos, causa danos a terceiros, obviamente, podendo ele demonstrar a concorrência de circunstâncias concretas que justificam a infração cometida e que excluem a sua culpa.
Compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.º 487º, nº 1, do Código Civil).
A culpa deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (nº 2 daquele art.º 487º).
Tem-se entendido também que nas ações de indemnização por facto ilícito, na prova da culpa do lesante (art.º 487º do Código Civil), a tarefa do lesado está aliviada com o recurso à chamada prova da primeira aparência (presunção simples). Em princípio, procede com culpa o condutor que, em infração aos preceitos estradais, causa dano a terceiro. Se a prova prima facie ou presunção judicial, produzida pelo lesado apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova, ou seja, caber-lhe-á a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador[9]. Este raciocínio não está em contradição com o disposto no art.º 342° do Código Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.[10]
Assim, a ocorrência, em termos objetivos, de uma situação que constitui contraordenação nos termos do Código da Estrada deve implicar presunção juris tantum de negligência do interveniente em acidente de viação quanto à prática da infração. A materialidade da infração faz presumir a culpa na infração. A infração existe, na sua dimensão material e na sua dimensão culposa.
Mas tal presunção deve ser afastada nos casos em que a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido, uma vez que, nesse caso, não haverá causa adequada entre os danos e a violação daquela norma; tal como deve ser afastada quando não funciona como que uma segunda presunção, que conduza à culpa do interveniente como causal do acidente.
O acidente de viação é um fenómeno dinâmico, não sendo muitas vezes o seu processo causal de fácil apreensão. O julgador deve usar dos meios disponíveis, em que são essenciais os factos provados e as regras do ónus da prova, para tentar recriar o acidente e descortinar os comportamentos que contribuíram de modo relevante para a sua verificação. Mais do que uma violação formal de uma regra de trânsito, é o concreto processo causal da verificação do acidente e a influência de tal conduta na sua produção que relevam, até porque não existem normas estradais que protejam em absoluto os interesses tutelados.
Tudo aponta no sentido de que os recorrentes não colocam em causa a existência de culpa do peão, ao começarem por defender que não agiu com culpa exclusiva.
Também estamos seguros que a D… agiu com culpa quando iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito, tendo sido colhida na faixa de rodagem pelo QG que nela circulava.
A vítima foi imprudente ao dar início à travessia da estrada sem ter observado previamente se o podia fazer em segurança, havendo até boas condições de visibilidade. Sobre ela recaía um especial dever de prudência, que a obrigava a, antes de entrar na via, tonar precauções especiais por forma a permitir a passagem dos veículos que na ocasião circulavam no local.
Violou, de modo reprovável, os comandos normativos previstos nos art.ºs 99º, nº 2, al. a) e 101º, nº 1, do Código da Estrada, que impõem prudência aos peões no atravessamento, de forma a não prejudicarem o trânsito de veículos, e a certificação prévia de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, podem atravessar sem perigo de acidente.
Terá a condutora do QG agido com culpa?
Entendem os recorrente que sim; primeiro por força da presunção de culpa resultante do facto de, nas circunstâncias do acidente, a G… estar a exercer a condução ao serviço da sua entidade empregadora, sob as ordens e direção respetiva.
Está assente a relação comitente-comissário entre a sociedade proprietária do veículo, a Sociedade Comercial F…, Lda. e a condutora na utilização do veículo nas referidas circunstâncias[11].
Esta presunção de culpa resulta da aplicação do art.º 503º, nº 3, do Código Civil.
É uma presunção legal de culpa iuris tantum, que recai sobre o condutor por conta de outrem, pela qual se inverte o ónus da prova: sendo regra o dever do lesado provar os factos constitutivos do seu direito, aquela inversão determina que o comissário deva demonstrar que agiu sem culpa, ou seja, que agiu com o cuidado (geral e especial) que as circunstâncias impunham, que agiu de acordo com todas as regras de prudência e do trânsito, ou que a culpa foi do outro interveniente, sob pena de ser responsabilizado pelas consequências do acidente, sendo que a culpa presumida equivale à culpa provada.[12]
Assim, o condutor por conta de outrem só pode ilidir a presunção de culpa de duas formas:
a) Prova que o acidente resultou de culpa do lesado; ou que
b) Não houve culpa da sua parte.
A elisão da presunção pode ser total ou parcial. Naquele último caso, o comissário deve demonstrar que, do seu lado, mais não se verificou do que um fenómeno de risco e, com isso, ausência de culpa da sua parte.
Demostrada que está culpa (significativa) do lesado, está afastada a presunção de culpa que recaía sobre a condutora do QG.
Mas, terá agido aquela condutora com culpa efetiva, concorrente?
Dizem-nos os apelantes que a D… foi colhida pelo veículo logo que, tirando um pé do passeio o colocou na ciclovia, não tendo atingido ainda a faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos motorizados. Teria, assim, o QG invadido a ciclovia e, nela, atingido a vítima, mortalmente.
Esta alegação factual não se provou.
