Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2303/16.3T8AGD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
ABUSO DE DIREITO
CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
Nº do Documento: RP201811082303/16.3T8AGD-B.P1
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 150, FLS 248-256)
Área Temática: .
Sumário: Não há abuso de direito por parte da exequente que, perante o incumprimento das obrigações assumidas pelos mutuários no âmbito de contrato de mútuo com estes celebrado, e tendo um dos mutuários entretanto falecido, não reclama da seguradora o pagamento do capital em dívida à data do óbito, e instaura acção executiva contra a mutuária sobreviva e os fiadores, se o contrato de seguro Ramo Vida, associado ao contrato de mútuo, já não se achava em vigor à data da morte do mutuário/segurado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2303/16.3T8AGD-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Águeda

Relatora: Judite Pires
1ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2ª Adjunta: Des. Inês Moura

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. Por apenso à acção executiva contra eles instaurada, B... e C... deduziram embargos de executado contra D..., SA alegando, em síntese, que figuram nos contratos de mútuo dados à execução na qualidade fiadores.
Subjacente aos aludidos contratos, e por imposição da exequente, foram celebrados três contratos de seguro de vida com a Companhia de Seguros E..., SA, para garantia das responsabilidades dos obrigados principais, perante a exequente, em caso de morte ou invalidez daqueles.
A beneficiária dos referidos contratos de seguro é a ora exequente.
No dia 11 de Julho de 2014 faleceu o co-executado F..., o que foi comunicado à exequente em data que não conseguem precisar.
Em momento algum foi reportado aos ora embargantes qualquer problema com os seguros de vida já referenciados.
A exequente não podia intentar a execução sem informar previamente os embargantes das diligências realizadas com vista a acionar os seguros de vida e das razões pelas quais não lhe foi possível obter a satisfação do crédito através do segurador.
A exequente era a única que poderia acionar os seguros, porquanto é a beneficiária dos mesmos, pelo que age em abuso de direito.
Admitidos os embargos de executado, foi notificada a exequente para contestar, o que fez.
Alegou, em síntese, que só teve conhecimento do falecimento do co-executado F... por comunicação da agente de execução, já quando se encontrava pendente a execução.
Da informação colhida junto da Companhia de Seguros E1... apurou que duas das apólices a que se referem os executados foram canceladas por falta de pagamento do prémio, em 30.04.2012, e a terceira foi cancelada com o fundamento de vencimento sem indemnização.
Alega ainda que apenas os herdeiros do falecido tinham legitimidade para acionar os seguros em causa.
Conclui não se verificar o invocado abuso de direito.
Procedeu-se à realização da audiência prévia, no decurso da qual foi, em sucesso, tentada a conciliação das partes, tendo sido dada a palavra aos mandatários das partes para os termos e efeitos do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.
Foi, após, proferida decisão que, julgando improcedentes os embargos de executado deduzidos, determinou o prosseguimento da acção executiva.
2. Não se resignaram com tal sentença os embargantes, pelo que dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
a) - Foram incorrectamente julgados e deviam ter sido dados como não provados os factos vertidos nas alíneas Q), R) e S) dos factos provados.
b) Não há qualquer prova nos autos que permita ao tribunal “a quo” dar como provados os factos constantes das alíneas Q), R) e S) dos factos provados.
c) Os executados, ora recorrentes, deram total cumprimento ao ónus da prova dos factos que alegaram.
d) O regime de resolução «automática» de contratos de seguro por falta de pagamento de prémios, que veio a constituir o sistema que o Decreto-Lei n.º 142/00 de 15 de Julho definiu para a generalidade dos seguros (artigo 8º, n. 1), não é aplicável ao contrato de seguro do ramo «Vida» (artigo 1, nºs 1 e 2).
e) A simples falta de pagamento de prémio de contrato de seguro (de vida) não confere só por si à instituição seguradora o direito de resolução do contrato, o qual depende ainda, da conversão da mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante notificação admonitória nos termos do artigo 808º do Código Civil.
f) Em momento algum a instituição seguradora procedeu à conversão da mora em incumprimento definitivo, expedindo as respectivas comunicações.
g) Não podiam os embargantes, ora recorrentes, provar o que nunca existiu.
