Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
910/16.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
BEM PRÓPRIO DE UM DOS CÔNJUGES
BENFEITORIAS ÚTIL
Nº do Documento: RP20200511910/16.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
II - A omissão na decisão de facto de factos essenciais à apreciação do pedido reconvencional subsidiário nos autos formulado, implica a anulação parcial da decisão proferida pelo tribunal a quo, para que seja suprida tal omissão pela 1ª instância.
III - A edificação executada sobre prédio urbano que é bem próprio da A., deve ser classificada como uma benfeitoria útil.
IV - Enquanto despesa deverá, se não afastada a presunção de bem comum estabelecida pelo artigo 1723º al. c), ser considerada como um crédito sobre o património comum do casal.
V - Ainda e não podendo ser levantada, o titular da coisa beneficiada – a aqui A. – adquirirá então a benfeitoria, satisfazendo a contraparte segundo as regras do enriquecimento sem causa (vide o disposto nos artigos 1273º e 1728º).
VI - A benfeitoria útil, in casu a construção de uma casa, executada sobre bem próprio de um dos cônjuges na pendência do casamento celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos, não altera a qualidade de bem próprio deste.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 910/16.3T8PVZ.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta – Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. Central Cível da Póvoa de Varzim
Apelante B…
Apelada/ C…

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
C… instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra C…, peticionando que seja julgada procedente a ação e por via disso:
“a) Ser a Autora mantida na posse do seu prédio urbano sito na Rua …, …, ….-… …, com o registo matricial provisório n.º 8625, omisso à matriz, de tipologia T3, composto por 2 pisos, o qual resulta do destaque do prédio com o registo matricial n.º 1242, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º 6296/20081112;
b) Ser o Réu condenado a reconhecer o invocado direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano identificado na alínea anterior,”.
Para tanto e em suma alegou:
- Ser dona do prédio urbano identificado em 4º da p.i. cuja aquisição invocou quer por via derivada - por herança de seu pai, conforme registo de 1980 – quer por via originária – usucapião;
- Ter autorizado o R. e sua avó materna, bem como uma sobrinha e sua filha a habitar tal casa em 1993.
O que ocorreu até 1998.
- Tendo posteriormente autorizado também a sua filha e irmã do R. a habitar tal casa, até concluir os estudos.
- Tal autorização era meramente temporária, até que os mencionados filhos e sobrinha ganhassem autonomia.
- No ano de 2002 todos deixaram de habitar a casa, exceto o R. que ali permaneceu a título gratuito até que melhorasse a sua situação económica.
- Em novembro de 2015 a A. constatou que todas as fechaduras da casa haviam sido trocadas e foi impedida de aceder à mesma.
Tendo o R. recusado a entrada de sua mãe na casa.
- Interpelado o R. a sair da casa, recusou o mesmo tal pretensão.
- Motivo por que intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse, a qual lhe foi deferida em 02/02/2016.
Pretendendo a A. ser mantida em tal posse e ver o R. condenado a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o imóvel em questão.
Regularmente citado o R., deduziu contestação, na qual e em suma alegou:
- o prédio urbano em questão nos autos é uma habitação construída em parte do terreno herdado pela A., mas cuja construção se iniciou e concluiu durante o casamento da requerente, pelo que era um bem comum do casal constituído pela A. e seu falecido marido. E como tal terá de ser sujeito a partilha entre os herdeiros legais, incluindo o aqui R..
- Até tal partilha tendo o R. direito a permanecer em tal casa, como sempre fez nos últimos 25 anos de vida.
- Tendo entretanto a A. procedido à partilha dos bens que faziam parte da herança de seu marido e pai do R., adjudicou todos os bens a si mesma, sem que tenha pago tornas ao aqui R.
Sendo desta forma ilegítima a conduta da A..
Deduziu ainda o R. pedido reconvencional.
Tendo a final concluído nos seguintes termos:
“Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve a presente ação ser considera improcedente por não provada e a reconvenção ser julgada procedente por provada, e por via delas ser o Réu absolvido totalmente do pedido e a Reconvinda ser condenada a reconhecer que o prédio urbano sito na Rua …, nº …, na freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz predial sob o artigo nº 8625, constitui um bem comum do casal formado pela Autora C… e seu falecido marido, D… e em consequência disso, sujeito a partilha por óbito do supra mencionado D….
Caso assim, não se entenda, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, deverá a Reconvinda ser condenada a reconhecer que a construção efetuada na pendência do casamento, em parte de prédio urbano que constitui bem próprio desta, é uma benfeitoria útil, a qual depois de apurado o seu valor, constitui um crédito da herança de D… que deverá ser partilhado pelos seus herdeiros legais.”
Replicou a A. impugnando o alegado pelo R. e assim concluindo pela improcedência da reconvenção e no mais, como na p.i..
Requereu ainda a condenação do R. como litigante de má-fé, em multa e indemnização à autora.
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Entendido pelo tribunal a quo que o pedido reconvencional “se traduz também ele, a título principal, numa ação de reivindicação do mesmo prédio desta feita da herança aberta por óbito do marido da primeira, pai do segundo, e a título subsidiário numa ação de reconhecimento de um crédito desta herança a partilhar pelos respetivos herdeiros (…) tendo por isso de ser intentada por todos, ou contra todos os herdeiros, o que não sucede in casu”, foram as partes notificadas para perante este entendimento se pronunciarem sobre a admissibilidade da reconvenção.
