Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2685/15.4T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CESSAÇÃO DA SUSPENSÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONTRATO INTERNACIONAL DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS POR ESTRADA
Nº do Documento: RP201801112685/15.4T8MTS.P1
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 119, FLS.158-170)
Área Temática: .
Sumário: I - Se, bem ou mal, o tribunal fundamenta a decisão, não ocorre nulidade da sentença por falta de fundamentação (art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil).
II - Se o tribunal conhece das questões que deve apreciar, conforme o pedido e a causa de pedir da ação, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia (al. d) do citado nº 1 do art.º 615º).
III - Com vista à cessação da suspensão do prazo de prescrição do direito do expedidor, em sede de aplicação da CMR, a rejeição pelo transportador, da reclamação por aquele apresentada relativamente a danos ocorridos no transporte da mercadoria expedida deve ser clara e inequívoca no sentido de que é o próprio transportador que a rejeita.
IV - Não significa rejeição da reclamação pelo transportador, e não vale para aquele efeito, a mera recondução que aquele efetua para o expedidor da posição que o seu segurador de carga no transporte lhe faz no sentido de que não assume a responsabilidade pelo dano com base no contrato de seguro.
V - Assim, suspenso o prazo prescricional por força da reclamação escrita apresentada pelo expedidor junto do transportador, como tal se mantém até que o último manifeste junto daquele a sua posição pessoal de (eventual) rejeição por escrito da reclamação, nos termos do nº 2 do art.º 32º da CMR.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2685/15.4T8MTS.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
“B…, LDA.”, sociedade comercial, com sede na Avenida …, n.º …, …. - …, freguesia de União de Freguesias de …. (… e …) e …, do concelho de Viana do Castelo, instaurou ação declarativa com processo comum contra C…, S.A., com sede na Rua …, nº …, …. - …, freguesia de …, Matosinhos, alegando essencialmente o seguinte:[1]
A A. dedica-se à construção, reparação e montagem de tubagens, dedicando-se a R. ao exercício da atividade de transitário, incluindo a intervenção em despachos aduaneiros, no transporte nacional e internacional de mercadorias por qualquer meio e via, no armazenamento e distribuição de quaisquer produtos, bem como na prestação de quaisquer serviços conexos com essas atividades.
Naquele exercício, a A. acordou com a “D…, S.A.”, com sede na Suíça, o fornecimento de trinta e três varandins, com um total de duzentos e vinte e cinco metros e sessenta e três centímetros lineares, pelo valor global de €15.777,40.
A encomenda foi executada em Portugal, ficando concluída em 10 de julho de 2012. Na véspera desse dia, a A. contactou os serviços da R. para que informasse se realizaria o transporte das mercadorias de Portugal para a Suíça e qual o respetivo preço, referindo desde o primeiro contacto que as mercadorias eram frágeis, tendo que ser transportadas num veículo em uso exclusivo para as mesmas, com capacidade para as transportar na posição vertical.
Em 9 de julho de 2012, a R. informou a A. que efetuaria o transporte pelo preço de €1.865,00.
Em 13 de julho de 2012, a R. colocou um veículo de transporte nas instalações da A., em …, para carregar a encomenda. Sucede que esse veículo não permitia o transporte das mercadorias na posição vertical. Os funcionários da A. reclamaram o facto de o veículo não ser adequado à concretização do acordo que haviam celebrado, respondendo os funcionários da R. que a mercadoria iria ser transferida para outro veículo em …. Mais informaram que eram eles os responsáveis pela carga, pelo que sabiam como fazê-la chegar sem danos ao respetivo destino. Os funcionários da A. colocaram os varandins no veículo, com a matrícula OM-...-.., para que fossem transportadas dos estaleiros da demandante, em …, para a central de cargas da R., em …. Quando o fizeram, tiveram o cuidado de colocar proteções a separar cada uma das grades para que não fossem danificadas no transporte. O gerente da A. alertou o motorista da R. para que a carga fosse acondicionada por forma a que nada fosse transportado em cima da mesma e garantindo que o transporte era feito na vertical.
A R. transportou as mercadorias para a Suíça no veículo com reboque identificado pela matrícula . - …….
Em 18 de julho de 2012, a carga chegou ao cliente final, na Suíça.
Nesse dia a “D…” reclamou o estado em que a mesma se encontrava quando foi entregue. Nomeadamente, reclamou que os varandins se encontravam riscados, amolgados e empenados, bem como a falta de um varandim com o comprimento de 9 metros.
Em 18 de julho de 2012 a A. reclamou junto da R. os referidos danos, resultantes do transporte por ela efetuado.
Os bens que a A. entregou à R. para transportar tinham o valor de mercado de €15.777,40.
A R., quando carregou os varandins no veículo em que os transportou para a Suíça, não teve o cuidado de os colocar livres de pesos sobre os mesmos e com alguma barreira que evitasse que se riscassem por efeito da fricção entre eles ou com outros materiais. A R. acondicionou a mercadoria na horizontal, em cima de paletes de sacos, sem qualquer proteção a separá-las e apertadas com cintas.
A R. e os respetivos trabalhadores atuaram com dolo, tendo a intenção manifesta de rentabilizar o percurso do camião que utilizaram no transporte, não se preocupando com os danos que sabiam que iam provocar na mercadoria que a A. entregou, pese embora estivessem avisados desse facto. A R. e os respetivos trabalhadores sabiam que podiam produzir os danos com a forma como efetuaram o transporte e conformaram-se com a possibilidade de os produzir.
Para poder cumprir com o acordo que celebrou com a “D…”, a A. teve de garantir que os bens entregues eram substituídos por outros, sem danos, ou reparados os que estavam danificados. Teve que expedir para a Suíça, novamente, um corrimão danificado, o que comportou um custo global de €980,00. Despendeu ainda a quantia de €98,25 em material para o referido corrimão. A “D…” procedeu a reparações do material entregue pela R., as quais comportaram um custo global de 14.429,85 CHF (€11.738,87) que a A. pagou.
