Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7010/11.0IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
RECEBIMENTO DO VALOR DO IMPOSTO
Nº do Documento: RP201411267010/11.0IDPRT.P1
Data do Acordão: 11/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No âmbito do I.V.A., o devedor tributário só comete do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º do R.G.I.T., se tiver recebido o montante em causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr7010/11.0IDPRT.P1

Acordam os juízes em conferência no Tribunal da Relação do Porto

I - O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença do 2º Juízo Criminal do Porto que absolveu B… e “C…, Ldª” da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6º, 7º e 105º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias.

Da motivação do recurso constam, em síntese, as seguintes conclusões:
- A sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto, em termos abstratos, pelo art. 410°, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.
- Com efeito, para além dos factos elencados na sentença, deveria o Tribunal ter dado como provada outra factualidade, relativa à faturas emitidas e ao IVA liquidado pelo arguido (agindo na qualidade de representante da sociedade arguida), no mês de junho de 2011, assim como ao pagamento dessas faturas.
-Analisando o texto da sentença, verifica-se que essa factualidade, omitida no elenco dos factos dados como provados, foi, na verdade, apreciada em audiência de julgamento e objeto de análise crítica do Tribunal, resultando a mesma dos elementos contabilísticos, sendo os mesmos mencionados pormenorizadamente no segmento relativo à motivação de facto.
- Subsidiariamente, impugna-se, por omissiva, a decisão proferida sobre a matéria de facto, por se entender que o Tribunal deveria ter considerado provada essa factualidade.
- Contrariamente ao decidido, a factualidade que resultou apurada em audiência de julgamento integra todos os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105º, n.º 1, do R.G.I.T., tendo sido errada a conclusão de Direito do Tribunal quando absolveu os arguidos de tal ilícito.
- Atendendo ao tipo de imposto em questão nos autos - Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), a interpretação do art. 105°, n.º 1, do R.G.I.T. terá de ser efetuada tendo presentes as normas que definem tal imposto e regulam a sua cobrança, afigurando-se essenciais em tal operação os artigos 8º, n.º 1; 27º, n.º 1; 29°, n.º 1, al. c); e 41°, n.º 1, do Código do I.V.A..
- Discorda-se do entendimento sufragado na sentença recorrida segundo o qual, apenas existirá crime de abuso de confiança fiscal se, até à data limite para o pagamento do I.V.A., o sujeito passivo tiver recebido dos seus clientes o montante da prestação tributária e, estando obrigado à sua entrega ao Estado, não o faça.
- Tal entendimento, pretendendo aproximar o tipo de ilícito fiscal em apreço do crime de abuso de confiança (comum) previsto no art. 2050 do Código Penal, pressupõe que o sujeito passivo não pode ser responsabilizado criminalmente quando, por incumprimento de terceiros, não recebe quantias que teria de entregar ao Estado.
- No entanto, esse entendimento não resolve as situações em que é o próprio sujeito passivo que estabelece uma relação de crédito com os clientes.
- Na situação em apreço, ficou demonstrado em audiência de julgamento que as faturas com os n.º 10/2011, 11/2011 e 12/2011 foram emitidas em 17 de junho de 2011 mas com data de vencimento para 16 de agosto de 2011, ou seja, a 60 dias, ultrapassando tal data aquela prevista na lei, no art. 410 do C.I.V.A. para o pagamento do IVA liquidado, ou seja, 10 de agosto de 2011.
- Em tal caso, sendo uma opção do próprio sujeito passivo a dilação no recebimento do valor da fatura, logo do I.V.A. liquidado, será mais consentâneo com os princípios legais e com as regras de cobrança do I.V.A. que o mesmo esteja obrigado a entregar o montante liquidado aquando da emissão da fatura, na data limite de entrega da declaração periódica de IVA.
- Uma vez que, em setembro de 2013, os arguidos regularizaram a situação, através do pagamento da quantia devida ao Estado a título de I.V.A., acrescida dos montantes legais devidos e dadas as circunstâncias que rodearam o cometimento do ilícito criminal, afigura-se possível e viável a aplicação do regime previsto no art. 22° do RGIT
- Tendo decidido no sentido da absolvição dos arguidos da prática do crime de abuso de confiança fiscal, o Tribunal violou o disposto nos arts. 6°, 7°, e 105°, n.º 1, conjugado com o disposto nos arts. 27°, 29° e 41 ° do C.I.V.A..

