Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1303/18.3T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: LESÃO EM JOGO DE FUTEBOL
ACIDENTE DE TRABALHO
Nº do Documento: RP202004271303/18.3T8VFR.P1
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O evento sofrido pelo trabalhador durante um jogo de futebol organizado pela sua empregadora e ao qual aquele aderiu, verificando-se o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão é um acidente de trabalho, atento o disposto no art. 9º, nº 1, al. h), da LAT.
II – Apesar do jogo, em causa, ocorrer fora do local e do tempo de trabalho, o trabalhador ao aderir ao mesmo, a convite da empregadora, “obrigou-se” a cumprir o estabelecido por aquela ficando, assim, sujeito à autoridade da sua empregadora, ainda que não relacionada directamente com a prestação de trabalho mas com a organização e concretização daquele jogo de futebol.
III – Como é sabido, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1303/18.3T8VFR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo do Trabalho de S.M. Feira - Juiz 1
Recorrente: Companhia de Seguros B…, S.A.
Recorrido: C…

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
O A., C…, após se ter frustrado a tentativa de conciliação, no âmbito da fase conciliatória, por a seguradora não aceitar a existência de um evento caracterizável como acidente de trabalho, bem como o nexo de causalidade entre o evento e as lesões apresentadas, instaurou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra a R., Companhia de Seguros B…, S.A., terminando com o pedido de que a acção seja julgada provada e procedente e, por via dela, seja a R. condenada a pagar-lhe:
a) a pensão anual e vitalícia de 357,21, com início no dia imediatamente seguinte ao da alta, 31/05/2018, a pagar na forma e modo legais;
b) a importância de € 30,00, a título de compensação pelas despesas de transporte ao Tribunal efetuadas pelo Autor;
c) as importâncias de € 927,06 e de 59,30 a título de ITA´s e ITP´s não liquidadas;
d) juros de mora, sobre todas as quantias, à taxa e na forma legal.
Fundamentou o seu pedido alegando, em síntese, que no dia 21.11.2017, pelas 18h30, sofreu um acidente, quando laborava sob as ordens, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, D…, S.A., desempenhando as funções de manobra/corticeiro, que tinha a sua responsabilidade infortunística-laboral transferida para a ré, seguradora, auferindo o salário anual de € 12.888,74.
Alega, ainda, que no referido dia, no cumprimento de ordens que a sua entidade patronal lhe impôs, achava-se a disputar uma partida de futebol, sofrendo um entorse do joelho direito o que o incapacitou e causou lesões que importaram incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA), incapacidade temporária parcial (ITP) e sequelas determinantes de incapacidade permanente parcial (IPP) para o trabalho de 3,96%, até à data da alta ocorrida em 30.05.2018.
Mais, requereu a realização de exame por junta médica e juntou quesitos.
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Citado, nos termos que constam a fls. 60 vº e ss, o Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir contra a R. pedido de reembolso dos € 485,85 que pagou ao A. a título de subsídio de doença, no período de 22/03/2018 a 02/05/2018, em que este esteve com baixa médica subsidiada, em consequência das lesões resultantes do acidente em discussão, mais juros de mora legais, vencidos e vincendos, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
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Citada a R. contestou quer a acção, quer o pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P, nos termos que constam, respectivamente, a fls. 65 vº e ss. e 76 vº e ss., defendendo, no essencial, que estamos perante acidente excluído pelas condições da apólice, não podendo a mesma ser responsabilizada pelo mesmo, além de que as lesões apresentadas pelo Autor não são consequência do evento dos autos.
Conclui, assim, pedindo a improcedência da acção e do pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. e a sua absolvição do pedido.
Requereu que o A. seja submetido a exame por junta médica e juntou quesitos.
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Nos termos que constam a fls. 74 vº o A. apresentou resposta à defesa por excepção da ré, pugnando pela sua improcedência.
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Dispensada a audiência prévia, nos termos que constam do despacho, de fls. 79 e ss., foi proferido saneador tabelar, fixados os factos assentes, elaborada a base instrutória e determinada a organização de apenso para fixação do grau de incapacidade que afecta o autor.
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Organizado o apenso, foi realizado exame por junta médica e respondido os Senhores Peritos, por unanimidade, aos quesitos apresentados, foi proferida decisão, nos termos que constam a fls. 27 do mesmo, que decidiu que “o sinistrado é portador de Incapacidade Permanente Parcial (I.P.P.) de 3,96%, desde 30.05.2018, data da alta médica”.
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Os autos seguiram para julgamento e realizada a audiência, onde apenas foram proferidas alegações orais pelos ilustres mandatários, dado terem prescindido da prova testemunhal, conforme acta de fls. 94, conclusos os autos para o efeito, foi proferida sentença, nos termos que constam a fls. 95 e ss., que terminou com a seguinte Decisão:
Pelo exposto, vistas as normas jurídicas e os princípios enunciados, decide-se julgar procedente a presente ação e o pedido de reembolso do ISS e, em consequência:
1. Condenar a Ré COMPANHIA DE SEGUROS B…, SA a pagar ao Autor C…:
a. O montante correspondente ao capital de remição relativo a uma pensão anual de € 357,28, com início em 31/05/2018;
b. O montante de € 417,20 a título de Incapacidade Temporária Absoluta;
c. O montante de € 56,82 a título de Incapacidade Temporária Parcial;
d. O valor de € 30,00 a título de reembolso de despesas médicas e medicamentosas.