h) Por entenderem que a junção aos autos das tais comunicações resolutivas dos referidos contratos de seguro (caso existissem), demonstrativas de que os mesmos haviam sido validamente resolvidos, se afigurava indispensável para a boa decisão da causa segundo as várias soluções de direito admissíveis, os embargantes, em sede de embargos, requereram a intervenção principal provocada da E1... Companhia de Seguros, S.A. e em 08/02/2018, através do requerimento com a referência 6763279, requereram, ao abrigo do disposto no artigo 432º do CPC, que se ordenasse a notificação da E1... – Companhia de Seguros, S. A., para que juntasse aos autos os documentos comprovativos da válida resolução dos contratos de seguro com as Apólices Vida Grupo ....... Participante ...... e Vida Grupo ....... Participante .......
i) O tribunal “a quo” indeferiu a requerida intervenção principal provocada e o requerimento de 08/02/2018 não foi sequer objecto de qualquer despacho.
j) O tribunal “a quo” deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia apreciar e que podia influir no exame ou na decisão da causa, ocorre uma nulidade da sentença em crise, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, e que aqui expressamente se invoca.
k) Os recorrentes lograram dar cumprimento ao ónus de prova que lhes competia, relativamente aos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela Recorrida.
l) Houve erro na apreciação da prova e no julgamento da matéria de facto (art. 640º, n.º 1, alíneas a) e b) e do art. 662º todos do CPC) que importa reparar.
m) Alterando-se a decisão sobre a matéria de facto, como se requer, e considerando todos os meios de prova constantes do processo, nos termos do art. 640º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, deve: julgar-se como não provada a matéria de facto vertida nas alíneas Q), R) e S) dos factos provados.
n) A sentença recorrida violou, além do mais, o disposto no artigo 334.º do Código Civil e artigo 102.º, n.º 1 do actual Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.
o) Subjacente aos aludidos contratos de mútuo que servem de título executivo à presente execução, e que foram outorgados pelos recorrentes na qualidade de fiadores, foram igualmente celebrados três contratos de seguro de vida com a Companhia de Seguros E..., S.A., para garantia das responsabilidades dos obrigados principais, perante a exequente, em caso de morte ou invalidez daqueles.
p) A exequente é a beneficiária dos três contratos de seguro de vida celebrados.
q) No dia 11 de julho de 2014, faleceu o executado, e obrigado principal nos referidos contratos, F..., o que foi comunicado à exequente em data que não é possível precisar, mas logo após o referido óbito.
r) O óbito do executado F... foi, ainda, comunicado à exequente e à Companhia de Seguros E..., S.A., por comunicação remetida pelo mandatário dos ora opoentes em abril de 2016.
s) Pese embora o falecimento do executado lhe tenha sido comunicado, a exequente, ignorando a morte, desconhecendo-se se conscientemente ou por esquecimento, instaurou a presente execução também contra o falecido.
t) Face ao comportamento da exequente, os opoentes ficaram sem saber que diligências foram encetadas pela exequente antes de instaurar a presente execução, para accionar os seguros de vida subjacentes aos contratos de mútuo celebrados e, dessa forma, receber da Companhia de Seguros E... todos os montantes que lhe eram devidos pelo falecido.
u) Não se pode olvidar que a Companhia de Seguros E..., S.A. pertence /pertencia ao mesmo grupo económico ou financeiro da exequente, o que talvez ajude a explicar a razão pela qual a exequente não tenha procurado a satisfação do seu crédito junto do segurador.
v) Mas uma tal atitude é inteiramente contrastante com o princípio regulador estruturante sobre cujo signo as partes devem actuar na execução da relação contratual: a boa fé (art. 762º n.º 2 do CC).
w) Em momento algum a exequente reportou aos recorrentes qualquer problema com os seguros de vida subjacentes aos contratos de mútuo que afiançaram.
x) E segundo os recorrentes lograram apurar, a instituição seguradora, no exercício do seu direito de resolução do contrato e atenta a alegada falta de pagamento dos prémios dos contratos de seguro (de vida), não converteu a mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante a notificação admonitória prevista no artigo 808º do Código Civil.
y) Foram precisos quase três anos após o óbito para instaurar a presente execução.