Apesar de interpelada para o efeito, a R. não assumiu os danos que provocou à A., nunca tendo também recusado ressarci-la dos mesmos.
Nas comunicações que trocou com a A., apenas informou que a seguradora com a qual terá contratado a transferência da responsabilidade pelos danos que pudessem ocorrer, recusou ressarcir a A., nunca tendo referido que se recusava, ela própria, a pagar esses danos.
Acresce que a A. ia ter mais encomendas por parte da “D…”, sendo que após a entrega da primeira encomenda com os defeitos descritos, a “D…” não quis contratar a A. para qualquer outro serviço, perdendo a confiança que depositava no seu trabalho. A A. teve, assim, um dano de imagem e de quebra de confiança com a respetiva cliente que deve ser ressarcido em valor nunca inferior a €5.000,00.
Citada, a R. contestou a ação por duas vias.
Defende-se, em primeiro lugar, por exceção, invocando a prescrição do direito da demandante.
Alega para o efeito que a A. refere ter contratado os serviços da R., agente transitário, em 9 de julho de 2012, aceitando a troca de correspondência verificada nessa data entre as partes e consubstanciada no documento 3 junto com a petição.
A R. aceita que a carga chegou ao seu destino no dia 18 de julho de 2012.
Tal como a A. reconhece, a R. é um agente transitário, regendo-se a sua atividade pelo disposto no DL 255/99 de 7 de julho. Nos termos do disposto no artigo 16º desse diploma, qualquer eventual “(…) direito de indemnização resultante da responsabilidade do transitário prescreve no prazo de 10 meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço”. A citação da R., que teria a virtualidade de interromper a prescrição, apenas ocorreu em janeiro de 2017, cerca de 4 anos e meio após a data da entrega da mercadoria, pelo que a prescrição se completou já há muito tempo.
Sem prescindir, alega que, caso assim não se entenda, qualquer direito da A. a ver ressarcidos os prejuízos que alega ter sofrido estaria mesmo assim prescrito. Efetivamente, o contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada está regulamentado pela Convenção CMR, a qual foi tornada direito interno pelo Decreto- Lei 46235, de 18 de março de 1965. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 32º da referida Convenção CMR, “As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano”, o qual deverá ser contado “(…) a partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora”. Conforme a A. reconhece, a carga foi entregue no destino no dia 18 de julho de 2012.
Defendeu-se a R. também por impugnação, invocando o desconhecimento, sem obrigação de conhecer, bem como a falsidade dos demais factos alegados pela A. Concretamente, refere ser falso que não tenha recusado ressarcir a A., porquanto rejeitou a reclamação da mesma, de forma categórica, em 3 de junho de 2013.
Notificada para o efeito, a A. pronunciou-se sobre a matéria de exceção invocada pela R. na contestação.
Discorda da aplicação, no caso em apreço, do disposto no Decreto-lei n.º 255/99, de 7 de julho, na medida em que a A. apenas contratou com a R. o transporte de mercadorias, atividade que não se enquadra no citado diploma.
Já no que respeita à aplicação da convenção CMR, refere que, de facto, o n.º 1 do seu artigo 32.º prevê que as ações originadas pelos transportes sujeitos à Convenção prescrevem no prazo de um ano a contar da data em que a mercadoria foi entregue. No entanto, também prevê o n.º 2 do mesmo artigo um regime especial para a suspensão da prescrição dessas ações: o prazo da prescrição suspende-se a partir do dia em que for realizada uma reclamação escrita, o que foi feito pela autora em 18 de julho de 2012. E esse prazo apenas recomeça a contar no dia em que o transportador rejeitar, também por escrito, a reclamação e devolver os documentos entregues com a mesma (artigo 32º, n.º 2, da CMR). A R. nunca enviou à A. uma comunicação escrita em que recusasse ressarcir os danos e nunca devolveu os documentos que a mesma lhe enviou com a reclamação que apresentou. Consequentemente, o prazo de prescrição nem sequer começou a contar.
Sem prescindir, acrescenta que o prazo de prescrição a considerar sempre seria de três anos e não de um ano, na medida em que a A. invocou que a R. atuou com dolo (artigo 32º, n.º 1, da CMR). A A. instaurou a ação em 25 de maio de 2015 e requereu a citação da R. Até 9 de junho de 2015, não existe registo de qualquer movimentação processual por parte da secretaria ou do tribunal. Assim, o prazo para a prescrição interrompeu-se em 31 de maio de 2015 (artigo 323º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Em 9 de junho de 2015, o prazo começou a contar (novamente, de três anos), sendo que apenas terminaria em 9 de junho de 2018. A R. foi citada em janeiro de 2017. Consequentemente, também por esta razão não ocorreu a prescrição.
Dispensada a audiência prévia, o tribunal entendeu que os autos já permitiam, nessa fase, conhecer de imediato do objeto da ação, pelo que passou a apreciar a referida exceção perentória, ao abrigo do art.º 595º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, especificando desde logo como provados os seguintes factos:[2]
1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica, com fim lucrativo, à construção, reparação e montagem de tubagens.
2. A ré é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da actividade de transitário, incluindo a intervenção em despachos aduaneiros, no transporte nacional e internacional de mercadorias por qualquer meio e via, no armazenamento e distribuição de quaisquer produtos, bem como na prestação de quaisquer serviços conexos com essas actividades.
3. Em 9 de Julho de 2012, a autora dirigiu à ré o email junto aos autos por cópia a fls. 25 a 26, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual solicitava “(…) o vosso melhor preço para efectuar um transporte para a Suiça, o material tem as seguintes características:
Levantamento do material:
- …. - … – …, Viana do Castelo
- Diversos varandins (…)
- Entrega em:
…, ...-…. … – Suiça (…)
Qual é a possibilidade de carregar esta semana? (…).