São devidos juros de mora sobre o valor do capital de remição desde 31/05/2018, à taxa legal de 4%, nos termos dos arts. 50º, nº2, da Lei 98/2009, de 04/09, e 805º, nº2, alínea a), 806º e 559º do C. Civil, conjugados com a Portaria nº 291/2003, de 08/04.
Sobre o valor das diferenças salariais, os juros de mora são devidos desde a data do seu vencimento - art. 72º, nº3, da LAT.
Sobre o valor das despesas de transporte os juros de mora são devidos desde a data da tentativa de conciliação na fase conciliatória.
2. Condenar a Ré COMPANHIA DE SEGUROS B…, SA a reembolsar o Instituto da Segurança Social no montante de € 485,85, acrescido de juros de mora legais, vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré.
Notifique.
Valor da ação para efeitos de custas: a determinar nos termos do art. 120.º, nº 1, do CPT.”.
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Inconformada a ré seguradora interpôs recurso cujas alegações juntas a fls. 109 vº e ss. terminou com as seguintes CONCLUSÕES:
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O A. respondeu, nos termos das contra-alegações juntas a fls. 135 vº e ss., as quais sem formular conclusões, terminou “que indeferindo in totum o impetrado no presente recurso e mantendo-se a decisão recorrida, fazem Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, SÃ E INTEIRA JUSTIÇA, no que confia o Apelado!!!”.
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Nos termos que constam do despacho de fls. 138, a Mª Juíza “a quo” admitiu a apelação e ordenou a sua subida a esta Relação.
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O Ministério Público teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT, tendo-se pronunciado no sentido de ser rejeitado ou improceder o recurso, no essencial, na consideração das conclusões serem complexas e prolixas e a sentença não merecer nenhum reparo ou censura por se mostrar devidamente fundamentada.
Não foram oferecidas respostas àquele parecer.
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Dado cumprimento ao disposto no art. 657º, nº 2 do CPC, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim a questão principal a apreciar e decidir consiste em analisar:
- se o evento participado não é um acidente de trabalho, como defende a apelante, ou se estamos perante um acidente de trabalho, como se considerou na decisão recorrida e, se for este o caso;
- se o acidente sofrido pelo A. não está coberto pelo seguro atenta a condição especial constante da apólice;
- se mesmo que tal acontecesse estaria ele excluído por o A. ser portador de uma IPP que dá origem a uma pensão obrigatoriamente remível;
- se ocorre insuficiência da decisão da matéria dada como provada para a decisão do pedido do ISS;
- se devem os pontos 12 e 23 ser alterados e dados como provados, nos termos propostos pela recorrente, no sentido de evitar o pagamento do mesmo dano, pela mesma, ao sinistrado.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
O Tribunal “a quo” considerou o seguinte:
Factos provados:
1. D…, SA celebrou com Companhia de Seguros B…, SA um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº ……, nos termos do qual aquela transferiu para esta a responsabilidade infortunística por acidentes que envolvessem o Autor, pelo salário anual de € 12.888,74 (€ 760,45 x 14 meses de salário + € 75,77 x 12 meses de outras remunerações regulares + € 121,20 x 11 meses de subsídio de alimentação). (facto assente)
2. No dia 21 de novembro de 2017, pelas 18:30h, em …, Santa Maria da Feira, o A. sofreu um acidente. (facto assente)
3. Laborava então sob as ordens, direção e fiscalização de D…, SA. para quem desempenhava as funções de manobra/corticeiro. (facto assente)
4. No referido dia, o Autor encontrava-se a disputar uma partida de futebol no âmbito de um torneio desportivo organizado pela sua entidade patronal. (facto assente)
5. A determinado momento do aludido jogo de futebol, o A. recebe a bola de outro colega de equipa. (facto assente)
6. Ao dominá-la, é cercado por colega adversário que, intentando cortar a bola ao A., abeira-se-lhe faltosamente, empurrando-o e concomitantemente batendo-lhe com um dos seus pés na zona do joelho direito do A. (facto assente)
7. Mercê do referido, passou o A. a ser assistido pelo corpo clínico da R. Seguradora, que lhe realizou uma ressonância magnética ao joelho direito, da qual se extraiu essencialmente o seguinte: a) Rutura radial do bordo livre do menisco externo nos planos de transição arco anterior/segmento médio, sem lesões menisco restante; b) Rutura completa do ligamento do cruzado anterior; c) Considerável espessamento fibrocicatricial residual pós-entorse do ligamento lateral interno; e Foco edematoso pós-contusional subcortical anterior do côndilo femoral externo (suprajacente ao arco anterior do menisco) notando-se também mínimo infiltrado edematoso subcortical posterior do prato tibial ipsilateral, sem evidência de patologia osteocartilagínea adicional do joelho. (facto assente)
8. No seguimento da informação clínica referida em 7.º, a R. Seguradora sujeitou o A. a uma operação menisco e ligamento e posteriormente passou a ministrar-lhe fisioterapia, até 21/03/2018, data em que a mesma recusou a manutenção dos tratamentos, conferindo- lhe consequentemente alta médica. (facto assente)
