Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2161/18.3T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
USO ABUSIVO
Nº do Documento: RP202110282161/18.3T8STS.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por força da admissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o devedor/insolvente tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno, o que significa que, na ausência de despesas extraordinárias significativas, esse montante deve ter por referência o valor do salário mínimo nacional sucessivamente aplicável.
II - Não sendo os subsídios de férias e de natal imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, têm os mesmos que ser incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2161/18.3T8STS.P1 – Apelação
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – J1
Relator: Jorge Miguel Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. Nos autos de insolvência (pessoa singular) foi, por sentença já transitada em julgado, declarado insolvente B….

2. Oportunamente foi proferido despacho sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente, ali se fixando, por decisão transitada em julgado, que o valor excluído da cessão à fidúcia deveria ascender a 1 salário mínimo nacional por mês.
Neste sentido, consta do despacho 6.12.2019, o seguinte trecho final em termos decisórios (sic):
“ Nesta medida, atentas as condições pessoais do devedor, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento da devedora que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional por mês, seja cedido ao Exmo. Administrador de Insolvência que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário. “ (sublinhado nosso)

3. Posteriormente, na sequência do Relatório do Sr. Administrador dando conta do não pagamento de valores à fidúcia por parte do devedor/insolvente e da oposição deste último, veio a ser proferido com data de 18.05.2021 o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede – Como resulta da decisão proferida, o rendimento indisponível fixado é mensal e reportado a 12 meses, ou seja, os valores recebidos a título de 13º e 14º mês, devem ser tidos como rendimento disponível, e, assim, adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário. Neste sentido, Ac. da Relação do Porto de 15.09.2015, de 24.03.2020 e 26.01.2021.
Assim, atendendo a que do relatório apresentado resulta que o insolvente não procedeu a pagamento de quantias em dívida à fidúcia, notifique o mesmo para proceder ao pagamento em falta sob cominação de que a exoneração do passivo restante poderá ser cessada antecipadamente, nos termos do disposto no artigo 243º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Prazo: 10 dias. “
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4. Inconformado com este último despacho, veio o insolvente interpor recurso de apelação, em cujo âmbito ofereceu alegações e apresentou, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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5. Não foram oferecidas contra-alegações.
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6. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.ºs 3 e 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação as questões que importa dirimir são as seguintes:
I. Da violação do caso julgado.
II. Dos subsídios de férias e de natal e da sua exclusão da cessão ao fiduciário.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Os factos que revelam à decisão são os que constam do relatório que antecede.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Violação do caso julgado.
A primeira questão que importa dirimir refere-se à alegada violação do caso julgado (artigo 620º, do CPC) por parte do despacho ora recorrido, o qual, segundo o Recorrente, se mostra contraditório com o despacho antes proferido a 17.06.2020 e no qual se considerou que o SMN deveria ser multiplicado por 14 meses (vide conclusões 1 a 6).
Com o devido respeito, a posição do Recorrente parte de uma premissa errada.
O primeiro despacho que se pronunciou sobre o rendimento excluído da cessão foi o despacho de 6.12.2019 e o mesmo, como é pacífico, mostra-se transitado em julgado.
Ora, resulta, em termos evidentes do dito despacho que no mesmo se fixou como rendimento indisponível (excluído da cessão à fidúcia) o equivalente ao SMN por mês.
Digamos, pois, que, ao contrário do que defende a Recorrente, o despacho de 6.12.2019 disse tudo o que tinha a dizer e, no que se refere aos subsídios de Natal e de Férias, disse, de forma clara, que, nesses meses, o que excedesse o valor do SMN deveria ser entregue à fidúcia.
De facto, dizendo-se no despacho de 6.12.2019 – que não foi impugnado – que o rendimento que ultrapassasse, em cada mês, o valor de 1 salário mínimo nacional teria que ser cedido à fidúcia disse-se também e logicamente, segundo a interpretação de um declaratário normalmente diligente e sagaz – teoria da impressão do declaratário que, apesar de consagrada no artigo 236º, do Cód. Civil para o negócio jurídico é também aplicável à sentença ou despacho judicial, enquanto acto que tem como destinatários as partes e os seus Mandatários [1] -, que, nos meses em que fosse pago o Subsídio de Natal e de Férias, o valor que excedesse o SMN teria que ser entregue à fidúcia.