4. Em 9 de Julho de 2012 a ré dirigiu à autora o email junto aos autos por cópia a fls. 25, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, respondendo: “Grata pelo seu email informamos (…).
Valor para transporte. €1.800,00
Despacho de exportação: €65,00
Transporte sujeito a reserva e confirmação para sexta feira dia 13 (…).”
5. Em 13 de Julho de 2012 a ré colocou um veículo de transporte nas instalações da autora, em …, para carregar a encomenda.
6. Os funcionários da autora colocaram os bens a transportar no veículo de transporte de pesados, identificado pela matrícula OM - .. - .., para que fossem transportadas dos estaleiros da autora, situados em …, Viana do Castelo, para a central de cargas da ré, em ….
7. A ré transportou as mercadorias para a Suíça no veículo com reboque identificado pela matrícula . - …….
8. Em 18 de Julho de 2012 a carga chegou ao cliente final da autora, na Suíça.
9. Em 18 de Julho de 2012 a autora dirigiu à ré, que o recebeu, o email junto aos autos por cópia a fls. 32 a 36, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicando que “(…) Venho por este meio expor uma situação gravíssima que não deveria ter acontecido:
A carga efectuada nas nossas instalações estava conforme e correcta, a mesma carga entregue no cliente chegou uma catástrofe como o cliente refere e como é exemplificado nas fotografias.
Provavelmente o cliente vai nos imputar esta situação com o tempo de reparação das mesmas, meus senhores lamentavelmente a responsabilidade é dos senhores e como tal as penalizações seguiram para a C… (…)
Aguardamos um comentário vosso.
10. Apesar de interpelada para o efeito, a ré não assumiu os danos que a autora alega que a ré lhe provocou.
11. Em 3 de Junho de 2013 a ré dirigiu à autora, que o recebeu, o email junto aos autos por cópia a fls. 91 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente recebido, na qual a informa de que a seguradora com a qual terá contratado a transferência da responsabilidade pelos danos que pudessem ocorrer recusou ressarcir a autora, bem como dos motivos dessa recusa.
12. A ré não ressarciu a autora dos danos que a mesma alega ter sofrido.
13. A petição inicial deu entrada em juízo no dia 26.05.2015.
14. A ré foi citada no dia 27.01.2017.
*
Com base na referida matéria e na fundamentação jurídica que deixou exposta na sentença, a 1ª instância decidiu a causa com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
« Em face do exposto, julgo procedente por provada a excepção de prescrição do direito da autora invocada pela ré e, em consequência, absolvo a mesma do pedido contra ela formulado.
Custas pela autora – art.º 527, n.º 1, do CPC.»

Da sentença, recorreu a A. formulando nas alegações as seguintes CONCLUSÕES:
«Da matéria de facto
1. Veio a douta sentença recorrida dar como provado que, “Apesar de interpelada para o efeito, a ré não assumiu os danos que a autora alega que a ré lhe provocou.” (cf ponto 10 da matéria de facto provada, constante da douta sentença recorrida).
2. O Tribunal recorrido alicerçou a prova do facto sub iudice no documento de fls. 91 verso, constante do processo.
3. A sentença recorrida refere, em conclusão ao conteúdo deste documento, que é “inegável que o mesmo traduz a posição da própria ré de rejeitar a reclamação da autora.”.
4. É exatamente neste ponto que a A. discorda da douta sentença recorrida.
5. Não é, nem pode ser o mesmo, assumir que a declaração da seguradora vale como uma declaração da própria ré.
6. Começando pelo elemento literal do documento, nada no mesmo refere a posição assumida pela ré, mas, tão só, a posição assumida pela seguradora.
7. O Tribunal recorrido não explica, na douta sentença, porque é que considera que “é inegável” que a posição da ré foi assumir a posição da seguradora.
8. Ditam as regras da experiência comum que, se a ré quisesse recusar ou aderir à posição da seguradora, tomaria as precauções de o fazer, no mesmo correio electrónico que enviou à autora, colocando uma qualquer expressão nesse sentido (por exemplo: informamos de que aderimos à posição assumida pela nossa seguradora...).
9. Sem prescindir do supra exposto, sempre afirmará que, ainda que o tribunal recorrido tivesse dúvidas sobre a interpretação a dar ao documento em apreço, devia ter esperado por perscrutar o depoimento das testemunhas e, dos mesmos, complementar a prova documental prestada.
10. Efetivamente, a autora, para além dos elementos probatórios documentais que juntou, requereu a inquirição de testemunhas.
11. Essas testemunhas poderão esclarecer cabalmente a questão, não devendo o tribunal recorrido tomar uma posição antes de lhe ser apresentada toda a prova sobre todos os factos invocados.
12. A prova documental, constituindo um princípio de prova escrita, como é o caso do documento sub judicé, pode ser complementada pela prova testemunhal (neste sentido, vide, a título meramente exemplificativo e longe de ser exaustivo, os Ac. STJ, de 7 de outubro de 2003, de 9 de julho de 2014 e de 19 de maio de 2016, e do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de maio de 2005 – processo 0532737).
13. Consequentemente, mal andou o Tribunal recorrido, ao, por um lado, interpretar o documento em apreço de uma forma completamente antagónica ao que o mesmo refere e, por outro lado, ao não permitir às partes apresentarem a restante prova a que se propuseram, para a matéria que invocaram.
14. Por fim, a autora invocou que a ré, apesar de instada para o efeito, não assumiu os danos que lhe causou (cf artigo 43.º da p.i.), tendo também invocado que a ré não recusou esses mesmos danos (cf artigo 44.º da p.i.).
15. O tribunal recorrido apenas se pronunciou quanto ao facto invocado, de que a ré não assumiu os danos provocados (ponto 10 da matéria de facto provada), não se tendo, porém, pronunciado quanto ao facto invocado de que a ré também não teria recusado assumir esses danos.