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, por um lado, a de saber se a sentença recorrida padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410º, nº 2, a), do Código de Processo Penal, quanto à factualidade referida pelo recorrente (ou se procede a impugnação dessa sentença por omissão da decisão quanto a tal factualidade); e, por outro lado, se a factualidade provada (incluindo aquela a que se refere o recorrente) integra, ou não, a prática do crime de abuso de confiança fiscal por que os arguidos vêm pronunciados.

III- O teor da fundamentação da douta sentença recorrida é o seguinte:
II-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1) Factos provados:
Discutida a causa e com interesse para a mesma provou-se que:
1) A arguida "C…, Ld.ª" é uma sociedade por quotas com sede na …, n.º …, .°, salas A-C-D, Porto, que se encontra coletada para o exercício da atividade de "atividades de engenharia e técnicas afins", CAE ….., sendo sujeito passivo de I.V.A. enquadrado no regime normal de periodicidade mensal.
2) No período compreendido entre Junho e Agosto de 2011, o arguido B… era gerente da sociedade arguida, sendo responsável pelos atos de gestão administrativa e financeira daquela.
3) A arguida "C…, Ld.ª" está obrigada a enviar ao Serviço de Administração do Imposto sobre o Valor Acrescentado (S.I.V.A.) a declaração periódica e o montante de imposto por si liquidado nos termos do disposto nos art.s 7°, n.º 1, al. a), 27° e 41º, al. a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.).
4) A sociedade arguida "C…, Ld.ª" fez transações comerciais no mês de Junho de 2011, tendo emitido aos seus clientes faturas e documentos equivalentes onde liquidou o respetivo I.V.A.;
5) Em relação ao aludido em 4), o arguido B…, na qualidade de representante legal da sociedade "C…, Ld.a", remeteu aos SIVA a declaração periódica de IVA na qual liquidou de IVA devido ao Estado o montante de €20.138, 99, porém não entregou até à data limite de pagamento desse imposto – 10 de Agosto de 2011 - nem nos 90 dias subsequentes, nem nos 30 dias após notificação nos termos do art. 105°, nº4 al.b) do RGIT tal montante, sendo que até à referida data limite de pagamento desse imposto - 10-08-2011- havia recebido dos seus clientes, a título de I.V.A., apenas a quantia de € 2.484,00 que integrou no património daquela.
6) Entretanto, os arguidos procederam à entrega nos cofres do Estado da totalidade da quantia em dívida e respetivos juros, pagamento finalizado em Setembro de 2013;
7) O arguido B… agiu na qualidade de representante legal da sociedade "C…, Ld.ª" e no interesse desta, fazendo desta a quantia acima identificada, liquidada e recebida a título de I.V.A., bem sabendo que esta não lhe pertencia, nem pertencia à sociedade arguida, e que havia sido retida com a incumbência da sua entrega nos cofres do Estado.
8) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
9) A falta de pagamento do IVA relativo ao período de Junho de 2011 nos termos expostos em 5) inseriu-se em contexto de atraso de pagamentos de clientes, quase todos organismos públicos e redução de serviços da sociedade arguida;
Quanto à sociedade arguida
10) Nas declarações de IRC apresentadas pela sociedade arguida relativas aos anos de 2011 e 2012 (sendo esta a última apresentada), apresentou esta um resultado líquido de exercício antes dos impostos respetivamente de € 8.354,97 (positivo); € 13.919,05 (positivo);
Quanto ao arguido B…:
11) O arguido nasceu em 27-02-1950 e é casado;
12) Mantém -se como gerente da sociedade arguida, retirando da sua atividade, mensalmente, cerca de €1500;
13) Vive com a sua mulher, a qual é professora, auferindo mensalmente cerca de € 1500 e dois filhos com idades compreendidos entre 25 e 30 anos, sendo um deles médico e outro arquiteto;
14) Possui como habilitações literárias a licenciatura em Engenharia Civil;
15) O arguido não tem antecedentes criminais.