A A. manifestou-se no sentido de carecer o R. de legitimidade para deduzir tal pedido.
Convidou o tribunal a quo o R./reconvinte a “deduzir o incidente da intervenção principal dos demais herdeiros do seu falecido pai, no caso E… (cfr. fls. 40), como sua associada, por forma a assegurar a legitimidade relativamente ao pedido reconvencional.”
Correspondendo ao convite, deduziu o R. o incidente de intervenção provocada de E… sua irmã, declarando ser esta, juntamente com o R. e a A. os únicos herdeiros de seu falecido pai.
O incidente foi admitido e citada a chamada.
Foi realizada audiência prévia.
Posteriormente foi proferido despacho saneador no qual a reconvenção deduzida foi admitida. Foi identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
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Realizada audiência final, foi proferida sentença, julgando:
“(…) totalmente procedente a ação e improcedente a reconvenção, condeno o R. e absolvo a A. dos recíprocos pedidos formulados por cada um deles.”.
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Do assim decidido apelou o R. oferecendo alegações e formulando as seguintes
Conclusões:
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Apresentou a A. contra-alegações, em suma tendo:
- pugnado pela rejeição da reapreciação da decisão de facto, porquanto o R. não indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão contrária à proferida na decisão recorrida;
- e, no mais, concluído pela total improcedência do recurso, tanto no que respeita à decisão de facto como de direito, face ao bem decidido pelo tribunal a quo, cuja manutenção pugnou.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem questões a apreciar:
1) erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como prévio pressuposto:
i- observância dos ónus de impugnação e especificação do recorrente (questão suscitada pela recorrida);
ii- deficiência da decisão de facto por omissa quanto a factos essenciais alegados mas sobre os quais o tribunal a quo se não pronunciou (de conhecimento oficioso).
2) erro na aplicação do direito.
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III- Fundamentação
Foram dados como provados os seguintes factos:
“1. A A. adquiriu o prédio urbano com registo matricial 1242 da freguesia …, Maia, por herança de seu pai, F….
2. No prédio supra referido existe uma edificação, construída há cerca de 77 anos, atualmente sem quaisquer condições de habitabilidade, que não é habitada há cerca de 20 anos e que, desde essa altura, está separada por um muro da edificação com o registo matricial provisório 8625.
3. A edificação com o registo matricial provisório 8625 supra referido em 2) corresponde a uma casa/habitação de tipologia 3, composta por 2 pisos, mandada construir pela A. no prédio urbano com o registo matricial 1242 e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º 6296/20081112.
4. A construção da edificação supra referida em 3) foi iniciada pela A. em 1992 e concluída em 1995, em vida da sua mãe, com dinheiros pertencentes à sua mãe.
5. A A. em 18/10/1973 casou, sem convenção antenupcial, com D… que faleceu a 13/04/2012 no estado de casado com aquela.
6. O R. é filho da A. e de D….
7. Até à presente data, tal casa não foi autonomamente registada na Conservatória do Registo Predial, não possui licença de habitabilidade, sendo o registo provisório desse imóvel (n.º 8625) resultante da separação do respetivo terreno (de implantação), relativamente ao prédio original – matriz predial n.º 1242.
8. Há mais de vinte, trinta, quarenta e cinquenta anos, a A., por si e por seus antepossuidores, tem vindo a utilizar o imóvel com o registo matricial provisório 8625, quer a edificação quer o terreno envolvente, como coisa sua, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, no momento da aquisição, ignorando o prejuízo de outrem e sem violência.
9. Ainda a construção não estava finalizada quando a Autora (em 1993) permitiu que o Réu (que então veio estudar na Cidade do Porto) ficasse a habitar nessa casa, juntamente com a sua avó materna, G….
10. Na mesma altura, a Autora permitiu que também a sua sobrinha H… e o filho desta, I…, passassem a habitar tal casa, facto que ocorreu até ao ano de 1998.
11. Posteriormente, permitiu que também a sua filha e irmã do Réu, E…, passasse a habitar na casa, até concluir os estudos, na cidade do Porto.
12. A autorização concedida pela Autora aos mencionados filhos e sobrinha para habitarem a casa era meramente temporária, até que ganhassem autonomia e encontrassem rumo para as suas vidas, situação da qual os próprios tinham consciência.
13. No ano de 2002, todos deixaram de habitar a casa, exceto o aqui Réu.
14. A Autora permitiu que o Réu continuasse a habitar a casa, a título gratuito, até que melhorasse a sua situação económica.
15. Sucede que, a Autora, numa das suas deslocações quinzenais à casa, concretamente no passado dia 3 de Novembro de 2015, deparou-se com todas as fechaduras trocadas, vendo-se deste modo impedida de aceder à mesma.
16. Nesse mesmo dia, 3 de Novembro de 2015, chamou ao local a Polícia de Segurança Pública, da esquadra de …, para que tomasse conta da ocorrência.
17. Nos dias 4 e 5 de Novembro de 2015, a Autora, via e-mail, mandou cancelar os serviços de fornecimento de luz e água na casa, respetivamente, tendo os cortes ocorrido nesse mesmo mês.
