Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3442/11.2TJVNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: CAUSA PREJUDICIAL
EXECUÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
SUSPENSÃO DA OPOSIÇÃO
AUTOS DE INQUÉRITO
TÍTULO DE CRÉDITO
LETRA DE CÂMBIO
BURLA
EXCEPÇÕES
OPONIBILIDADE
Nº do Documento: RP201312023442/11.2TJVNF-A.P1
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 279º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTº 17º DA LULL
Sumário: I - O estatuído no artº 279º, nº 1, do CPC, é inaplicável à execução propriamente dita, aceitando-se que se aplique às fases declarativas enxertadas na execução, como é o caso da oposição ou embargos. É que na oposição discute-se um conflito de interesses contrapostos, que requer a sua composição pelo tribunal, tal como qualquer acção declarativa.
II - A autonomia característica dos títulos de crédito (letra de câmbio) significa que o direito cartular é autónomo e diferente quer da relação fundamental, quer das sucessivas convenções extra-cartulares. O exercício do direito cartular depende unicamente da posse do título que o incorpora.
III - O pressuposto necessário da oponibilidade das excepções pessoais ao portador mediato da letra não é a simples má fé, ou seja, o conhecimento do vício anterior. Além desse conhecimento, é preciso ainda que o portador tenha agido, ao adquirir o título, com a consciência de estar a causar um prejuízo ao devedor, o que se verifica, quando o portador tenha tido conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao endossante dele portador (artº 17º, da LULL).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3442/11.2TJVNF-A.P1 - APELAÇÃO

Relator: Caimoto Jácome(1398)
Adjuntos: Macedo Domingues()
Oliveira Abreu()

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1- RELATÓRIO

B…, Lda, com sede em Braga, veio deduzir oposição à acção executiva, para pagamento de quantia certa, que a exequente C…, S.A., com sede em Lisboa, lhe move para dela obter o pagamento de € 176.300,53, acrescida de juros legais vincendos.
Alegou, em síntese, factos, que, na sua perspectiva, demonstram a inexequibilidade da letra de câmbio dada à execução.
Pediu a suspensão da instância com fundamento na existência de causa prejudicial (inquérito crime).
Notificada, a exequente contestou, impugnando e concluindo pela total improcedência da oposição, negando a existência de causa prejudicial.
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Por se entender que os autos fornecem, desde já, todos os elementos necessários para a decisão sobre o mérito da oposição, foi proferido despacho saneador/sentença, no qual se decidiu (dispositivo):
Pelo exposto, decide-se julgar a presente oposição à execução totalmente improcedente e, em consequência, absolver-se a exequente/oponida do pedido formulado pela executada/oponente.
Custas pela executada/oponente.”.
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Inconformada, a opoente apelou da sentença, tendo, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls., o qual julgou totalmente improcedente a oposição à execução e, em consequência absolveu a Exequente do pedido.
II. Não se conformando com a douta sentença, vem a Executada interpor o presente recurso que é de Apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo.
III. A Executada ora Recorrente requereu a final da sua oposição a suspensão da instância de oposição à execução, com fundamento em causa prejudicial.
IV. Com efeito e, conforme alegou ao longo da sua Oposição à Execução, encontram-se pendentes autos de inquérito a correr contra a sociedade Sacada “D…, Lda”, bem como os respectivos representantes legais e outras entidades por crime de burla.
V. No âmbito desse inquérito, conforme alegou, está a ser apreciada a conduta criminal daquela entidade nas operações de desconto de várias letras de câmbio, entre as quais a letra dada a execução nos presentes autos.
VI. A pendência do referido inquérito consubstancia uma verdadeira "causa prejudicial", e assim, verificam-se os pressupostos de facto e de direito previstos na 2ª parte do n° 1, do art. 279º, do CPC, que justificam a suspensão da execução.
VII. Preceitua o nº 1 do artº 279 do CPC que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
VIII. Na primeira parte de tal normativo prevê-se, assim, a suspensão da instância motivada pela existência de uma outra acção ou causa que é prejudicial em relação àquela que se encontra a correr termos.
IX. Ora face aos factos acima descritos, e nomeadamente no que concerne aos fundamentos e pedidos que integram quer presente acção, deverá concluir-se que os autos de inquérito supra mencionados deverão ser considerados prejudiciais em relação à destes autos.
X. Com efeito, s.m.o, a decisão a proferir naqueles autos pode vir a influir no julgamento ou decisão desta,
XI. E sendo assim, está reunido o pressuposto necessário para que seja atendida a pretensão da Executada e, consequente, deferida a requerida suspensão da instância.
XII. Contudo, a douta sentença é omissa no que respeita ao referido pedido de suspensão da instância, com efeito, em momento algum a douta sentença se debruça sobre o mesmo.
XIII. Nos termos do artº artigo 668.º n.º 1 d) dispõe que a sentença é nula "quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar", o que significa que o juiz tem que "conhecer de todas as questões que lhe são submetidas”.
XIV. Nulidade cuja declaração requer!
XV. Se assim não se entender, o que não se concede e apenas se coloca por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que:
XVI. Acresce que, não foram tidos em conta pela douta sentença em apreço, factos trazidos ao processo pela Executada e que não são essenciais para apreciação da presente causa.
XVII. Com efeito, da sua Oposição à Execução, a Executada ora Recorrente alegou que:
● A sociedade ora executada não tem, nem nunca teve qualquer relação comercial com a sociedade Sacadora, E…, S.A.
● Os termos e condições que estiveram na origem da emissão desta letra, consubstanciam a prática de um crime de burla.