2.2) Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos contrários ou para além dos supra dados como provados, não se provando os seguintes da acusação:
a) A quantia de IVA liquidado referente ao período de Junho de 2011 fosse de € 19.689,65 e que o arguido recebeu tal quantia (no sentido que tal ocorreu até à data limite de pagamento do imposto em causa, ou seja até 10-08-2011)
*
2.3) Motivação de facto:
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada em 2.1 e 2.2:
Na avaliação crítica do conjunto da prova produzida, avaliada à luz das regras da lógica e experiência comum.
Assim foram atendidas desde logo as declarações do arguido C… prestadas em audiência de julgamento, sendo que o mesmo confessou parcialmente descritos na acusação, admitindo assim que foi o único que exerceu a gerência no período em causa, que entregou a declaração de IVA referente a Junho de 2011 e não procedeu ao pagamento da quantia de IVA liquidada, nem na data limite para esse efeito (10-08-2011), nem nos 90 dias subsequentes, nem após os 30 dias subsequentes à notificação nos termos do art 105°, nº4 al.b) do RGIT, o que fez de forma deliberada sabendo dessa obrigatoriedade legal, mas que tal se deveu às razões apuradas, ou seja, porque por força dos atrasos de pagamento das faturas em causa (mês de junho de 2011), na data limite para fazer tal pagamento - 10-08-2011- ainda não havia recebido dos seus clientes a totalidade desse montante de IVA devido ou quase, o que, somado à diminuição de serviços e proveitos não lhe permitiu proceder a tal pagamento nos sobreditos termos, pagamento esse que acabou por ir fazendo em prestações, encontrando-se atualmente pago, bem como os respetivos juros.
Tais declarações do arguido vêm a ser corroboradas pela demais prova, designadamente:
- depoimento seguro e objetivo de D…, técnica da administração tributária, a qual fez o apuramento do IVA devido pela sociedade arguida relativo ao período em questão, o que fez pela recolha de elementos documentais , não só junto do TOC da sociedade arguida , como junto dos clientes da mesma (faturas, recibos, elementos contabilísticos - cf. a fls. 54 e segs., tendo sido a mesma que pela análise dos elementos recolhidos, prestou a informação de fls. 43 a 44, confirmando os valores constantes do quadro de fls. 44, dos quais resulta que o IVA apurado/liquidado referente a junho de 2011 é no montante de 20.138,99, coincidindo assim com o constante da declaração periódica enviada (cfr fls. 51)- conforme apurado em 5) de 2.1 . Note-se, porém, que a diferença desse valor para o constante da acusação e também do mesmo quadro de fIs. 44: €19.689,65, resulta do entendimento que lhe está subjacente, ou seja que o IVA devido relevante para efeitos criminais seria apenas o comprovadamente recebido até à data em que fez a inspeção, ou seja, atendendo-se a todos os recebimentos das faturas emitidas em junho de 2011 pela sociedade arguida, mesmo aqueles que ocorreram após a data limite do pagamento em causa (10-08-2008), e, nessa perspetiva, considerando que o valor da fatura 5 constante do referido quadro, apenas foi parcialmente recebida (cfr fIs. 75), apurar-se ia o referido valor de € 19.698,65. Explicou, ainda a correspondência do quadro de fIs. 43 verso, com a documentação anexa a tal informação (faturas 5/2011, 6/2011, 7/2011, 8/2011, 9/2011, 10/2011, 11/2011/ e 12/2011 juntas respetivamente a fls. 61 e 68 e respetivos recebimentos comprovados as seguinte forma:
- fatura 5- nota de crédito de fls. 75- extrato de cliente- com recebimento
parcial a 30-09-2011;
- fatura 6- recebimento 10/2011 a fls. 78, em 30-09-2011- (cfr fls 77);
- faturas nº7 e 8: cheque (dos 2) a fls. 96, emitido em 16-08-2011;
- fatura nº9: : recebimento 8/2011 a fls. 80, em 30-06-2011 ( IVA no montante de €2.484,00)- conforme fls. 79;
- fatura nº10) e 12) - cheque de fls. 90/91 emitido em 29.11.2011 (pago em 02-12, cfr, fls. 91)
-fatura nº 11): recebimento nº 14/2011, de 13-10-2011
A testemunha confirmou assim, em confronto com os documentos juntos ao processo e 2 supra2 referidos que, até à data limite do pagamento do IVA em causa nos autos - 10-08-2011- apenas havia sido recebida dos clientes a factura nº9, sendo o IVA referente à mesma no valor de 2.484,00, o que foi levado aos factos provados sob o nº5).