18. Pelo que, em 20 de Dezembro de 2015, a Autora interpôs Providência Cautelar de Restituição Provisória da Posse.
19. A restituição da posse à aqui Autora e a desocupação efetiva da casa pelo Réu deu-se em 2 de Fevereiro de 2016.
20. O terreno onde a dita edificação foi construída em 1995 tinha o valor de 42.206,00 €, e atualmente tem o valor de 65.420,00 €.
21. A edificação em 1995 tinha o valor de 85.613,00 € e atualmente tem o valor de 92.890,00 €.”
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O tribunal a quo declarou ainda como não provada a seguinte factualidade:
“IV - Factos não provados
Todos os que se mostram em contradição com os que acima se deram como provados, designadamente e ainda que:
. A edificação supra referida em 3) tenha sido construído com dinheiros provenientes do trabalho da A. e do marido.”
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1) Cumpre em primeiro lugar apreciar o invocado erro na decisão de facto.
i- E como prévio pressuposto: observância dos ónus de impugnação e especificação do recorrente.
Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC): “a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Importa ainda ter presente que é ónus do recorrente apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Pelo que das conclusões é exigível que no mínimo das mesmas conste de forma clara quais os pontos de facto que o(s) recorrente(s) considera(m) incorretamente julgados, sob pena de rejeição do mesmo.
Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.
Embora na jurisprudência se encontrem posições mais ou menos exigentes quanto aos elementos que das conclusões devem constar, este é um denominador mínimo comum a todas elas.
Fazendo uma resenha alargada desta temática vide:
- Ac. TRG de 07/04/2016, nº de processo 4247/10.3TJVNF.G1 in www.dgsi.pt/jtrg;
- Acs. STJ de 01/10/2015, nº de processo 824/11.3TTLRS.L1.S1; de 29/10/2015, nº de processo 233/09.4TBVNC.G1.S1; de 06/12/2016, nº de processo 437/11.0TBBGC.G1.S1 (todos in www.dgsi.pt/jstj);
- Ac. STJ de 27/09/2018, nº de processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, onde se afirma “Como decorre do artigo 640 supra citado o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso”;
- e mais recentemente, Ac. STJ de 21/03/2019, nº de processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, no qual e após se ter feito uma distinção entre ónus primários e secundários de alegação e concretização para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º do CPC (nos seguintes termos e tal como ali sumariado)
“I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.”, se concluiu, para o efeito convocando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na aferição do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no artigo 640º no que concerne aos aspetos de ordem formal “III. (…) enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”
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Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso concreto, analisadas as conclusões de recurso bem como o corpo alegatório constata-se que o recorrente não cumpriu minimamente com os ónus de impugnação e especificação que sobre o mesmo recaem.
Desde logo é de referir que das suas conclusões não resulta a indicação expressa de quais os pontos da decisão de facto que são pelo recorrente impugnados, como se lhe impunha como requisito mínimo.
É certo que o recorrente indica em III das conclusões que o objeto do recurso “(…) consiste essencialmente em saber da proveniência dos dinheiros com que foi construído o prédio em causa, bem como saber do valor do prédio construído” E em IV afirma não poder concordar que “(…) a Meritíssima Juiz a quo, com manifesto esforço interpretativo da prova produzida, tenha considerado que os dinheiros empregues naquela construção não eram comuns do casal, não existindo assim qualquer crédito do património comum sobre a Autora. Daí a razão do presente recurso.”
Prosseguindo na conclusão XII “(…) como pode a Meritíssima Juiz a quo e sem mais, considerar que os dinheiros utilizados na construção em apreço, não são bens comuns do casal, posto que, ou são da mãe da Recorrida ou são próprios desta.”
e na conclusão XIII “Considerando ainda que, a Autora / Recorrida casou em 18/10/1973, sem convenção antenupcial, portanto no regime de comunhão de adquiridos, que a construção da casa aqui em causa, se iniciou em 1992, portanto 19 anos após o casamento, já após Autora e falecido marido estarem emigrados em França há largos anos.”
Após o que concluiu em XV a sua pretensão nos seguintes termos “Posto isto e considerando de facto, que face à prova produzida nos autos, conforme supra se menciona, outra decisão não poderia ter tomada que não fosse considerar, como pretende o Recorrente, que, pelo menos, seja a Recorrida condenada a reconhecer que a construção da casa aqui em causa, efetuada na pendência do casamento desta com o seu falecido marido, em parte de um prédio urbano que constitui um bem próprio seu, é uma benfeitoria útil, a qual deverá ser avaliada pelo menos pelo valor apurado em sede de peritagem, na presente data, em 92.890,00 (Noventa e dois mil, oitocentos e noventa euros).”
Finalizando (conclusão XVII) “Face a tudo quanto acima se expôs, não poderá deixar de se considerar que a sentença de que ora se recorre terá que ser revogada e substituída por outra que condene a Recorrida a reconhecer que a construção casa implantada em parte do prédio urbano, sito na Rua …, nº …, na freguesia …, concelho da Maia, constitui um bem comum do casal, porque construída na pendência do casamento, é uma benfeitoria útil, constituindo um crédito da herança de D…, no valor atual de € 92.890,00 (Noventa e dois mil, oitocentos e noventa euros), que deverá ser partilhado pelos seus herdeiros legais.”