16. É diferente dizer que não os assumiu, de dizer que os recusou.
17. O tribunal a quo devia ter-se pronunciado, na matéria de facto, sobre a recusa da ré em assumir os danos, o que, com o devido respeito, não fez.
18. Não o fazendo, o tribunal a quo omitiu a pronúncia sobre um facto relevante (quiçá, o mais relevante de todos): saber se a ré recusou expressamente assumir esses danos.
19. Verifica-se, assim, uma falta de pronúncia e de fundamentação sobre o complexo factual relevante para a decisão da causa.
Do Direito
20. Com o supra exposto, é de concluir, num primeiro momento, que a decisão recorrida viola o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil (CPC).
21. Por um lado, a sentença recorrida, ao não dar como provado ou não provado que a ré recusou/ rejeitou assumir os danos, violou claramente o disposto no artigo 615.º, n.º 1, d).
22. De facto, a questão foi colocada pela autora e é absolutamente relevante para o desfecho da causa.
23. Por outro lado, concluindo depois a sentença recorrida que é inegável que a ré recusou o ressarcimento dos danos, retirou uma conclusão de factos sobre os quais não se pronunciou.
24. Existe uma ausência total de fundamentação de facto, sobre a rejeição da ré à reclamação da autora.
25. Não tendo especificado o facto da recusa, enfermou a douta sentença de nulidade, prevista pelo disposto no artigo 615.º, n.º 1, b) e c) do CPC.
26. Não existe a constituição de um silogismo lógico entre os factos provados e não provados e a norma legal que determina a prescrição do Direito que a autora entende assistir-lhe.
27. A afirmação de que a ré, interpelada para o efeito, “não assumiu os danos que a autora alega que a ré lhe provocou” (ponto 10 da matéria de facto provada), não permite concluir que a ré tenha rejeitado reparar esses danos.
28. A norma legal que prevê a suspensão da prescrição do direito – artigo 32.º, n.º 2 da Convenção CMR, é clara ao afirmar que a reclamação suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram.
29. A intenção do legislador, com a norma supra citada, não foi a existência de rejeições tácitas ou do simples não assumir os danos; bem pelo contrário, pretendeu o legislador que a rejeição fosse direta e expressamente proferida pelo transportador, dirigida ao reclamante, por escrito e com a devolução dos documentos que à reclamação se juntaram.
30. Ou seja, pretendeu o legislador que a rejeição fosse clara e inequívoca, para que, posteriormente, não existissem quaisquer dúvidas sobre as mesmas.
31. O tribunal recorrido, ao ter interpretado a norma ora em crise, no sentido de que a comunicação da recusa da seguradora em ressarcir os danos equivale à rejeição da reclamação, violou o disposto no artigo 32.º, n.º 2 da Convenção CM» (sic)
Pretende assim a recorrente que seja revogada a sentença, ordenando-se o normal prosseguimento do processo.
A R. respondeu em contra-alegações que sintetizou assim:
«I. Para proferir a douta sentença recorrida, o Tribunal teve em consideração a matéria provada que demonstra que a mercadoria em causa foi entregue no dia 18.07.2012.
II. Teve ainda em consideração que nesse mesmo dia a Autora apresentou reclamação escrita perante a Ré;
III. Essa reclamação escrita suspendeu o prazo de prescrição, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 32º da Convenção CMR, aplicável ao transporte dos autos;
IV. O Tribunal apurou ainda que a prescrição retomou o seu curso no dia 04.06.2013, após a rejeição escrita da responsabilidade da Ré;
V. A Ré foi citada a 27.01.2017, pelo que entre essa data e a data em que a prescrição retomou o seu curso passaram mais de três anos (e mais de um ano), pelo que
VI. A douta sentença recorrida julgou procedente a excepção da prescrição de direito de indemnização, face ao disposto no artigo 32º da Convenção CMR, por terem decorrido mais de três anos (e mais de um ano) entre a data em que a prescrição (que estava suspensa) retomou o seu curso e a data da citação da Ré para os autos.
VII. A Ré informou a Autora do facto de ter transferido a sua responsabilidade civil para a sua seguradora, tal como consta do documento de fls 91 verso, pelo que deveria ser esta a assumir ou a rejeitar a responsabilidade.
VIII. A resposta da Ré à reclamação da Autora pode e deve ser prestada pela entidade para quem a responsabilidade foi transferida.
IX. A resposta da Ré foi de clara rejeição, foi fundamentada e foi prestada por escrito, estando claramente preenchidos os requisitos do nº 2 do artigo 32º da Convenção CM
X. Não pode proceder a pretensão da Recorrente de ser ouvida prova testemunhal para proporcionar uma interpretação de um documento no sentido “(…) completamente antagónico ao que o mesmo refere (…)” (sic), e nem foi alegada qualquer matéria que justificasse essa prova testemunhal.
XI. A Recorrente não pode alegar factos novos em sede de recurso, os quais nunca antes foram alegados, para justificar a necessidade de audição de prova testemunhal com o objectivo de alterar (de forma antagónica!) a interpretação do teor de um documento escrito e claro que consta dos autos.
XII. Da douta decisão recorrida não resulta qualquer contradição com os seusfundamentos, nem a Recorrente sequer aponta uma concreta ambiguidade ou obscuridade;
XIII. Não se verifica omissão de pronúncia, tendo-se o Tribunal pronunciado pela existência clara de rejeição da reclamação, quando refere a o teor da comunicação de 03.06.2013 como a recusa do ressarcimento, complementada com os motivos da recusa, pelo que não ocorreu violação da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código do Processo Civil.
XIV. A douta sentença recorrida não viola, manifestamente, nem o disposto no artigo 32º da Convenção CMR, nem o disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 615º do Código do Processo Civil. (sic)

Entende, deste modo, a recorrida que a sentença deve ser confirmada.
*
III.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil).

