Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9606/05.0TBVNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
REABERTURA DO PROCESSO APÓS CESSAÇÃO DE MEDIDA
Nº do Documento: RP202204059606/05.0TBVNG-C.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não existindo norma que proíba a reabertura de processo judicial de promoção e proteção arquivado, quando o arquivamento tenha ocorrido por cessação de medida de promoção e proteção efetivamente aplicada, deve a reabertura ser admitida, á luz dos princípios especiais que regem os processos de jurisdição voluntária, nomeadamente perante a ocorrência de circunstâncias supervenientes ocorridas posteriormente á decisão, que justifiquem a decisão, nomeadamente tendo em consideração o superior interesse do jovem, que aquelas medidas visam proteger.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 9606/05.0TBVNG-C.P1


Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia - Juiz 3


SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO:
Nos autos de Processo de Promoção e Proteção referente a AA, em 4.10.2021 foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos conjugados dos art.ºs 5.º, al. a), e 63.º, n.º 1, al. d), ambos da LPCJP, os maiores de idade apenas podem ser sujeitos a medidas de proteção se consentirem no prosseguimento do processo para além da maioridade.
In casu, o jovem AA, que atingiu a maioridade no passado dia 12 de agosto de 2021, e que se encontra acolhido na Obra ..., veio informar não pretender continuar integrado na referida Casa de Acolhimento.
Assim, ao abrigo das disposições legais supra citadas, determina-se o arquivamento dos autos.”
O MINISTÉRIO PÚBLICO em 5.1.2022, veio requerer o seguinte:
- se determine a reabertura do presente processo de promoção e proteção;
- que remetendo-se cópia do email que antecede, se solicite à EMAT (designadamente à Técnica Coordenadora do Caso que, com urgência, averigue da possibilidade e existência de vaga para que o jovem AA volte a estar acolhido na mesma instituição Obra ..., conforme pelo mesmo solicitado.
Foi proferido o seguinte despacho:
“(…) Posto isto, e sem mais considerações, indefere-se o requerido pelo jovem AA, por falta de fundamento legal, na medida em que a possibilidade de reabertura do processo de promoção e proteção está apenas prevista (no art.º 111.º, da LPCJP) para os casos em que o processo tenha sido arquivado sem a aplicação de qualquer medida (nos termos dos art.ºs 106.º, n.º 2, al. b), e 110.º, n.º 1, al. a), ambos da LPCJP), o que não foi o caso, já que nos presentes autos, foi aplicada a favor do jovem a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a executar na instituição “Obra ...”, medida essa que foi sendo revista e mantida, até que cessou, por decisão de 4/10/2021, que determinou o arquivamento dos autos, pelo facto de o jovem ter entretanto atingido a maioridade, e ter informado não pretender continuar integrado na Casa de Acolhimento.”
Inconformado o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs o presente recurso de APELAÇÃO, apresentando as seguintes conclusões:
“1º - O presente recurso prende-se com a discordância do douto despacho datado de 12- 01-2022, que indeferiu o expressamente requerido pelo jovem AA de poder voltar para a instituição onde esteve acolhido ao abrigo de medida de promoção e proteção de acolhimento residencial aplicada nestes autos, porquanto se considera que nada obsta ao deferimento da pretensão do Jovem, pois se verificam os pressupostos que permitem a manutenção de tal medida de promoção e proteção, sendo que estamos no âmbito de jurisdição voluntária, considerando-se, ainda, que o expressamente requerido pelo AA é o que corresponde ao Superior Interesse do Jovem (principio orientador de toda a legislação de proteção das Crianças e Jovens em Perigo do nosso ordenamento jurídico) e o que garante o seu bem-estar, desenvolvimento integral e assegura o seu futuro.
2º- A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, considerando-se criança ou jovem, a pessoa com menos de 18 anos ou a pessoa com menos de 21 anos que solicite a continuação da intervenção iniciada antes de atingir os 18 anos, e ainda a pessoa até aos 25 anos sempre que existam, e apenas enquanto durem, os processos educativos ou de formação profissional (cfr. artigos 1º e 5º, al.a), da LPCJP).
3º- A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo deve atender, prioritariamente, ao Interesse Superior da Criança e do Jovem (artigo 4º, al. a), da LPCJP), o que constitui: um direito substantivo; um princípio jurídico fundamentalmente interpretativo e uma regra processual. É assim o superior interesse da criança e do jovem que deverá estar sempre subjacente a qualquer decisão do tribunal relativa ao seu projeto de vida.