9. A R. teve conhecimento, após a realização da ressonância magnética supra indicada na E…, que o A. havia realizado, a pedido da sua médica de família, um exame médico ao joelho direito – ecografia – em 06/09/2016, por provável entorse. (facto assente)
10. À data dos factos, o A., que padecia de algumas dores no joelho direito por provável entorse, realizou o referido exame que não revelou qualquer patologia. (facto assente)
11. Em consequência do evento descrito em 2.º e ss, o Autor esteve com baixa médica subsidiada pelo ISS desde 22.03.2018 a 02.05.2018. (facto assente)
12. A título de indemnização por ITA, o A. recebeu da R. Seguradora a quantia de € 3.175,44. (facto assente)
13. Em despesas de transporte, relativas às suas deslocações para e do Tribunal bem assim às unidades hospitalares para as quais foi convocado, com referência ao seu domicílio, o Autor despendeu € 30,00. (facto assente)
14. O A. nasceu em 17.09.1990. (facto assente)
15. Como consequência direta e necessária do acidente referido em 2.º e ss, o A. sofreu uma entorse do joelho direito. (Base instrutória)
16.Traumatismo que imediatamente o incapacitou funcionalmente. (Base instrutória)
17. E impossibilitou de continuar a exercer a sua atividade profissional pelo período de 22.11.2017 a 06.05.2018. (Base instrutória)
18. Ainda em consequência do evento, o Autor sofreu incapacidade temporária parcial de 10% entre 07.05.2018 e 30.05.2018. (Base instrutória)
19. Das lesões sofridas pelo A., resultaram como sequelas no membro inferior direito, gonalgia residual, atrofia muscular da coxa em comparação com a coxa contralateral (2 cm), défice de flexão do joelho.
20. Que lhe acarretam, do ponto de vista ortopédico, uma incapacidade profissional de 3,96%. (Base instrutória)
21. A consolidação das lesões ocorreu em 30.05.2018. (Base instrutória)
Mais se provou que:
22. De acordo com a Condição Especial 1 do Contrato de Seguro referido em 1.º, “Cláusula Atividades Desportivas:
A presente apólice é extensiva à prática das atividades culturais e desportivas declaradas nas Condições Particulares, realizadas sob a égide do Grupo desportivo da Empresa e abrangendo estritamente os do segurado.
Ficam expressamente excluídos, salvo posterior acordo das partes em contrário, os acidentes resultantes da prática de Desportos de Inverno, Box, Karaté e outras artes marciais, corridas de velocidade automóveis, motos ou motorizadas, paraquedismo e desportos de perigosidade análoga à de qualquer destes.
Ficam ainda excluídas: Situações de invalidez não incapacitantes para o exercício da profissão. Situações de incapacidade permanente de que resultem pensões obrigatoriamente remíveis por aplicação da legislação que regulamenta os acidentes de trabalho. Afeções inerentes à prática de desporto e que não resultem de acidente em sentido estrito”.
23. O ISS, IP pagou ao Autor, a título de subsídio por doença, a quantia de € 485,85. (Alterado oficiosamente, o valor da quantia de € 485,00 para € 485,85)
Factos não provados:
1. As lesões apresentadas pelo Autor, descritas em 1.º, já existiam à data do evento descrito em 2.º e ss dos factos assentes. (Base instrutória)
2. Em 08.11.2016, o Autor foi sujeito a RMN ao joelho direito, o qual revelou lesão interna aguda. (Base instrutória)
3. A referida lesão é a mesma que lhe foi diagnosticada aquando do evento descrito em 2.º e ss dos factos assentes.
4. O Autor ocultou o quadro clínico referido em 7.º e ss à Ré.”.
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Os factos a considerar, para apreciação da questão principal suscitada pela recorrente, são os que decorrem do relatório que antecede e que se encontram documentados nos autos importando, apenas, por considerarmos tratar-se de lapso, evidente, face ao teor da certidão junta a fls. 61 vº, nos termos do disposto no art. 607º, nºs 3 e 4, do CPC, alterar a redacção do ponto 23 daqueles factos dados como provados, no que respeita à quantia de € 485,80 que passa a ser de € 485,85, por ser o que decorre do documento referido.
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B) O DIREITO
Vem a recorrente, através do presente recurso, insurgir-se contra a decisão recorrida, pugnando pela sua absolvição do pagamento das quantias em que foi condenada com o argumento, essencial, de que o Tribunal “a quo” fez errada apreciação do direito ao decidir estarmos perante um acidente de trabalho.
Antes de, apreciarmos se lhe assiste ou não razão, importa referir o seguinte.
Sempre com o devido respeito, ao contrário do que considerou o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, através das questões prévias suscitadas, em nosso entender, nada obsta a que este Tribunal conheça e, desde já, daquela e das demais questões colocadas pela recorrente. Porque, pese embora, se concorde que as conclusões da alegação não são de modo algum, nem poderão apelidar-se das sintéticas proposições que as definem, mais parecendo a sua maioria, sempre com o devido respeito, lições de direito, as mesmas não se revestem de complexidade que justifique o seu aperfeiçoamento, nos termos referidos no nº 3, do art. 639º, do mesmo código.