A vítima foi atingida pela esquina do lado direito, frente, do QG, na faixa de rodagem, logo que nela entrou (distraída). Transitando este pela hemifaixa direita, que lhe era destinada, tudo leva a crer que a D… se encontrava, no momento do atropelamento, próximo do limite exterior direito da via de trânsito de veículos, mas desconhece-se exatamente a sua exata localização. Como tal, também não é possível concluir que o automóvel circulada demasiado próximo do limite exterior direito da sua hemifaixa.
Ficou, aliás, demonstrado que, atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela D… e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efetuar para evitar o embate.
Não se tendo provado que transitasse a velocidade superior àquela que, por regra, é legalmente permitida dentro das localidades, também desconhecemos a existência de condições de insegurança que justificassem a sua especial redução (art.ºs 24º, nº 1 e 27º, nº 1, do Código da Estrada).
A saída, nas circunstâncias de tempo e lugar do acidente, de várias pessoas dos seus locais e trabalho não faz presumir que vão entrar na faixa de rodagem sem observarem o trânsito que nela se faz, para mais quando se trata de uma avenida larga, com boa visibilidade, com passeios de ambos os lados e ciclovia.
Segundo o princípio da confiança, quem circula de harmonia com as prescrições do direito estradal e observando o dever de cuidado exigível deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, exceto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo.[13]
Face aos factos provados, não se vislumbra, da parte, da condutora do QG conduta violadora de regras de trânsito ou violação de um dever geral de cuidado capaz de fundamentar a ilicitude e a culpa na condução do veículo como causa (concorrente) para o acidente.
O Atropelamento ficou a dever-se a culpa exclusiva da vítima.

Passam depois os recorrentes a sustentar que, por se tratar de um veículo totalmente elétrico.
Estes veículos, ao contrário do que acontece com os tradicionais veículos com motor de combustão, não produzem ruído de motor. A vítima não podia contar, da mesma forma, com a sua presença quando entrou na estrada para a atravessar, sendo de admitir a discussão da concorrência da sua culpa com o risco próprio da circulação do QG.
A questão do enquadramento factual na responsabilidade pelo risco é matéria de direito, de conhecimento oficioso do tribunal, uma vez que este não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5°, nº 3, do Código de Processo Civil) e deve ser ponderada sempre que, tendo sido judicialmente pedida a alguém a indemnização por responsabilidade civil pelos danos causados, for caso de tal enquadramento jurídico, ainda que expressamente não venha invocada.[14]
A regra é a exclusão da responsabilidade pelo risco quando o acidente é imputável ao próprio lesado ou a terceiro (art.º 505º do Código Civil).
De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, fundada nos ensinamentos do Prof. Antunes Varela, não é um problema de culpa que está posto no art.º 505° do Código Civil, mas sim de causalidade: a verificação de qualquer das circunstâncias neste preceito referidas – acidente imputável ao lesado ou a terceiro; acidente resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo — quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, excluindo a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, pois que o dano deixa, então, de ser um efeito adequado do risco do veículo.
O Assento nº 1/80, de 21 de Novembro[15] afastou a doutrina que via na circulação rodoviária uma atividade perigosa a impor uma presunção de culpa pelos danos causados ao detentor do veículo, retirando os acidentes de circulação terrestre da previsão do art.º 493°, nº 2, do Código Civil.
Coloca-se atualmente, de novo, a questão de saber se no âmbito daquela sinistralidade não será de ponderar o risco, porque sempre presente, com presunção ilidível da respetiva causalidade. A responsabilidade pelo risco seria afastada mediante a prova de que o acidente foi devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ou exclusivamente a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art.º 505º do Código Civil).
A ser assim, para além das situações em que se prova uma causa concreta de risco, o mesmo seria presumido quando, existindo uma conduta objetiva desrespeitadora dos deveres de cuidado, não é imputável ao lesado um juízo de culpa intenso (ou nem isso, no caso das crianças[16]), sendo, contudo, inegável que o processo causal do acidente em qualquer dos casos é imputável unicamente ao próprio lesado.
Já no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.6.2011[17] se defendeu a necessidade de fazer uma interpretação atualista da referida norma legal.
Refere-se naquele acórdão que “o paradigma da incompatibilidade da culpa com o risco tem vindo a ser abalado na doutrina (…). Sustenta-se a necessidade de uma interpretação actualista do art. 505° do C.C., conforme com o direito comunitário, no sentido de a admissibilidade do concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo. A interpretação actualista decorre de uma tendência modernista de protecção das vítimas do facto danoso e de as pôr a coberto da prova da culpa do agente”.
A doutrina tradicional não é compatível com o direito comunitário, designadamente com o art.º 1º da 3ª Diretiva. Também a 5ª Diretiva (do Parlamento Europeu e do Conselho de 11/05/2005) obsta a que uma legislação nacional, neste domínio, em função de critérios gerais e abstratos, recuse ou limite de modo desproporcionado a indemnização ao peão, ciclistas e outros utentes não motorizados pela simples razão de ter contribuído para o dano. O que consta do texto final dessa diretiva (art.º 4°, n° 2) é que o seguro garante a responsabilidade pelos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não rodoviários das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito nacional.