4º- O processo judicial de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo é de jurisdição voluntária (cfr. artigo 100º, da LPCJP), tal significa, além do mais, que, “nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”, ou seja, mais importante à defesa dos superiores interesses da criança ou jovem (cfr. artigo 987º, do CPC).
5º- As medidas de promoção e proteção podem manter-se para além da maioridade, quando o Jovem solicite a continuação da medida para além da maioridade e não tenha completado 21 anos (ou 25 anos, enquanto durem processos educativos ou de formação profissional, e desde que o jovem renove o pedido de manutenção).
6º- Nos presentes autos, o jovem AA, que conta atualmente com 18 anos de idade, esteve acolhido, à ordem destes autos, por se verificar situação de perigo, desde os 7 anos de idade (chegando mesmo a ser confiado a instituição com vista a futura adoção, o que não se veio a concretizar). Cerca de 2 meses antes de completar os 18 anos de idade, veio informar o Tribunal pretender continuar na instituição. Em consequência, foi prorrogada a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial (na instituição Obra ...) por mais 6 meses, por douto despacho datado de 24-08-2021. Todavia, em 27-09-2021, o Jovem veio alegar que pretendia sair da instituição, pelo que a medida foi cessada. Não obstante, cerca de 3 meses depois (em 25-12-2021), veio solicitar autorização para voltar para a instituição onde se encontrava acolhido, ou seja, a manutenção da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial que lhe foi aplicada, pedido que reiterou por email datado de 06-01-2022.
7º- Verificam-se os pressupostos e existe fundamento legal para que seja atendido o requerido pelo Jovem, conforme decorre do teor das disposições conjugadas sobretudo nos artigos 1º, 3º, nº2, al. a), 4º, al. a), 5º, al. a), 100º e 110º, da LPCJP (cujo teor conjugado se afigura poder ter sido violado).
8º- Para tanto salienta-se que um dos princípios orientadores da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, subjacente a toda a intervenção no âmbito do processo de promoção e proteção é o supra referido principio do Superior Interesse da Criança e do Jovem, sendo que, no caso dos autos, conclui-se que atender ao expressamente solicitado pelo Jovem de reabertura dos autos e de manutenção da medida de promoção e proteção aqui aplicada, corresponde ao seu superior interesse, salientando-se, a este propósito, que o Jovem termina o segundo email remetido aos autos, datado de 06-01-2022 (onde o mesmo reitera o seu pedido), da seguinte forma:
“Eu só peço que me autorizem a voltar para lá por favor.
Espero que compreendam a minha situação de novo!
Obrigado!
Dêem-me uma última oportunidade por favor!
Ajudem-me!”
9º- Trata-se de um apelo efetuado pelo Jovem, atenta a situação em que se encontra atualmente, verificando-se uma situação de perigo (designadamente, além do mais, falta de meios económicos para satisfazer as suas necessidades básicas).
10º- A não reabertura dos autos, conforme o Jovem expressamente requereu, pode potenciar situação de grande desproteção do Jovem, sem retaguarda (já que a sua retaguarda, desde os 7 anos de idade, foi em sede de acolhimento), podendo este vir a enveredar por contextos marginais e de desproteção, ou não continuar a sua formação (designadamente, caso tenha de arranjar meios de subsistência próprios, entrando já para o mercado de trabalho).
11º- Pelo que, reitera-se, a reabertura dos autos e a manutenção da medida de promoção e proteção em devido tempo aplicada (conforme o Jovem expressamente requereu) corresponde ao Superior Interesse do Jovem.
12º- Por outro lado, verificam-se os pressupostos previstos no artigo 63º, nº1, al. d), da LPCJP, a contrario, porquanto se verifica uma situação de perigo; a medida ainda se mostra necessária; o processo de promoção e proteção iniciou antes do Jovem ter completado 18 anos; o Jovem vem requerer expressamente a sua manutenção, não tendo completado 21 anos de idade.