Assim, consideramos mostrar-se desnecessária a prática de qualquer diligência, previamente, ao conhecimento das questões suscitadas pela recorrente que supra identificámos.
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Como dissemos, a questão fundamental a decidir consiste em saber se o evento participado é um acidente de trabalho como se considerou na decisão recorrida, ou se tal não acontece, como defende a recorrente, já que se for deste modo, a apreciação das demais questões fica prejudicada.
Vejamos, então.
Sobre a definição normativa de acidente de trabalho dispõe o art. 8°, n° 1, da LAT (Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro) sob a epígrafe “Conceito” que, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”. Enunciando o nº 2, o que se entende por local e tempo de trabalho além do período normal de trabalho.
Como vem sendo defendido, em regra, o acidente de trabalho será “um acontecimento não intencionalmente provocado (ao menos pela vítima), de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por causa dela, de que é vítima um trabalhador”, (cfr. Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2ª Ed., 2001, pág. 35) ou, dito de outro modo, “o acidente de trabalho pressupõe que seja súbito (vejam-se Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Introdução, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2013, pág. 27, os quais caracterizam este requisito como de “duração curta e limitada”, “repentino”, “instantâneo”, “imediato”, mas sem que tal tenha que ser entendido em termos absolutos.) o seu aparecimento, assenta numa ideia de imprevisibilidade quanto à sua verificação e deriva de factores exteriores”, distinguindo-se da doença profissional por esta ser, via de regra, “de produção lenta e progressiva surgindo de modo imperceptível”, (cfr. refere Pedro Romano Martinez in Direito do Trabalho, Almedina, 2015, pág.s 829/830).
A nível jurisprudencial, sobre a noção de acidente de trabalho, lê-se no Ac. STJ de 13.01.2010, proferido no processo 1466/03.2 TTPRT.S1 disponível em www.dgsi.pt, que, (…) “reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença”.
Conclui-se, assim, do exposto que, a caracterização de um acidente de trabalho está dependente da verificação cumulativa de três elementos: a) elemento espacial (local de trabalho); b) elemento temporal (tempo de trabalho); c) elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão).
Em suma, são várias as condições para que se verifique a obrigação de reparação dos danos resultantes de um acidente de trabalho: evento, local e tempo de trabalho, dano e nexo de imputação entre o facto e o dano.
Entre estas condições, destaca-se, para efeitos de análise do presente caso, o disposto no art. 9º da mesma Lei, onde se enumeram diversas situações que são consideradas, também, acidente de trabalho, ali epigrafadas de “Extensão do conceito” definido no anterior artigo.
Situações que não se pode considerar que a responsabilidade objectiva por acidentes de trabalho assente no risco de exercício da actividade, mas no risco de integração empresarial, havendo como que uma socialização do risco, “em que a inclusão do trabalhador na estrutura da empresa do empregador, sujeitando-o à autoridade deste, constitui base de um alargamento desta responsabilidade civil”. “Cabe, pois, concluir que a responsabilidade objectiva emergente de acidentes de trabalho, não obstante assentar no risco profissional, em certos casos tem sido alargada com base na ideia de risco empresarial, também designado risco de autoridade. Trata-se do risco de ter trabalhadores, que não deriva só da actividade desenvolvida”, como refere (Pedro Romano Martinez in “Direito do Trabalho”, 3ª ed., págs. 808 e 809).
Na sentença recorrida, depois de extensa fundamentação sobre o conceito de acidente trabalho, nos termos do referido art. 8 da LAT, decidiu-se do seguinte modo: «Para além disso, deverão reputar-se acidentes de trabalho os ocorridos fora do tempo de trabalho, mas no desenvolvimento de atividades de que o empregador possa beneficiar (als. b) e h) do art. 9.º, nº 1, da LAT).
Pelo exposto, consideramos que as denominadas atividades fora da jornada, tais como competições desportivas – sejam realizadas com intuito comercial (em que são convidados clientes), sejam realizadas com intuito meramente interno, de reforço dos vínculos da equipa de trabalho – desde que se trate de atividades programadas pela entidade empregadora, contidas dentro de um risco aceitável, estreitamente conexionadas com a relação laboral, e em cuja execução o trabalhador continua vinculado ao poder de direção do empregador, devem estar abrangidas pela proteção conferida pela legislação infortunística.
No caso concreto, provou-se que a entidade empregadora organizou uma competição de futebol, no decurso da qual o trabalhador sofreu uma lesão.
Um jogo de futebol constitui uma prática comum dentro das atividades extra- programáticas que se organizam nas empresas tendo em vista promover a melhoria do ambiente de trabalho, o reforço do espírito de equipa (team building) e a coesão dos trabalhadores. Trata-se, além disso, de uma atividade que não é perigosa por natureza – sobre a exclusão do futebol como atividade perigosa, suscetível de enquadrar o disposto no art. 492.º, nº 2, do CPCivil, vide acórdão do TRL de 9 de julho de 2015, e Ac. STJ de 12.05.2016, in dgsi.pt).
Daí que, se em consequência da organização do evento veio a ocorrer um acidente, encontrando-se o trabalhador no decurso da execução do contrato de trabalho, sujeito à autoridade do empregador, a desenvolver uma atividade no local e tempo por este indicado, deve tal acidente reputar-se de trabalho, sendo indemnizável à luz do disposto na lei nº 98/2009, de 4 de setembro.