No acórdão da Relação de Lisboa de 14.6.2011[18] sumariou-se:
1. Assiste-se hoje a uma tendência modernista de protecção das vítimas do facto danoso e de as pôr a coberto da prova da culpa do agente, sustentando-se a necessidade de uma interpretação actualista do art. 505º do C.C., no sentido da admissibilidade do concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo.
2. O direito nacional deve ser interpretado à luz das directivas automóveis, nomeadamente da 5ª directiva (do Parlamento Europeu e do Conselho de 11/05/2005), da qual deriva que têm direito a indemnização, de acordo com o direito nacional, os peões, ciclistas e outros utilizadores não rodoviários das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, sofram danos pessoais e materiais (art. 4º, n.º 2).
3. Devendo o direito nacional ser interpretado à luz da mencionada directiva, o que deverá passar a entender-se é que a mesma obsta a que uma legislação nacional, neste domínio, em função de critérios gerais e abstractos, recuse ou limite de modo desproporcionado a indemnização ao peão, ciclistas e outros utentes não motorizados pela simples razão de ter contribuído para o dano.
4. A 5ª directiva aponta, assim, para uma noção de risco próprio do veículo mais abrangente, no sentido de ser inerente ao perigo de circulação, encontrando-se, por isso, sempre presente num acidente de circulação rodoviária em que tenha intervenção um veículo a motor e peões, ciclistas e outros utilizadores não rodoviários das estradas, enquanto partes mais vulneráveis num acidente com intervenção de um veículo motorizado.
5. Deverá, por isso, passar a considerar-se, nestes casos, presumida a causalidade determinada pelo risco.
No acórdão de 17.10.2019[19] fez-se notar que a doutrina tradicional teve apoio jurisprudencial até ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007[20] que sustentou que o art.º 505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Refere-se ainda naquele acórdão que “entretanto esta questão atinente ao concurso do risco do responsável com a culpa do lesado gerou um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo que se pronunciasse sobre a interpretação a dar à 3ª Directiva Automóvel - art.1º-A - e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado no sentido de impedir assim que concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro, tendo, a propósito, sido proferido Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9 de Junho de 2011 (a merecer comentários de Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, in, Cadernos de Direito Privado, nº 34, Abril/Junho 2011, páginas 3 a 19, outrossim, como sequela do aludido reenvio foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2012 (Processo n.º 100/10.9YFLSB, in, www.dgsi.pt), em cujo dispositivo se enunciou: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.)”
Assim, está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1), in, www.dgsi.pt., além de outros relacionados por, Hugo Luz dos Santos e de Leong Cheng Hang, in, Revista de Direito Civil, Ano II, número 2, página 507, nota 23, O Acórdão de 14/01/14: Concurso entre o risco do veículo e a culpa do lesado? Um passo atrás no padrão de jusfundamentalidade do Direito da União Europeia?.
Devendo, dentro do possível, fazer-se aquela interpretação das normas nacionais relativas à responsabilidade civil objetiva conforme o direito comunitário, há que admitir a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, só sendo de excluir tal concurso quando o acidente for imputável --- i.e., unicamente devido, com ou sem culpa --- ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha o funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art.º 570° do Código Civil.[21]
A partir do momento em que se adote o entendimento de que aquele preceito não exclui o concurso da culpa do lesado com o risco, a leitura atualizada do art.º 505º do Código Civil, no entendimento de Calvão da Silva é esta: “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, a fortiori, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.[22] Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. A partir desse momento, como dizíamos, continua a importar analisar a sequência naturalística do próprio acidente de modo a verificar se dela resulta, não obstante a atuação da vítima, a intervenção, no processo causal do acidente, dos riscos próprios do veículo.
Também Brandão Proença se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional nesta matéria, proclamando o mesmo que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.
“Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências”.[23]
Não sendo ainda pacífico este entendimento, menos pacífico é também o âmbito de abrangência dos riscos consentidos no concurso com a culpa do lesado.[24]
Na falta de definição rigorosa do que sejam os riscos próprios dos veículos, como conceito normativo ou indeterminado que é, temos que o risco tende a confundir-se com o perigo.
Como refere Dário Martins de Almeida, “no risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os seus vícios de construção, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o seu maior ou menor peso ou sobrelotação, com a sua maior ou menor capacidade de andamento, com o maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, com a sua conservação, com a escassez de iluminação, com as vibrações inerentes ao andamento de certos camiões gigantes, susceptíveis de abalar os edifícios ou quebrar os vidros das janelas. É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo ou a barra da direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do veículo (há mesmo casos em que pode aqui haver culpa); e até alta velocidade constitui um risco, ao mesmo tempo que pode representar um acto culposo. Enquanto em circulação, a própria estrada com os seus defeitos pode emprestar à viatura riscos graves”.
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.1.2009[25], “a culpa e o processo causal têm de ser analisados em si mesmos, ou seja, a culpa não pode ser mitigada a partir de considerações gerais sobre o risco imanente à circulação rodoviária. (…) considerar que o risco imanente à circulação rodoviária gera uma culpa mitigada em cada acidente, seja qual for a culpa que efectivamente ocorreu determinativa do processo causal concreto, tal entendimento traduzir-se-ia, a nosso ver, na introdução sub-reptícia de uma presunção juris et de jure de ocorrência de risco, o que a lei não consente”.