Confirmou que IVA em causa nestes autos se mostra integralmente pago, bem com os respetivos juros (cfr., fls. 201 a 203), pagamento que foi feito no processo executivo respetivo, que se mostra extinto pelo pagamento voluntário.
Documental:
- 1- certidão Permanente da Conservatória do Registo Comercial de fls. 13 a 16, relevante para o apuramento da matéria descrita em 2.1 sob os nº 1, e 3° ;
- auto de notícia de fls. 23;
- prints de fls. 28 a 37, incluindo elementos da sociedade arguida a fls. 28 (relevante para o apurado em 1) e declaração de IVA de fls. 34 e 35;
II - informação de fls. 43 e 44 acompanhada de quadro de faturação e recebimentos (com respetivas datas e n° de documentos comprovativos) de fls. 43 vº, e 44 e respetivos anexos (relevante para o apurado em 5) de 2.1), designadamente:
a) –Elementos - print' s - retirados do sistema informático da DOCI a fls. 46 a 50, (anexo I da informação de fls., 43 e 44) entre eles:
- declaração periódica de IVA referente ao período de 6/2011 junta a fls. 51 (e 34 e 35) No montante de IVA liquidado referido em 5) de 2.1)
- Print referente à sociedade arguida (relevante para o apurado em 1) de 2.1;
b) Extratos de conta de conferência, faturas, notas de crédito e de recebimento a fls. 54 a 81 (anexo II à informação de fls. 43 e 44, correspondendo aos elementos juntos pelo TOC)
c) extratos de conta corrente recibos e documentos de pagamento, juntos pelos clientes da sociedade arguida a fls. 84 a 99;
III- Print de fls. 116 relativos aos montantes pagos (à data da acusação) e fls. 201 a 203, resultando deste último ter sido entretanto paga toda a quantia devida de IV A referente a junho de 2011 e respetivos juros, em sede de processo executivo que teve por base o IVA de junho de 2011 (cfr. fls. 49/ 201 a 203).
- notificação de fls. 108 nos termos do art 105°, nº4 al b) do RGIT , relevante para o apurado em 5) de 2.1);.
- Declarações de IRC da sociedade arguida de fls. 242 a 251, relevantes para o apurado em 10) de 2.1
- Certificado de registo criminal do arguido a fls. 194, relevante para o apurado em 15) de 2.1

Relativamente às condições económicas do arguido B…, atendeu-se às declarações prestadas pelo arguido nessa matéria, não sendo contrariadas por qualquer outra prova.

Relativamente aos factos não provados em 2.2:
Na ausência de prova segura e concreta quanto aos mesmos, sendo que a prova produzida a contraria, sendo no sentido do apurado em 5) de 2.1, conforme motivação dos factos "supra" aqui dada por reproduzida, sempre interpretando tal valor recebido como referente à data limite para pagamento do IVA de Junho de 2011.
*
III-_ Apreciação de direito:
Apurados os factos importa enquadrá-los juridicamente:
3.1 Do enquadramento jurídico-penal:
Encontram-se os arguidos acusados da prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.° 105°, nº1 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 15-06, com referência aos arts 19° a 27° e 41 ° do CIVA
A Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho - que entrou em vigor, de acordo com o seu art.º 14.°, no dia 5 de Julho de 2001 - aprovou o RGIT, e, entre outros, revogou o RJIFNA.