● Sendo que os mesmos já foram objecto de denúncia pela sociedade executada junto do Ministério Público de Braga, conforme doc. nº 1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
● Encontrando-se o respectivo inquérito a correr termos perante os Serviços do Ministério Público com o número 2257/10.0TABRG, conforme documento que se protesta juntar.
● Foi apresentada pela ora Executada, B… queixa-crime contra: F…, NIF ………, casado, residente na Rua …, .º Esquerdo, …, freguesia … em Vila Nova de Famalicão; G…, NIF ………, divorciado, residente na Rua …, freguesia …, em Vila Nova de Famalicão e, H…, NIF ………, casado, residente na referida Rua …, freguesia …, em Vila Nova de Famalicão.
● Todos, nas qualidades de sócios-gerentes, ou administradores, das seguintes empresas:
- I…, LDA, NIPC ………, com sede na …, Apartado …., freguesia …, em Vila Nova de Famalicão;
- o J…, LDA, NIPC ………, com sede na referida …;
- o E…, S.A., NIPC ………, com sede na Rua …, nº …., freguesia …, em …. Trofa, ….-….-….;
- K…, LDA, NIPC ………, com sede na Rua …, nº …, freguesia …, em …. Vila Nova de Famalicão, ….-….-….;
- D…, LDA, NIPC ………, com sede na dita Rua …, nº …, ….-….-….
● O sócio gerente da executada é empresário há mais de quinze anos em Angola e, apesar de ser português, está arredado dos negócios em Portugal desde, sensivelmente, 1995.
● No início de 2009, decidiu diversificar o seu leque de negócios e apostar em Portugal.
● Para o efeito contactou F… para lhe fornecer diversos materiais na área das caixilharias de alumínio para a construção civil, que a executada exportaria para Angola.
● Realizaram um negócio em que a executada comprou à sociedade I…, Lda, empresa da titularidade do referido F… e de G…, e H…, mercadoria no valor de € 790.724,44.
● O F…, na qualidade de sócio gerente da empresa fornecedora, solicitou o pagamento mediante o aceite de letras de câmbio pela executada, o que aconteceu, tendo o negócio corrido normalmente, já que nas datas de vencimento todas as letras foram pagas.
● Esta foi a primeira vez que a executada lidou com o pagamento através de letras de câmbio.
● É que, por estar radicado em Angola, o sócio gerente da executada – bem como o seu funcionário e representante em Portugal, que também aceitou letras em nome da executada e por indicação do seu sócio gerente – nunca havia lidado com este tipo de títulos de crédito, pois naquele país todos os pagamentos são efectuados por transferência bancária (ou em dinheiro), ou seja, quem tem dinheiro negoceia e quem não tem, não pode comprar o que quer que seja com dinheiro virtual, seja cheques, letras ou outro tipo de pagamento não imediato.
● Como resultado deste negócio a relação entre o sócio gerente da executada e F… e de G… evoluiu para além das relações comerciais entre as empresas de ambos e passaram a ser amigos e visitas de casa uns dos outros, tendo passado férias juntos bem como inúmeros fins-de-semana nas casas de uns e outros possuem em zonas balneares.
● Fruto dessa relação de grande amizade que se estabeleceu para além da comercial, e F… apercebeu-se da inexperiência do sócio gerente da executada, no que respeita à negociação com recurso à utilização de letras de câmbio.
● Aquando da segunda encomenda, feita em finais de 2009, pela executada à empresa de F… e de G…, e H…, I…, Lda, no valor de € 880.000,00, prontamente F… pôs em marcha um plano para se locupletar a expensas da executada por via da inexperiência que havia detectado no seu sócio gerente, no que concerne à utilização de letras de câmbio.
● Assim rogou novamente que o pagamento fosse efectuado mediante o aceite de letras de câmbio que F… descontaria junto das instituições bancárias com quem trabalha.
● Como a encomenda era grande teria que ser entregue de forma faseada, pelo que o pagamento também o era, sendo certo que foram emitidas e aceites letras em diversas datas do final do ano de 2009.
● Com a adjudicação da obra, F… exigiu o pagamento, mediante o aceite de letras, de cerca cinquenta porcento do valor orçamentado, para aquisição de matéria-prima.
● Assim, a executada aceitou diversas letras para titular o pagamento de metade da encomenda.
● Conforme a encomenda ia sendo entregue e exportada para Angola, o pagamento dos restantes cinquenta porcento ia sendo realizado, mediante o aceite de novas letras.
● Constataram ainda que seria necessário encomendar material adicional, no valor de € 247.890,41 que, a pedido de F… foi facturado por outra empresa do seu grupo, a J…, Lda.
● Dias após a emissão de cada letra que a executada aceitou, e sempre antes das respectivas datas de vencimento, F… denunciado solicitou, por diversas vezes que o sócio gerente da executada lhe “desdobrasse” algumas letras porque o Banco onde as havia apresentado a desconto não lhas pagava por serem de valor elevado.
● Ou seja, F… tinha uma letra de € 90.000,00, com o aceite da executada, contudo solicitava ao sócio gerente da executada que lhe aceitasse três novas letras de € 30.000,00 cada uma, pois seria “mais fácil descontá-las”.
● E a executada aceitava, sendo certo porém que sempre solicitou que F… lhe devolvesse as letras originárias, as de valor mais elevado (€ 90.000,00) que acabara de substituir, ao que este replicava que estavam no Banco e que mal as tivesse as devolvia, mas por esta ou aquela razão sempre protelava a sua devolução.
● Após várias interpelações acabava por dizer que as rasgara.
● Doutras vezes alegava que determinado Banco não procedia ao desconto por F… já não ter plafond ou porque a data de vencimento era demasiado distante da de emissão e simplesmente levava a que o sócio gerente da executada aceitasse nova letra de igual montante para, alegadamente, apresentar noutro Banco ou, no caso da desculpa ser a data, apresentava-a na mesma instituição mas com data de vencimento mais próxima da de emissão.