z) Este comportamento da exequente criou nos opoentes a convicção segura e a expectativa de que, face aos seguros de vida subjacentes aos contratos e ao óbito do segurado, os contratos de mútuo seriam pagos pela Companhia de Seguros E..., S.A.
aa) A exequente não podia intentar a presente execução sem informar previamente os opoentes das diligências realizadas com vista a acionar os seguros de vida e, se fosse o caso, das razões pelas quais não lhe é comprovadamente possível obter aquela satisfação junto do segurador.
ab) Face à comunicação do óbito, a exequente deveria ter indagado junto da seguradora qual a concreta situação jurídica dos contratos de seguro de vida existentes e dos quais era única beneficiária, comunicando tal facto aos opoentes, maxime tratando-se de empresas do mesmo grupo económico.
ac) E por ter agido de outra forma, propondo, sem mais, a presente execução, é que a exequente não deve merecer a tutela do direito.
ad) A execução dos título existentes ofende os princípios da boa fé e dos bons costumes, previstos no artigo 334.° do Código Civil.
ae) A exequente tinha e tem três seguros de vida feitos em seu exclusivo favor, para com os mesmos satisfazer os seus créditos no caso de morte do segurado. Porém,
af) A exequente, única que pode accionar os seguros, porque feito em seu favor, não actuou contra a seguradora.
ag) Se não actuou contra a seguradora, não pode sem pelo menos tentar cobrar da seguradora, exigir o pagamento aos ora opoentes.
ah) Uma vez feitos os seguros de vida a favor da exequente, só ela pode pedir o respectivo pagamento.
ai) Se não o fez, deixa a porta aberta, sem qualquer explicação da razão porquê. Assim,
aj) Não servindo de razão o facto de não lhe interessar tentar cobrar os seus créditos da seguradora, por se tratar de uma empresa que pertence ou pertenceu ao mesmo grupo económico. ak) É, assim, manifesto que estamos perante um caso gritante da aplicação do artigo 334.° do Código Civil.
al) Só com má-fé se pode entender que a exequente tenha ignorado por completo o óbito do executado F... e as consequências do mesmo face aos seguros de vida contratados.
am) Ao abrigo do disposto no artigo 334.° do Código Civil, e porque entendemos que o Banco ao exigir dos devedores - fiadores o seu crédito, age com malícia, má fé refinada, nada mais lhe deverá restar do que accionar, se o entender, a respectiva seguradora.
an) A dívida emergente dos contratos de mútuo que servem de título à presente execução não é exigível nos termos em que se encontra definida na petição executiva.
ao) A sanção para o abuso de direito neste caso consiste apenas na neutralização da presente acção executiva.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO,
Deve, assim, revogar-se a parte em crise do despacho saneador recorrido, substituindo-o por outro que julgue procedentes os embargos deduzidos pelos recorrentes e, consequentemente, ser determinada a extinção da presente execução. Caso assim não se entenda, deverá julgar-se verificada a nulidade da sentença proferida nos termos já assinalados e, em consequência, ser o processo reenviado para o tribunal “a quo” a fim de se aferir da válida resolução dos contratos de seguro subjacentes aos contratos de mútuo que servem de título à execução, assim se fazendo JUSTIÇA!
A apelada apresentou contra-alegações nas quais pugna pelo não provimento do recurso e confirmação da sentença.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se ocorreu erro na apreciação da prova;
- se é nula a sentença;
- se a exequente actuou com abuso de direito ao instaurar execução contra os embargantes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
A) No exercício da sua atividade creditícia, a exequente D..., S.A. celebrou com os executados F... e mulher G..., um contrato de mútuo com hipoteca e fiança no montante de € 76.492,58, formalizado por escritura pública, lavrada em 3 de Novembro de 2005.
B) Contrato esse em que os embargantes se constituíram como fiadores e principais pagadores à exequente de todas e quaisquer quantias que viessem, a ser devidas no seu âmbito, e aceitando quaisquer modificações que viessem a ser convencionadas entre os executados e a exequente.
C) Em virtude de tal contrato, a ora exequente disponibilizou aos mutuários, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-la nos termos acordados.
D) Através da escritura pública referida em A), e em garantia do referido empréstimo os executados constituíram a favor da exequente D..., S.A., que aceitou, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e sótão, sito na Rua ..., n.°.., freguesia ..., concelho de Vagos, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1479º da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o n.° 674 da freguesia ..., hipoteca esta registada a favor da ora exequente através da Ap. 14 de 2005/10/11.