(...).».
De que seja deste modo, como já dissemos, discorda a recorrente, no essencial assentando os seus argumentos no facto de o evento participado não ter ocorrido, nem no desempenho das funções de manobra/corticeiro do sinistrado, nem no local e tempo de trabalho, nem no âmbito do poder de autoridade da empregadora.
No entanto, sempre com o devido respeito diga-se, desde já, que é nosso entendimento que não lhe assiste razão.
Face aos factos que se apuraram, sobre as circunstâncias em que ocorreu o evento participado, transpondo o que supra se deixou exposto para o caso, também, nós entendemos que o acidente sofrido pelo A., apesar de não ter ocorrido no local e no tempo de trabalho, mas fora destes, ocorreu sobre a autoridade da sua empregadora, como se considerou na decisão recorrida, no âmbito do art. 9º, nº 1, al. h) da LAT, ainda que aquela autoridade, no caso, não estivesse directamente relacionada com a prestação de trabalho mas com a organização e concretização de um jogo de futebol e, desse modo, como naquela se consignou estamos perante um acidente de trabalho.
Para reforço do nosso entendimento, em situação idêntica à vertente, em que estava em causa um passeio, observou-se no douto (Acórdão desta Relação de 08.03.2019, Processo nº 589/15.0Y7PRT.P1, relatado pela Ex.ma Desembargadora Fernanda Soares e subscrito pelo aqui 2º Adjunto, Desembargador Domingos Morais, disponível em www.dgsi.pt), o seguinte que, passamos, com o devido crédito aos seus subscritores, a transcrever:
«Nos termos do artigo 8º da LAT “1. É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte. 2. Para efeitos do presente capítulo, entende-se por: a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador; b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”.
A caracterização de um acidente de trabalho está, assim, dependente da verificação cumulativa de três elementos: a) elemento espacial (local de trabalho); b) elemento temporal (tempo de trabalho); c) elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão).
O Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes refere – em O Acidente De Trabalho O acidente in itinere e a sua descaracterização, página 97 – o seguinte: “Parece-nos claro que o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Poderão ser acidentes de trabalho múltiplos acidentes em que o trabalhador não está, em rigor, a trabalhar, a executar a sua prestação, muito embora se encontre no local de trabalho e até no tempo de trabalho, pelo menos para este efeito da reparação dos acidentes de trabalho”.
O acórdão do STJ de 17.12.2009 dá-nos, à luz da Lei 100/07, a noção de acidente de trabalho [a qual tem aplicação mesmo em face da nova LAT] e que aqui transcrevemos o sumário: “A responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores não assenta no chamado risco profissional, mas sim no risco económico ou de autoridade que está subjacente ao conceito de acidente de trabalho contido no artigo 6º da Lei nº100/97 de 13 de Setembro. Assim, para que se considere existir um acidente de trabalho, à luz daquele normativo, não se exige a existência de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação de trabalho propriamente dita; apenas se exige um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral” [CJ, acórdãos do STJ, ano 2009, tomo 3, página 267].
No caso em análise, e em face da factualidade provada, o acidente não ocorreu no local de trabalho e também não ocorreu no tempo de trabalho mas, antes, fora do local de trabalho e do tempo de trabalho, a significar que ao caso não é aplicável o disposto no artigo 8º da LAT.
Mas estar-se-á perante uma das situações previstas no artigo 9º da LAT, concretamente na al. b) ou na al. h) desse artigo? [posto que nos termos do artigo 5º, nº3 do CPC «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito»]. É o que vamos analisar.
Dispõe o artigo 9º da LAT “1. Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador” (…) “h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos”.
A propósito de situações como a dos autos refere o Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes o seguinte: (…) “delicadas são as situações em que o trabalhador se lesiona, não quando está propriamente a trabalhar, mas a realizar uma actividade para a qual foi «convidado» pelo empregador” (…) “O empregador pode também patrocinar uma equipa de futebol, fomentar a prática de certos desportos pelos trabalhadores ou até promover certos momentos colectivos” (…) “Se um acidente ocorrer na prática destes desportos poderá ser considerado um acidente de trabalho? Alguns autores tendem a responder negativamente com o argumento de que se trata de actividades voluntárias ou espontâneas que não se confundem com o trabalho, nem com a execução do contrato de trabalho. Mas a verdade, contudo, é que a voluntariedade pode ser mais aparente que real: o trabalhador que se recuse a participar na festa de aniversário da empresa ou na festa de Natal” (…) “sabe que, mesmo sem se expor a sanções disciplinares directas ou imediatas, poderão vir a existir outras formas de represália ou um prejuízo real para a sua carreira. Acresce que estas actividades podem comportar um benefício para o empregador – e, aliás, por isso mesmo é que são incentivadas ou patrocinadas por este” (…) – obra citada, páginas 105, 106, 107 e 108.