● Para justificar a não devolução imediata da letra substituída alegava que a letra tinha sido enviada para a sede do Banco e que demoraria quatro ou cinco dias a ser devolvida, mas que precisava urgentemente do dinheiro e de se deslocar a outro Banco para descontar a nova letra, daí solicitar que a executada aceitasse nova letra.
● É que, F… sempre fazia questão de, nas conversas que mantinha, realçar que as letras eram para pagar as facturas vencidas, relembrando constantemente o sócio gerente da executada que o dinheiro lhe era devido pois já tinha adquirido matéria-prima, acentuando, dessa forma, o sentimento de que cada aceite em cada letra era legitimo.
● E o sócio gerente da executada, atendendo à relação de grande amizade que julgava existir, acreditava e aceitava nova letra, antes de receber a anterior, tamanha era a confiança depositada em F….
● Após as várias tentativas de recuperar as letras substituídas, F… lá informava que havia rasgado as letras primitivas.
● Houve ainda duas situações em que F…, alegando não saber qual o montante é que o seu Banco lhe estaria disposto a descontar, pedia ao sócio gerente da executada que aceitasse, em nome dela, letras em branco, que ele depois preenchia e trazia cópias.
● Esta situação aconteceu por duas vezes e F… preencheu as letras que o sócio gerente da executada lhe havia entregue em branco (apenas preenchidas no local destinado ao aceitante), com os valores de € 205.000,00 e € 235.000,00.
● Valores que F…, no momento em que preenchia as letras, bem sabia não lhe serem devidos, tendo plena consciência do crime que estava a cometer e dos prejuízos que estava a causar.
● Também conseguiu descontar essas letras e fazer seu, por intermédio de empresas suas, o dinheiro que os Bancos lhe adiantaram, através do desconto.
● F…, no seguimento do plano que ardilosamente urdiu, usava de todos os meios para levar o sócio gerente da executada a aceitar letras que sabia não titularem qualquer negócio jurídico, nomeadamente os jantares de amigos, as férias em conjunto, os repetidos fins-de-semana sociais, ou mesmo o
● acontecimento trágico que foi o falecimento de um filho, contudo nunca se coibiu de se fazer deslocar em viaturas topo de gama, de ter barco, várias casas e ostentar um nível de vida muito acima das suas capacidades.
● Na posse de todas as letras que a executada, “anestesiada”, foi aceitando, quer para “desdobrar” os valores elevados e apresentar no mesmo Banco, quer para apresentar noutro Banco por já não ter plafond ou porque a data de vencimento era muito distante e ainda as duas letras em branco, o primeiro denunciado apresentou-as todas a desconto, tendo conseguido receber todo o dinheiro por elas titulado.
● Na verdade, tudo não passou de um plano para se financiarem bem como para financiar todas as empresas de que os denunciados na identificada queixa crime são titulares, já que em muitas das letras, o local destinado ao sacador era preenchido com o nome de algumas das empresas supra mencionadas, mas com as quais a executada nem manteve qualquer relação comercial.
● O que ocorreu, igualmente, com a sociedade E…, S.A., sacadora na letra ora dada à execução.
● Os denunciados sempre necessitaram de preencher o local do sacador com o nome de empresas porque, por regras internas de alguns Bancos, as letras entre particulares não são descontáveis, daí o uso de uma e outra das empresas que os denunciados detêm.
● Note-se que nunca se tratou de aceitar qualquer letra de favor, ou pelo menos nunca foi essa a intenção da executada, já que o seu sócio gerente foi levado a aceitar as letras, em nome da executada, convencido que seriam destinadas ao pagamento das facturas que iam sendo emitidas.
● Facturas que titularam um verdadeiro negócio jurídico fruto do qual se realizaram exportação de Portugal por todas as vias legais.
● O plano do primeiro denunciado – com o conhecimento do segundo e terceiro – foi de tal forma bem delineado que a executada financiou os denunciados e as suas empresas sem saber, pois sempre esteve convencida que estaria a pagar as facturas emitidas e que as primeiras letras que havia aceite, tinham sido destruídas e substituídas pelas segundas que F… ia solicitando.
● Contudo, o que de facto aconteceu é que, tendo F… conseguido descontar todas as letras que a executada aceitou e lhe entregou, sem que este devolvesse aquelas que eram alegadamente substituídas pelas que pedia em duplicado, ou pelas que eram para “desdobrar” as de valor elevado, ou ainda as duas aceites em branco, locupletou-se em € 1.315.500,00.
● Este é o valor em que F… (com o conhecimento do segundo e terceiro) se financiou e financiou as suas empresas por meio da burla praticada à executada, através do aproveitamento da inexperiência do seu sócio gerente e valendo-se da grande amizade que forjou.
● A burla foi de tal forma elaborada que a executada nem sabia, no momento em que a descobriu, qual o valor em causa, simplesmente não sabia quantas letras estavam em circulação e quais os seus valores.
● É certo que F… só conseguiu descontar todas as letras porque as instituições bancárias, entre elas a ora exequente, onde as apresentou a desconto não cuidaram de saber se cada um dos títulos estava suportado por uma relação extracartular, subjacente, ou seja, se titulavam um verdadeiro negócio jurídico.
● É que se as primeiras titulavam, já as segundas não. Essas constituíram a burla (entre elas a que ora se dá à execução).
● As instituições bancárias, entre elas a ora Exequente, ao verem quem era o aceitante das letras e ao saberem da sua capacidade financeira, procederam aos vários descontos sem cumprirem o seu dever de exigir o documento que titulasse a letra que tinham em mãos.