Do corpo das conclusões (na integra supra reproduzidas em I) e que na sua essência são, aliás, a reprodução das alegações pelo que destas nada adicional e relevante se extrai, resulta a não indicação expressa dos pontos factuais em concreto impugnados.
Perceciona-se, pelo alegado, que a discordância respeita à factualidade relativa à proveniência dos dinheiros e nessa medida admite-se que em causa estará o ponto 4 dos factos provados e o facto não provado.
Mas na verdade não foi tal claramente identificado nem alegado e tendo presente que as conclusões têm por finalidade delimitar o objeto do recurso e por essa via permitir o exercício do contraditório, não pode para tanto ser considerado como suficiente a nossa “admissão” ou intuição, principalmente quando a própria recorrida afirma a não observância dos ónus impugnativos e por esta via não demonstra ter considerado quaisquer factos em concreto impugnados.
Motivo por que por esta via seria de rejeitar o recurso relativo à reapreciação da decisão de facto.
Ainda que assim se não entendesse, tão pouco indicou o recorrente qual o sentido da decisão a proferir, como tal se devendo considerar como não observado o ónus primário de indicação da decisão a proferir, a que respeita a al. c) do nº 1 do artigo 640º. Nos termos da qual recai sobre o recorrente o ónus de especificação da “c) (…) decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Note-se que na conclusão XIV o recorrente expressa o sentido da decisão que pretende venha a ser proferida em sede de direito, contudo não indica em sede factual qual o sentido da decisão que pretende ver introduzida nos factos provados ou não provados.
Conclui-se portanto pela não observância do ónus de especificação do sentido decisório a proferir, em alteração à decisão de facto proferida.
Motivo, também por esta via, de rejeição do recurso relativo à reapreciação da decisão de facto.
Finalmente, falhou ainda o recorrente a observância do disposto no artigo 640º nº 2 al. a) do CPC.
Existindo prova gravada, nenhuma referência à mesma fez o recorrente.
Pelo que não estando invocada, nem evidenciada, a violação de regras de direito probatório material, nomeadamente a desconsideração de documento com valor probatório pleno, sempre também por esta via seria de rejeitar a reapreciação da decisão de facto.
Termos em que se decide rejeitar o recurso quanto à reapreciação da decisão de facto, por violação do disposto no artigo 640º nºs 1 e 2 al. a) do CPC.
ii- Em segundo lugar cumpre pronunciarmo-nos sobre a (in)suficiência da decisão de facto.
Em causa a omissão de factos essenciais alegados [ainda que carecidos de concretização], mas sobre os quais o tribunal a quo se não pronunciou cabalmente – questão de conhecimento oficioso (vide artigo 662º nº 2 do CPC).
Embora não tratada diretamente pelo recorrente, prende-se esta questão com o teor da conclusão X – onde este afirma ter sido surpreendido com a versão (vide conclusão IX) de que o dinheiro usado na construção da casa era da mãe da autora.
Desta conclusão não extrai o recorrente quaisquer consequências, nomeadamente no que concerne a uma eventual violação do direito do contraditório.
Antes pelo contrário, porquanto afirma ter em sede de audiência de julgamento tomado conhecimento da versão de tais factos: em causa o recurso a dinheiros da mãe da A. para a edificação da casa, quando o alegado pela autora (nos articulados) foi que a construção foi por si mandada edificar e com dinheiro próprio seu.
Observa-se, contudo, que o tribunal a quo, perante estes factos, em sede de direito, e após afirmar logo de início:
“Através da presente ação, pretende a A. o reconhecimento do direito de propriedade sobre a casa de habitação que construiu em terreno que lhe pertencia com dinheiros da sua mãe, desconhecendo-se, de todo, a que título as respetivas verbas lhe foram entregues, se constituíram ofertas da sua mãe ou se mantiveram a qualidade de dinheiros próprios da mãe.”
concluiu que em causa estão doações da mãe à filha “Tratando-se de doações que a mãe fez à filha, não restam dúvidas de que, por força do disposto nos arts. 1722.º, n.º 1, al. b), e 1723.º, al. c), do CC, a construção levada a cabo pela A. no seu terreno é um bem próprio seu, porquanto, ainda que na pendência do seu casamento em regime de comunhão de adquiridos com o entretanto falecido marido, os valores empregues são valores próprios.”.
E, acrescentou ainda que no “(…) no caso concreto (…) da matéria assente se colhe que os dinheiros utilizados na construção em apreço, não são bens comuns do casal, posto que ou são da mãe da A. ou são próprios desta.”. E assim “Neste último caso, a benfeitoria em que se traduz a edificação, como se referiu anteriormente, é um bem próprio da A.. Por outro lado, a conceber-se a hipótese comportada pela factualidade apurada de que os dinheiros empregues na construção se mantiveram propriedade da mãe da A., afigura-se-nos viável a recondução da situação à acessão.”
Concluindo por tanto (por via da segunda hipótese) que a edificação em terreno próprio da A. não foi realizada à custa de património comum do casal, antes tendo a A. edificado a casa com “materiais obtidos com dinheiro da sua mãe”, materiais que esta (A.) adquiriu “aquando da incorporação dos mesmos no seu terreno nos termos do artigo 1317º al. d) do CC”.
