Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0345574
Nº Convencional: JTRP00036100
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: SEQUESTRO
DURAÇÃO
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: RP200404140345574
Data do Acordão: 04/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: I - Para o preenchimento do crime de sequestro é irrelevante a duração do período de privação de liberdade.
II - O crime de maus tratos pode concorrer com o de sequestro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:

Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira de Azeméis foi o arguido condenado, além do mais que agora não importa, pela prática de 1 crime de sequestro, previsto no Art. 158º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão e pela prática de 1 crime de maus tratos, previsto no Art. 152º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos de prisão. Essa pena, de harmonia com o disposto nos Artºs 50º e 51º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, foi suspensa na sua execução, pelo período de 4 (quatro) anos, sob a condição de o arguido pagar à ofendida A.........., no prazo de 6 (seis) meses a contar do trânsito da decisão, a quantia de 5.000 Euros, como satisfação moral e ressarcimento pelos danos por esta sofridos.

Inconformado com a condenação o arguido interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões:
Impugna-se a matéria de facto, nos termos do art.º 412º, nºs 3 e 4, do Código Processo Penal, na medida em que diversos pontos da matéria de facto provada (04, 05, 07 a 11, 14 a 16, 18 a 23, 29, 30, 34 a 38) se encontram incorrectamente julgados, devendo ser dados como não provados no sentido exposto na motivação. Tal irá interferir certamente no sentido da absolvição do arguido ora recorrente, no que aos crimes de que vem acusado diz respeito. Impõem decisão diversa da recorrida os depoimentos audio gravados dos arguidos e das testemunhas de acusação. A devida transcrição acompanha e instrui esta peça processual.
Decorre ainda da conclusão anterior que deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto (vide artigo 431º do Código Processo Penal) e proceder-se à decisão jurídica em conformidade – absolvição do arguido relativamente aos crimes pelos quais foi condenado.
Se assim não se entender, sempre se deverá considerar que o acórdão recorrido violou o preceituado nos artºs 40 e 70, ambos do Código Penal, na medida em que, ao poder optar entre uma pena não privativa da liberdade e uma pena privativa da liberdade optou por esta última.
A opção pela pena não privativa de liberdade é um poder dever que se impõe ao julgador uma vez verificados os requisitos do art.º 70º do Código Penal, o que julgamos ser o caso.
O acórdão recorrido viola o art.º 158º, n.º 1, do Código Penal, na medida não se verificou preenchidos os seus pressupostos, assim como a sua ratio, não tendo existido uma verdadeira limitação a ius ambulandi da ofendida, devendo consequentemente o arguido recorrente ser absolvido da prática do crime de sequestro.
Caso assim não se entenda, sempre se considerará que o tipo legal de crime de sequestro consome, nas circunstâncias sub judice, o tipo de crime de maus tratos, devendo, consequentemente, o arguido ora recorrente, ser absolvido da prática de tal crime.

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi e parecer que o recurso não merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código Processo Penal e após os vistos realizou-se audiência, não tendo sido suscitadas novas questões.
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Factos provados:
O arguido foi casado, entre 17 de Janeiro de 1987 até Março de 2002, com A...........
Cerca das 11h30m do dia 5 de Julho de 1996, no interior da residência de ambos, sita na Rua....., em....., Oliveira de Azeméis, onde ambos se encontravam, depois de ter fechado as portas e as janelas da casa, para impedir que a sua mulher fugisse, o arguido agrediu esta repetidamente, a murro, a pontapé e espancando-a com um cabo eléctrico, atingindo-a diversas vezes em várias partes do corpo.
Acto contínuo, quando a referida A.......... se encontrava já sem forças e impossibilitada de resistir, o arguido prendeu-a contra a vontade desta, amarrando-lhe os pés e os pulsos com arames, assim a impedindo, como queria, de se movimentar e de fugir da casa.
Contudo, quando o arguido foi, em seguida, tomar duche, a A.......... logrou libertar-se dos arames, cerca de 15 minutos depois de ter sido amarrada e fugiu por uma janela da residência.
