Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2692/20.5T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
Nº do Documento: RP202109202692/20.5T8STS-B.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de acesso aos tribunais não integra, necessariamente, o direito ao recurso ou o duplo grau de jurisdição, podendo o legislador ordinário, ampliar ou restringir os recursos civis, designadamente, através do estabelecimento de pressupostos de admissibilidade, em que a possibilidade de interposição de um determinado recurso fica dependente da respectiva verificação.
II- A regra vertida no nº 2 do artigo 644º do Código Processo Civil assume natureza excepcional, não admitindo, pois, aplicação analógica.
III- Em matéria recursória constitui regra geral que somente é admissível recurso de alguma decisão se o valor da causa exceder a alçada do tribunal de que se recorre e se, além disso, o valor da sucumbência exceder metade dessa alçada.
IV- Com a regulação da recorribilidade em função do valor ou da sucumbência o legislador visou compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciada por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos Tribunais Superiores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2692/20.5T8STS-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Santo Tirso – Juízo de Comércio, Juiz 4
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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SUMÁRIO
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I. RELATÓRIO

No âmbito do processo de insolvência de B… foi proferido despacho que estabeleceu em €1.000,00 a remuneração fixa do administrador da insolvência.
Inconformado com o aludido ato decisório veio o administrador da insolvência, C…, interpor recurso do mesmo, recurso que, todavia, não foi admitido pelo tribunal a quo com a seguinte fundamentação: «[a]tenta a data da entrada da presente ação, a alçada da primeira instância estava já fixada em € 5.000,00 (que vigora desde 1 de janeiro de 2008 - cfr. D.L. n.º 303/2007, artigo 11.º).
Ora, dispõe o artigo 629.º, n.º 1 do código de processo civil que “só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal...”. Na situação presente, ainda que se atendesse ao valor da própria causa, este está fixado em 400,00 €, valor dado pelo requerente e que foi fixado na sentença que declarou a insolvência, que nunca foi alterado nem colocado em causa, dado que não foi apreendido qualquer bem.
Pelo que, e atendendo ao disposto no artigo 15.º do CIRE, não há qualquer fundamento para alterar o valor dado à causa pela requerente. E, assim sendo, o recurso apresentado, neste caso, nem atendendo ao valor da causa, seria admissível.
Por outro lado, e concretamente no que concerne ao objeto do recurso, o despacho aqui recorrido afeta o recorrente patrimonialmente, é certo, e por isso aquele seria suscetível de impugnação mediante recurso, mas desde que se verificassem os necessários pressupostos, designadamente de valor. Ora, em causa está um incidente referente a valor a fixar a título de remuneração a um dos intervenientes no processo e o seu conteúdo está limitado pelo valor relativamente ao qual o Sr. Administrador da insolvência entende ser o adequado, no caso ao total de € 2.000,00, tendo sido fixado o valor de €1.000,00, por se entender que apenas se venceu uma prestação, dado o encerramento dos autos e o período de tempo de exercício de funções. Pelo que, o valor do decaimento é de €1.000,00. Ou seja, atendendo ao valor do incidente, ao decaimento e ao próprio valor da causa, tal decisão é insuscetível de recurso.»
O administrador da insolvência veio, ao abrigo do preceituado no art. 643º do Código de Processo Civil, reclamar desse despacho para o Tribunal da Relação, concluindo que deve ser admitido o recurso por si interposto.
Foi então proferida decisão pelo relator julgando improcedente a presente reclamação.
Inconformado com essa decisão, veio agora o reclamante apresentar reclamação para a conferência, requerendo que recaia acórdão sobre a matéria que consubstancia objecto da reclamação.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender para efeito de decisão da presente reclamação é a que dimana do antecedente relatório.
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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se referiu, a questão que se debate nestes autos é a de saber se o despacho proferido pela 1ª instância - que estabeleceu em €1.000,00 a remuneração fixa do administrador da insolvência - é ou não passível de recurso.