Somos chamados a decidir as seguintes questões:
1. Erro de julgamento em matéria de facto;
2. Nulidade da sentença;
3. Se o processo reúne os elementos necessários à verificação da cessação da suspensão do prazo de prescrição previsto no nº 2 do art.º 32º da Convenção CMR[3].
*
IV.
1. Erro de julgamento em matéria de facto
O tribunal recorrido conheceu da exceção perentória da prescrição logo no despacho saneador, considerando que a mesma se verifica e, como tal, obstando à produção dos efeitos jurídicos pretendidos por via da ação (art.ºs 576º, nºs 1 e 3 e 595º, nº 1, al. b), co Código de Processo Civil). Julgou, por isso, a ação improcedente e absolveu a R. do pedido.
Para tal, como o próprio nela deixou expresso, partiu o tribunal do pressuposto de que os autos dispõem dos elementos necessários e suficientes à prolação daquela decisão. Não foi nem era o momento de produção de prova testemunhal ou qualquer outra prova oralmente transmitida.
O tribunal atendeu às alegações das partes produzidas nos articulados e aos documentos até então apresentados. Num esforço louvável, especificou os factos alegados que considerou provados, assim, que poderiam desde logo ter-se por demonstrados, fosse por terem sido confessados, fosse por resultarem de documentos cujo conteúdo não foi posto em causa ou com força probatória plena.
Temos para nós que das alegações de recurso não resulta uma real impugnação da decisão em matéria de facto. A recorrente não nega que qualquer dos factos elencados pelo tribunal como provados o não deva ser, total ou parcialmente. Por isso também não indica provas concretas que, constando dos autos, devem ser ou deixar de ser atendidas com vista a qualquer facto concreto provado ou não provado. O que quer diz é que o tribunal não ponderou o facto descrito no art.º 44º da petição inicial e que, pela sua relevância, não estando aceite pela R., deve ser submetido a prova testemunhal, tendo indicado testemunhas para o efeito.
Ainda que sob a indicação de “matéria de facto”, o que a recorrente fez foi interpretar os factos dados como provados e os factos que alegou na petição inicial para concluir pela falta de factos relevantes, carecidos de prova, sendo, por isso, a decisão nula.
A recorrente não quis uma alteração da decisão da matéria de facto; daí que não tenha dado cumprimento ao exigente ónus de impugnação previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c), do Código de Processo Civil. Simplesmente pretende que a Relação, fazendo uma interpretação das normas jurídicas semelhante à sua, revogue a decisão e mande prosseguir a ação, com produção e discussão da prova em audiência, por haver factos alegados e carecidos de prova, essenciais à boa discussão da causa.
Por conseguinte, discorda-se apenas da desconsideração de factos relevantes, suscetíveis de vir a ser demonstrados oportunamente - e não na fase do saneador em que a decisão recorrida foi proferida - que, como tal, não podem agora ser atendidos.
Sendo assim, o que se pretende é que a decisão de facto fique sem efeito no conjunto da sentença; não que seja alterada com manutenção de um saneador-sentença que conheça do pedido da ação.
Destarte, em substância, por não existir recurso em matéria de facto, nega-se a primeira questão da apelação.
*
2. Nulidade da sentença
Numa ligação algo confusa entre o fundamento do erro da decisão em matéria de facto e a nulidade da sentença, passa a apelante a defender que a sentença é nula nos termos das al.s b), c) e d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil. Como conteúdo desta questão, limita-se a indicar falta de fundamentação e de pronúncia, por o tribunal não explicitar na sentença a razão pela qual afirmou que a R. assumiu a posição expressa pela seguradora de negar a assunção de responsabilidade pelos danos ocorridos no material transportado. Devia o tribunal ter-se pronunciado melhor sobre a recusa da R. em assumir os danos, ou melhor, se há uma recusa expressa nessa matéria.
Com esta argumentação, parece-nos evidente a falta de qualquer dos fundamentos de nulidade previstos na citada al. c). Não há indício, por mais remoto que seja, de oposição entre os fundamentos e a decisão ou de ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. A recorrente também não o indica, nem de modo imperfeito ou insuficiente, como alerta para nosso conhecimento.
O art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta norma decorre do comando constitucional que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade. Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, que a decisão é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Porém, este vício penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão.[4]
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira.
Como escreve o Professor Alberto dos Reis[5], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Bem ou mal --- não interessa para resolver esta questão ---, a decisão recorrida está fundamentada. Admite-se que a questão da rejeição da reclamação da A. pela R., face ao disposto no nº 2 do art.º 32º da CMR, merecesse maior desenvolvimento, para uma melhor compreensão das razões que, perante os elementos da alegação e da prova documental junta aos autos, determinam, na perspetiva da decisão, a rejeição pela R. (e não apenas pela sua seguradora) da reclamação da A. Mas a verdade é que a sentença, ainda que parcamente, refere: “(…) no dia 03.06.2013 a ré remeteu à autora o email junto aos autos por cópia a fls. 91 verso, no qual a informa de que a seguradora com a qual terá contratado a transferência da responsabilidade pelos danos que pudessem ocorrer recusou ressarcir a autora, bem como dos motivos dessa recusa. Com referência a este último email, remetido pela ré à autora, cumpre salientar que é inegável que o mesmo traduz a posição da própria ré de rejeitar a reclamação da autora. Quanto às fotografias que a autora juntou à reclamação que dirigiu à ré, constata-se que as mesmas têm como único objectivo identificar os danos alegadamente sofridos pela mercadoria transportada, não constituindo qualquer documento que com a rejeição da reclamação a ré devesse restituir à autora.
Tanto basta para que não releve, para efeito da al. b) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a invocada nulidade.

Invoca ainda a recorrente, mais uma vez, a nulidade do acórdão, desta feita, com o fundamento da al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
Esta norma está em correlação com o art.º 608º, nº 2, do Código de Processo Civil. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sob pena de omissão de pronúncia. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita.