13º- O artigo 111º, da LPCJP, prevê, de forma expressa, a possibilidade do processo de promoção e proteção ser reaberto, afigurando-se que não prevê tal possibilidade apenas nos casos em que não tenha sido aplicada medida de promoção e proteção. Efetivamente, da análise do referido preceito legal, afigura-se que não se extrai uma limitação à possibilidade de reabertura apenas às situações em que o processo tenha sido arquivado sem aplicação de qualquer medida, reiterando-se que, o principio a ter em consideração na interpretação da norma, é o superior interesse da criança ou do jovem.
14º- Afigura-se que a prévia aplicação ou não da medida não pode fazer a diferença na decisão de reabertura do processo de promoção e proteção, sendo que as razões que justificam a reabertura do processo são exatamente as mesmas nos dois casos, designadamente o aproveitamento dos elementos e dos conhecimentos sobre a realidade da criança ou jovem.
15º- Discorda-se, deste modo, do douto entendimento seguido, porquanto se afigura que a lei não distingue a possibilidade da reabertura dos autos apenas aos casos em que não tenha sido aplicada medida de promoção e proteção.
16º- Por outro lado, mesmo que assim não se considere, salienta-se que estamos perante um processo de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais importante e oportuna à defesa dos superiores interesses da criança/jovem (cfr. artigo 100º, da LPCJP e artigo 987º, do CPC).
17º- Ou seja, mais uma vez se salienta, o principio primeiro a levar em consideração e a regra base da interpretação em sede de processo de promoção e proteção, é o Superior Interesse da Criança ou Jovem.
18º- E neste caso, atento o expressamente requerido pelo Jovem, e mesmo o pedido de ajuda com que termina o seu segundo requerimento entrado em 06-01-2022, permite-nos concluir com segurança que, no caso dos autos, corresponde ao superior interesse do jovem AA, a reabertura dos autos e a manutenção da medida de promoção que lhe foi aplicada, permitindo-lhe regressar à instituição de acolhimento, onde terá todas as suas necessidades de subsistência asseguradas, bem como lhe será assegurada a manutenção do seu percurso escolar (sem ter que, para subsistir, entrar já no mercado de trabalho), sendo ainda trabalhado, com a ajuda dos Técnicos da Instituição, o seu progressivo processo de autonomia, e assim se garantindo e acautelando o futuro do jovem AA, possibilitando- lhe a sua valorização pessoal e profissional.
19º- Verificam-se, deste modo, factos que justificam a aplicação de medida de promoção e proteção (e consequentemente a reabertura dos autos), sendo que o Jovem veio agora solicitar novamente a aplicação da medida, encontrando-se em situação de perigo, designadamente em virtude de falta de recursos económicos que permitam inclusive assegurar as suas necessidades básicas, bem como falta de retaguarda familiar que permita acautelar tais necessidades, estando assim em perigo o seu bem estar e desenvolvimento integral.
20º- Face ao exposto, tendo sobretudo em consideração:
- o disposto nos artigos 1º, 3º, nº2, al. a), 4º, al. a), 5º, al. a), 100º e 110º, da LPCJP;
- que o Superior Interesse do Jovem, principio orientador de toda a legislação e de todo o processo de promoção e proteção, o impõe, atento o expressamente requerido pelo Jovem e a situação de perigo e de desproteção em que se encontra;
- que estamos perante processo de jurisdição voluntária (não estando o tribunal sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar a solução que considere mais importante para a defesa dos superiores interesses da criança/jovem);
- que a possibilidade de reabertura do processo está contemplada,
- que o Jovem requereu expressamente a manutenção da medida de promoção e proteção aplicada e que tem 18 anos de idade,
Considera-se que deverá ser atendido o expressamente requerido pelo Jovem e determinar-se a reabertura dos autos, possibilitando ao Jovem a manutenção da medida de promoção e proteção aplicada nestes autos, conforme o mesmo requereu e se afigura corresponder aos seus superiores interesses.
Termos em que se requer que se julgue procedente o presente recurso e, em consequência, se revogue o douto despacho que indeferiu o requerido pelo jovem AA, substituindo-se por outro que atenda ao solicitado pelo Jovem, deferindo-se assim a reabertura dos presentes autos de promoção e proteção.”
Não houve contra-alegações.
Foi admitido o recurso Por ser admissível, estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso como Apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
A questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a de saber se após o arquivamento de processo promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo e após aplicação e medida de proteção poderá esse processo vir a ser reaberto

III - FUNDAMENTAÇÃO.