Na verdade, perante o conteúdo do despacho de 6.12.2019 não vemos que seja possível outra leitura e/ou interpretação possível…
Dito isto, que temos por evidente, é patente que, de facto, o despacho recorrido (datado de 18.05.2021), não confronta qualquer caso julgado, mas, quando muito, esse caso julgado foi, talvez por lapso, confrontado pelo despacho de 17.06.2020.
Porém, quanto a este último despacho (de 17.06.2020) e apesar de o mesmo, em nosso ver, confrontar o caso julgado decorrente do despacho de 6.12.2019, certo é que não é já possível reverte-lo, pois que o mesmo transitou em julgado e, ademais, não é sequer objecto deste recurso.
De facto, recorde-se que o objecto deste recurso é apenas e só o despacho de 18.05.2021 e a sua legalidade.
Por conseguinte, à luz do antes exposto, improcede a alegada violação do caso julgado por parte do conteúdo constante do despacho de 18.05.2021, o qual, em nosso ver, ao invés, se limitou a respeitar o caso julgado decorrente do primeiro despacho de 6.12.2019, sendo certo que, como decorre do preceituado no artigo 625º, n.º 1, do CPC, existindo casos julgados contraditórios deve sempre ser cumprida a decisão que transitou em julgado em primeiro lugar, ou seja, no caso dos autos, o decidido no despacho de 6.12.2019.
Improcede, pois, a excepção de violação de caso julgado invocado pelo Recorrente.
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IV.II. Do cálculo do valor do rendimento disponível e da interferência dos subsídios de férias ou de Natal nesse cálculo.
A questão subsequente suscitada pelo Recorrente refere-se aos valores do subsídio de Natal e de Férias, os quais, na sua perspectiva, devem ser excluídos da cessão ao fiduciário, procedendo-se ao cálculo do seu salário anual, para efeitos de cessão, tendo por referência o valor do rendimento indisponível fixado e o valor do seu salário mensal multiplicado por 14 (com o subsídio de férias e de Natal) e dividindo-o, depois, por 12.
Em nosso ver, esta pretensão do Recorrente está irremediavelmente condenada a improceder.
Em primeiro lugar, porque a pretensão em apreço mostra-se claramente afastada pelo despacho de 6.12.2019, com a interpretação que já antes expusemos.
De facto, a vingar a tese agora defendida pelo Recorrente estaria este Tribunal de recurso a decidir em sentido oposto ao decidido no despacho de 6.12.2019, transitado em julgado, onde se fixou que o valor do SMN era calculado mensalmente, ou seja, repetindo, que, em cada mês do ano (nomeadamente nos meses em que é pago o Subsídio de Natal e de Férias) o valor que ultrapasse o equivalente ao SMN deve ser entregue à fidúcia.
Digamos que estaria este Tribunal a violar, ostensivamente, o caso julgado formado pelo despacho de 6.12.2019.
Mas, em segundo lugar, mesmo que assim não fosse, sempre, em nosso ver, seria de manter o despacho recorrido.
Com efeito, apesar de esta matéria não merecer, como é consabido, uma resposta uniforme da nossa jurisprudência, sustentando uma corrente que a remuneração mínima garantida corresponde ao salário mínimo nacional vezes 14 (incluindo os subsídios de Natal e de Férias) e que, por isso, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deve ser inferior à remuneração mínima anual dividida por 12.
Assim o defendem, além do mais, o AC RP de 22.05.2019 e o AC RL de 27.02.2018 [2]
Outra corrente, que cremos ser maioritária e que sempre perfilhámos, sustenta, em termos gerais, que os subsídios de férias e de natal, não sendo imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, têm que ser incluídos no rendimento disponível, ou seja, no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência, na parte que excedam o montante excluído da cessão e fixado na decisão. [3]
Com o devido respeito por opinião em contrário, é esta última a posição que subescrevemos, sendo que é a única que, em nosso ver, respeita o sentido que emerge do preceituado no artigo 239º, n.º 3, al. i), do CIRE, tal como o entendemos.
Vejamos.
Os subsídios consistem em prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta de outrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição, duas vezes ao ano – no período de férias e de natal – a fim de que os mesmos usufruam de forma plena esses dois períodos festivos.