● Assim, a burla perpetrada pelos denunciados só foi detectada quando, em finais de Maio de 2010, a ora Exequente informa a executada que tem em sua posse letras por ela aceites, que havia descontado a diversas empresas dos denunciados, cujos montantes por elas titulados superavam o do negócio celebrado, entre elas a que ora se deu à execução
● Assim que tomou conhecimento da burla de que tinha sido alvo, a executada contactou os Bancos com quem trabalha e onde sabia que os denunciados haviam apresentado letras para desconto.
● O director de Região da C…, ora Exequente, Dr. L… (responsável pela delegação com sede na Póvoa de Varzim), o gestor de conta da executada, Dr. M… (responsável pela agência com sede na freguesia …, em V.N. Famalicão) e o gestor do N…, Dr. O… (responsável pela agência com sede em …, Braga), foram informados de que poderia haver letras a circular com o aceite da executada, mas que não eram títulos da responsabilidade da B…, Lda, porque, para a executada, essas letras nem existiam, pois tinha a garantia que haviam sido destruídas, rasgadas.
● Mas a verdade é que F…, havia levado a executada a aceitar letras em circunstâncias tão confusas como bem planeadas levando a que não houvesse, sequer, a noção do número de letras indevidas ou do montante que titulavam as letras em circulação com o aceite da executada.
● Concomitantemente com o alerta aos Bancos, a executada contactou F… que confessou o crime de burla qualificada que havia cometido.
● Reconhecendo a sua culpa, assumiu o pagamento das letras que havia descontado indevidamente, tendo efectuado algumas reformas durante os meses que se seguiram.
● Contudo, não satisfeito com os estragos que havia causado, F… continuou a enganar a executada.
● Então o esquema que criou para reformar as letras que indevidamente descontara e cujo aceite ilicitamente conseguiu da executada, passava por emitir um cheque no valor da reforma a efectuar.
● Entregava o cheque à executada que tinha que aceitar nova letra para reformar a anterior.
● A nova letra, com outro aceite da executada, de valor inferior à anterior bem como o cheque, em posse da executada, eram entregues ao Banco com a menção expressa que o cheque se destinava a reformar determinada letra da responsabilidade de uma empresa do denunciado.
● O cheque não tinha provisão e era devolvido à entidade responsável pela reforma, ou seja, a empresa do denunciado.
● Na posse do cheque devolvido, o denunciado não comunicava à executada que a reforma não havia sido feita.
● No mês seguinte, data do vencimento seguinte, repetia o doentio processo.
● Como resultado desta intricada teia que o denunciado criou, a executada, que julgava estar a diminuir o seu passivo junto das instituições bancárias estava, de facto, sucessivamente a aceitar letras que, por os cheques das reformas não terem provisão, de nada serviam a não ser para denegrir a sua imagem bancária.
● Na verdade a executada nem sabia que as reformas não estavam a ser feitas.
● Só em Setembro de 2010, quando a executada foi contactada pelo Banco onde o denunciado descontou a maior parte das letras, a C…, ora exequente, onde, por coincidência, a executada é cliente, é que teve conhecimento que as reformas não estavam a ser efectuadas.
● Contactado novamente F…, confirmou que algumas reformas não foram efectivamente realizadas por falta de provisão dos cheques que havia emitido e entregue à executada para amortizar as reformas.
● Altura então em que lança mão de mais uma jogada do seu bem urdido plano e aconselha o sócio gerente da executada a depositar os cheques de garantia que havia emitido e entregue aquando da descoberta da burla, em Maio de 2010.
● Cheques que totalizam a quantia de € 876.625,00 – valor que ambas as partes pensavam ser o montante da dívida em Maio e que, na realidade, era inferior à quantia com que o denunciado se locupletou – e que, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a indicação de “falta de provisão”.
● Tais cheques foram depositados acompanhados da comunicação expressa às instituições bancárias de que se destinavam a pagar determinadas letras da responsabilidade das empresas dos denunciados.
● Mais uma vez os denunciados, aquando da emissão dos cheques, bem sabiam que os mesmos não teriam provisão, já que os emitiram da empresa D…, Lda, com a qual a executada nunca teve qualquer relação comercial.
● Acresce que, aquando da comunicação que a C… fez à executada, em Setembro de 2010, propôs que, para evitar a confusão de letras aceites em circulação, a executada aceitasse nova letra que substituiria todas as outras existentes na C…, ora Exequente, no valor de € 763.833,68.
● A executada aceitou esta letra a outra das empresas dos denunciados, a E…, S.A., com quem nunca mantiveram qualquer relação comercial.
● A executada, convencida pelo denunciado que os cheques teriam provisão, reformou, em 01/11/2010 esta letra, sendo certo que foi mais um encargo que teve que suportar, já que os cheques não obtiveram boa cobrança.
● Sendo que é esta letra que se encontra dada à execução nos presentes autos.
● Ora, face ao exposto, não restam quaisquer dúvidas de que a sociedade Executada não é devedora do montante titulado pela letra ora dada à execução.
● Nem pelo mesmo pode ser responsabilizada.
● Com efeito, não há, nem nunca houve qualquer relação comercial entre a ora executada e a sociedade E…, S.A. que justificasse a emissão da letra que ora se executa.
● Sendo que as mesmas também não consubstanciam letras de favor.
● Sendo que a emissão da mesma se deveu a um esquema ardilosamente montando pelos denunciados na queixa crime acima melhor identificada.
● Destes factos e, da pendência do processo crime, foi dado conhecimento à ora Exequente, por carta datada de 6 de Dezembro de 2010, a qual foi recepcionada em 13 de Dezembro, conforme doc. nº 42 juntos aos autos.