Vejamos a factualidade provada: 3. No ano de 2015 a Autora foi convidada para participar neste evento anual, que ocorreria no dia 13 de Junho desse ano (sábado). 11. A entidade empregadora organiza todos os anos (o ano 2016 foi uma excepção) um passeio para o qual são convidados todos os trabalhadores e membros da administração, procurando-se fomentar o convívio e o bom relacionamento entre todos os envolvidos. 12. Sendo da exclusiva responsabilidade da entidade patronal a organização deste evento, fretando para tal autocarros necessários ao transporte de todos os que compareçam, seleccionando o destino do passeio, pagando as refeições aos trabalhadores e até encerrando alguns dos centros sociais que normalmente trabalham nesses dias. 13. No dia e hora marcados a Autora compareceu – assim como as suas colegas (algumas compareceram pois foi encerrado o centro social onde naquele dia deviam prestar trabalho) – entrando num dos autocarros que haviam sido fretados para aquela ocasião pela sua entidade empregadora. 14. A Autora inscreveu-se e compareceu no passeio porque quis. 15. A Autora e mais trabalhadoras foram transportadas até à Póvoa do Varzim, aonde chegaram cerca das 11 horas da manhã. 16. Até à hora do almoço a Autora e mais colegas foram livres de fazerem o que quisessem. 17. Quando saía de uma loja comercial, que visitara, cerca das 12 horas, ainda antes do referido almoço, a Autora tropeçou e caiu no passeio, na via pública, encontrando-se sozinha.
Desde logo a matéria de facto ora referida permite afirmar que o passeio/convívio é promovido pela empregadora, que tudo organiza, procurando com a realização do referido evento fomentar o convívio e o bom relacionamento entre todos, o que faz todos os anos (à excepção do ano de 2016). E apelando às regras da experiência, se tal iniciativa beneficia, à partida, os trabalhadores, também beneficiará a empregadora, sob pena de não se compreender a sua realização praticamente em todos os anos.
Tal procedimento, por parte da empregadora, é revelador da vontade de proporcionar aos seus trabalhadores momentos de convívio. E tanto assim é que até procedeu ao encerramento do centro social, com vista a possibilitar aos trabalhadores que deveriam prestar trabalho nesse dia, marcado para o passeio, igual oportunidade de convívio. Diríamos que ao assim actuar a empregadora está a dar cumprimento ao dever geral consagrado na parte final do artigo 126º, nº2 do CT/2009, qual seja, “Na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador”.
Tendo aderido ao convite da empregadora a Autora «obrigou-se» a cumprir o programa estabelecido por aquela. Ora, se assim é, podemos concluir que de algum modo a Autora esteve sujeita à autoridade da sua empregadora mas desta vez autoridade não relacionada directamente com a prestação de trabalho mas com a organização e concretização de um passeio.
E a Autora só compareceu ao passeio pelo facto de ser trabalhadora da entidade que o organizou e não por outras razões exteriores à relação laboral, nomeadamente de natureza pessoal. Ou seja, o facto de a Autora ter sofrido o acidente na Póvoa do Varzim está directamente relacionado com o passeio que a sua entidade empregadora organizou e ao qual ela aderiu.
É certo que a Autora foi ao passeio porque quis, mas a adesão da Autora ao convite da empregadora não é suficiente para afastar a relação, ainda que indirecta, entre a realização desse evento e o contrato de trabalho. Com efeito, o que aqui releva é o facto de, por força da sua adesão ao convite formulado pela empregadora, a Autora, a partir dessa aceitação, ficou “obrigada” a cumprir os procedimentos determinados por aquela – a sua empregadora – quanto ao modo como iria decorrer esse passeio, sendo que a sua participação só ocorreu por força da existência de uma relação jurídica existente entre as partes: o contrato de trabalho.
Na verdade, e como refere Carlos Alegre “A desnecessidade do nexo de causalidade entre o evento lesivo e o trabalho em execução é uma decorrência natural da teoria do risco económico ou risco da autoridade, em que o risco assumido não tem a natureza do risco específico, mas a de risco genérico, ligado ao conceito amplo de autoridade patronal” – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, página 41.
Deste modo, enquadramos a situação em análise na al. h) do nº1 do artigo 9º da LAT e como tal estamos perante um acidente de trabalho, posto que os demais elementos se verificam, a saber, o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão.».
Ora, este entendimento que se veio de reproduzir ajusta-se rigorosamente ao caso vertente.
E concordamos inteiramente com ele.
Tudo o que pudéssemos dizer por palavras próprias mais não seria que uma repetição de tal entendimento.
Como assim, julgamos que decidiu correctamente o Tribunal “a quo” ao ter considerado que o evento participado deve reputar-se como acidente de trabalho.
Improcede, assim, esta questão, como a apelida a recorrente, “primacial” da apelação e, em consequência, haveria que averiguar, se o acidente sofrido pelo A. não está coberto pelo seguro atenta a condição especial 01 constante da apólice, como a mesma defende.
No entanto, previamente, a saber se lhe assiste razão, importa referir o seguinte.
Faz, agora, a recorrente, apelo àquela condição especial, para afastar a responsabilidade, que não se discute lhe foi transferida pela empregadora, no âmbito do contrato de seguro, titulado pela apólice nº ……, nos termos referidos no ponto 1 dos factos provados que, a responsabiliza, sem dúvida pelas consequências dos acidentes que envolvessem o Autor, sofridos sob a autoridade da empregadora, como o que ocorreu no caso.