A nulidade invocada há de resultar da violação do referido dever.
Não confundamos questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir[6]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[7] O facto material é um elemento para a solução da questão; não é a própria questão.
Já Alberto dos Reis ensina[8] que “uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”.
Os factos não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência, o facto de não lhes fazer referência - eventualmente porque não considerou tais factos relevantes no tratamento da questão - não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Com ou sem os factos que a recorrente possa ter por relevantes para a decisão da causa, o tribunal não omitiu o tratamento e a solução das questões suscitadas na ação, atenta a causa de pedir e o pedido.
Assim, não vislumbramos onde falta a pronúncia. O tribunal pronunciou-se sobre a questão da prescrição, tendo-se decidido pela sua verificação e, procedendo esta exceção perentória, a ação tinha que ser julgada improcedente; não vemos - e a apelante não explica - sobre que outra questão o tribunal se deveria ter pronunciado.
Concluindo, improcedem os fundamentos de nulidade da sentença invocados na apelação.
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3. Verificação da cessação da suspensão do prazo de prescrição previsto no nº 2 do art.º 32º da Convenção CMR
Eis o cerne do recurso.
O contrato de transporte, em si, é aquele em que uma das partes, o transportador, se obriga mediante retribuição --- por si ou através de terceiro ---, a deslocar pessoas ou coisas de um lugar para outro (ou ao retorno ao lugar de partida, nalguns contratos de transporte de passageiros). Embora não esteja como tal expressamente qualificado na lei portuguesa, o contrato de transporte pertence, segundo opinião unânime, à categoria ampla dos contratos de prestação de serviços.[9]
A pessoa ou entidade que assume a obrigação do transporte designa-se por transportadora, o credor dessa obrigação é o expedidor e a entidade a quem as mercadorias devem ser entregues é o destinatário.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008[10], o contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada traduz-se na convenção por via da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, a realizar a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país (cf. art.º 1º da CMR).[11]
A referida Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, em veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes (artigo 1º, n.º 1, da CMR).
A prática mostra, de facto, que muitas empresas são, simultaneamente, transitárias, mandatárias para a materialização do transporte ou mesmo transportadoras. Oferecem com frequência serviços de transporte sem explicitação de que são elas que os realizam ou se os vão propor à realização por terceiros transportadores.
Tal como se defendeu na decisão recorrida, a atividade própria das empresas transitárias não exclui que elas possam convencionar, como transportadoras, e de executarem os contratos de transporte por si ou por terceiros.[12]
Atentos os factos alegados pelas partes, na medida em que entre elas estão aceites, não fica qualquer dúvida de que está em causa um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada a que é aplicável a CMR, sendo a A. a expedidora e a R. a transportadora. Aliás, as partes não discutem, antes concordam também com a aplicabilidade da Convenção.
Feita esta qualificação e definida que está a aplicação da CMR, a questão respeita à prescrição do direito da A. relativo a uma indemnização por danos causados no material objeto do contrato de transporte, pela qual seria responsável a demandada.
Sobre o assunto, dispõe o art.º 32º da CMR:
«1. As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto, a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo. O prazo de prescrição é contado:
a) A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora;
b) No caso de perda total, a partir do 30.º dia após a expiração do prazo convencionado, ou, se não tiver sido convencionado prazo, a partir do 60.° dia após a entrega da mercadoria ao cuidado do transportador;
c) Em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte.
O dia indicado acima como ponto de partida da prescrição não é compreendido no prazo.
2. Uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram.
(…).
3. Salvas as disposições do parágrafo 2 acima, a suspensão da prescrição regula-se pela lei da jurisdição a que se recorreu. O mesmo acontece quanto à interrupção da prescrição.
(…).»

Tem sido discutido se aquele prazo é verdadeiramente de prescrição ou se é de caducidade.[13]
Determina o art.º 298º, nº 2, do Código Civil que “quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.”.
Vista a referência expressa à prescrição no nº 1 do art.º 32º da CMR, impõe-se-nos considerar que se trata de um prazo com aquela natureza.
Tem variado na doutrina a definição de prescrição:
a) Para uns é a atribuição a uma pessoa, em favor da qual correu um decurso de tempo de inação dum credor (…), do direito de invocar a seu favor esse decurso para considerar extinta a dívida (…)”, assim qualificando a prescrição como uma das formas de extinção de direitos pelo não exercício durante certo tempo, sem prejuízo de se manter devido o seu cumprimento apenas como dever de justiça;[14] e
b) Para outros que não consideram o instituto como extintivo da obrigação, apenas como facto modificativo da obrigação, na medida em que, deixando o cumprimento de ser judicialmente exigível, implica apenas uma paralisação do crédito, transformando uma obrigação civil numa obrigação natural.[15]
Mas todos os autores estão de acordo, face à clareza da lei (art.º 303º do Código Civil), que a prescrição não opera ipso jure ou ope legis, não pode ser suprida ex officio; tem que ser invocada. Validamente invocada a prescrição, o cumprimento da obrigação prescrita passa a corresponder a um dever de justiça que não pode ser judicialmente exigido. Invocando-a no processo judicial ou fora dele, a parte a quem aproveita, o devedor - aquela que tem o ónus da sua prova (art.º 342º, nº 2, do Código Civil e art.º 5º do Código de Processo Civil) -, faz extinguir a possibilidade do credor exigir o seu crédito. Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art.º 304º, nº 1, do Código Civil).
Quando alegada como meio de defesa, por exceção (material), só aproveita e beneficia a quem a invoca[16].
A prescrição radica sempre na necessidade de proteger a segurança jurídica e a certeza do direito, sendo simultaneamente uma forma de reação à inércia ou negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, como que presumindo a renúncia ao direito ou, pelo menos, a indignidade da sua proteção jurídica, fundada num imperativo de justiça.
Como vimos, ao prazo de prescrição é de três anos no caso de dolo.