Como consequência directa e necessária das agressões infligidas pelo arguido, sofreu a A.......... múltiplas contusões na cabeça, no tronco e nos membros, hematoma periorbitário direito, várias equimoses e extenso hematoma, com escoriações, ao nível da região dorsal esquerda, que lhe determinaram internamento hospitalar por quatro dias, para tratamento, e quinze dias de doença, sendo os oito primeiros com incapacidade para o trabalho.
Quis o arguido privar a mulher da sua liberdade de movimentos, ao fechar a mesma na residência e ao amarrá-la da forma descrita, assim a impedindo de fugir.
Quis ainda o arguido, com as agressões referidas e desferidas contra ela, infligir-lhe maus tratos.
Agiu sempre o arguido voluntária e conscientemente, bem sabendo que não podia agir do modo descrito.
Vivendo em Aveiro e actualmente divorciado, estando a A.......... emigrada no Canadá, tem rendimentos mensais que chegam a atingir os 10.000 Euros, para ele e sua equipa.
Tem 2 filhos, um da primeira mulher, com 17 anos e outro da actual companheira, com 2 anos de idade.
Não confessou os factos e não mostra qualquer arrependimento.
Denota personalidade deficientemente formada e carências de ordem cultural, não tendo sabido adaptar o seu carácter às regras de conduta social vigentes.
Já foi julgado e condenado por porte ilegal de arma e por emissão de cheque sem provisão.
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Inexistem factos não provados da acusação.
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Fundamentação.
Foram estas as provas que, analisadas e apreciadas criticamente, levaram à formação da convicção do Tribunal:
Documentos: de folhas 5, 37 (exame directo à ofendida A..........), 7 a 11 (ficha clínica do Hospital de Aveiro, onde esta ficou internada para tratamento), 13 a 18 (fotografias reveladoras dos resultados das agressões no corpo da ofendida), 80 (assento de casamento do casal) e 89 a 95 (certificado de registo criminal do arguido), cujo conteúdo foi devidamente analisado e considerado.
O depoimento do arguido, tão-só quanto às suas condições de vida, sociais e económicas; o mesmo teve relevância para a apreciação casuística que o Tribunal Colectivo fez das suas capacidades intelectuais, culturais e morais, sendo importante na avaliação da sua personalidade e postura.
Os depoimentos credíveis das testemunhas:
A.......... (prestado no Canadá e traduzido em audiência), no qual esta faz um historial completo e coerente dos factos por si sofridos, desde as agressões, até à sua fuga da casa; confirma, desse modo, todo o factualismo demonstrado, fazendo-o mesmo de forma isenta e completa, levando o Tribunal a considerar tal depoimento como totalmente credível (aliás, complementado pelos restantes elementos probatórios); aliás, lidos os seus depoimentos em fase de inquérito (por acordo e todos os intervenientes), os mesmos não denotam qualquer contradição digna de registo.
B..........., que foi vizinho de ambos e a quem a ofendida A.......... apareceu pedindo ajuda, muito maltratada, naquele dia, dizendo que o marido a mataria e narrando os ferimentos visíveis da mesma, nomeadamente num olho e escorrendo sangue da face, das costas e das pernas; não era a primeira vez que via o arguido a agredir a mulher.
C.......... (entretanto falecido, pelo que foram lidas as suas declarações em inquérito), mãe da queixosa, tendo socorrido afilha no dia das agressões descritas, conduzindo-a ao hospital, onde esteve internada; verificou que a fi-lha se encontrava com a face inchada, com nódoas negras e sinais de vergastadas nas costas, bem como com os pulsos e os pés inchados; a filha assegurou-lhe ter sido o arguido o causador daquele estado.
D.........., taxista que transportou a ofendida a casa da mãe.
E.........., pai da queixosa A.........., com um depoimento patético, na medida em que quase pretendeu desculpabilizar o agressor da filha, embora ela lhe tenha contado, no dia referido, em ..., que fora o arguido quem a agredira; acabou, finalmente, por dizer que a viu rota, espancada e pisada nas costas.
F.........., engenheiro técnico civil com cuja firma de Aveiro o arguido colabora profissionalmente, confirmando os rendimentos mensais do arguido, por vezes de 10.000 Euros (para ele e sua equipa), e tendo-o actualmente como pessoa profissional-mente respeitadora e responsável.