Por qualquer uma destas vias tendo decidido pela propriedade da edificação como bem próprio da A. – no seguimento do que esta alegara na p.i. e réplica.
E pela improcedência do pedido reconvencional, na sua totalidade.
A relevância destes factos – em causa o ponto 4 dos factos provados – é evidente.
Os mesmos assumem, no contexto do objeto processual delineado pela autora e defesa apresentada ao pedido reconvencional, a natureza de factos concretizadores dos alegados pela A. na p.i. e réplica – quanto à proveniência do dinheiro utilizado para a realização das obras levadas a cabo e que a A. alegou ser próprio (!) - resultantes da instrução da causa e que respeitam o núcleo essencial da causa de pedir [vide artigo 5º nº 2 al. b) do CPC].
Mas não são suficientes.
A insuficiência é evidenciada pela própria decisão recorrida.
O tribunal a quo começa por afirmar que se desconhece se o dinheiro que era da mãe da A. e foi por esta utilizado na execução das obras, constituiu uma doação da mãe para a filha ou se manteve a qualidade de dinheiro próprio da mãe.
E perante tal desconhecimento, parte do pressuposto de que esse mesmo dinheiro ou é próprio da A. ou então de sua mãe.
Salvo o devido respeito, é redutor o campo de hipóteses configurado pelo tribunal a quo.
Em causa poderá estar uma doação, é certo. Mas poderá ser uma doação para a A. ou para o casal. De igual modo poderá estar em causa um mútuo e também neste caso, um mútuo concedido só à filha (A.) como ao casal.
Ainda e estando em causa dinheiro da mãe da A. que como tal se mantivesse, tal só relevaria para a causa se tivesse sido então esta a realizar a obra em terreno alheio – com a respetiva aquisição dos materiais [artigo 1340º do CC[1]].
Caso contrário – sendo os materiais adquiridos pela autora, ainda que com dinheiro da mãe, os materiais não seriam alheios, excluindo a aplicação do disposto no artigo 1339º.
E neste último caso, a apreciação da questão será devolvida para o campo da titularidade do dinheiro e assim para a propriedade das benfeitorias [artigo 1723º al. c)] fora do campo da acessão.
No caso está provado que foi a A. quem procedeu à edificação – ou seja realizou as obras. Pelo que a última hipótese [que remete para o disposto no artigo 1339º] está excluída.
E fê-lo com dinheiros pertencentes à sua mãe.
Mantém-se por apurar a que título teve acesso ou lhe foi entregue pela mãe tal dinheiro.
Esta é matéria essencial concretizadora da alegada propriedade do dinheiro por parte da autora, como bem próprio.
Factualidade cuja prova sobre a A. recai para afastar a presunção legal iuris tantum estabelecida no artigo 1723º al. c)[2] da comunhão das benfeitorias.
E que, se não afastada, implicará o reconhecimento de uma compensação devida ao património comum nos termos do artigo 1728º nº 1 – o que respeita ao pedido reconvencional subsidiário.
Atenta a presunção de bem comum que a recorrida tem de afastar, pela prova de que é bem próprio, não é suficiente para considerar cumprido o ónus de prova que sobre a mesma recai o constante do facto não provado.
Pelo que, acrescenta-se, são improcedentes os argumentos da recorrida em sede de contra-alegações quanto ao ónus de prova sobre esta factualidade.
A prova a efetuar / ou a carecer de demonstração é a de que o dinheiro utilizado na edificação era “próprio” da A., nos termos acima já assinalados e que a ser considerado provado, o será com recurso a concretização factual a observar pelo tribunal a quo de acordo com a prova produzida.
Caso contrário tendo de ser reportado aos factos não provados esse mesma alegada titularidade de bem próprio do dinheiro em questão.
Desta realidade, se poderá oportunamente reapreciar validamente o pedido reconvencional subsidiário, no que respeita ao peticionado reconhecimento de um crédito da herança sobre o valor das benfeitorias[3].
Atento o exposto, embora o recorrente não tenha validamente impugnado a decisão de facto, porquanto deve o tribunal de recurso mesmo oficiosamente anular a decisão proferida em 1ª instância quando não constando dos autos todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta - 662º n.º 2 al. c) do CPC, será a decisão parcialmente anulada, para suprimento da omissão de que padece a decisão da matéria de facto já assinalada.
E que se prende exclusivamente com o pedido reconvencional subsidiário.
O tribunal a quo deverá ampliar a decisão de facto por forma a que concretize factualmente os termos em que a A. teve acesso ou lhe foi entregue a si o dinheiro que utilizou na execução da edificação em causa nos autos, demonstrativos da titularidade de tal dinheiro como bem próprio, de acordo com a prova produzida.
Não sendo tal apurado, aos factos não provados sendo então reportada a não prova da alegada titularidade do dinheiro “como bem próprio”[4].
Para o efeito e se necessário ouvindo de novo a prova oferecida pela requerente.
Conclui-se assim pela anulação parcial da decisão proferida, ao abrigo do disposto no artigo 662º nº 2 al. c) do CPC, a fim de ser a factualidade em questão inserida na decisão da matéria de facto em conformidade com a apreciação que da mesma o tribunal a quo vier a fazer.