Seguindo de perto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010[17], “os factos ilícitos classificam-se em intencionais e meramente culposos: os primeiros são praticados com o intuito (direto ou indireto) de causar dano (dolo), ao passo que, nos segundos, há apenas imprudência ou negligência do seu autor (culpa em sentido estrito)”.
No dolo, o agente tem a representação do resultado danoso, sendo o ato praticado com a intenção malévola de produzi-lo, ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito. As diversas ordens de situações que integram o dolo recebem o mesmo tratamento jurídico. Configuram, porém, três categorias:
A que corresponde à ideia clássica do instituto é a de dolo direto: o autor do facto age com o intuito de atingir o resultado ilícito da sua conduta, que de antemão representou e quis.
Desenvolve-se psicologicamente de modo diverso o dolo indireto ou necessário. Ocorre quando o agente não tem intenção de causar o resultado ilícito, mas bem sabe que este constituirá uma consequência necessária e inevitável do efeito imediato que a sua conduta visa.
Também na terceira modalidade, a de dolo eventual, o agente representa o resultado ilícito, mas o dano surge apenas como consequência meramente possível – e não necessária – da sua conduta, atuando ele sem confiar que o mesmo não se produza.
Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir voluntariamente de adotar uma atuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa atuação, que representou como consequência do modo como in concreto agiu.
Depois de ter alegado, com concretização de factos, o indevido acondicionamento da carga pela R. nos transporte contratado, até com colocação de pesos sobre a mercadoria, em violação das indicações que a A. lhe havia transmitido e que bem conhecia, daí resultando os prejuízos, a A. referiu que a demandada não se preocupou com tais danos, sabendo que, assim, iam ser provocados na mercadoria transportada. A R. e os seus trabalhadores sabiam que podiam produzir esses danos coma forma como efetuaram o transporte, e conformaram-se com essa possibilidade, não se coibindo, mesmo assim, de atuar como atuaram (cf. artigos 28º a 36º da petição inicial).
Tais factos configuram dolo eventual e, caso sejam provados, conduzem à aplicação do prazo de prescrição de três anos relativamente ao crédito de que a A. se arroga titular.
Apesar da aplicabilidade da lei interna em matéria de suspensão e interrupção da prescrição[18], o nº 2 do art.º 32º da CMR regula de forma particular os efeitos da reclamação escrita nesta matéria, determinando que tal reclamação suspende a prescrição até ao dia em que o transportador a rejeitar por escrito e restituir os documentos que a ela se juntaram. Como assim, a contagem do prazo já iniciado só se retoma no momento em que o transportador negar a sua própria responsabilidade, recusando a reclamação do expedidor.
Exigindo a CMR que a rejeição da reclamação seja formalizada por escrito, é seguro afirmar que foi sua intenção que essa rejeição seja transparente e inequívoca; que não fique dúvida alguma quanto à intenção do transportador afirmar que não aceita a reclamação, ou seja, que não concorda com o seu fundamento e que recusa assumir qualquer obrigação de reparar os danos que nela lhe são imputados pelo expedidor. O mesmo é dizer que a rejeição significa não reconhecer expressamente o direito a que a parte contrária se arroga na reclamação, de tal modo que, ao transportador, se passa a impor também a devolução dos documentos que a acompanharam, certamente, para reforçarem a sua fundamentação.
Não pode sobrar para o expedidor alguma dúvida sobre a aceitação/rejeição da reclamação por parte do transportador, nomeadamente para que possa decidir de modo esclarecido se deve ou não deve recorrer com oportunidade aos Tribunais.
Na sentença, faz-se referência a um e - mail remetido pela R. à A. no dia 3.6.2013 (fl.s 91 verso), onde informa que a seguradora com a qual terá contratado a transferência da responsabilidade pelos danos que pudessem ocorrer no transporte, recusou ressarcir a demandante, bem como dos motivos dessa recusa. Com referência a este último e-mail, defende-se na sentença que “é inegável que o mesmo traduz a posição da própria ré de rejeitar a reclamação da autora”.
Será assim?
Analisados os termos do e – mail[19], o que fica muito claro é que a R. se limita a transmitir à A., por tal meio eletrónico de comunicação, que o segurador do transporte se recusa assumir a responsabilidade pelo sinistro por falta de elementos relativos a uma efetiva verificação dos danos durante o transporte, sua causa, natureza e extensão; e ainda por ter sido efetuada a reparação da mercadoria sem que pudesse ter sido efetuada a sua inspeção prévia, não havendo, assim, possibilidade de verificar o dano concreto, a sua causa e as quantidades afetadas. Ainda segundo a companhia seguradora, as fotografias enviadas podem não respeitar à mercadoria objeto do transporte.
A R. não deixa naquela comunicação à A. qualquer posição pessoal relativamente aos danos sob reclamação. Limita-se a transmitir a posição da seguradora, com os fundamentos que esta mesma - e apenas ela - invoca para recusar a responsabilidade.
Contrato de seguro é a convenção por virtude da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro beneficiário uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[20]
A relação contratual de seguro existe entre a R. e a seguradora. Relativamente a ela, a A. não é mais do que um terceiro beneficiário, estranho àquela relação em que não tomou parte. Quem é diretamente responsável perante a A. é a R. transportadora.
O interesse da A. está na reparação do dano e, tendo contratado o transporte com a R., havendo cumprimento defeituoso, é precisamente da R., obrigada, que pretende obter a indemnização (art.º 798º do Código Civil).
Por conseguinte, reclamando para ela da avaria encontrada, é ela, em última linha, como transportadora, e não a sua seguradora, que tem que expressar a sua posição sobre se assume ou não assume a responsabilidade pela reparação do dano. A postura da sua seguradora, é assunto diferente. A A. não tinha que demandar aquela companhia.