Na nova lei, o tipo anteriormente previsto no citado art.º 24.º passou a integrar o art.º 105.°, que dispõe:
"1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2- Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja a obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3- É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha a natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
5- Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efetuada for superior a €50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
6- Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder €1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respetivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. "
Por força da alteração introduzida pelo art.º 95.° da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro - Lei do Orçamento - em vigor a partir do dia 1 de Janeiro de 2007, ao n.º4, do artº 105.° do RGIT, o referido art.° 105.° (consagrador dos elementos típicos e condições objetivas de punibilidade e de exclusão da responsabilidade criminal do Abuso de Confiança Fiscal), passou a ter a seguinte redação:
"1-(…).
2 -(…).
3 - (…).
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5-(…).
6 - (…).
7-(…)."

Em relação a tal alteração, veio o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de 09/04/08, fixar Jurisprudência no sentido de que "a exigência prevista na alínea b) do n.º4 do artigo 105.° do RGIT, na redação introduzida pela Lei n.053­A/06, configura uma nova condição objetiva de punibilidade que, nos termos do art.? 2.°, n.º4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º4 do art.º 105.° do RGIT)."
Uma vez que a referida disposição consiste numa outra condição objetiva de punibilidade, não ocorreu qualquer modificação ao nível da tipicidade do ilícito.
Como explica o Professor Cavaleiro Ferreira, in Lições de Direito Penal, 2ª Edição, Lisboa, 1945, pg. 442, "as condições de punibilidade, no sentido de que a expressão é tomada em direito penal, são estranhas ao crime, representam algo que, para além do crime, pode ser indispensável para que tenha lugar a punição, para que seja aplicável, o preceito penal secundário."

Com a entrada em vigor da Lei n.064-A/OS, de 31 de Dezembro - Lei do Orçamento de Estado para 2009 - a redação do art.º105º foi alterada. Eliminou-se o disposto no n.º6, passando a constar do n.º 1 seguinte:
"Quem não entregar à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500, deduzida nos termos da lei e que esteja legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias"
Com esta alteração mantendo-se tipificadora, veio quantificar, especificar, diremos - um elemento qualitativo (a prestação tributária) configurando-se como redutora do âmbito do o facto punível sem, porém, eliminar o mesmo do ilícito criminal.
No que concerne ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a proteção do património do Estado, mediante a tutela e proteção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado
No crime de abuso de confiança fiscal o que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que perante a Administração Fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado.
Do art.º 6°, nºl do RGIT resulta que é punido quem agir voluntariamente, como orgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrém;
O crime de abuso de confiança fiscal é um crime específico próprio, restringido a autoria dos mesmos não ao contribuinte originário, mas a um substituto legal.
Os devedores de rendimentos, no caso dependentes, que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada estão obrigados a "deduzir ou reter o imposto mediante a aplicação aos rendimentos de taxas legalmente indicadas, sendo investidos numa espécie de depositários da prestação tributária e colocados temporariamente na detenção desta com vista à sua entrega ao fisco. (...)
O dever de retenção que sobre o substituto recai integra a obrigação tributária principal" -vide "Os Crimes de Fraude Fiscal e de Abuso de Confiança Fiscal:
Alguns Aspectos Dogmáticos e Político-Criminais', Augusto Silva Dias.
Como se escreveu no Ac do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-12-2010, Rel. Paulo Guerra, disponível in www.dgsi.pt:
"Mas se não é exígivel uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2(1 edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13).
Sublinhe-se que a intenção de apropriação, atualmente não exigida, não é sobreponível ao recebimento das quantias.
(...)
Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105° do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efetivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal. ".
No mesmo sentido, Ac do TRGuimarães de 18-03-2013, Rei. João Lee Ferreira, acessível no mesmo site, cuja sumário se passa a transcrever: "I - O dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de proteção penal, pois o efetivo recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial do crime de abuso de confiança fiscal.
II - Só comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não proceder à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de imposto que efetivamente recebeu no concreto período em causa. "
Ainda, incontornável o recente Ac. do TRGuimarães de 22-04-2013, Rel.
Cruz Bucho, acessível no mesmo site, o qual faz análise aprofundada da questão, com abundante citação doutrinal e jurisprudencial, concluindo no mesmo sentido, cujo sumário se transcreve" I - O dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de proteção penal, por atipicidade do facto.