Com interesse para a decisão, resulta dos autos a seguinte factualidade:
- O jovem AA nasceu no dia .../.../2003.
- Em 05-01-2011, foi aplicada, em favor da criança AA, a medida de promoção e proteção de acolhimento institucional (prevista no artigo 35º, nº1, al. f), da LPCJP), tendo o AA, nessa data, 7 anos de idade.
- Tal medida foi concretizada em 15-02-2011, tendo a Criança sido acolhida no Centro de Apoio à Família.
- A referida medida de promoção e proteção de acolhimento institucional veio a ser revista e mantida.
- Em 19-11-2013 foi proferida sentença que determinou a aplicação ao AA da medida de promoção e proteção de Confiança a Instituição com vista a Futura Adoção.
- Em 27-06-2018, foi proferido despacho no qual, ponderando-se que o jovem AA completa 15 anos no dia 12-08-2018 (data a partir da qual não será legalmente admissível a sua adoção), foi determinada a substituição da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, pela medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a executar na instituição Obra ....
- A referida medida de acolhimento residencial veio a ser revista e prorrogada.
- Em 14-06-2021, foi remetida aos autos carta manuscrita pelo jovem AA, na qual o mesmo manifesta, não obstante perfazer 18 anos em agosto, que pretende manter-se na casa de acolhimento até terminar o 12º ano, no setor de semi autonomia externa.
- AA completou 18 anos de idade no dia 12-08-2021.
- Por despacho datado de 24-08-2021, foi determinada a prorrogação da medida de promoção e proteção (considerando-se, além do mais, que o jovem manifestou vontade em continuar a beneficiar da presente intervenção protetiva para além daquele limite etário e que os progenitores do jovem não dispõem de capacidade para o acolherem de modo pleno).
- Em 27-09-2021, o jovem AA remeteu email aos presentes autos manifestando ser sua vontade sair da Instituição Obra ....
- Na sequência, foi proferido douto despacho datado de 04-10-2021, que determinou o arquivamento dos autos (considerando, além do mais, que o jovem AA que atingiu a maioridade no passado dia 12 de agosto de 2021, veio informar não pretender continuar integrado na referida casa de acolhimento).
- No entanto, em 25-12-2021, o jovem AA veio requerer ser autorizado a regressar à Instituição onde se encontrava acolhido à ordem destes autos, remetendo email do seguinte teor:
“Boa tarde Exmo sr juiz,
Eu quis sair de Instituição Obra ... para estar perto da minha família, mas está a correr muito mal, porque eu não há condições financeiras para estar com eles. A minha mãe não consegue arranjar trabalho, o meu padrasto ganha só o rendimento mínimo. E eu vim para Coimbra para a beira deles, arranjei uma escola e essa escola deu me alojamento porque eu vim do Porto.
Eu também saí da Instituição Obra ... só a para estar perto da minha mãe, mas não pensei em mim primeiro.
Eu gostaria muito que o tribunal me desse uma última oportunidade na minha vida para regressar à Instituição Obra ... porque lá tenho tudo ( um teto, comida, roupa lavada, posso estudar... ).
Eu só peço que me autorizem a voltar para lá por favor.
Espero que compreendam a minha situação de novo!
Obrigado!”
- Em 06-01-2022, o jovem AA remeteu novo e-mail aos autos, do mesmo teor do anterior, mas na parte final pediu que lhe fosse dada uma ultima oportunidade, acabando com a expressão “Ajudem-me”.

IV - APLICAÇÃO DO DIREITO
Discorda o Ministério Público da decisão que recaiu sobre o pedido do jovem AA, que pretende ser readmitido na instituição que o acolheu desde 2017.
Baseia-se aquela decisão na interpretação do art. 111º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, no sentido que aquela norma, que permite a reabertura do processo de promoção e proteção de jovens em risco, após ter sido arquivado, apenas é aplicável às situações em que não houve lugar a aplicação de qualquer medida de promoção e proteção.
Afirma-se no despacho que “Recorda-se que se lê no art. 111.º, I parte, da LPCJP que o “juiz decide do arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação da medida de promoção e proteção”. Logo, contemplam-se aqui unicamente as situações em que nem mesmo se chegou a aplicar qualquer medida de promoção e proteção, por falta de comprovação da situação de perigo (inicial ou atual) a que se destinava por termo.