Não se trata de um regime de causalidade pura ou física. Antes tem que ser demonstrada, como pressuposto dessa responsabilidade objetiva, uma relação jurídico-civil relevante no sentido da existência um nexo objetivo de causa-efeito entre a circulação de um veículo e o efeito danoso. O dano tem que ter conexão com os riscos específicos do veículo; é necessário que o perigo latente no exercício desta atividade se desencadeie.
O carácter perigoso do veículo reside mais no seu uso (o risco-atividade) do que o seu dinamismo próprio.
É pela análise da sequência naturalística do próprio acidente que se verifica se dela resultam, não obstante a atuação da vítima no processo causal do acidente, os riscos próprios do QG.
De jure constituto, o risco não se presume. A não demonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objetiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade menos os da culpa e da ilicitude do facto[26].
Mas, como se argumenta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.1.2009[27], citando José Carlos Brandão Proença, tal entendimento pressupõe um novo quadro normativo em que o processo causal do acidente, ainda quando comprovadamente imputável ao lesado, admita a concorrência do risco do veículo lesante que se presumiria sempre que fosse reduzida a culpa do lesado ou sempre que o lesado não fosse passível de um juízo de censura, seja em razão da idade ou de outra causa. Justificar-se-ia uma alteração do art.º 505º que, acolhesse, nomeadamente um sistema de reparação automática para danos corporais no caso de sinistros com crianças de menos de 10 anos de idade.
Atendendo ao direito constituído, consta daquele acórdão de 20.1.2009, citando ainda Calvão da Silva, que “a seguradora pode opor ao lesado, não só a falta de responsabilidade do detentor do veículo segurado --- acidente devido unicamente à vítima ou a terceiro, ou acidente exclusivamente devido a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (artigo 505°) ---, mas também um comportamento voluntário grave e indesculpável, doloso ou imprevisível do lesado nas circunstâncias do caso concreto”; adianta que “cabe ao juiz nacional, na apreciação individual da conduta do lesado em cada caso específico, ter presente o escopo das Directivas europeias --- garantia de indemnização suficiente da vítima a um nível elevado de protecção do consumidor --- e a jurisprudência comunitária de apenas em circunstâncias excepcionais se poder reduzir (não desproporcionadamente) a extensão da indemnização do lesado”.
O mesmo acórdão não esconde a dificuldade na compatibilização, face ao quadro legal em vigor, da ideia de que, sendo o acidente devido unicamente à vítima no plano causal, ainda assim lhe seja atribuível uma indemnização quando ela, por exemplo, pela sua pouca idade, não é passível de um juízo de censura, por a causa do acidente ser alheia ao risco próprio da viatura. Casos em que se verifica que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado, não se evidenciando a interferência de nenhum risco próprio do veículo. Importaria então que a lei ressalvasse todos os casos em que, apesar de se reconhecer que a conduta do lesado constituiu o facto causal do acidente, o único dele determinante, ainda assim a indemnização pelo risco fosse atribuída por não resultar a conduta do lesado de uma atuação culposa grave. De jure condendo, poder-se-ia até ir mais longe, sustentando que, dada a vulnerabilidade das crianças, dos peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, a responsabilidade pelo risco devia ser sempre tomada em consideração independentemente da sua contribuição para o processo causal do sinistro ser inteiramente atribuível à conduta daqueles; quanto aos demais, a responsabilidade concorrente pelo risco não podia deixar de se considerar afastada se o acidente lhes fosse exclusivamente devido.
Renovamos aqui o teor acima exposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019.
Impõe-se saber se a facticidade demonstrada encerra algum risco próprio do veículo QG, de tal modo relevante que, por si só, constitua uma causa adequada para o dano-evento (atropelamento com morte da D…) capaz de concorrer efetivamente com a responsabilidade subjetiva da vítima.
Aceite a possibilidade, ainda que excecional, de concorrência da imputabilidade (atribuição com ou sem culpa) do facto ao lesado com o risco do veículo, temos para nós que o direito constituído nacional não presume a causalidade num acidente determinada pelo risco, impondo-se a prova efetiva de uma causa de risco, e não apenas o mero risco próprio da atividade de circulação, pese embora a sua perigosidade objetiva. Por isso, há que indagar se, para além da culpa da vítima, o veículo QG contribuiu com risco relevante para a colisão com o peão. Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objetiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos daquele veículo.
Aqui chegados, destacamos os seguintes factos:
- O veículo ..-QG-.. tinha como fonte de energia a eletricidade;
- Nas circunstâncias do acidente circulavam outros veículos automóveis em ambos os sentidos de marcha;
- Antes do acidente, a D… circulava no passeio, no sentido descendente, de costas para os veículos automóveis que nesse momento circulavam no mesmo sentido descendente, enquanto falava para colegas suas que se encontravam nessas imediações;
- Logo que entrou na faixa de rodagem, foi colhida pela esquina da frente direita do veículo automóvel QG”.
- Atendendo à proximidade entre a manobra iniciada pela D… e o veículo QG, a condutora deste nada pôde fazer nem nenhuma manobra pôde efetuar para evitar o embate.