O decisor de 1ª instância concluiu pela negativa, sendo que esse sentido decisório foi confirmado na decisão singular prolatada no âmbito da presente reclamação em moldes que este colectivo considera não serem merecedores de censura, posto que as questões que nela foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos acertada.
Como assim, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão e que se passam a transcrever:
«Como é consabido, a reclamação prevista no art. 643º do Código de Processo Civil[1] é o mecanismo que a lei adjectiva confere à parte para reagir contra um despacho que não admite um recurso por ela interposto ou nas situações em que se verifique a retenção indevida de recurso que tenha sido admitido, mas em que, por qualquer razão, seja negada a sua remessa, solução que agora encontra expressa consagração tanto no nº 6 do art. 641º como no nº 4 do art. 643º.
Portanto, o único pedido concebível no âmbito da reclamação é o de que seja admitido recurso que foi objeto de despacho de indeferimento ou de retenção no tribunal a quo. O fundamento é que pode variar consoante os motivos da rejeição (irrecorribilidade, extemporaneidade, falta de legitimidade) cabendo ao reclamante argumentar no sentido de convencer o tribunal superior do desacerto da decisão reclamada.
No caso vertente, como se referiu, o juiz a quo não admitiu o recurso que o administrador da insolvência interpôs do despacho jurisdicional que fixou o valor global da sua remuneração por uma dupla ordem de razões: (i) o valor da causa é inferior ao valor da alçada do tribunal recorrido; (ii) a sucumbência é inferior a metade dessa alçada.
Que dizer?
Sobre estes requisitos formais de admissibilidade do recurso rege o art. 629º, que no seu nº 1 enuncia a regra geral de que somente é admissível recurso de alguma decisão se o valor da causa exceder a alçada do tribunal de que se recorre e se, além disso, o valor da sucumbência exceder metade dessa alçada.
Como tem sido especialmente sublinhado pela doutrina pátria[2], com a regulação da recorribilidade em função do valor ou da sucumbência o legislador visou compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciada por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos Tribunais Superiores. Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição é suscetível de conferir mais segurança às decisões judiciais, não deve servir para confrontar Tribunais Superiores de forma massificada.
In casu, o valor da sucumbência é apenas de €1.000,00, traduzindo este o interesse económico que está em discussão no recurso, posto que, como se referiu, no despacho sob censura foi fixada em €1.000,00 a remuneração global do administrador da insolvência, formulando este pretensão recursória no sentido de essa remuneração ser fixada em €2.000,00.
Destarte, por via da enunciada regra geral, o aludido ato decisório não é passível de recurso por falta de verificação do pressuposto da sucumbência, dado que esse valor é inferior a metade do valor da alçada do Tribunal recorrido que é presentemente de €5.000,00 (cfr. art. 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26.08).
Acresce que, ao invés do entendimento sufragado pelo reclamante, não pode aplicar-se a regra vertida na al. e) do nº 2 do art. 644º - que pressupõe, naturalmente, a ocorrência dos mencionados pressupostos formais - ou por analogia a regra plasmada no nº 6 do art. 27º do Regulamento das Custas Processuais, dada a sua natureza de norma excecional o que, por mor do disposto no art. 11º do Cód. Civil, afasta a sua aplicação analógica, não se verificando sequer uma identidade fundamental ou paralela entre os interesses tutelados por tal normatividade e os interesses que o apelante pretende a acautelar, sendo certo que em momento algum do despacho objeto de recurso lhe foi imposta uma penalidade ou sanção processual no sentido jurídico do termo. Haverá, outrossim, de ressaltar que os arestos que o reclamante convoca em arrimo do seu posicionamento (concretamente os acórdãos do STJ de 16.06.2015 [processo nº 1008/07.0TBFAR.D.E1.S1] e de 26.03.2015 [processo nº 2992/13.0TBABF-A.E1.S1]) não dizem respeito a situações como a dos autos, mas antes a multas aplicadas em processo executivo, havendo ainda que sublinhar que a casuística – mormente deste Tribunal da Relação[3] - que se tem pronunciado sobre esta temática vem decidindo no sentido da inadmissibilidade da pretensão recursória por falta de verificação do pressuposto formal da sucumbência.