Prosseguindo, lê-se ainda, na segunda parte, do mesmo preceito, que “podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem fatos que justifiquem a referida aplicação”. Logo, o processo arquivado que poderá ser reaberto é o “mesmo” referido antes (isto é, o arquivado sem a aplicação de qualquer medida).”
Defende-se aí que esta norma não é aplicável, sequer por analogia, às situações como a ora em apreço em que, uma vez aplicada, executada e declarada a extinta uma concreta medida, esgotou-se a autorizada intervenção do tribunal; e o sistema reassume a sua lógica intrínseca, nomeadamente a plena aplicação dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade.
Convoca-se para esta interpretação o argumento teologia ou racionalidade da norma, dizendo-se que “Pretende-se com a possibilidade de reabertura do processo inicialmente arquivado (por falta de verificação da situação de perigo atual antes denunciada) que seja o juiz que já tomou conhecimento dele (ou em fase liminar, ou após a instrução realizada) a decidir sobre a aplicação da medida mais adequada à promoção e proteção da criança ou do jovem: conhecedor (em maior ou menor medida) das suas pessoas e envolvência, bem como das possibilidades de concreto sucesso das abstratas medidas que possam ser aplicadas em seu benefício, previsivelmente mobilizará esse conhecimento para uma mais pronta e eficaz decisão.
Contudo, uma vez aplicada, executada e declarada a extinta uma concreta medida, esgotou-se a autorizada intervenção do tribunal; e o sistema reassume a sua lógica intrínseca, nomeadamente a plena aplicação dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade.”
Convoca-se ainda o argumento da unidade do sistema jurídico, dizendo-se que contendo a LPCJP um Capítulo VI, de «Disposições processuais gerais», que se aplicam «aos processos de promoção dos direitos e de proteção, adiante designados processo de promoção e proteção, instaurados nas comissões de proteção ou nos tribunais» (art. 77.º), não incluiu no mesmo qualquer disposição relativa à possibilidade de reabertura de processos previamente arquivados por cessação de medida antes aplicada.
Faz-se ainda referência às circunstâncias históricas, dizendo-se que : “Perante a redação inicial do art. 111.º da LPCJP, discutiu-se desde logo a possibilidade de aplicação (mercê de interpretação analógica) do art. 99.º do mesmo diploma, aos processos judiciais de promoção e proteção (face à reconhecida inexistência de um preceito legal que permitisse a sua reabertura, uma vez arquivados), sendo tradicionalmente afastada.
Pelo que, conhecendo necessariamente o legislador os termos em que a questão era colocada, e presumindo-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, mal se compreenderia que, podendo reproduzir no final do Capítulo IX da LPCJP (recorda-se, exclusivo do processo judicial de promoção e proteção) uma disposição similar ao seu art. 99.º (recorda-se, inserto no Capítulo VIII, exclusivo do processo nas CPCJ), ou passar o dito art. 99.º para o Capítulo VI (recorda-se, relativo às disposições processuais gerais, comuns a ambos os processos), o não tivesse feito.
A decisão recorrida ancora-se assim nas decisões proferidas por este Tribunal da Relação do Porto de 7/5/2018 (proferida no proc. 6242/15.7T8MTS.P1) e do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/4/2021, (proferida no proc. 2176/14.0TBVFX.G1).[1]
É porém outro, o nosso entendimento.
Dispõe o art. 3.º, n.º 1 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, a seguir designada por LPCJP, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, com as sucessivas alterações de foi sendo alvo, incluindo as introduzidas pela Lei n.º 26/2018, de 5 de Julho, que a “intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”.
Nos termos do nº 2 da mesma norma, considera-se “que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais; e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação”.
Por sua vez, dispõe o art. 34.º da LPCJP que as medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e jovens em perigo visam: a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso».
No artigo 4.º da LPCJP definem-se os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, destacando-se que a intervenção deverá obedecer sempre ao “interesse superior da criança e do jovem”, isto é, a “intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.
É, pois, o “interesse superior da criança” o critério supremo a ter em consideração na decisão judicial, encontrando-se consagrado: na lei ordinária (arts. 1878.º, n.º 1, 1905.º, n.º 1, 1906.º, n.ºs 2, 5, 7 e 1978.º, n.º 2, todos do CC, art. 4.º, n.º 1, al. a) da LPCJP, e arts. 147.º-A, 180.º, n.º 1 e 2 da OTM); na CRP; e na Convenção sobre os Direitos da Criança (arts. 3.º, n.º 1, 9.º e 18.º).