VIII. Ora, face ao referido requerimento encontram-se controvertidos factos que, s.m.o. deveriam ter sido objecto de apreciação pelo douto tribunal, integrados na base instrutória e, objecto de prova.
IX. Com efeito, tendo sido objecto de impugnação pela Exequente e, sendo relevantes para apreciação do peticionado nos presentes autos, deveriam ter sido objecto de análise pelo douto tribunal.
X. Assim, não se encontra preenchido os pressupostos de aplicação do artº 510º nº 1 al b) do CPC que dispõe que: “Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a: (b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma das excepções peremptórias.”
XI. Na verdade, os elementos constantes dos autos e a matéria ainda controvertida não permitiam ao tribunal a quo sem necessidade prova, conhecer do mérito da causa.
Nesta medida, mal andou o douto tribunal ao dispensar a elaboração de despacho saneador e a consequente produção de prova, pelo que deve nesta medida ser revogada a douta sentença e, ordenada:
a. Fixação de base instrutória com os factos que se encontram controvertidos, conforme supra exposto e,
b. Produção de produção de prova no que respeita aos factos integradores do invocado abuso de direito.
XII. Acresce que, ainda que assim não se entenda o que apenas se coloca por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que:
XIII. Mal andou a douta sentença ao decidir como decidiu, fundamentando tal decisão no artº 17º da LULL.
XIV. Com efeito, pese embora, nos termos do artº 17º da LULL as pessoas accionada em virtude de uma letra, como é o caso dos presentes autos, não poderem opor ao portador as excepções fundadas nas relações pessoais deles com o sacado, não se poderá deixar de entender que os factos ora descritos não constituem excepções pessoais, mas sim excepções in rem, pelo que não abrangidas por aquela disposição legal e, consequentemente com possibilidade de serem opostas ao portador da letra
XV. Na verdade, não estamos perante uma excepção pessoal, embora também se tenha invocado a inexistência de relação subjacente à emissão da letra de câmbio objecto dos presentes autos, mas sim a um excepção que tendo por fundamento a prática de um crime assume natureza de excepção in rem e por isso oponível a todos os intervenientes da letra, incluindo o portador.
XVI. Por outro lado e, conforme alegou a Executada na sua Oposição a Exequente teve conhecimento atempado da situação denunciada nos autos de inquérito.
XVII. Com efeito, conforme ficou exposto, assim que tomou conhecimento da burla de que tinha sido alvo, a executada contactou os Bancos com quem trabalha e onde sabia que os denunciados haviam apresentado letras para desconto, entre eles o ora Exequente.
XVIII. Conforme já se expôs e ficou alegado na Oposição à Execução, a Executada ora Recorrente contactou o director de Região da C…, ora Exequente, Dr. L… (responsável pela delegação com sede na Póvoa de Varzim), o gestor de conta da executada, Dr. M… (responsável pela agência com sede na freguesia …, em V.N. Famalicão tendo-os informados de que poderia haver letras a circular com o aceite da executada, mas que não eram títulos da responsabilidade da B…, Lda, porque, para a executada, essas letras nem existiam, pois tinha a garantia que haviam sido destruídas, rasgadas.
XIX. São estes factos que a douta sentença não apreciou, mas que no entendimento da ora Recorrente são essenciais para a boa decisão da questão em apreço, designadamente aferir da oponibilidade ou não deste factos por parte da Executada ao Banco Exequente, portador da letra objecto dos presentes autos.
Termos em que, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto despacho por ferido de nulidade nos termos do artº 668º nº 1 al. d).
Sem prescindir,
Deve, ainda, ser revogada a douta sentença recorrida na parte em que dispensa a realização de produção de prova por entender que se encontram reunidos no processo todos os elementos para que fosse proferida decisão de mérito nos termos do artº 510º nº 1 do CPC e, consequentemente ordenada a baixa do processo para fixação da base instrutória com os factos que se encontram controvertidos e melhor identificados no Ponto VII das Conclusões, nos termos supra exposto e, ordenada, em consequência, a realização de produção de prova no que respeita aos factos integradores do invocado abuso de direito.
Sem prescindir, deve ser revogada a douta sentença por violação do artº17º do LULL.

Na resposta à alegação a apelada defende o decidido.
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Remetido o processo à 1ª instância, nos termos e para o efeito do estatuído nos nºs 1 e 5, do artº 670º, do CPC, o Sr. juiz proferiu despacho, em 26/06/2013, a apreciar o pedido de suspensão da instância, indeferindo a pretensão do opoente/apelante (ver fls. 139-140).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 3, do C.P.Civil (actualmente arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2).

2.1- OS FACTOS

Está provada a seguinte matéria de facto:
1- A exequente é portadora, na qualidade de endossada, de uma letra de câmbio, com data de emissão de 1/10/2010 e vencimento em 1/11/2010, sacada por “D…, Lda”, e aceite pela executada/opoente B…, Lda., do montante de 166.610,81 euros.
2- A referida letra de câmbio foi endossada à exequente pela respectiva sacadora, tendo aquela, no exercício da sua actividade bancária, procedido ao desconto da mesma.
3- Atingida a data de vencimento da mencionada letra de câmbio, o montante dela constante não foi pago à exequente.
4- A executada/opoente enviou à exequente, em Setembro de 2010, uma carta de igual teor à constante de fls. 83, na qual pede um financiamento de € 2.000.000,00, afirmando que o mesmo tem por finalidade liquidar todas as letras aceites pela executada/opoente, descontadas na exequente.

2.2- O DIREITO

Assente a matéria de facto, analisemos o direito, face ao concluído pela recorrente na alegação do recurso.
Como vimos, o Sr. juiz da 1ª instância, no seu despacho de 26/06/2013, corrigiu a sentença, apreciando a nulidade invocada pela recorrente (omissão de pronúncia – artº 668º, nº 1, al. d), do CPC), indeferindo o pedido de suspensão da instância.