Se necessário para o efeito, reabrindo a audiência e produzindo prova.
O assim decidido, não inviabiliza porque o não prejudica, o conhecimento do objeto do recurso no que ao pedido da A. e pedido reconvencional principal concerne, nos termos que infra se expõe.
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2) Do erro na aplicação do direito [limitado o seu conhecimento em função da anulação acima determinada, ao pedido da A. e pedido reconvencional principal].
Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito.
A A. fundou o pedido por si formulado no alegado direito de propriedade sobre o prédio identificado em 4º da P.I., no qual está implantada uma casa de habitação por si mandada construir, com o registo matricial provisório nº 8625.
Casa esta pela A. construída, conforme o por esta alegado e provado, em parcela destacada do prédio por si adquirido por herança de seu pai.
Mais alegou a A. sempre ter exercido sobre o imóvel que herdou, incluindo tanto a parcela destacada, como a edificação por si mandada construir, todos os atos de gestão e fruição sobre os mesmos, à vista de todos e sem qualquer oposição, ininterruptamente e na convicção de exercer um direito próprio sobre a sua totalidade, como dona e legítima possuidora há mais de vinte, trinta, quarenta e cinquenta anos. Por essa via tendo também adquirido o direito de propriedade sobre o mesmo por usucapião.
E com base em tal alegação, peticionou a sua manutenção na posse do prédio identificado em 4º da p.i. (a que corresponde o facto provado 3º) e que corresponde à já mencionada parcela destacada do prédio herdado de seu pai, onde foi por si edificada uma casa.
O R. contrapôs que a edificação foi construída com dinheiros do casal constituído pela A. e seu falecido marido, pai do R., por essa via tendo concluído ser este um bem comum do casal. Ou quando assim se não entenda, pugnou pela consideração da edificação como uma benfeitoria a ser considerada e compensada na herança de seu falecido pai.
Assim tendo concluído pela improcedência da ação e na procedência da reconvenção por si deduzida, pela condenação da A. a reconhecer que o prédio identificado em 4º da p.i. constitui um bem comum do casal sujeito a partilha por óbito do seu falecido pai, marido da A..
Ou quando assim se não entenda, a condenação da A. a reconhecer que a construção efetuada na pendência do casamento de seus pais em parte de prédio urbano que constitui bem próprio da A., é uma benfeitoria útil que depois de avaliada constitui um crédito da herança de seu falecido pai – D… – que deverá ser partilhado pelos seus herdeiros legais (a aqui A., o R. e sua irmã, entretanto citada nos autos para intervir, na sequência de incidente de intervenção principal admitido).
Já em sede de recurso peticionou o R. que na revogação do decidido seja a recorrida condenada “a reconhecer que a construção da casa implantada em parte do prédio urbano, sito na Rua …, nº …, na freguesia …, concelho da Maia, constitui um bem comum do casal, porque construída na pendência do casamento, é uma benfeitoria útil, constituindo um crédito da herança de D…, no valor atual de € 92.890,00 (Noventa e dois mil, oitocentos e noventa euros), que deverá ser partilhado pelos seus herdeiros legais.”
Não está questionado nos autos que o prédio urbano sobre o qual foi edificada a casa objeto deste litígio é bem próprio da A. porque herdado de seu pai em 1980 [conforme consta do doc. 4], quando se encontrava já casada sob o regime de comunhão de adquiridos desde 1973 – vide pontos 1 a 3 e 5 dos factos provados conjugados com o disposto no artigo 1722º al. b) que define os bens que no regime supletivo de comunhão de adquiridos são considerados próprios de cada cônjuge.
E que o casamento celebrado entre A. e o pai do R. se encontrava sujeito ao regime supletivo de comunhão de adquiridos é o que também resulta do disposto no artigo 1721º conjugado com o ponto 5 dos factos provados.
Casamento este entretanto dissolvido pelo falecimento do cônjuge marido.
Consideram-se igualmente bens próprios, os “bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios que não possam considerar-se como frutos destes, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum” – vide artigo 1728º nº 1.
Não se confundindo estes bens próprios, pela sua ligação material ou jurídica com outros bens próprios do cônjuge, com os bens próprios de que trata a al. c) do nº 1 e o n 2 do artigo 1722º, porquanto estes últimos são adquiridos “por virtude de direito próprio anterior” ao casamento que se concretiza ou converte posteriormente.
Enquanto os primeiros (artigo 1728º nº 1) têm origem em direito posteriormente (ao casamento) atribuídos ao cônjuge, mas com base na relação de conexão existente entre os novos bens e os bens de que o cônjuge era já titular.
Para o efeito sendo considerados entre outros, como bens próprios os, a título exemplificativo, elencados no nº 2 deste artigo:
“2. São designadamente considerados bens próprios, por força do disposto no número antecedente:
a) As acessões;
b) Os materiais resultantes da demolição ou destruição de bens;
c) A parte do tesouro adquirida pelo cônjuge na qualidade de proprietário;
d) Os prémios de amortização de títulos de crédito ou de outros valores mobiliários próprios de um dos cônjuges, bem como os títulos ou valores adquiridos por virtude de um direito de subscrição àqueles inerente.”