Não obstante a posição negatória da seguradora, a R. pode vir a assumir pessoalmente a responsabilidade pelo cumprimento defeituoso da sua obrigação de transportar em condições (conservação e segurança) de entregar a mercadoria tão perfeita e sem danos, quanto lhe foi entregue pela A., como é natural e essencial no contrato de transporte. Do mesmo modo que pode vir a ser condenada na reparação, sem intervenção da seguradora. Pode até continuar a negociar com a seguradora, tentando demonstrar-lhe que os danos ocorreram efetivamente e a A. deve ser indemnizada. Pode, por outro lado, continuar a negociar com a A. aquela reparação, discutindo nomeadamente a obrigação de reparar ou, simplesmente, o seu valor.
Note-se que os fundamentos invocados pela seguradora para negar a responsabilidade podem nem sequer assistir à R.
A posição da seguradora não é necessariamente a posição da transportadora, nem esta se pode presumir em função daquela.
A transmissão pura e simples da negação da reparação assumida pela seguradora do transporte no âmbito do contrato de seguro, não significa que essa seja a posição da transportadora (e tomadora do seguro) perante os factos. A norma do nº 2 do citado art.º 32º exige uma tomada de posição expressa (por escrito) e inequívoca da transportadora de rejeição da reclamação. Não basta dizer o que a sua seguradora entendeu e decidiu sobre essa mesma reclamação para se concluir que essa é também a posição da transportadora.
No artigo 43º da petição inicial, a A. - é certo - alegou que “apesar de interpelada para o efeito, a ré não assumiu os danos que provocou à A.”. Mas é igualmente verdade que, de imediato, sob o artigo 44º, a A. afirma que a R. também nunca recusou ressarcir a A. pelos mesmos danos. Ou seja, a A. nega expressamente que a R. alguma vez tivesse recusado a reclamação.
O facto de, até ao momento da entrada da petição inicial em Juízo (26.5.2015), a R. nunca ter assumido o dever de reparar conforme à reclamação, não significa que tivesse recusado essa reparação. Uma coisa é não dizer que vai fazer (reparar), outra bem diferente é dizer que não vai fazer (não reparar).
A R. não pagou a reparação dos danos, mas também não disse que não iria pagar. Simplesmente passaram vários anos sem que tivesse assumido o custo da sua reparação, ou melhor, sem que tivesse aceitado ou rejeitado a reclamação.
Sendo assim e não havendo dúvida de que foi apresentada uma reclamação escrita perante a R., através do e - mail de 18.7.2012, pelo qual se dá conta do sinistro e se atribui à R. a respetiva responsabilidade, ficou, nos termos do referido nº 2 do art.º 32º, suspenso o prazo de prescrição. Assim permanece até que o transportador a rejeite por escrito e restitua os documentos que a ela se juntaram (no caso, determinados fotogramas).
Suspenso o prazo de prescrição desde o dia 18.7.2012, ainda não se reiniciou a sua contagem, seja tal prazo o de três anos, como defende a recorrente com base na alegação do dolo da R., seja o prazo de um ano, nos termos do art.º 32º, nº 1, da CMR.
Não é, pois, possível concluir pela prescrição do direito que a A. pretende fazer valer por via da ação, com o argumento da rejeição da reclamação.
A sentença deve ser revogada e os autos devem prosseguir a sua normal tramitação para a audiência final e sentença.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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...........................................................
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, por não se verificar a invocada prescrição, revoga-se a decisão recorrida (saneador-sentença), determinando-se que os autos prossigam a sua norma tramitação, com audiência final e sentença.
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Custas pela apelada, por ter decaído no recurso.
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Porto, 11 de janeiro de 2018
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
______
[1] Por ser fiel ao processo, e evitando trabalho improfícuo, segue-se de perto o relatório da sentença recorrida.
[2] Por transcrição.
[3] Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, de 19 de maio de 1956, inserida no direito interno português pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de setembro.
[4] Cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396 . Cf. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[5] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[7] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[8] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 145.
[9] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2012, 3ª edição, pág. 165, citando N. CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos Transportes, Coimbra, 2004; COSTEIRA DA ROCHA, O contrato de transporte de mercadorias, cit, p. 25 Segurança Social; A. MENEZES CORDEIRO, Introdução ao direito dos transportes, Revista da Ordem dos Advogados, 2008,1, p. 139, entre outros.
[10] In www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.3.1999, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. I, pág. 141
[12] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.4.2006, proc. 06B628, de 18.12.2008, proc. 08B3828 e acórdãos da Relação do Porto de 17.6.1997, proc. 9630595, de 15.5.2003, proc. 0330655, de 7.12.2004, proc. 0424272, de 17.1.2005, proc. 0456072, de 13.6.2006, proc. 0621802, de 23.11.2009, proc. 6089/05.9TBMAI.P1 de 17.5.2011, proc. 3124/07.0TBVCD.P1 in www.dgsi.pt. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, proc. 08B3828, in www.dgsi.pt.
[13] Já se entendia que se trata de um prazo prescricional no acórdão da Relação do Porto de 18.2.1993, proc. 9220670, in www.dgsi.pt.
[14] Castro Mendes, Teoria Geral, Vol. II, pág. 520; Mota Pinto, Teoria Geral, pág. 373 e 374; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pág. 668.
[15] Cunha de Sá, Modos de Extinção das Obrigações, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 246 e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Almedina, 2007, T. IV, pág. 171, e Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais, O Direito, Ano 133º, T IV, 2001, p. 803.
[16] Acórdão Relação do Porto de 19.10.1998, proc. n.° 9850825, in www.dgsi.pt.
[17] Colectânea de Jurisprudência S., Tomo II, pág. 47 que, por sua vez, cita Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª edição, pág. 554 e seg.s e citado acórdão da Relação do Porto de 5.6.2012.
[18] V.d. nº 3 do art.º 32º da CMR.
[19] Numa tradução livre a partir do castelhano em que está redigido.
[20] Prof. Almeida Costa, in R.L.J.; 129; 20, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Abril de 2015, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. II, pág.. 58.