Vejamos então.
Os veículos elétricos têm caraterísticas muito específicas que os distinguem dos automóveis com motor de combustão, desde logo o facto de ser silenciosa a sua movimentação, como é do conhecimento geral.
É sabido também que, não obstante estar a aumentar a venda de veículos elétricos em Portugal, eles representam ainda uma fatia pouco significativa no conjunto de veículos que circulam pelas estradas portuguesas, de tal modo que a generalidade dos peões ainda não se habituou à sua presença e a lidar com as suas caraterísticas especiais, designadamente ao seu movimento tendencialmente silencioso.
Os peões valorizam ainda, de modo muito significativo, o ruído dos motores dos automóveis como forma de pressentirem o perigo da sua aproximação, confiando automaticamente na audição, desvalorizando algumas vezes o sentido da visão, aquele que melhor informação nos pode transmitir. É uma conduta errada.
A comunidade ainda não interiorizou devidamente a importância da observação na prevenção do perigo que os veículos elétricos representam para os peões e ciclistas na via pública. Disso, devem estar cientes os condutores daqueles veículos, enquanto novos e mais adequados hábitos de segurança rodoviária se vão instalando progressivamente na população em geral.
Ora, se à condutora do QG não era exigível condução diferente, tendo agido sem culpa, nem por isso o perigo inerente à utilização de um veículo elétrico deixou de estar presente nas circunstâncias do acidente. É um risco novo inerente às condições específicas de veículo com motor silencioso, de construção relativamente recente e de utilização pouco frequente, a que os peões ainda não estão habituados. A ausência do ruído típico dos motores de combustão e a reduzida utilização de veículos elétricos, leva facilmente os peões de normal condição a convencerem-se que à ausência daquele ruído corresponde a ausência de veículos, agindo descuidadamente em conformidade, nomeadamente ao iniciarem a travessia das faixas de rodagem.
Trata-se de um novo risco expressivo que pode afetar os peões nas vias públicas, em variadas situações de aproximação de veículos com aquela caraterística, suscetível de provocar danos pessoais graves que não podem deixar de estar cobertos e que não resultam exclusivamente de falta de diligência exigível dos peões em geral, os elementos mais vulneráveis e mais desprotegidos na via pública, a par dos ciclistas.

Pela forma como ocorreu no caso sub judice, temos como adequado fixar no equivalente a 20% do valor total dos danos a medida do risco do funcionamento do veículo contributivo para o acidente, da responsabilidade da R. por força do contrato de seguro.

Os AA. estimam em €30.000,00 o valor a compensar pela totalidade dos danos não patrimoniais sofridos por cada um deles, na quantia de €60.000,00 pela perda do direito à vida da filha, e, pelo sofrimento desta havido entre o momento do acidente e o momento da morte, a quantia de €30.000,00, assim peticionando uma indemnização total de €150.000,00.
Todos os referidos danos têm natureza não patrimonial. O critério de indemnização não deve ser aqui confundido com os critérios de indemnização dos danos patrimoniais, que têm na sua base a teoria da diferença. Não obstante a equidade esteja consagrada para ambas as indemnizações, a sua função é distinta conforme os danos sejam materiais ou imateriais. No dano não patrimonial tem uma função primacial, sendo simultaneamente compensatória (gravidade dos danos) e sancionatória (art.ºs 494º e 496º, n.º 1 e 3 Código Civil), enquanto nos danos patrimoniais a equidade tem uma função auxiliar e corretora (grau de culpabilidade do agente) – art.º 566º, nº 3, do Código Civil.
Trata-se de prejuízos de natureza infungível, em que não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão-só um almejo de compensação que proporcione aos beneficiários certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro. Aqui não entram considerações de ganhar ou de perder, mas de sentir. Não qualquer apelo ao conceito de dano de cálculo, pois que a indemnização/compensação do dano não patrimonial não se propõe remover o dano real, nem há lugar a reposição por equivalente.
Como temos vindo a entender, o valor de uma indemnização neste âmbito, deve visar compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico. Tem que constituir uma efetiva possibilidade compensatória[28], mas também tem que ser justificada e equilibrada; não pode constituir um enriquecimento ilegítimo e imoral.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.[29]
Há de atender às especificidades da situação, com recurso a juízos de probabilidade e de verosimilhança, razão porque nem se quadra à situação uma fixação com base em tabelas e com recurso a fórmulas, geralmente utilizadas para o cálculo do dano patrimonial relativo à perda da capacidade de trabalho e de ganho.[30].
Na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo é constante, apenas importa acentuar que os danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas. De resto, tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve ter-se, por regra, como consubstanciada: deve exigir-se para bens pessoais um tratamento diferente do reservado para as coisas.[31]
Na fixação do valor do dano, há necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma interpretação e aplicação uniformes do Direito (art.º 8º, nº 3, do Código Civil), não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto.