G.........., engenheiro civil, esclarecendo que o arguido faz subempreitadas para a sua empresa, conhecendo-o há 4 anos e tendo-o como pessoa trabalhadora e profissionalmente dedicada e responsável.


O Direito
O recurso interposto pelo arguido, como se colhe das conclusões da sua alegação, incide sobre a decisão proferida quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito.
No caso, impõe-se, logicamente, abordar em primeiro lugar as questões de facto, para depois, delimitada que esteja a matéria assente, analisar as questões de direito enunciadas pelo recorrente.
Em sede de matéria de facto a crítica do recorrente é a seguinte: a prova produzida em audiência de julgamento não permite a conclusão de que foi ele o autor da acção delituosa.

O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto e em sede de recurso, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento, o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância [Germano Marques da Silva, Forum Iustitiae, Ano I, n.º 0 Maio de 1999, pág. 22]; os recursos são entendidos como juízos de censura crítica – e não como “novos julgamentos” [Damião Cunha, O caso Julgado Parcial, 2002, pág. 37 (1),].
Por outro lado a garantia do duplo grau de jurisdição, quanto a matéria de facto, não implica a anulação do princípio da livre apreciação da prova, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, antes impõe a compatibilização dos dois institutos.
O recorrente sindica a matéria de facto, nos termos do art.º412º n.º 3 do Código Processo Penal. Apesar de a sua alegação de recurso, não pode ser considerada um modelo do pretendido pelo legislador nesta matéria, mesmo assim, vamos ignorar que o recorrente fez vista grossa desse dispositivo legal, e partir do pressuposto que lhe deu integral cumprimento.
Conforme resulta da acta da audiência de julgamento, a prova produzida foi documentada em obediência ao disposto no art.º 363º do Código Processo Penal e encontra-se agora transcrita.
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do CPP. Dispõe-se no art.º412º n.º 3 do Código Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
E o n.º 4 que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Resulta da alegação de recurso, como já vimos, que o recorrente não aceita o resultado da valoração e apreciação da factualidade produzida em audiência, efectuada pelo tribunal, segundo as regras da experiência e da livre convicção, art.º 127º do Código Processo Penal [S. Santos e L. Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª ed. pág. 65].
Como ocorreu transcrição cumpre averiguar se tem, ou não, razão.
A valoração e apreciação da factualidade produzida em audiência é efectuada pelo tribunal, segundo as regras da experiência e a livre convicção, art.º 127º do Código Processo Penal, onde está expressamente plasmado o sistema da prova livre. Negativamente significa a ausência de critérios legais predeterminados do valor a atribuir à prova. Não aponta para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. A apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo. A livre ou íntima convicção do juiz não pode ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.
A verdade material que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano, tanto mais que o meio de prova predominante é a prova testemunhal, que se revela falível. A verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica. A convicção que se exige ao juiz é uma convicção pessoal, mas em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, pág. 140 e segts].
Sustenta o recorrente que o tribunal apenas valorou o depoimento da ofendida fazendo tábua rasa das declarações do arguido... em clara violação do princípio in dubio pro reo.
É patente a sem razão do recorrente. Parte de um erróneo pressuposto: no caso só podia haver condenação se o arguido confessasse, como não confessou é a palavra dele – arguido – contra a dela – ofendida... in dubio pro reo... não pode haver condenação. O direito não se escreve a preto e branco, a paleta da vida tem variegadas cores! A circunstância de o arguido não confessar os factos ou até de os negar, como foi o caso, não constitui necessariamente óbice a que o tribunal os considere provados, desde que tenha sido produzida outra prova e motive a sua decisão. Foi o caso.
Vejamos:
O depoimento da ofendida é cristalino: o arguido foi o autor dos factos, explicando pormenorizadamente o desenvolver da acção delituosa. Perante este quadro o arguido limitou-se a um parcimonioso não fui eu. Acontece que a versão da ofendida é confortada pelas declarações do vizinho B.......... que confirma que no dia dos factos a ofendida vinha aflita a fugir... ele mata-me, ele quem? Aquilo foi dentro da casa dela... teria de ser o casal... ele [o arguido] estava [em casa] porque depois saiu... ele até disse qualquer coisa para o meu vizinho ....Que ele [o vizinho] que a tinha lá escondida dentro de casa, ele [o vizinho] disse não homem ela [a ofendida] foi por aí fora, pelo milho fora, etc. etc.