E) A partir de 03.09.2012, os Mutuários deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do contrato de mútuo com hipoteca e fiança referenciado em A).
F) Ainda no exercício da sua atividade creditícia, a exequente D..., S.A. celebrou com os executados F... e mulher G..., um contrato de mútuo com hipoteca e fiança no montante de € 22.000,00, formalizado por escritura pública, lavrada em 3 de Novembro de 2005.
G) Contrato esse em que os embargantes se constituíram como fiadores e principais pagadores à exequente de todas e quaisquer quantias que viessem, a ser devidas no seu âmbito, e aceitando quaisquer modificações que viessem a ser convencionadas entre os executados e a exequente.
H) Em virtude de tal contrato, a ora exequente disponibilizou aos mutuários, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-la nos termos acordados.
I) Através da escritura pública referida em F), e em garantia do referido empréstimo os executados constituíram a favor da exequente D..., S.A., que aceitou, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e sótão, sito na Rua ..., n.° .., freguesia ..., concelho de Vagos, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1479º da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o n.° 674 da freguesia ..., hipoteca esta registada a favor da ora exequente através da Ap. 15 de 2005/10/11.
J) A partir de 03.04.2012, os Mutuários deixaram de efectuar o pagamento das prestações a que se haviam vinculado através do contrato de mútuo com hipoteca e fiança referenciado em G).
K) Ainda no exercício da sua actividade creditícia, a exequente D..., SA celebrou com os executados F... e mulher G... um contrato de mútuo com hipoteca e fiança no montante de € 20.356,60 formalizado por título de mútuo com hipoteca lavrado em 12 de junho de 2009, na Conservatória de Registo Predial de Águeda.
L) Contrato esse em que os embargantes se constituíram como fiadores e principais pagadores à exequente de todas e quaisquer quantias que viessem a ser devidas no seu âmbito e aceitando quaisquer modificações que viessem a ser convencionadas entre os executados e a exequente.
M) Em virtude de tal contrato, a ora exequente disponibilizou aos mutuários, pela forma convencionada, a quantia mutuada que estes receberam nos termos contratuais, utilizaram em seu proveito e de que expressamente se confessaram devedores, obrigando-se a amortizá-la nos termos acordados.
N) Através do título referido em K), e em garantia do referido empréstimo os executados constituíram a favor da exequente D..., S.A., que aceitou, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e sótão, sito na Rua ..., n.°.., freguesia ..., concelho de Vagos, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1479º da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vagos sob o n.°674 da freguesia ..., hipoteca esta registada a favor da ora exequente através da Ap. 1360 de 2009/06/12.
O) A partir de 12.07.2012, os mutuários deixaram de efectuar o pagamento das prestações a que se haviam comprometido através do contrato de mútuo com hipoteca e fiança referenciado em K).
P) Associados aos contratos de mútuo supra referenciados estão os seguintes contratos de seguro, dos quais a exequente era a beneficiária:
1) “Pessoa Segura ......” da Apólice ......., com o n° de processo ...................... e capital seguro de 70.699,96€;
2) “Pessoa Segura ......”, da Apólice ......., com o n° de processo ...................... e capital seguro de 20.333,99€;
3) “Pessoa Segura ......” da Apólice ....... com o n° de processo ...................... e capital seguro de 20.333,99€.
Q) O contrato referido em P.1 foi anulado por falta de pagamento.
R) O contrato referido em P.2 foi anulado por falta de pagamento.
S) O contrato referido em P3 terminou em 17.05.2014.
T) O executado F... faleceu em 11.07.2014.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Nulidade da sentença.
Imputam os recorrentes à sentença que impugnam vício de nulidade que reconduzem à previsão do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
Alegam, para o efeito, que tendo sido indeferida a intervenção principal por eles requerida, sobre o requerimento que apresentaram a 8.02.2018 não recaiu qualquer despacho.
Dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do aludido diploma:
É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Tal como o n.º 1 do artigo 668.º do precedente diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[1], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[2].
O artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil correlaciona-se com o estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma legal, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras.