Cientes de que cada caso tem as suas circunstâncias e especificidades, e de que é o conjunto particular destas que nos permite a quantificação da compensação económica a encontrar no quadro da equidade, será importante analisar outras decisões judiciais, mais ou menos semelhantes, em ordem ao cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança e equidade na realização da justiça sempre que se questione a quantificação dos danos, sejam eles não patrimoniais (art.º 496º do Código Civil) ou patrimoniais (art.º 566º, nº 3, do Código Civil).
Efetuadas estas considerações gerais, entremos na análise de cada um dos referidos danos, na certeza de que são indemnizáveis.
A perda do direito à vida da D…
Esta indemnização é consentida nos termos do art.º 496º, nº 2, do Código Civil: “por norte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”.
Os AA. são pais da falecida e seus únicos e universais herdeiros.
A respetiva indemnização deve ser encontrada tendo por base os parâmetros estabelecidos naquele artigo em correlação com o anterior art.º 494º do mesmo código.
Na esteia do que já afirmámos, o recurso à equidade para determinar o valor deste dano e a compensação pecuniária do dano de morte e correspondente lesão do direito à vida, implica a procura de uma uniformização de critérios naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso.
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Novembro de 2016[32]: “A jurisprudência portuguesa foi, durante muito tempo, extremamente avara quando se tratava de determinar a indemnização correspondente a este tipo de dano, mas verificou-se, nesse campo, um salto qualitativo, com o progressivo aumento do montante indemnizatório pela perda do direito à vida. Isso mesmo se constata através do teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2002, acessível em www.dgsi.pt, onde se mencionam vários outros arestos do mais Alto Tribunal, fixando a indemnização pelo dano morte entre €40.000,00/8.000.000$00 e €50.000,00/10.000.000$00. Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os €50.000,00 e €80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.).
No caso vertente, o dano morte do falecido EE foi fixado em 60.000,00 €uros, valor esse situado claramente dentro das margens definidas em tais arestos e respeita o padrão referencial que vem sendo seguido pela jurisprudência deste Tribunal. Mais, em face dos 52 anos de idade do EE, esse valor é inteiramente razoável, adequado e plenamente justificado, não merecendo acolhimento as objecções, a tal respeito, apresentadas pela recorrente GG.”[33]
No posterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.4.2019[34] considerou-se que a vida não tem preço; tem um valor de natureza igual para toda a gente, mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação. Por isso, “temos que enfrentar o valor da vida em termos muito relativos, utilizando a equidade e o bom senso, na respectiva determinação, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel singular que realiza na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte”.
Esta obrigação de compensar deve se avaliada “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser”, traduzindo o dano morte “um prejuízo igual para todos os homens” e a “lesão de um bem superior a todos os outros”[35].
Fixou-se ali em €80.0000,00 o valor do dano sofrido pela perda da vida de um homem com 33 anos de idade.
Voltando ao caso, à data do sinistro (outubro de 2017), a vítima tinha cerca de 26 anos de idade; nasceu no dia 30.5.1991. Era uma pessoa jovem, desconhecendo-se qualquer motivo pelo qual não tivesse uma esperança de vida semelhante à de qualquer pessoa normalmente saudável.
Atentas estas circunstâncias e aquela que temos como sendo a mais razoável da jurisprudência à data da petição inicial, dentro das regras da equidade, o valor do dano peticionado, a pecar, é por defeito e não por excesso, atendendo a parâmetros vigentes no ano de 2019.
Fixa-se o valor deste dano em €60.000,00.
O dano não patrimonial sofrido pela vítima entre a data do acidente e o momento da morte (dano intercalar)
Este dano constitui a conversão económica da dor e angústia sofridas pela vítima durante o período que mediou entre o acidente e o momento da morte. É entendimento pacífico no seio da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que os valores a fixar, nos termos do disposto no art.º 496º, nº 4, do Código Civil, variam bastante em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas, do período de tempo durante a qual as dores se prolongam e do eventual pressentimento da morte.[36]
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016[37] decidiu-se que a quantia de €20.000,00, fixada se mostra consentânea com os factos apurados, dos quais ressalta que a vítima sofreu dores intensas em consequência do acidente e das graves lesões que o atingiram, suportou cerca de 23 dias de clausura hospitalar e dolorosos tratamentos e perspetivou a sua morte, o que lhe causou angústia e medo.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.2.2018[38] ponderou-se o seguinte:
No caso, está assente que o motociclo conduzido pela vítima, seguindo à frente e no mesmo sentido de marcha do automóvel conduzido pelo lesante, foi por este embatido na traseira, tendo aquela sido projectada para trás, caindo sobre o capot do automóvel e sendo depois sucessivamente atirada para o pára-brisas e para o tejadilho, após o que, projectada a uma velocidade superior a 96 km/hora, caiu no asfalto, nele resvalando numa distância de, pelo menos, 47,26 metros, sofrendo lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas que foram causa da sua morte, ocorrida no próprio dia do acidente. Mas não se provou que a vítima estivesse consciente depois do embate e, portanto, tivesse sofrido dores físicas para além das que naturalmente terá sentido com o primeiro choque, nem que tivesse sentido angústia com o aproximar da morte, que, à face dos factos que se provaram, e só esses importam, pode mesmo ter ocorrido logo no momento em que a vítima foi projectada do motociclo.