Findo o depoimento desta testemunha, o arguido perante a pergunta do Ex.mo juiz presidente....diga senhor X.........., então?... tem uma resposta eloquente: não nega que estava na casa onde a mulher diz ter sido batida, nem que tenha saído de casa, nem que tenha perguntado pela mulher, apenas se detém num aspecto parcelar e irrelevante do depoimento da testemunha relacionado com outra mulher!
Acresce que a arguida, logo a seguir aos factos, foi transportada ao hospital onde recebeu tratamento conforme está amplamente documentado nos autos. Aliás perante tantas evidências o arguido aceita que a ofendida foi maltratada só não aceita que tenha sido o autor de tal façanha.
A explicação também ensaiada pelo arguido, e não mais que isso, de que a ofendida lhe atribuiu a autoria da agressão como vingança, é pueril e inconsequente. Pueril porque as circunstâncias que rodearam a agressão desmentem essa frágil argumentação do arguido, que estava no local onde ela foi agredida e logo que se apercebeu da sua fuga foi no seu encalço, à sua procura. Depois, tanta vingança, não é compaginável com um relativo alheamento do processo por parte da ofendida que não se constituiu assistente, nem sequer deduziu pedido de indemnização, nem esteve presente no julgamento tendo sido inquirida por carta rogatória no Canadá.
Perante este quadro não merece censura a desconsideração da negativa do arguido, e que o seu depoimento apenas tenha sido acolhido e reputado relevante para aquilatar das suas condições de vida etc. Acresce que da motivação consta a razão pela qual o tribunal não lhe deu, quanto à autoria dos factos, qualquer relevo.

No caso o tribunal apreciou criticamente a prova e fundamentou a sua convicção. O juiz da primeira instância é o juiz da oralidade e da imediação da audiência de julgamento, logo numa situação de privilégio, para apreender as emoções, a sinceridade, a objectividade, a isenção, as contradições, as solidariedades, as pequenas cumplicidades, que escapam no recurso, dominado pelo princípio da escrita, do papel, de modo a possibilitar uma boa decisão. A relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes do processo, no julgamento da 1.ª instância permite obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, pág. 158].
O juiz do julgamento tem, em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção própria do material probatório que nós indiscutivelmente não temos. O juiz do julgamento tem contacto vivo e imediato com o arguido, com o ofendido, as testemunhas, assiste e não raro intervém nos seus interrogatórios pelos diversos sujeitos processuais, recolhe um sem número de impressões...que não ficam registadas em acta, apenas na sua mente...Essa fase ao vivo do directo é irrepetível. Esta fase do processo – o recurso – é uma fase dominada pelo princípio da escrita, tornando-se difícil, para não dizer impossível, avaliar, com correcção, da credibilidade de um depoimento em contraponto com outro diverso.
Nós apenas podemos controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso ou o abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha. Ora da motivação resulta que, como já dissemos, no nosso caso, a convicção dos Ex.mos juízes não é puramente subjectiva, intuitiva e imotivável, antes resultou da livre apreciação da prova, da análise objectiva e crítica da prova. Em toda a motivação há uma intenção de objectividade. A solução a que chegou o tribunal é razoável, quando cotejada com o material probatório transcrito e está fundamentada. O tribunal indicou fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto dado como provado ou não provado. A factualidade apurada não resultou da íntima convicção dos juízes, de uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Pelo contrário a factualidade apurada resultou, conforme se extrai da motivação, de uma convicção pessoal, mas em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros, conforme hoje é pressuposto pelo art. 374º n.º2 do Código Processo Penal. Como salienta Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 166, hoje a livre apreciação da prova ou livre convicção, pressupõe-se objectivável e motivável, distinguindo-se com nitidez do modelo anterior, o sistema da íntima convicção, sem qualquer exigência de motivação.
Em conclusão não padece a matéria de facto de qualquer vício. Do reexame dessa prova testemunhal, não pode concluir-se que é inadmissível, face às regras da experiência comum e à livre convicção do julgador, a versão dada como provada. Bem pelo contrário, face a tais elementos probatórios, tudo aponta no sentido de que o tribunal recorrido captou a verdade material. Nesta parte, o que se verifica, é que o tribunal não ficou com qualquer dúvida, realidade que o recorrente, não quer aceitar.