II - O efetivo recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial do crime de abuso de confiança fiscal. "

Assim, a conduta incriminada consiste na mera não entrega, considerando-se este como sendo um crime omissivo puro. Atente-se ainda no disposto no art.º 5.°, n.º 2 do RGIT que esclarece que as infrações tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários, ou seja, nos prazos previstos nos art.º 40º e 41º do IVA (até ao 10° dia do 2° mês subsequente ao período de imposto) , enquadrando-se a situação da sociedade arguida no âmbito deste último preceito, pelo que a data em que terminaria o prazo para pagamento do IVA devido referente a Junho de 2011 seria 10-08-2011, data em que não ocorrendo o pagamento total ou parcial da prestação tributária, se consumou o crime, funcionando o decurso do prazo de 90 dias sobre o termo legal do prazo de entrega da prestação do n04, como condição de punibilidade (bem como o não pagamento no prazo de 30 dias após notificação para esse efeito- cf. al b) do art.º 104°, nº4).

Assim sendo o recebimento (não pagamento) de IVA relevante - para efeitos de aferição do excesso sobre os 7500 euros - a será sempre aquele que ocorre até à consumação do crime, ou seja, no caso, até 10-08-2011.
Poderia ainda argumentar-se, no sentido de que continua presente a ideia de apropriação pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal (vide neste sentido ac. do STJ de 31-05-2006, in www.dgsi.pt).
Todavia, considera-se que a apropriação não constitui hoje um elemento típico do crime de abuso de confiança à Segurança Social. O legislador parece ter presumido que a não entrega daquilo que se deduziu no tempo legalmente devido tem por reverso necessário a apropriação dessas quantias (vide, no sentido supra exposto Susana Aires de Sousa, in Os crimes fiscais, pág. 132).
Face ao teor dos mencionados preceitos legais e análise jurídica dos mesmos, resulta ter este crime como elementos objetivos:
- a não entrega total ou parcial de prestação tributária superior a 7.500 euros
- prestação tributária que deva constar declaração individualizada, assente que o
delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período - cf. nº7 do art.º 105° do RGIT-
- que essa prestação tenha sido deduzida/recebida pelo agente, nos termos da lei e que o agente esteja obrigado a entregá-la ao credor tributário.
Como elemento subjetivo exige-se o dolo.
Como condições objetivas da punibilidade, exige-se o decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e ainda o não pagamento da quantia, em dívida juros e coima aplicável decorridos 30 dias da notificação para esse efeito.
Conclui-se, então, que o crime se consuma com a não entrega da prestação no prazo legal. Todavia, se vier a ser pago totalmente nos 90 dias subsequentes será considerado somente como contraordenação (e punido com coima - cf. art.° 114° do RGIT), se não for pago nesse prazo, nem depois de notificado pela Administração tributária num prazo de 30 dias, então, estão verificadas todas as condições para que seja punido como crime.

No presente caso, resultou apurado que o arguido B…, agindo na qualidade de representante da sociedade arguida e no interesse desta agindo não entregou até dia 10-08-2011, (prazo limite para esse efeito) aos Serviços de Administração Fiscal a quantias apurada de IVA devido relativas a Junho de 2011 - cf. apurado em 5) de 2.1, tal como lhe competia.
Contudo, resultou também apurado que desse IVA liquidado referente a Junho de 2011, no montante de € 20.138,99, apenas foi recebido dos clientes a quantia € 2.484, 00 (dois mil quatrocentos e oitenta e quatro) que não entregou n os cofres do Estado.
Contudo, por força da atual redação do art 105°, nº 1 do RGIT, os valores relevantes de IVA não entregue são apenas os efetivamente recebidos que sejam superiores a 7500 euros, referentes àqueles que deviam constar da respetiva declaração - cfr nº7 do art.105° do RGIT.
Daqui resulta que o valor de IVA em causa recebido e não entregue (€2.424,00), porquanto inferior a 7.500 euros, não preenche o elemento objetivo do crime em causa nos autos, pelo que fica afastada a sua prática pelos arguidos.