Neste circunstancialismo, não há fundamento para fixar por este dano indemnização superior à decidida no acórdão recorrido – 30 000,00€ –, que se situa acima do que o Supremo vem considerando justo em situações em que o dano apurado apresenta maior gravidade. Por exemplo, no acórdão de 03/11/2016, acima identificado, num caso em que vítima “sofreu dores intensas em consequência do acidente e das graves lesões que a atingiram, suportou cerca de 23 dias de clausura hospitalar e dolorosos tratamentos e perspectivou a sua morte, o que lhe causou angústia e medo”, este tribunal considerou acertada a indemnização de 20.000,00€.
No acórdão da Relação de Lisboa de 7.11.2019[39] entendeu-se ser ajustado o valor de €15.000,00 de indemnização pelo dano intercalar, quando está provado que a vítima ficou em estado grave, teve de ser socorrida e levada para hospital e agonizou durante cinco horas até falecer.
Está provado que entre o momento do acidente e o decesso da vítima esta sofreu dores resultantes das lesões graves causada. Sabemos também que a D… sobreviveu ao acidente cerca de 2 dias, o que se traduz num período de sofrimento significativo, dada a também a gravidade das lesões.
Tudo ponderado, €17.000,00 é o valor ajustado para o dano relativo à perda do direito à vida da D….
Os danos não patrimoniais sofridos por cada um dos AA.
Pediram os AA. €30.000,00 para cada um, mais uma vez no pressuposto da responsabilidade total da condutora do veículo seguro.
Estes danos reflexos são indemnizáveis ao abrigo dos art.ºs 483º e e 496º, nº 4, do Código Civil, por ter resultado a morte da vítima.[40]
Resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-04-2009[41]: «(…) É consensual a ideia de que só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afetem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objetivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os fatores subjetivos, suscetíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”. O mesmo aresto explicita que “(…) IX - No caso de morte da vítima há um círculo restrito de pessoas a esta ligados por estreitos laços de afeição a quem a lei concede reparação quando pessoalmente afetadas, por isso, nesses sentimentos. X - Neste caso, os danos destas vítimas “indiretas” emergem da dor moral que a morte pessoalmente lhes causou, havendo lugar a indemnização em conjunto e jure proprio ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos, na falta destes, aos pais, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representarem – art. 496.º, n.º 2, do CC. XI - Está em causa um dano especial, próprio, que os familiares da vítima sentiram e sofreram com a morte do lesado, contemplando o desgosto provocado pela morte do ente querido. XII - A origem do dano do desgosto é o sofrimento causado pela supressão da vida, sendo de negar o direito à indemnização em relação a quem não tenha sofrido o dano – cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 23-03-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 230. (…) XV - É pacífico que um dos fatores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização. XVI - Na sua determinação «há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou» – cf. Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13».
Consignou-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.7.2017[42]:
«Consabidamente, os danos não patrimoniais, incluindo evidentemente a dor sentida pela perda de um ente querido, são fonte da obrigação de indemnizar, mas esta tem propósitos meramente compensatórios, assumindo-se como uma tentativa de minorar o sofrimento causado ao lesado, e por outro lado, como uma satisfação dada pelo agente em virtude do seu comportamento censurável. Não tem a veleidade de apagar o dano moral, com bens materiais, pela evidente natureza heterogénea das realidades em confronto”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019[43] notou-se que relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, a jurisprudência daquele tribunal vêm fixando valores que têm variado em razão da especificidade do caso, entre €7.500,00 e €30.000,00, tendo fixado valores mais elevados apenas nos casos em que existe uma especial situação de fragilidade dos filhos.
Concluiu-se ali que, dados os laços de afetividade e convivência mantidos com a vítima no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, seria justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios dos beneficiários se fixasse em €35.000,00.
Ficou provado que a morte da filha causou aos AA. grande dor e abalo psicológico. Havia entre eles uma elevada afeição recíproca.
Em geral, o sofrimento intenso dos pais é praticamente inquestionável perante o decesso de um filho jovem.
É ajustado o valor de €30.000,00 pelos danos psicológicos sofridos por cada um dos demandantes com a perda da filha, que se presumem idênticos, segundo o critério de cálculo vigente à data da petição inicial.
A quantificação da parcela de indemnização devida pela R. seguradora, cuja responsabilidade radica no contrato de seguro do veículo QG, corresponde à medida do risco causal do acidente imputável à circulação do automóvel, fixado em 20 % no concurso com a culpa da vítima.
Com efeito a R. responde:
- Pelo dano morte, com a indemnização de €12.000,00;
- Pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima entre a data do acidente e o momento da morte, com a indemnização de €3.400,00;
- Pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA. com a indemnização de €6.000,00 para cada um.
A suportará a indemnização total de €27.400,00 a favor dos AA.
Àquele montante indemnizatório acrescem os respetivos juros de mora legais, a contar da citação (art.º 805º, nº 3 e 806º, nºs 1 e 2, do Código Civil e art.º 1º da Portaria nº 291/2003, de 8 de abril), porquanto foram pedidos desde essa data (22.11.2019) e a Relação, na quantificação dos danos d, serviu-se do critério legal e jurisprudencial vigente à data da citação (cf. Acórdão Uniform. Jurisp. nº 4/2002, de 9 de maio[44]).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
....................................................................