Como esclarecia Anselmo de Castro, ainda no âmbito da aplicação da pretérita lei adjectiva[3], «o vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.
A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
Os apelantes opuseram-se, por meio de embargos de executado, à execução contra eles instaurada. Neles invocam a inexigibilidade do crédito exequendo “por manifesto abuso de direito”, alegando que, tendo falecido o mutuário, face à comunicação do óbito devia a exequente ter diligenciado junto da seguradora, com quem aquele celebrou três seguros de vida a favor da mutuante, para obter a satisfação do seu crédito. Não o tendo feito, tendo, ao invés, exigido aos embargantes, enquanto fiadores nos contratos de mútuo, o pagamento da quantia em dívida através da execução contra eles instaurada, actuou com abuso de direito.
Findam o articulado de oposição pedindo que, julgada procedente a oposição deduzida, concluindo-se pelo abuso de direito da exequente e pela inexigibilidade do crédito exequendo, seja determinada a extinção da execução.
De tal pretensão cuidou a sentença recorrida de apreciar, concluindo que não estando os contratos de seguro Ramo Vida associados aos contratos de mútuo em vigor à data do óbito do mutuário, não tinha a exequente que os acionar, nada, assim, a impedindo de instaurar a acção executiva contra os mutuários e os fiadores.
Pronunciou-se, pois, a sentença sobre todas as questões suscitadas pelos embargantes, pelo que não padece da nulidade que lhe é apontada.
Se omissão de pronúncia houve foi quanto ao requerimento de fls. 44 a 46, mas a circunstância de o tribunal não ter tomado posição sobre o aí requerido não traduz vício que se directamente afecte a sentença.
2. Reapreciação da matéria de facto.
Insurgem-se os recorrentes contra a apreciação da matéria de facto relativamente aos pontos Q), R) e S) dos factos provados, afirmando não existir nos autos prova que sustente tal decisão.
Ao contrário, porém, do que argumentam os recorrentes, tal prova existe: os factos vertidos nos aludidos segmentos decisórios mostram-se confirmados pela informação de fls. 33 e documentos que a acompanham, prestada aquela e juntos estes pela entidade seguradora, na sequência do despacho de fls. 32, nenhum deles se mostrando impugnado, não tendo o tribunal recorrido de ajuizar, em sede de apreciação da prova e no âmbito da oposição deduzida à execução, se os contratos de seguro foram validamente resolvidos.
Improcede, consequentemente, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, mantendo-se a mesma sem alterações.
3. Da aplicação do Direito aos factos.
3.1. Abuso de direito.
Tendo os mutuários incumprido as obrigações assumidas para com a mutuante com a celebração dos contratos de mútuo mencionados nas alíneas A), C), F), H), K) e M) dos factos provados, nos quais os ora apelantes se constituíram como fiadores e principais pagadores, veio a entidade mutuante, com base nos referidos contratos, instaurar acção executiva contra os mutuários e fiadores com vista à cobrança coerciva das quantias em dívida.
Os fiadores, aqui recorrentes, opuseram-se à execução por meio de embargos invocando ter a exequente, ao instaurar contra eles a execução sem ter previamente acionado os seguros Ramo Vida associados àqueles contratos – dado ter entretanto falecido o mutuário F... – actuado com abuso de direito, que reconduzem à previsão do artigo 334.º do Código Civil.
Segundo o referido dispositivo legal, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela[4], aquele normativo adoptou a concepção objectiva de abuso de direito, não sendo necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido, bastando que se excedam esses limites.
O normativo em causa traduz, assim, a ideia de que não basta ser titular de um direito para, sem limites, o mesmo poder ser exercido. O exercício de qualquer direito está sujeito a limitações e restrições.
Para Cunha e Sá[5] o abuso de direito constitui um fenómeno revelador de que o direito subjectivo não pode ser abstractamente encarado em termos meramente conceitualistas, pois que em certa e determinada situação, experimentalmente concreta, podemos descobrir concordância com a estrutura formal de um dado direito subjectivo e, simultaneamente, discordância, desvio, oposição, ao próprio valor jurídico que daquele comportamento faz um direito subjectivo, concluindo que “neste encobrir, consciente ou inconscientemente, a violação do fundamento axiológico de certo direito com o preenchimento da estrutura formal do mesmo direito é que reside o cerne, a essência do abuso de direito”.