Note-se que as antecedentes considerações não significam que não seja efetivamente devido o IVA apurado nos termos constantes da declaração periódica enviada (no caso dos autos, € 20.138, 99). Esse IVA é devido na sua globalidade (independentemente do seu recebimento ou não) e o seu não pagamento voluntário é fundamento para a execução fiscal para ser obtido o pagamento coercivo. Contudo, para efeitos criminais, apenas é considerado o IVA efetivamente recebido, logicamente, antes da consumação do crime, a qual ocorre com o termo do prazo para pagamento desse mesmo Iva (crime omissivo) , ou seja, no caso, 10-08-2011 (cfr art 40°, n01 al. a) do CIVA, vigente à data dos factos).
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o recorrente alegar que a sentença recorrida padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410°, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal. Para além dos factos constantes do elenco dos factos provados, deveria constar deste elenco também a factualidade, relativa às faturas emitidas e ao I.V.A. liquidado pelo arguido (agindo na qualidade de representante da sociedade arguida), no mês de junho de 2011, assim como ao pagamento dessas faturas. Analisando o texto da sentença, verifica-se que essa factualidade foi, na verdade, apreciada em audiência de julgamento e objeto de análise crítica do Tribunal, resultando a mesma dos elementos contabilísticos, sendo os mesmos mencionados pormenorizadamente no segmento relativo à motivação de facto. Subsidiariamente, impugna o recorrente a decisão proferida sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal deveria ter considerado provada essa factualidade.
Vejamos.
Embora a factualidade em causa devesse, em bom rigor, constar do elenco doa factos provados, não nos parece que ela seja omitida na sentença recorrida. Como também refere o recorrente, essa factualidade é mencionada, de forma completa, na motivação da decisão sobre a matéria de facto. Esta menção bastará para que não possa afirmar-se que se verifica a invocada omissão. Estamos perante uma simples deficiência de arrumação.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. –
Vem o recorrente alegar, por outro lado, que a factualidade provada integra a prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nºs 1 e 2, do Regime Geral da Infrações Tributárias (aprovado pelo Lei nº 15/2001, de 5 de junho), por que os arguidos vêm pronunciados, não devendo, por isso, ser estes absolvidos da prática desses crimes.
Discorda o recorrente da tese seguida na douta sentença recorrida segundo a qual é pressuposto da prática desse crime que o agente tenha recebido a prestação a que é relativo o I.V.A. em causa. Este entendimento não resolveria as situações em que é o próprio sujeito passivo que estabelece uma relação de crédito com os clientes, como se verifica na situação em apreço, em que o arguido emitiu faturas com data de vencimento que ultrapassava a data prevista na lei para o pagamento do I.V.A. liquidado. Sendo uma opção do próprio sujeito passivo a dilação no recebimento do valor da fatura, será mais consentâneo com os princípios legais e com as regras de cobrança do I.V.A. que o mesmo esteja obrigado a entregar o montante liquidado aquando da emissão da fatura, na data limite de entrega da declaração periódica de IVA. E, se não fizer essa entrega, incorrerá no crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Vejamos.
Estatui este artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. (na versão atualmente vigente), sob a epígrafe “abuso de confiança fiscal”, que «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias». E estatui o nº 2 do mesmo artigo que «para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja».
Na sua configuração atual, deixou de ser elemento típico do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação; estamos perante um crime de omissão pura para cuja verificação basta a não entrega da prestação tributária devida (assim, na doutrina, entre outros, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2006, pg, 123, e Isabel Marques da Silva, Infrações Tributárias, 2ª ed. Almedina, IDEF, Coimbra, 2007, pg. 179).
De acordo com o Código do I.V.A., este imposto é devido logo que liquidado, logo que a transação a ele sujeita se efetiva e se realiza (artigos 16º a 40º desse Código), independentemente de a quantia em questão ser recebida pelo devedor.
Mas há que distinguir a responsabilidade tributária da responsabilidade criminal.