....................................................................
....................................................................
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V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revoga-se a sentença recorrida e, em consequência condena-se a R., COMPANHIA DE SEGUROS E…, S.A., a pagar aos AA., B… e C…, a indemnização de €27.400,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos desde a data da citação, e à taxa que em cada momento vigorar até integral pagamento.
*
Custas da ação e da apelação a cargo dos AA. e doa R. na proporção do decaimento.
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Porto, 14 de julho de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
__________________________
[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[4] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.2.2006, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 85.
[6] Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pág. 69.
[7] “Obrigações”, 3ª Edição, pág. 176.
[8] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, 2ª edição, pág. 295.
[9] cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/3/1983 e de 21/1/1985, Colectânea de Jurisprudência, T.s II e III, pág.s 15 e 81, respetivamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2000, Colectânea de Jurisprudência III, pág. 105.
[10] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007, Colectânea de Jurisprudência Sup. T. I, pág. 72.
[11] Assim o aceitou a R.
[12] Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/83 de 14.4.1983, com valor de acórdão de Uniformização de Jurisprudência, nos termos do art.º 17º, nº 2, do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro.
[13] Entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.11.2008, in www.dgsi.pt.
[14] A. Varela, Das Obrigações em geral, Almedina, Vol. I, 6ª edição, pág. 662.
[15] Diário da República n.º 24 de 1.1.1980.
[16] Por exemplo, a criança que, brincando num jardim junto à faixa de rodagem, se atravessa à frente de um veículo para apanhar a bola que para ali se escapou.
[17] Proc. 1570/2002.L1-1, in www.dgsi.pt, na sequência de outro acórdão do STJ de 4.10.2007, proc. 0781710, publicado na mesma base de dados.
[18] Proc. nº 1570/2002M2.L1-1, in www.dgsipt.
[19] Proc. 15385/15.6T8LRS.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[20] Proc. 07B1710), in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de outubro de 2007, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, III, pág. 82.
[22] R.L.J., Ano 137.º, pág. 152.
[23] Este entendimento tem ainda sido sustentado por Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 8ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e seg.s.
[24] Cf. declarações de voto formadas no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007.
[25] Proc. 08A3807, in www.dgsi.pt e Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. I, pág. 62.
[26] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/1978, B.M.J. 281/307.
[27] Proc. 08A3807, in www.dgsi.pt.
[28] Cf. acórdão do S.T.J. de 11.10.1994, BMJ 440/449 e, das Relações, acórdãos da Relação de Lisboa de 13.2.1997, Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 123.
[29] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. III, pág. 127.
[30] Cf. acórdão da Relação do Porto de 10.12.2012, proc. 2604/09.7TBPVZ.P1, in www.dgsi.pt, citando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdão STJ, de 10.07.2008, proc. 08B2101, in www.dgsi.pt.).
[31] Jorge Sinde Monteiro, Reparação dos Danos Pessoais em Portugal, CJ, 86, IV, pág. 11.
[32] Proc. 6/15.5T8VFR.P1.S1, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2016, proc. 492/10.0TBBAO.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
[33] Este excerto foi reproduzido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2017, proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1, e no acórdão do mesmo Tribunal de 11.04.2019, proc. 465/11.5TBAMR,G1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[34] Proc. 465/11.5TBAMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[35] Leite Campos, A Vida, a morte e a sua indemnização, in BMJ, nº 365, pág. 15.
[36] Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 08.09.2011 (proc. nº 2336/04.2TVLSB.L1.S1); de 27.09.2011 (proc. nº 425/04.2TBCTB.C1.S1); de 24.10.2013 (proc. nº 225/09.3TBVZL.S1); de 29.10.2013 (proc. nº 62/10.2TBVZL.C1.S1); de 28.11.2013 (proc. nº 177/11.0TBCP.S1) de 15.09.2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1) e de 02.03.2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1), acessíveis in www.dgsi.pt ou em sumários da jurisprudência cível, www.stj.pt.
[37] Proc. 6/15.5T8VFR.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[38] Proc. 33/12.4GTSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[39] Proc. 726/16.7T8CSC.L1-6, in www.dgsi.pt.
[40] Dúvidas existem quanto à indemnização de danos não patrimoniais reflexos em caso de ofensa corporal, que a doutrina e a jurisprudência tradicional negam (cf., entre outros o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.9.2009, proc. 292/1999-S1, in www.dgsi.pt. e Guilherme Cascarejo, in Danos Não Patrimoniais dos Familiares da Vítima de Lesão Corporal Grave, Almedina, 2016, pág.s 59 e seg.s).
[41] Proc. 08P3704, in www.dgsi.pt.
[42] Proc. 313/13.1PGPDL.L1.S1, internet https://dre.pt/web/guest/pesquisa-avancada/-/asearch/116181109/details/maximized?emissor=Supremo+Tribunal+de+Justi%C3%A7a&perPage=100&types=JURISPRUDENCIA&search=Pesquisar
[43] Proc. n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[44] Diário da República, I Série-A, de 27.6.2002.