Depois, da motivação resulta que, no nosso caso, a convicção do tribunal não é puramente subjectiva, intuitiva e imotivável, antes resultou da análise objectiva e crítica da prova. Em toda a motivação há uma intenção de objectividade.

Também não se verifica violação do princípio in dubio pro reo. A violação do princípio in dubio pro reo, pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrai, que o tribunal optou por decidir, na dúvida, contra o arguido, Ac. do STJ de 15 de Abril de 1998, BMJ 476º 82. Como é sabido o princípio in dubio pro reo [Seguimos, de muito perto, a síntese conclusiva de Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, pág. 165 e segts], como regra de decisão da prova, é solução que resulta de um conjunto de factores em verificação cumulativa:
- Necessidade de pôr fim ao processo, com decisão definitiva que não represente, do ponto de vista da paz jurídica do arguido, uma demora intolerável;
- A inadmissibilidade da pena de suspeição;
- A opção pelo modus probandi de livre apreciação da prova ou livre convicção do tribunal, necessariamente objectivável e motivável, pois o sistema da íntima e pura convicção, em que a culpa estava apenas na cabeça do juiz, está felizmente ultrapassado sendo incompatível com o figurino que a nossa Constituição desenhou ao processo penal;
- A possibilidade do surgimento de dúvidas, resistentes à prova e impeditivas da tal convicção, na verificação dos enunciados factuais abrangidos pelo objecto do processo;
- A consciência da diferença entre o processo criminal e a lide civilística, que impede a transferência para o primeiro da solução do ónus de prova, típica de um processo de partes;
- A convicção de que o Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente.
Daí que, o princípio in dubio pro reo, deve ser perspectivado e entendido, como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público. O Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente. Consequentemente, só releva e restringe o seu âmbito de aplicação à questão de facto, é mais do que o equivalente processual do princípio da culpa, desligando-se, quanto ao fundamento, da presunção de inocência e abarcando, quer as dúvidas sobre o facto crime, quer a incerteza quanto à perseguibilidade do agente. E finalmente o controle da sua efectiva boa ou má aplicação está dependente de os tribunais cumprirem a obrigação de fundamentarem a sua convicção.
No nosso caso a sua aplicação, como princípio relativo à prova, não foi sequer, oportunamente, ponderada aquando da decisão da matéria de facto. Nem se vislumbra que essa não ponderação do princípio seja in casu questionável. O último reduto onde se pode procurar eventual violação do princípio in dubio pro reo é na fundamentação, daí que se imponha logo na Lei Fundamental, a obrigação de fundamentar a decisão.
Acontece que a decisão está motivada, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, nenhuma delas é proibida por lei, art.º 125º Código Processo Penal, e todas de livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção, art.º 127º, e foi feita a sua análise crítica, art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal. É uma motivação convincente onde se mencionam as provas e as razões de ciência.
Repetindo o já referido, no caso, o que o arguido não aceita é que o tribunal não tenha tido dúvidas, quando ele ficou cheio delas. Cumpre realçar que a dúvida relevante, não é um estado inicial, apenas é pertinente a dúvida última, persistente e resistente ao crivo crítico da livre apreciação - pois entre nós vigora, cfr. art.º 127 do Código Processo Penal, e desde as Reformas Judiciárias da primeira metade do séc. XIX, saídas da revolução liberal o sistema da prova livre – portanto, um ponto de chegada em que o non liquet se nos impõe como irredutível e irremediável. Não é o caso dos autos.


Em sede de qualificação jurídica suscita o recorrente três questões:
- Que não se verificam os pressupostos do crime de sequestro..
- Que a haver sequestro esse crime consome o de maus tratos.
- Que foi violado o disposto nos artºs 40 e 70 do Código Penal.

Comecemos pela primeira das críticas. Segundo o recorrente no caso não se mostram preenchidos os pressupostos do crime de sequestro, não tendo existido uma verdadeira limitação do ius ambulandi da ofendida, pois ocorreu uma privação insignificante desse direito.