Dispõe o artº 279º, nº 1, do CPC, que “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente de outra já proposta ou quando ocorrer motivo justificado”.
Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou razão de ser da segunda (J. Alberto dos Reis, Comentário, 3º, pág. 268).
Causa prejudicial é aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada.
Uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja resolução, por si só, possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito (Ac. STJ, CJ/STJ, 1994, II, 116).
O poder vinculado previsto no artº 279º, do CPC, de sobrestar na decisão, visa a economia e a coerência de julgados, ou seja, evitar que a mesma questão possa vir a ser objecto de decisões desencontradas ou incoerentes.
A doutrina e a jurisprudência, largamente maioritária, entende que, face à específica natureza da acção executiva, esta não pode ser suspensa com fundamento em causa prejudicial, uma vez que, não tendo por finalidade a decisão de uma causa, não pode verificar-se a relação de dependência a que o nº 1, do citado artº 279º do CPC.
Assim, e no sentido de que a prejudicialidade não constitui fundamento para suspensão da acção executiva, já Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol.3.º, pág. 274), ensinava que a 1.ª parte do artº 284º (actual 279º, nº 1, 1ª parte) não pode aplicar-se ao processo de execução, porque o fim deste processo não é decidir uma causa, mas dar satisfação efectiva a um direito já declarado por sentença ou constante de título com força executiva. Não se verifica assim o requisito de estar a decisão da causa dependente do julgamento de outra já proposta (mesmo sentido, E. Lopes Cardoso, no seu Manual da Acção Executiva, 1987, na nota 2, a págs. 188 e 189).
Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 45) salienta que, desde que a suspensão resulta de estar a decisão da causa dependente do julgamento de outra já proposta, parece clara a sua inaplicabilidade ao processo de execução, em que não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, visto o direito que se pretende efectivar já estar declarado.
Por outro lado, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 31/05/2007 (acessível em www.dgsi.pt), que «a execução apenas admite uma espécie de prejudicialidade interna ou no âmbito da própria acção executiva, através do instituto da oposição e da possibilidade desta poder dar origem a suspensão da própria execução» e onde se acrescentou que «se assim não fosse, o regime do artº 818º CPC deixaria de ter aplicação».
Quer dizer, o estatuído no artº 279º, nº 1, do CPC, é inaplicável à execução propriamente dita, aceitando-se que se aplique às fases declarativas enxertadas na execução, como é o caso da oposição ou embargos. É que na oposição discute-se um conflito de interesses contrapostos, que requer a sua composição pelo tribunal, tal como qualquer acção declarativa.
O objecto da oposição à execução é susceptível de abranger quaisquer factos que afectem a eficácia normal do título executivo ou a própria obrigação exequenda nas suas vertentes de existência ou de validade.
Em consequência, pode a oposição à execução abranger quaisquer questões, sejam de natureza adjectiva ou substantiva, que ao embargante, na posição de réu, pudesse invocar no processo declarativo como meio de defesa (artº 816ºº, do CPC).
Dito isto, constata-se que a apelante conclui, no que concerne, além do mais, que:
- Com efeito e, conforme alegou ao longo da sua Oposição à Execução, encontram-se pendentes autos de inquérito a correr contra a sociedade sacada “D…, Lda”, bem como os respectivos representantes legais e outras entidades por crime de burla.
- No âmbito desse inquérito, conforme alegou, está a ser apreciada a conduta criminal daquela entidade nas operações de desconto de várias letras de câmbio, entre as quais a letra dada a execução nos presentes autos.
- A pendência do referido inquérito consubstancia uma verdadeira "causa prejudicial", e assim, verificam-se os pressupostos de facto e de direito previstos na 2ª parte do n° 1, do art. 279º, do CPC, que justificam a suspensão da execução.
- Ora, face aos factos acima descritos, e nomeadamente no que concerne aos fundamentos e pedidos que integram quer presente acção, deverá concluir-se que os autos de inquérito supra mencionados deverão ser considerados prejudiciais em relação à destes autos.
Pois bem.
O inquérito previsto no Código do Processo Penal compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Não sabemos, nem temos que saber, face ao segredo de justiça, qual o estado do inquérito (crime) a que se refere a apelante.
Como bem se refere na decisão da 1ª instância, o inquérito não constitui uma causa judicial.
Ora, tratando-se de uma oposição a uma execução cambiária, intentada pela portadora (endossada) do título de crédito (letra de câmbio) contra a sacadora e a aceitante, não se vislumbra que o aludido inquérito crime, e a eventual acusação, possa destruir o fundamento ou razão de ser da execução e da oposição deduzida pela executada.
Inexiste, a nosso ver, qualquer causa prejudicial, não ocorrendo fundamento para a suspensão da instância com base no normativo indicado (artº 279º, nº 1, do CPC).
*
As letras de câmbio assumem a natureza de títulos de crédito transmissíveis por via de endosso, incorporando uma obrigação abstracta, literal e autónoma e de livre circulabilidade (artº 46º, da LULL).
Para que se extinga a obrigação cambiária, o pagamento tem de ser feito ao respectivo portador.
O título dado à execução é uma letra de câmbio sacada por “D…, Lda”, e aceite por B…, Lda, ora executada/opoente, que não foi paga após o vencimento.
A entidade bancária exequente é, pois, legítima portadora do título de crédito exequendo, por via de endosso, determinado por operação de desconto bancário, praticado no exercício da sua actividade (o contrato de desconto bancário é fundamentalmente um empréstimo feito pelo banco (descontador) à outra parte (descontário) da quantia correspondente ao valor nominal do título levado a desconto e endossado pelo último ao primeiro).