Ora, sendo desse modo, há que assentar, desde já, que é indiscutível, que o recurso vem interposto da decisão recorrida e que se destina à reponderação das questões nela decididas e que, como já referimos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, tal como decorre das disposições legais dos art.s 635º, nº 3 e 639º, nº 1, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, cfr. art. 608º, nº 2. E, de entre estas questões, excepto no tocante àquelas que o tribunal conhece “ex officio”, o tribunal de 2ª instância, apenas, poderá tomar conhecimento das questões já trazidas aos autos pelas partes, nos termos do art. 5º, não podendo a parte nas alegações de recurso e respectivas conclusões vir suscitar e requerer a apreciação de questões ou excepções novas.
Esta questão posta pela apelante nas suas alegações e sintetizada, em especial, nas conclusões 9 a 16, só agora é suscitada e, pese embora isso, pretende a mesma que se conheça desta sua alegação e dela se tirem consequências jurídicas de modo a revogar-se a decisão recorrida.
Que dizer?
Obviamente, desde já, que tal não pode proceder.
Tudo porque, independentemente das razões que a recorrente possa invocar, verificamos que a 1ª instância não se pronunciou sobre a questão.
No entanto, ainda assim, não cometeu qualquer irregularidade ou omissão de pronúncia, esta questão não lhe foi colocada. Como se deixou claro supra só, agora, em sede de recurso a recorrente a coloca e, como é evidente, não se trata de questão que possa ser apreciada oficiosamente.
E, por sua vez, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas, questões não suscitadas na 1ª instância.
O alegado pela recorrente, no sentido de que o acidente sofrido pelo A. não está coberto pelo seguro, entre ela celebrado e a empregadora do sinistrado, conforme vem referido por ela nas suas conclusões, são uma questão nova que não foi colocada à apreciação do Tribunal “a quo”, nem foi com base na análise da mesma que se proferiu a decisão recorrida.
Esta questão não foi colocada, em sede de 1ª instância, e não foi controvertida na decisão recorrida, o Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre a mesma e, nem o poderia fazer, sempre com o devido respeito por diferente opinião, porque não lhe foi posta.
E, agora?
Como já deixámos exposto, também, não o podemos fazer.
Pois, como é sabido, os recursos destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, constituindo, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso. Este entendimento, conforme com a natureza dos recursos e, subjacente às regras que dimanam do art.º 635, tem sido afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, com clareza e unanimidade, cfr. entre outros, (Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, pág. 26, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª Edição, pág. 153 a 158 e Ac. RC de 15.2.2011 e Ac. STJ de 28.4.2010, ambos in www.dgsi.pt).
“Nesta linha, vem a nossa jurisprudência, repetidamente, afirmando que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.”, como refere, (Amâncio Ferreira, obra citada, pág. 156).
Razão, porque, não pode agora, por via do recurso, este tribunal da Relação conhecer tal matéria, apreciando questão de facto que não foi apreciada na instância recorrida e, na sequência disso, introduzindo, eventualmente, alterações ou revogando a sentença impugnada no recurso.
Assim, improcede esta questão da apelação.
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Vejamos, agora, tendo-se decidido estar o acidente sofrido pelo A. coberto pelo seguro celebrado entre a empregadora e a seguradora, se o direito daquele, a ser indemnizado nos termos decorrentes da LAT, se encontra excluído por o mesmo ser portador de uma IPP que dá origem a uma pensão obrigatoriamente remível, como defende a recorrente, invocando para o efeito, aquela condição especial, com a redacção que se mostra transcrita, no ponto 22 dos factos provados.
No entanto, não tem razão, como bem se considerou na decisão recorrida.
Pois, tendo nós concluído que o acidente sofrido pelo A. é de trabalho e sendo o regime estabelecido para a responsabilidade por acidentes de trabalho imperativo e taxativo, não admitindo convenções das partes que o visem alterar, não poderia deixar de se considerar, aquela, nula (conforme decorre do art. 12º da LAT), já que o nela convencionado se mostra contrário aos direitos e garantias que aquela lei confere ao trabalhador.
Ou seja, aquela cláusula, da condição especial 01, em causa só pode ser considerada nula, como se refere na decisão recorrida, “entendemos que tal cláusula é nula, por aplicação do disposto no art. 12.º da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, por implicar a diminuição das garantias conferidas pela referida lei.”.
Em suma, concluímos, ao contrário do que defende a recorrente pela existência de um evento indemnizável à luz da Lei dos Acidentes de Trabalho, sendo a mesma a única responsável pelo ressarcimento das quantias devidas ao A. em consequência daquele.
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Analisemos, então, como questiona a recorrente, se ocorre insuficiência da decisão da matéria dada como provada para a decisão do pedido do ISS.
A este propósito, consta da decisão recorrida que, «Conforme resulta do elenco de facto provados, em consequência das lesões sofridas resultantes do acidente de trabalho, o A. esteve com baixa médica subsidiada de 22.03.2018 e 02.05.2018, tendo o Instituto da Segurança Social pago ao Autor a título de subsídio de doença, a quantia de € 485,85.
Nos termos do disposto no art. 7.º, nº 3, do DL nº 28/04, de 4 de fevereiro, tem o Instituto o direito a ser reembolsado pelos valores pagos.