A “relação de conexão existente entre os bens próprios originários e os bens adquiridos ex vi legis tem como resultado que a integração destes no património próprio do cônjuge, pode sob certo aspeto, ser considerada como uma expansão do direito de propriedade exclusiva desse sujeito”[5]
Ainda, decorre do disposto no artigo 1724º al. b) que os bens adquiridos na constância do matrimónio fazem parte da comunhão, salvo os excetuados por lei, entre os quais se encontram precisamente os indicados no artigo 1723º, nos artigos 1726º e seguintes e nas als. b) e c) do nº 1 do artigo 1722º.
Entre os bens comuns, se devendo ainda considerar o valor das benfeitorias úteis (…) (cfr. nº 2 do art. 1733º in fine), salvo no caso previsto na al. c) do artigo 1723º”.[6]
Tal como já referido, não está questionada a propriedade do prédio urbano sobre o qual foi edificada a casa objeto deste litígio como bem próprio da A. porque herdado de seu pai em 1980.
Sobre o bem em questão, em parte do mesmo foi edificada uma casa.
Dispõe o artigo 216º que se consideram benfeitorias “todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa”.
Sendo úteis “as que não sendo indispensáveis à sua conservação, lhe aumentam todavia o valor” (nº 3 do mesmo artigo).
Como caraterística principal distintiva da benfeitoria em relação à acessão, é apontada à primeira a ligação à coisa por quem executa a melhoria “por uma relação ou vínculo jurídico” que na acessão não existe porquanto esta pressupõe a inexistência de tal ligação entre quem introduz o melhoramento e a coisa melhorada[7].
Neste contexto, é claro que a edificação executada sobre o prédio urbano que é bem próprio da A., deve ser classificada como uma benfeitoria útil.
E enquanto despesa deverá, se não afastada a presunção de bem comum estabelecida pelo artigo 1723º al. c), ser considerada como um crédito sobre o património comum do casal.
Ainda e não podendo ser levantada, o titular da coisa beneficiada – a aqui A. – adquirirá então a benfeitoria, satisfazendo a contraparte segundo as regras do enriquecimento sem causa (vide o disposto nos artigos 1273º e 1728º).
A benfeitoria útil, in casu a construção de uma casa, executada sobre bem próprio de um dos cônjuges na pendência do casamento celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos, não altera a qualidade de bem próprio daquele.[8]
Tanto basta para afastar a tese do R. reconvinte de que o bem em questão constitui um bem comum do casal (formado que foi pelos seus progenitores).
E para confirmar o pedido formulado pela autora.
Nesta medida e pressupostos nenhuma censura merece o decidido pelo tribunal a quo quanto à procedência da ação, bem como quanto à improcedência do pedido reconvencional deduzido a título principal.
Por apreciar resta o pedido reconvencional deduzido pelo R. a título subsidiário.
Tal como acima já deixámos enunciado e ora foi corroborado na apreciação dos pressupostos de que depende o reconhecimento da benfeitoria como um direito de crédito sobre o património comum, a sua apreciação está dependente da ampliação da decisão de facto.
Certo sendo que não acompanhamos o entendimento do tribunal a quo no enquadramento da situação analisada no regime da acessão.
Nos termos do disposto no artigo 1325º “Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora uma coisa que não lhe pertencia”.
Quando tal incorporação resulte da atuação do homem, estamos perante a acessão industrial. E se em causa estiver a incorporação de uma coisa em bem imóvel, então, é a acessão verificada designada como “acessão industrial imobiliária” – vide artigo 1326º.
Aquele que em terreno seu, construir obra que naquele se incorpora, com materiais alheios adquire os materiais que utilizou, pagando o respetivo valor, além da indemnização a que haja lugar – artigo 1339º e 1317º al. d) do CC.
E verificada a situação de acessão, a aquisição tem caráter potestativo, necessitando e bastando-se com a manifestação de vontade nesse sentido por parte do beneficiário sem que a outra parte a tal se possa opor, desde que verificados os requisitos legais da mesma[9].
Constituindo como tal, a acessão uma causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreendendo a sua noção legal o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa numa outra coisa da titularidade de outra, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1316º, 1317º, d) e 1325º, todos do Código Civil.
Perante este enquadramento jurídico e nos termos que acima já deixámos enunciados – aquando da apreciação da decisão de facto e da anulação em que ali expressámos como necessária, não pode a situação sub judice ser enquadrada em tal figura.
Estando em causa dinheiro da mãe da A., se como tal se mantivesse, tal só relevaria para efeitos de acessão se tivesse sido então esta a realizar a obra em terreno alheio – com a respetiva aquisição dos materiais [artigo 1340º do CC].
Caso contrário – sendo os materiais adquiridos pela autora, ainda que com dinheiro da mãe, os materiais não seriam alheios, excluindo por esta via a aplicação do disposto no artigo 1339º.
E neste último caso – que corresponde ao que está provado em 4 dos factos provados - a apreciação da questão foi devolvida para o campo da titularidade do dinheiro e assim para a propriedade das benfeitorias [artigo 1723º al. c)] fora do campo da acessão.
Sendo estas as razões pelas quais não acompanhamos o nesta sede decidido pelo tribunal a quo.