Trata-se, pois, de uma execução cambiária relativa a uma letra reformada. Como se sabe, a reforma de letra não implica a multiplicação efectiva da obrigação que determinou a emissão do título, referindo-se a letra primitiva e a letra renovada à mesma relação subjacente e à satisfação de um único interesse patrimonial. Nem implica a novação da obrigação cambiária incorporada no título primitivo, se não houve vontade manifestada nos termos do artº 859º, do Código Civil(CC).
Estabelece o artº 816º, do CPC, que, se a execução não se basear em sentença, além dos fundamentos de oposição especificados no nº 1 do artº 814.º (…), podem alegar-se quaisquer outros factos que seria lícito deduzir como defesa em processo de declaração.
Cabe, obviamente, ao opoente/executado, enquanto obrigado cambiário, a prova dos factos integradores dos fundamentos de oposição, ou seja, dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito (artº 342º, nº 2, do Código Civil).
Como é sabido, aos títulos de crédito vêm, generalizadamente, associadas as seguintes características:
- literalidade, com o significado que o direito incorporado no título é definido nos precisos termos que dele constam;
- abstracção, o direito proclamado pelo título vale, como tal, sem que seja possível ou necessária a fundamentação em qualquer modo legítimo de adquirir;
- autonomia, o direito cartular é autónomo e diferente quer da relação fundamental, quer das sucessivas convenções extra-cartulares. O exercício do direito cartular depende unicamente da posse do título que o incorpora.
Esta última característica tem particular relevo no tocante às relações cartulares mediatas como as existentes entre a aceitante executada/opoente e o Banco exequente portador (endossado) do título de crédito, por não serem concomitantemente os sujeitos da relação causal.
Dispõe o artº 17º, da LULL:
As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
Seguramente que o pressuposto necessário da oponibilidade das excepções pessoais ao portador mediato da letra não é a simples má fé, ou seja, o conhecimento do vício anterior. Além desse conhecimento, é preciso ainda que o portador tenha agido, ao adquirir o título, com a consciência de estar a causar um prejuízo ao devedor, o que se verifica, quando o portador tenha tido conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao endossante dele portador.
O Prof. Ferrer Correia observa que "proceder conscientemente em detrimento" não é simplesmente ter agido de má fé, antes se exige, "além do simples conhecimento, que o portador tenha agido, ao adquiri-la, com a consciência de causar um prejuízo ao devedor" (Lições de Direito Comercial - Vol. 3, Letra de Câmbio -, pág. 68 e 69).
Por sua vez, Paulo Sendin, a respeito de se saber quando é que um transmitente pode sofrer detrimento com a aquisição da letra por ulterior adquirente mediato, explica-se do seguinte modo:
"O transmitente é mediato face ao adquirente com a consciência de o prejudicar. Ora, o adquirente recebe a letra do seu endossante e é a ele que realiza o seu valor patrimonial actual com a aquisição, sendo destinatário directo, também, do valor patrimonial formado pelo transmitente anterior, mediato.
Quando o endossado, ao adquirir o título, sabe que o seu endossante, a quem satisfez o valor patrimonial actual, só lho pode transmitir porque o endosso pelo qual, por sua vez, adquiriu a letra ainda não anulada - não só tem, assim, esse transmitente direito a anulá-lo, como sem dúvida o faria se ele entretanto não adquirisse a letra -, então, ao adquiri-la, procede conscientemente em detrimento desse mediato transmitente" (Letra de Câmbio, Vol. II, pág. 710).
Trata-se de norma (artº 17º, da LULL) que considera os interesses envolvidos na circulação do crédito cambiário e a imunidade das excepções respeitantes às relações subjacentes, que não pode ser neutralizada com o mero conhecimento do adquirente da letra da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao sacador ou aos portadores antecedentes.
Não assim no domínio das relações imediatas, como as estabelecidas entre a executada e a sociedade D…, Lda, ou seja, as relações existentes entre os obrigados cambiários que se encontram ligados pela relação subjacente (Pedro de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, p. 37), em que tudo se passa como se a relação deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que se fundamentam nas relações pessoais (Prof. Ferrer Correia, Letra de Câmbio, p. 87).
Importa ter presente que uma coisa é a relação jurídica cambiária, e outra, distinta desta, é a relação jurídica subjacente: a relação jurídica cambiária é a que decorre da letra de câmbio e a relação jurídica subjacente é a constituída pelo negócio jurídico de base, que serve de fundamento à outra.
Feitas estas considerações de natureza normativa e doutrinal, vejamos o concluído pela apelante, no sentido de ser prematura a decisão no saneador.
A decisão recorrida constitui um saneador/sentença, proferido com base no estatuído no artº 510º, nº 1, al. b), e 817º, nº 2, do CPC.
Justifica-se, no caso, o prosseguimento dos autos, com a organização do despacho de condensação (matéria assente e base instrutória), instrução e julgamento?
A opoente/apelante alegou que:
- O director de Região da C…, ora Exequente, Dr. L… (responsável pela delegação com sede na Póvoa de Varzim), o gestor de conta da executada, Dr. M… (responsável pela agência com sede na freguesia …, em V.N. Famalicão) e o gestor do N…, Dr. O… (responsável pela agência com sede em …, Braga), foram informados de que poderia haver letras a circular com o aceite da executada, mas que não eram títulos da responsabilidade da B…, Lda, porque, para a executada, essas letras nem existiam, pois tinha a garantia que haviam sido destruídas, rasgadas.
- Só em Setembro de 2010, quando a executada foi contactada pelo Banco onde o denunciado descontou a maior parte das letras, a C…, ora exequente, onde, por coincidência, a executada é cliente, é que teve conhecimento que as reformas não estavam a ser efectuadas.