Uma orientação da doutrina (ver, entre outros Susana Aires de Sousa, op. cit., pg. 126; e Isabel Marques da Silva, op. cit., pg. 168, e «Nullum Crime, Nulla Poena, sine Lege Praevia: a Inexistência de Infração Tributária nos Casos de IVA não Recebido», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2009, pg. 260) e da jurisprudência (ver, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de dezembro de 2011, proc. nº 01P3749, relatado por Hugo Lopes; da Relação de Coimbra de 27 de junho de 2001, proc. nº 127/2001, relatado por Ferreira Diniz; de 15 de dezembro de 2010, proc. nº 24/06.6IDGRD, relatado por Mouraz Lopes; de 29 de Fevereiro de 2012, proc. nº 1638/09.6IDLRA, relatado por Paulo Guerra; de 22 de Janeiro de 2014, proc. nº 4908.5IDAVR.C2, relatado por Jorge Dias; da Relação de Évora de 3 de dezembro de 2009, proc. nº 1358/06.3RDLSB.E1, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso; e da Relação de Guimarães de 9 de junho de 2005, proc. nº 203/04.1, relatado por Ricardo Silva; de 13 de junho de 2011, proc. nº 137/09.0IDBRG, relatado por Fernando Ventura; de 3 de dezembro de 2012, proc. nº 113/11.6IDGRG.G1, relatado por Fernando Monterrosso; de 18 de março de 2013, proc. nº 412/11.4DGRG.G1, relatado por João Lee Ferreira; e de 22 de abril de 2013, proc. nº 520/11.1IDBRG.G1, relatado por Cruz Bucho; todos in www.dgsi.pt) vem considerando, precisamente porque são distintas e autónomas a responsabilidade tributária e a responsabilidade criminal, que só incorre no crime de abuso de confiança fiscal o agente que, estando obrigado a entregar à Administração Fiscal a quantia correspondente ao I.V.A. liquidado, já recebeu essa quantia. Esta tese foi seguida na douta sentença recorrida.
E é assim porque, se é certo que no âmbito do direito civil e tributário se admite uma obrigação de pagamento antecipado (no caso, a obrigação de entrega do I.V.A. antes de ele ser recebido de terceiros), já no âmbito do direito penal a punição do incumprimento dessa obrigação (que se reveste de muito maior gravidade e até pode dar origem a prisão), que está dependente de uma conduta de terceiro, contrariaria o estruturante princípio da culpa. Não pode ser penalmente sancionado quem não cumpre uma obrigação fiscal por causa de uma conduta de terceiros que não controla.
Alega o recorrente que em situações como a presente, em que o agente concede crédito e emite faturas com um prazo de pagamento que supera a data de pagamento do I.V.A., ele próprio será responsável pelo facto de não o ter recebido nesta data de pagamento.
Mas há outro razão invocada em apoio da tese seguida na douta sentença recorrida.
Se é certo que a apropriação deixou de ser, como vimos, elemento típico do crime de abuso de confiança fiscal, este continua a manter alguma similitude com o crime de abuso de confiança (de outro modo, a sua própria designação deixaria de ter sentido). É algo mais do que o simples incumprimento de uma obrigação fiscal que origina a responsabilidade criminal[1]. O abuso de confiança supõe uma quebra de confiança. E só pode falar-se em quebra de confiança quando alguém recebe valores e lhes dá um destino diferente daquele a que estava obrigado.
Ora, esta razão também vale para a situação em apreço, de faturas com um prazo de pagamento que supera a data de pagamento do I.V.A.. (o que, de qualquer modo, não se verifica em relação a todas as faturas em causa no caso em apreço).
Em favor da tese seguida na douta sentença recorrida, também se tem invocado a jurisprudência dos tribunais tributários relativa à contra-ordenação a que se reporta o artigo 114º do R.G.I.T.. Para este efeito, essa jurisprudência (na esteira do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de maio de 2008, proc. nº 0279/08, relatado por Jorge de Sousa) considera que a contra-ordenação em causa (falta de entrega de prestação tributária que não constitua crime) não se verifica quando o I.V.A. não tenha sido recebido. Ora, assim deverá ser, por maioria de razão, quando está em causa um crime.
Impõe-se, assim, negar provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 522º do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Notifique

(processado em computador e revisto pelo signatário)

Porto, 26/11/2014
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
__________
[1] O Tribunal Constitucional invocou este facto para afastar a associação entre a punição do abuso de confiança fiscal e a “prisão por dívidas” nos seus acórdão nº 312/2000 e 54/2004 (ver www.tribunalconstitucional.pt)