Nem a previamente pressuposta doação do dinheiro, porquanto a mesma se não pode retirar da factualidade provada.
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Nestes termos e fundamento, conclui-se pela parcial procedência do recurso interposto, no que concerne ao pedido reconvencional subsidiário deduzido, para cuja apreciação se entende necessária a ampliação da decisão de facto.
No mais se confirmando a decisão recorrida, ainda que por fundamentação diversa.
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III. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação deduzida e consequentemente:
1) Quanto ao pedido reconvencional subsidiário deduzido, decide-se anular parcialmente a decisão, a fim de ser ampliada a decisão de facto nos termos supra assinalados: em causa factualidade concretizadora do modo como a A. teve acesso ou lhe foi entregue pela mãe o dinheiro referido em 4 dos factos provados.
Se necessário e para o efeito reabrindo o tribunal a quo a audiência para produção de prova adicional.
Após proferindo nova decisão relativa a este segmento.
2) Quanto ao mais confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente e recorrida, na proporção do vencimento e decaimento.
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Porto, 2020-05-11.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
____________
[1] Diploma legal ao qual nos reportaremos quando em contrário nada se diga.
[2] A presunção estabelecida neste artigo e al. c), foi entendida como presunção iure et iure de que os meios utilizados na realização de benfeitorias, mormente o dinheiro que as custeou, eram comuns sem admissão de prova em contrário [fora do formalismo nele previsto]. Neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anot., em anotação ao artigo 1723º al. c) (vide nota 4, p. 427).
Este entendimento viria com o tempo a ser mitigado, sendo atualmente defendido na jurisprudência e de forma reforçada após o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 02/07/2015, Acórdão nº 12/2015 que quando em causa estejam as relações entre cônjuges [ou acrescentamos nós e como é o caso, os seus herdeiros que na posição jurídica daqueles ingressam] a prova em contrário é admitida com recurso a quaisquer meios de prova – estabelecendo assim a al. em apreciação uma presunção iuris tantum.
A justificação desta uniformização de jurisprudência encontra o seu argumento mais forte na ideia de que a presunção estabelecida na citada al. c) deste artigo 1723º visa proteger os interesses de terceiros e do comércio jurídico em geral, ante a expetativa de que os bens adquiridos na pendência do matrimónio serão comuns.
Proteção que e quando em causa esteja apenas o interesse dos cônjuges não se justifica, permitindo-se então a estes fazer a prova de que os bens ou as benfeitorias não foram executados com recurso a bens comuns, mas antes próprios. Visado também “a consistência dos patrimónios conjugais próprios e comuns e evitar o injustificado enriquecimento de uma massa patrimonial à custa da outra”. O que se mostra mais “consentâneo com a igualdade dos cônjuges no plano material” e garante “maior equidade na repartição do património conjugal quando ocorrer a dissolução do casamento” [conforme consta no mencionado AUJ].
É precisamente o que se extrai do referenciado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que decidiu assim:
«Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art.º 1723º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.» [cfr. Ac. STJ de 02/07/2015, nº de processo 899/10.2TVLSB.L2.S1 in www.dgsi.pt].
[3] Conforme infra melhor se explicará.
[4] Não obstante se entender que esta expressão engloba em si um juízo de valor ou conclusivo, admite-se que o mesmo traduz também uma realidade factual de uso corrente, identificável por todos os visados processuais. E certamente também assim terá sido entendido pelo tribunal a quo, já que oportunamente não fez uso dos seus poderes de gestão processual, convidando a parte a aperfeiçoar o seu articulado quanto a esta matéria.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anot., vol. IV, 2ª edição revista e atualizada em anotação ao artigo 1728, p. 433; ainda em anotação ao artigo 1733º nº 2, nota 7 a p.. 443 onde se afirma “a lei garante apenas a participação dos dois cônjuges no valor das benfeitorias úteis realizadas nos bens próprios”.
[6] Cfr. CC Anot. in ob cit., vol. IV em anotação ao artigo 1724º, nota 3, p. 428 (com sublinhado e negrito nosso).
[7] Cfr. neste sentido o mesmo CC Anotado, vol. III, em anotação ao artigo 1340º, p. 163].
[8] Cfr. neste sentido Ac. TRC de 16/05/2017, nº de processo 3638/13.2TBLRA-H.C1; ainda sobre a mesma questão cfr. Ac. TRC de 23/03/2004, nº de processo 4231/03; Ac. TRC de 20/06/2017, nº de processo 4298/16.4T8PBL.C1; Ac. TRG de 26/01/2017, nº de processo 954/15.2T8VRL.G2; Ac. TRL de 12/07/2007, nº de processo 5851/2007-8; Ac. STJ de 30704/2019, nº de processo 5967/17.7T8CBR.S1;
[9] O caráter potestativo versus a tese da imperatividade ou aquisição automática, ope legis (esta última defendida nomeadamente por Pires de Lima e Antunes Varela no CC Anotado já citado), foram discutidas tanto a nível doutrinário como jurisprudencial.
Dando nota desta divergência e dos argumentos perfilados para ambas, bem como da adoção maioritária – que igualmente seguimos - da primeira na jurisprudência, cfr. Ac. STJ de 20/09/2011, nº de processo 358/08.8TBGDM.P1.S1 in www.dgsi.pt