Nestes termos, deve a Companhia de Seguros ser condenada a restituir ao ISS a quantia de € 485,85, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.».
Decisão que não nos merece censura, menos ainda, com base no argumento referido pela recorrente, basta atentar no ponto 11, dos factos provados de onde consta que em consequência do evento participado nos autos o A. esteve com baixa médica subsidiada de 22.03.2018 e 02.05.2018.
Improcede assim, também, esta questão da apelação.
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Por último, há que apreciar se devem os pontos 12 e 23 ser alterados e dados como provados, nos termos propostos pela recorrente, no sentido de evitar o pagamento do mesmo dano, pela mesma, ao sinistrado.
Surge esta questão, da argumentação, deduzida pela recorrente nas conclusões 40 e ss., da sua alegação, diga-se desde já errada, que a leva a concluir que incorreu em erro a sentença recorrida, por decidir duplamente o ressarcimento do A. no que respeita ao dano sofrido no período compreendido entre os dias 22.03 e 03.04.2018.
Insurge-se, quer quanto à alteração dos factos dados como provados nos pontos 12 e 23, considerando que em confronto com a prova documental, nomeadamente, do requerimento apresentado nos autos em 15/05/2018, que a Ré seguradora liquidou ao Autor/sinistrado a quantia de €3.175,44 a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária sofrido entre os dias 23.11.2017 a 03.04.2018 e de acordo com a certidão junta aos autos pelo ISS com o seu pedido de reembolso, este liquidou ao Autor a título de subsídio de doença por baixa médica, compreendida entre os dias 22.03 e 02.05.2018, a quantia global de €485,85, deveria ter sido dado como provado pelo Tribunal a quo, respectivamente, que: “12. A título de indemnização por ITA, o A. recebeu da R. seguradora a quantia de €3.175,44, respeitante ao período compreendido entre os dias 23.11.2017 a 03.04.2018” e que: “23. O ISS, IP pagou ao Autor, a título de subsídio por doença, entre os dias 22.03 a 02.05.2018, a quantia de €485,85”, quer quanto ao valor que foi condenada a reembolsar o ISS, defendendo que deveria ter sido condenada, naturalmente caso se entenda estarmos perante um acidente de trabalho, a restituir ao ISS apenas o valor de €164,49 (cento e sessenta e quatro euros e quarenta e nove cêntimos) (= €485,85 -€321,36).
Mas, sempre com o devido respeito, também a este propósito, não lhe assiste qualquer razão.
Desde logo, quanto à peticionada alteração da redacção do ponto 12 e 23, uma vez que a alteração pretendida quanto ao ponto 12, se mostra irrelevante, face ao que consta da redacção dada ao mesmo pelo Tribunal “a quo” e o que decorre do ponto 17 dos factos provados, já que será do que decorre destes que se irá apurar a quantia que a recorrente deve pagar ao A. a título de indemnização por ITA e porque a redacção que propõe para o ponto 23, já decorre do que consta deste e do ponto 11, também, dos factos provados.
Não assiste, assim, razão à recorrente, quanto ao imputado erro de julgamento da decisão de facto e não lhe assiste razão, quando considera ter sido condenada a pagar em duplicado o dano sofrido pelo A. entre os dias 22.03 e 03.04.2018.
Quanto ao período de ITA em discussão, consta da decisão recorrida o seguinte:
«Desde o dia 22.11.2017 a 06.05.2018 esteve na situação de Incapacidade Temporária Absoluta (165 dias).
Pela ITA no período indicado, tem o Autor direito a receber a quantia de € 4.078,49 (€ 12.888,74: 365 x 0,70 x 165 dias).
A título de indemnização por ITA, o A. recebeu da R. Seguradora a quantia de € 3.175,44 e a título de subsídio por doença, recebeu do ISS € 485,85.
Tem assim direito à diferença no montante de € 417,20.».
Ora, analisando a factualidade que ficou provada, nomeadamente, os factos 12 e 17, de onde decorre a quantia paga pela recorrente ao A., a título de ITA, e a quantia que devia ter pago correspondente ao período em que o mesmo esteve nessa situação, durante 165 dias, desde 22.11.2017 a 06.05.2018, a quantia que durante este período lhe foi paga pelo ISS e que a mesma, foi condenada a ressarcir e o montante constante da al. b) do dispositivo da sentença que, a mesma, tem de pagar ao A., verifica-se que a este não será paga quantia superior àquela a que tem direito, no montante € 4.078,49 (€ 12.888,74: 365 x 0,70 x 165 dias), nem a recorrente, tem de pagar quantia superior àquela por reembolsar o ISS, do montante em que foi condenada a fazê-lo, os referidos € 485,85.
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Assim, não merece a sentença recorrida, como já dissemos, qualquer reparo ao ter concluído pela verificação de um acidente de trabalho e, consequentemente, condenado a Ré na sua reparação ao A. e ao ISS, nos termos supra referidos.
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Improcedem, assim, todas ou são irrelevantes as conclusões da apelação.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção em julgar improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
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Valor da acção: € 7.105,07.
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Custas pela apelante.
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Porto, 27 de Abril de 2020
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
Domingos Morais