- Acresce que, aquando da comunicação que a C… fez à executada, em Setembro de 2010, propôs que, para evitar a confusão de letras aceites em circulação, a executada aceitasse nova letra que substituiria todas as outras existentes na C…, ora Exequente, no valor de € 763.833,68.
-A executada aceitou esta letra a outra das empresas dos denunciados, a E…, S.A., com quem nunca mantiveram qualquer relação comercial.
-A executada, convencida pelo denunciado que os cheques teriam provisão, reformou, em 01/11/2010 esta letra, sendo certo que foi mais um encargo que teve que suportar, já que os cheques não obtiveram boa cobrança.
-Sendo que é esta letra que se encontra dada à execução nos presentes autos.
-Ora, face ao exposto, não restam quaisquer dúvidas de que a sociedade Executada não é devedora do montante titulado pela letra ora dada à execução.
-Nem pelo mesmo pode ser responsabilizada.
-Com efeito, não há, nem nunca houve qualquer relação comercial entre a ora executada e a sociedade E…, S.A. que justificasse a emissão da letra que ora se executa.
-Sendo que as mesmas também não consubstanciam letras de favor.
-Sendo que a emissão da mesma se deveu a um esquema ardilosamente montando pelos denunciados na queixa crime acima melhor identificada.
-estes factos e, da pendência do processo crime, foi dado conhecimento à ora Exequente, por carta datada de 6 de Dezembro de 2010, a qual foi recepcionada em 13 de Dezembro, conforme doc. nº 42 juntos aos autos (fls. 69-70).
Estes factos, alguns controvertidos, a provarem-se, relevam para efeitos do artº 17º da LULL, ou seja, evidenciam que a exequente, legítima portadora da letra dada à execução, “ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”?
Algum facto consubstanciador desse intuito fraudulento ou má fé, imputado à exequente, foi alegado, relevante e eficazmente, pela opoente na sua petição (recaindo sobre ela o ónus de tal alegação)?
A resposta só pode ser negativa, a nosso ver.
Com efeito, a descrita factualidade poderá integrar matéria de excepção (pessoal) invocável entre sacadora e aceitante da letra dada à execução mas inoponível à exequente, legítima portadora, por endosso, da letra, face ao aludido princípio da autonomia deste título de crédito (artº 17º, da LULL).
Nem, com o devido respeito, se percebe ou aceita o concluído pela apelante no sentido de que a factualidade alegada, no âmbito de uma oposição a execução cambiária intentada pela portadora do título de crédito, constitui “uma excepção que tendo por fundamento a prática de um crime assume natureza de excepção in rem e por isso oponível a todos os intervenientes da letra, incluindo o portador”.
Decorre do expendido que se entende que o saneador/sentença não é prematuro, justificando-se a decisão de mérito nesta fase processual.
Por fim, pese embora não se vislumbre que a opoente, na petição ou na alegação do recurso, tenha invocado o abuso do direito (ver conclusão XI), sempre se dirá que não se verifica comportamento abusivo por parte da exequente.
A figura do abuso do direito está prevista no artº 334º, do C.Civil.
Existe abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante (Ac. STJ, de 8/11/84, BMJ, 341º/418).
Para que haja o abuso tem de haver sempre, no uso do direito, um excesso manifesto.
É um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça.
A nota típica do abuso do direito reside (…) na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido (P. Lima-A. Varela, C. C. Anotado, 1987, I. p. 300).
Há abuso de direito "quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem" (Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, p. 43).
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e legalmente segundo uma consciência razoável.
Feitas estas genéricas considerações e revertendo ao caso em apreço, temos que a exequente instaurou a presente execução cambiária, contra a obrigada cambiária aceitante com vista à cobrança do seu crédito, titulado pela letra de câmbio em causa (arts. 28º e 43º, da LULL).
Deste modo, não se vê, salvo melhor opinião, em que é que a exequente, legítima portadora daquele título de crédito, ao executar o mesmo, exerce o seu direito de modo abusivo, com clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante ou excedendo, manifestamente, os limites impostos pela boa fé negocial.
A nosso ver, a autora limita-se a exercer, regularmente, aquele seu direito contra os obrigados cambiários.
Não ocorrem motivos para paralisar a acção exercida pela exequente por recurso ao instituto do abuso do direito.
Inexiste, pois, abuso do direito.
Em suma, mantém-se a improcedência da oposição deduzida pelo executado.
Improcede, assim, o concluído na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Anexa-se o sumário.

Porto,02/12/2013
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
Oliveira Abreu
_________________
SUMÁRIO (ARTº 713º, nº 7, do CPC, actual artº 663º, nº 7):
I- O estatuído no artº 279º, nº 1, do CPC, é inaplicável à execução propriamente dita, aceitando-se que se aplique às fases declarativas enxertadas na execução, como é o caso da oposição ou embargos. É que na oposição discute-se um conflito de interesses contrapostos, que requer a sua composição pelo tribunal, tal como qualquer acção declarativa.
II- A autonomia característica dos títulos de crédito (letra de câmbio) significa que o direito cartular é autónomo e diferente quer da relação fundamental, quer das sucessivas convenções extra-cartulares. O exercício do direito cartular depende unicamente da posse do título que o incorpora.
III- O pressuposto necessário da oponibilidade das excepções pessoais ao portador mediato da letra não é a simples má fé, ou seja, o conhecimento do vício anterior. Além desse conhecimento, é preciso ainda que o portador tenha agido, ao adquirir o título, com a consciência de estar a causar um prejuízo ao devedor, o que se verifica, quando o portador tenha tido conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o devedor poderia opor ao endossante dele portador (artº 17º, da LULL).

Caimoto Jácome