Este artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece que “todas as decisões relativas às crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.
Conforme refere Maria Clara Sottomayor,[2] “o legislador emite ao tribunal um comando a fim de que este decida de acordo com o interesse do menor. A utilização deste conceito pelo legislador permite uma extensão dos poderes interpretativos do juiz e confere-lhe o poder de decidir em oportunidade”.
Para a decisão a proferir no caso em apreço, destacamos ainda daqueles princípios orientadores, o princípio intervenção mínima, nos termos do qual, intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo (cfr. al d) do citado art. 4º e o princípio da Subsidiariedade, nos termos do qual, a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais (alínea k).
O sistema mostra-se organizado a partir do reconhecimento da importância fundamental da família (incluindo não só os progenitores, como os demais membros da comumente reconhecida como «família alargada») no são desenvolvimento da criança e do jovem; e, por isso, o Estado só intervém (só possui legitimidade para o efeito) quando a mesma não assegure cabalmente os seus deveres para com a criança ou o jovem, seja porque não quer (v.g. desinteresse), seja porque não pode (v.g. falta de condições).
É uma consagração do direito á infância protegido no art. 69º da CRP, que estabelece o seguinte:
“ 1. As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
2. O Estado assegura especial proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal. Ver também art. 69º da CRP (…)”.
Há que atentar antes do mais que o processo de promoção e proteção das crianças e jovens em perigo é um processo de jurisdição voluntária (art. 100.º, da LPCJP).
Convocam-se assim as normas processuais civis dos arts. 986.º e 987.º do CPC, nos termos das quais, “o tribunal não está adstrito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”.
Neste tipo de processos, dá-se assim prevalência à equidade sobre a legalidade estrita.
Relativamente á norma que o tribunal recorrido usou para fundamentar o indeferimento da pretensão do jovem AA, que foi acompanhado pelo Ministério Público, que ora se apresenta aqui a recorrer, em face da decisão desfavorável, dispõe o art. 111º do RGPTC, o seguinte.
“O Juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação a medida de promoção e proteção, podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem factos que justifiquem a referida aplicação.”
Em primeiro lugar afigura-se-nos que recorrendo ao elemento literal da norma não está excluído o entendimento que a não subsistência da situação de perigo, aí contemplada não possa decorrer ou ser consequência da circunstância de ter sido aplicada uma medida de proteção.
Não concordamos assim com a interpretação feita no despacho recorrido de que a norma em apreço, seja aplicável apenas às situações em que aberto o processo judicial, não tenha havido lugar aplicação de medida de promoção e proteção, porquanto a norma prevê expressamente a possibilidade da situação de perigo “não subsistir”, não afastando assim da sua previsão, as situações em que, verificada uma situação de perigo, e tendo sido aplicada uma medida, o perigo deixe de subsistir, justificando dessa forma o arquivamento do processo.
Em segundo lugar, o entendimento vertido no despacho sob recurso, mostra-se a nosso ver, contrário á própria natureza de processo de jurisdição voluntária e dos princípios que o norteiam.
Com efeito, de acordo com o art. 988º do CPC, nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração: dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente á decisão, como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.
Esta é uma característica dos processos de jurisdição voluntária, que estabelece que a regra é, relativamente a eles, a da tangibilidade do caso julgado, legitimando que a decisão transitada em julgado, possa ser alterada por circunstâncias supervenientes, algo que nos outros processos (nos processos contenciosos) é excecional.
Tal regime, contudo, refere Isabel Alexandre, só é de aplicar a situações que pela sua natureza admitem modificações, daí se excluindo, por exemplo, a sentença que decrete o divórcio ou a sentença que decrete a adoção, que, obviamente são definitivas e insuscetíveis de modificação, com base em circunstâncias supervenientes.[3]
Ora é precisamente com base nesta característica que constitui o regime regra das ações de jurisdição voluntária, que entendemos que, tal como defende o Ministério Público, a decisão recorrida não pode subsistir, independentemente da interpretação mais ou menos restritiva que se faça do art. 111º do RGPTC.