No crime de sequestro como é sabido protege-se a chamada liberdade ambulatória ou de movimento [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.4.87 BMJ 366º 223, Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, pág. 653]. Nas palavras de Taipa de Carvalho [Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I pág. 404] o bem jurídico protegido pelo art.º 158º é a liberdade de locomoção, isto é, a liberdade física ou corpórea de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para o outro.
Apurou-se que:
Cerca das 11h30m do dia 5 de Julho de 1996, no interior da residência de ambos, sita na Rua....., em....., Oliveira de Azeméis, onde ambos se encontravam, [o arguido] depois de ter fechado as portas e as janelas da casa, para impedir que a sua mulher fugisse, agrediu a ofendida repetidamente, a murro, a pontapé e espancando-a com um cabo eléctrico, atingindo-a diversas vezes em várias partes do corpo.
Acto contínuo, quando a referida A.......... se encontrava já sem forças e impossibilitada de resistir, o arguido prendeu-a contra a vontade desta, amarrando-lhe os pés e os pulsos com arames, assim a impedindo, como queria, de se movimentar e de fugir da casa.
Quis o arguido privar a mulher da sua liberdade de movimentos, ao fechar a mesma na residência e ao amarrá-la da forma descrita, assim a impedindo de fugir.
Perante este quadro fáctico, a argumentação do recorrente é, com todo o respeito, injustificada e gratuita. Prender a vítima, contra a sua vontade, amarrando-lhe os pés e os pulsos com arames, assim a impedindo, como queria, de se movimentar e de fugir da casa, não é uma conduta bagatelar, irrelevante e insignificante para o direito, é uma conduta grave, e com relevância penal.
Para o preenchimento do tipo irreleva o período de tempo durante o qual se prolongou a privação da liberdade. O nosso legislador, ao contrário de outros, não verteu no tipo legal qualquer critério quantitativo, logo o crime de sequestro não exige que a privação da liberdade dure um específico período de tempo [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1994 BMJ 433º 306, Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.1990, CJ XV, tomo IV, pág. 21, Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 31.1.96 citado por Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 3ª ed. 1º vol. Pág. 423]; o período de tempo apenas releva como elemento do tipo qualificado, por mais de dois dias, art.º 158º n.º 2 do Código Penal, devendo também ser considerado, em qualquer caso, como critério para aquilatar do grau de ilicitude.
Alega também o recorrente que tendo a vítima logrado fugir não há crime de sequestro. Esse é outro dos equívocos do recorrente. Da circunstância de a ofendida, depois de se ter debatido com as mãos e os pés amarrados com arames, ter conseguido libertar-se e fugir por uma janela, não deriva a impunibilidade da conduta do arguido. A questão relevante é outra: o meio utilizado pelo arguido constitui um meio adequado a privar a ofendida da sua liberdade? A resposta tem de ser encontrada, tendo em vista o meio concretamente utilizado, as características físicas da vítima e a configuração do local, etc. Se no concreto caso temos dúvidas que o fechar das portas e janelas – não se tendo apurado quanto às janelas a existência de especial mecanismo de fecho que impossibilitasse a sua abertura, e por outro lado tudo aponta que para que as janelas permitiam facilmente o acesso para o exterior, possivelmente por se situarem pouco acima do nível do solo, não constituindo um verdadeiro obstáculo facilmente ultrapassável pela arguida, pessoa jovem e sem problemas físicos – constitua de per si sequestro, até porque é um meio para consumar os maus tratos, já o amarrar de mãos e pés com arames constitui indiscutivelmente privação da liberdade.

Na óptica do recorrente a haver sequestro esse crime consome o de maus tratos. Dispõe-se no artº30º n.º 1 do Código Penal, que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Os bens jurídicos protegidos pelos tipos de ilícito em causa são diversos. O crime de maus tratos está arrumado no capítulo dos crimes contra a integridade física, o de sequestro no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal. Como já vimos, no crime de sequestro tutela o legislador a chamada liberdade ambulatória ou de movimento [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.4.87 BMJ 366º 223, Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, pág. 653]. Nas palavras de Taipa de Carvalho [Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I pág. 404] o bem jurídico protegido pelo art.º 158º é a liberdade de locomoção, isto é, a liberdade física ou corpórea de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para o outro. Já no crime de maus tratos protege-se genericamente a dignidade humana e a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.