Defende, a propósito, Castanheira Neves[6], que o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados.
Assim, uma das restrições ao exercício de direitos subjectivos é justamente imposta pela necessidade de salvaguarda da boa fé da parte contrária, estando vedado o exercício do direito cujo titular exceda manifestamente os limites da boa fé.
Não basta, todavia, a existência de uma qualquer atitude ou conduta contraditória para que se recaia na figura do abuso de direito.
Para que este possa ocorrer exige-se que aquele contra quem é invocado tenha criado uma situação objectiva de confiança, isto é, que haja adoptado um comportamento que “objectivamente considerado, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira (…). Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”[7].
Exige-se ainda que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tome “disposições ou organize planos de vida de que lhe surgirão dúvidas, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada”[8].
Finalmente, exige-se também a boa fé de que quem confiou.
Como se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 16.11.2004[9], o “instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça. Há que afrontar o problema em sede da tutela da confiança e do venire contra factum proprium, como uma das manifestações do abuso de direito.
Esta variante do abuso de direito equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé”.
Para Baptista Machado[10], a ideia que subjaz à proibição do “venire contra factum proprium” é a do “dolus praesens”, que radica nos seguinte pressupostos:
a) - deve verificar-se uma situação objectiva de confiança - o ponto de partida é uma conduta anterior de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira;
b) - o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando a contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustada, sendo necessário que se verifique uma situação de causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento dessa contraparte e que este haja sido feito com base na dita confiança, importando que o dano não seja irreversível, ou seja, que a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória;
c) - que haja boa-fé da contraparte que confiou, o que equivale a dizer que a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esta esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
Para Menezes Cordeiro[11] são quatro os pressupostos de protecção da confiança ao abrigo da figura “venire contra factum proprium”:
“(...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.
Com a celebração dos contratos de seguro referido em P) dos factos provados, de que é beneficiária a exequente, teria esta direito a receber da seguradora o capital em dívida no momento da ocorrência da morte do mutuário/segurado. Competia, deste modo, à mutuante, comunicado o óbito do mutuário/segurado e recebidos os documentos eventualmente necessários à liquidação pela seguradora do capital em dívida à data daquele evento, reclamar da seguradora o cumprimento das obrigações derivadas dos contratos de seguro[12] .
Porém, não se achando já em vigor os contratos de seguro associados aos contratos de mútuo à data do óbito do mutuário, como sucede no caso aqui em debate, não tinha a mutuante que reclamar da seguradora – até porque sobre esta já não recaía qualquer obrigação derivada do seguro - o pagamento do capital em dívida àquela data, nada obstando, assim, que exigisse tal pagamento ao mutuário sobrevivo e aos fiadores, os quais, nos termos n.º 1 do artigo 627.º do Código Civil, garantem “a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado[s] perante o credor”.
Não actuou, assim, a exequente com abuso de direito ao instaurar acção executiva contra a mutuária e os fiadores para obter o pagamento das quantias exequendas, não sendo igualmente abusiva a sua actuação pelo facto de só ter instaurado a execução volvidos cerca de dois anos sobre a data do falecimento do mutuário F...: esse retardamento não revela suficiência bastante para fundamentar nos devedores a formação da convicção de que o pagamento da dívida não seria reclamado.
Acertadamente decidiu a sentença recorrida julgar improcedentes os embargos de executado, determinando o prosseguimento da acção executiva instaurada, pelo que se mantém, improcedendo o recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas: pelos apelantes.

Porto, 8 de Novembro de 2018
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
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[1] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[3] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.
[4] “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 286.
[5] “Abuso de Direito”, pág. 456.
[6] “Questão de facto – Questão de direito”, nota 46, pág. 526.
[7] Baptista Machado, “Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium”, RLJ, ano 118º, págs. 171, 172.
[8] Ibid.
[9] Processo nº 2463/04, www.dgsi.pt.
[10] “Obra Dispersa”, I vol., págs. 415 e segs.
[11] Revista da Ordem dos Advogados, ano 58º, Julho de 1998, pág. 964.
[12] Neste sentido, cfr. acórdão da Relação do Porto de 16.07.2007, processo n.º 0753388, www.dgsi.pt.