Com efeito, o jovem, AA, que desde os seus 7 anos, se vê protegido, beneficiando da medida de promoção e proteção de acolhimento institucional (prevista no artigo 35º, nº1, al. f), da LPCJP), por se ter considerado que quer ele quer a sua irmã, então menores de idade “se encontram em situação de risco face à negligência que decorre da falta de competências da progenitora para assegurar os cuidados básicos de alimentação e higiene dos menores …) formula agora um pedido “desesperado” ao Tribunal: “Ajudem-me”.
Ao contrário da sua irmã, que veio a ser adotada, em 07-09-2017, o AA foi transferido para a casa de acolhimento Obra ..., em ....
Por despacho datado de 27-06-2018, ponderando-se que o jovem AA irá completar 15 anos no dia 12-08-2018, data a partir da qual não será legalmente admissível a sua adoção, em sede de revisão, foi determinada a substituição da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, pela medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, a executar na instituição Obra ..., pelo período de 1 ano (cfr. fls. 783 e ss.).
A referida medida de acolhimento residencial veio a ser revista e prorrogada, por despachos datados de 05-04-2019, 28-08-2019, 17-04-2020 e 21-12-2020, como alega o Ministério Público.
Não obstante ter sido prorrogada por despacho datado de 24-08-2021, a requerimento do jovem AA, a medida de promoção e proteção, por se entender que os progenitores do jovem não dispõem de capacidade para o acolherem de modo pleno, isto após aquele ter completado 18 anos, o jovem AA que havia manifestado vontade em continuar a beneficiar da intervenção protetiva para além daquele limite etário, veio em 27-09-2021, remeter email aos presentes autos, informando que queria sair da Instituição Obra ...”.
Foi na sequência dessa tomada de posição, que o processo veio a ser arquivado, tendo o tribunal declarado cessada a medida de proteção.
Vem agora o jovem AA invocar factualidade, suscetível de fundamentar a alteração das circunstâncias vigentes na altura em que o tribunal proferiu a decisão de arquivamento dos autos, alegando em e-mail de 25-12-2021 que:
“Eu quis sair de Instituição Obra ... para estar perto da minha família, mas está a correr muito mal, porque eu não há condições financeiras para estar com eles. A minha mãe não consegue arranjar trabalho, o meu padrasto ganha só o rendimento mínimo. E eu vim para Coimbra para a beira deles, arranjei uma escola e essa escola deu me alojamento porque eu vim do Porto.
Eu também saí da Instituição Obra ... só a para estar perto da minha mãe, mas não pensei em mim primeiro.
Eu gostaria muito que o tribunal me desse uma última oportunidade na minha vida para regressar à Instituição Obra ... porque lá tenho tudo ( um teto, comida, roupa lavada, posso estudar... ).
Eu só peço que me autorizem a voltar para lá por favor.
Espero que compreendam a minha situação de novo!
Obrigado!”
Face ao que acima ficou dito, em face da espacial natureza deste processo, como processo de jurisdição voluntária, nada impede, a nosso ver, uma vez que a lei diretamente o não proíbe, que o processo possa ser reaberto e retomada a medida protetiva que se encontrava em vigor antes do arquivamento os autos, reabrindo-se o processo para o efeito.
Convocando ainda o princípio da economia processual, princípio este informador do processo civil, entendemos ser possível, a reabertura do processo, para efeitos do artigo 63º, nº1, al. d), da LPCJP, que permite que as medidas de proteção se prolonguem para além da maioridade, até que o jovem complete 21 anos, a a-pedido deste.
O jovem AA não completou os 21 anos de idade, tendo agora vindo requerer expressamente a continuação da aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial na mesma instituição onde se encontrava.
Por último e não de menor importância, é superior interesse do jovem que deve nortear a decisão, como vimos.
Por todas estas razões, impõe-se por isso a revogação, do despacho, devendo ser reaberto o processo, para apreciação o requerido pelo jovem.

V - DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este tribunal da Relação o Porto, em julgar procedente o recurso e em consequência, determinam a reabertura do processo arquivado, para apreciação do requerimento apresentado pelo jovem.

Sem custas.

Porto, 5 de Abril de 2022
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
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[1] Ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] IN Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 5.ª edição, Revista, Aumentada e Atualizada, Almedina, Abril de 2016, pág. 31.
[3] Isabel Alexandre in Modificações do Caso Julgado Material por Alteração das Circunstâncias, pp.134-135.