Registe-se, por último, que não se antolha de que modo a não admissão do recurso por falta de sucumbência afronte qualquer dimensão normativa de cariz constitucional.
De facto, neste conspecto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional[4] vem recorrentemente sublinhando que, fora do domínio do processo criminal, o legislador ordinário goza de ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos.
É certo que esta asserção não significa que nessa conformação não existam limites materiais, posto que a temática dos recursos não se situa em campo totalmente neutro e indiferente aos valores constitucionalmente tutelados.
Isso mesmo tem sido enfatizado pela aludida casuística, ao considerar que estará vedado, na expressão do acórdão nº 287/90, à lei ordinária a «redução intolerável ou arbitrária do direito ao recurso», desenvolvida à luz do princípio do Estado de Direito democrático.
No entanto, embora a garantia da via judiciária não possa deixar de compreender, em termos genéricos e tendenciais, a proteção contra atos jurisdicionais, incorporando o direito de ação o próprio direito de defesa contra decisões judiciais, a efetivar mediante a instância de recurso, certo é que o direito ao recurso não pode configurar-se como um direito absoluto ou ilimitado: o que existe é, como se assinala no referido aresto, «um genérico direito de recurso dos atos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude».
Consequentemente, nesta matéria, o direito de recurso é restringível pelo legislador ordinário, ao qual apenas estará vedada a abolição completa ou a afetação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária) desse direito.
Respeitados estes limites (materiais) o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos civis, mormente através da alteração dos respetivos pressupostos de admissibilidade[5].
A esta luz, não se vê, pois, de que modo a assinalada regra da sucumbência - a que igualmente está subordinado o recurso interposto pelo ora reclamante -, afronte qualquer regra constitucional (mormente as que se mostram plasmadas nos arts. 13º e 20º da Lei Fundamental), porquanto essa conformação não se revela, sob um ponto de vista objetivo, arbitrária ou desproporcionada, sendo que a respetiva ratio essendi assenta, como se assinalou, no claro propósito de libertar os tribunais superiores da apreciação de questões sem suficiente relevo».
Atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora transcritas, não se vislumbra razão válida para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente às concretas questões que nela foram objeto de apreciação.
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IV- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo-se a decisão singular, já que o recurso interposto pelo reclamante não é processualmente admissível por falta de sucumbência.
Custas a cargo do reclamante, fixando-se a respectiva taxa de justiça em uma UC.
Notifique.

Porto, 20.9.2021
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 38, RIBEIRO MENDES, Recursos e Processo Civil, págs. 152 e seguinte e LOPES DO REGO, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág. 83, onde escreve que «temos como evidente que não pode pretender pôr-se seriamente em causa a existência, no ordenamento processual, de limites objetivos à admissibilidade do recurso, estabelecidos para as causas de menor relevância, tendo em conta a natureza dos interesses nelas envolvidos ou a sua repercussão económica para a parte vencida; é que tais limitações derivam, em última análise, da própria “natureza das coisas”, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos tribunais inferiores, sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais (…)».
[3] Cfr., inter alia, decisões desta Relação de 20.07.2016 (processo n.º 2902/15.0 T8STS), de 4.01.2017 (processo n.º 755/16.0T8STS), de 24.02.2017 (processo n.º 2155/16.3 T8STS), de 20.10.2018 (processo n.º 229/18.5T8STS), de 6.06.2019 (processo n.º 128/19.3 T8STS-B), de 14.05.2020 (processo 242/19.5T8STS-C), de 30.04-2020 (processo n.º 1882/19.8T8STS-B.P1) e de 18.01.2021 (processo n.º 2341/20.1T8STS-B).
[4] Cfr., inter alia, acórdãos nºs 358/86, 148/87, 287/90, 266/93 e 266/15, todos acessíveis em acórdãos do Tribunal Constitucional in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido se pronunciam expressamente RIBEIRO MENDES (in Recursos em Processo Civil, 1992, pág. 101 e seguinte) e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 164).