Temos assim que o arguido com a sua conduta preencheu, numa primeira abordagem, dois ilícitos típicos. Acontece que para se concluir pela existência de concurso efectivo torna-se necessário, para além da pluralidade de tipos violados, que seja possível formular uma pluralidade de juízos de censura o que só pode ser viabilizado pela existência na matéria de facto apurada de uma pluralidade de resoluções, pois as privações da liberdade de movimentos, em alguns casos, podem reconduzir-se ao tipo de ilícito de maus tratos.
A privação da liberdade anda associada a um conjunto de crimes, quer como meio típico, quer como meio possível da sua realização. Assim só em concreto se pode resolver a questão da unidade ou pluralidade de crimes. Sempre que a duração da privação da liberdade não ultrapasse aquela medida naturalmente associada à prática do crime-fim e como tal já considerada pelo próprio legislador na descrição típica e na estatuição da pena, deve concluir-se pela existência de concurso aparente entre o sequestro (crime meio) e o crime fim (no caso maus tratos). Haverá concurso efectivo, quando a duração da privação da liberdade ultrapassa aquela medida [Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I pág. 415].
No caso a privação da liberdade ultrapassa o necessário para inflingir os maus tratos. Mais, assumiu maior gravidade depois de consumados os maus tratos. Depois dos maus tratos há uma nova e autónoma renovação do processo volitivo de sequestro, com uso de novos meios – amarrar pés e mãos com arame -. Se o fechar das portas e janelas pode ser considerado juridico-penalmente, como meio de conseguir levar a cabo as agressões, os maus tratos [Na opinião de Taipa de Carvalho, a ratio do art.º 152º do Código Penal, vai além dos maus tratos compreendendo as curtas privações da liberdade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I pág. 332] subsequentes, já o amarrar – depois de consumadas as agressões - é algo mais. Ora essa pluralidade de resoluções, que se verifica no caso, pois apurou-se um duplo processo volitivo: Quis o arguido privar a mulher da sua liberdade de movimentos, ao fechar a mesma na residência e ao amarrá-la da forma descrita, assim a impedindo de fugir. Quis ainda o arguido, com as agressões referidas e desferidas contra ela, infligir-lhe maus tratos, leva-nos a considerar a existência de concurso real [Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.6.96 citado por Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal anotado, 3ª ed. 1º vol. Pág. 427].
Consequentemente, não procede a pretensão do arguido, de que no caso, o crime de sequestro consome o de maus tratos, nem por outro lado se verifica a inversa: o crime de maus tratos não consome o de sequestro.
Finalmente sustenta o recorrente que foi violado o disposto nos artºs 40º e 70º do Código Penal, pois foi-lhe aplicada pena de prisão, quando devia ter-lhe sido aplicada pena de multa. A sem razão do recorrente é flagrante, desde logo, porque o crime de maus tratos, quer na redacção vigente à data dos factos, quer nas redacções subsequentes, não prevê a pena alternativa de multa. Depois, atendendo aos factos apurados, à brutalidade agressiva do arguido que as fotografias juntas documentam, e perante as considerações tecidas na decisão - ... a ilicitude ele-vada... a culpa do arguido, revestindo a forma de dolo directo é intensa,...o modo de execução demonstra ausência de escrúpulos e deficiente preparação para a vida em comum, denegando ao seu cônjuge um dos atributos essenciais: o de-ver de respeito e de consideração pela sua saúde física e mental.... a gravidade das consequências dos actos criminosos por si praticados, atentas as lesões causadas e o vexame necessariamente sentido pela lesada... o arguido não confessou, o que só vem acrescer à apreciação que o Tribunal fez da sua personalidade, a necessitar de correcções... tem antecedentes criminais registados...- a pena de prisão suspensa na sua execução é uma ponderada indulgência do tribunal colectivo, que o arguido deve agarrar com ambas as mãos.


Decisão:
Nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 15 UC a taxa de justiça.
Honorários da Tabela.

Porto, 14 de Abril de 2004.
António Gama Ferreira Ramos
Rui Manuel de Brito Torres Vouga
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
David Pinto Monteiro