No caso do subsídio de férias o mesmo constitui um aumento do rendimento que vai proporcionar a quem os usufrui o seu gozo efectivo, com um melhor aproveitamento do tempo livre sem trabalhar, proporcionando o descanso merecido no final de um ano de trabalho.
No caso específico do subsídio de natal, o mesmo visa proporcionar ao seu titular o usufruto pleno da época natalícia, no meio familiar, com os inerentes gastos da época.
Trata-se, em ambos os casos, de um valor «extra», de um acréscimo do rendimento que visa proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem-estar, com efectivo descanso e com a realização das despesas inerentes a esses períodos.
Sendo assim, sem pôr em causa a natureza retributiva de tais subsídios, não se pode olvidar que, por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que o mesmo tem direito, como já se referiu, é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores – e os subsídios em causa, enquanto acréscimos ao valor do seu salário mensal, não são imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, pelo que os mesmos têm que ser, na medida em que ultrapassem o valor do salário fixado a título de rendimento disponível, incluídos no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor, como também já o referimos, tem como contrapartida a sua libertação das suas dívidas, decorrido o período da cessão, permitindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.
Não está em causa, por outro lado, o direito do Recorrente, enquanto trabalhador, a gozar férias e a festejar o natal; a questão que se coloca é apenas a imposição de que adeqúe e controle os seus gastos, mesmo nessas épocas festivas, em função dos seus recursos económicos e em conformidade com a realidade falimentar em que se encontra, sem colocar, portanto, em causa aquele mínimo indispensável a uma vida condigna.
Na verdade, segundo julgamos, essa vivência minimamente digna obtém-se, no caso dos autos, com a disponibilidade de cessão ao fiduciário do rendimento do Recorrente que ultrapasse o valor equivalente a 1 salário mínimo nacional, como fixado na decisão de 6.12.2019 (e que transitou em julgado), não sendo necessário, para o efeito de assegurar a manutenção do aludido seu sustento minimamente condigno em cada mês, tornar indisponível também os subsídios de férias e de natal que aquele venha a auferir, desde que fique sempre salvaguardado aquele valor mínimo de 1 do salário mínimo nacional, sucessivamente aplicável.
Dir-se-á, pois, que se o Recorrente auferir, por exemplo, actualmente, um vencimento mensal de € 800,00, nos meses em que lhe for pago o subsídio de natal e de férias, estes subsídios terão que ser integralmente cedidos ao fiduciário (além, ainda, do valor que exceder o montante igual ao do SMN).
O que significa, pois, em conclusão final, que a decisão recorrida não nos merece qualquer censura, antes devendo ser confirmada na íntegra, pois que corresponde ao sentido decisório contido no despacho de 6.12.2019, transitado em julgado e, ademais, corresponde à correcta interpretação do quadro normativo aplicável.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso de apelação, confirmando-se o despacho recorrido.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que beneficie.
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Porto, 28.10.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade [Declaração de Voto:
Voto a decisão face ao analisado caso julgado do despacho de 6.12.2019 e às consequências ao mesmo inerentes, nos termos analisados.
No mais e por entender que são as 14 retribuições anuais no valor correspondente à RMMG que garantem o almejado mínimo indispensável ao sustento do trabalhador–devedor a que alude o artigo 239º nº 3 al. b) i) do CIRE, conforme posição já assumida no Acórdão proferido no processo nº. 1719/19.8T8AMT.P1 de 15/06/2020, não acompanho neste segmento a motivação da decisão.]

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, com maiores desenvolvimentos, AC STJ de 4.10.2018, relator ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA, disponível in www.dgsi.pt.
[2] AC RP de 22.05.2019, relatora CECÍLIA AGANTE e AC RL de 27.02.2018, relatora HIGINA CASTELO, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Vide, neste sentido, AC RP de 24.03.2020, relatora LINA BAPTISTA, AC RP de 18.11.2019, relator JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, AC RG de 17.12.2018, relator PEDRO DAMIÃO e CUNHA, AC RG de 17.05.2018, relator ANTÓNIO BARROCA PENHA, AC RG de 23.05.2019, relator ANTÓNIO SOBRINHO, todos disponíveis in www.dgsi.pt.