Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
571/14.4GBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ERMELINDA CARNEIRO
Descritores: AMEAÇA
MAL FUTURO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RP20161123571/14.4GBOAZ.P1
Data do Acordão: 11/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1033, FLS. 245-253)
Área Temática: .
Sumário: A controvérsia jurisprudencial sobre determinada questão (no caso, saber se a expressão usada pelo arguido constitui “mal futuro”) impede que o juiz possa rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada [art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, do CPP].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 571/14.4GBOAZ.P1
Tribunal da Comarca de Aveiro - Instância Local de Oliveira de Azeméis – Secção Criminal (J1)

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos autos de processo comum que, com o nº 571/14.4GBOAZ.P12, correm termos no Tribunal da Comarca de Aveiro Oliveira de Azeméis - Instância Local – Secção Criminal – J1, aquando do saneamento do processo, o Senhor Juiz que proferiu o despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, em questão prévia, rejeitou parcialmente a acusação pública no que respeita ao crime de ameaça também imputado ao arguido, por a considerar manifestamente infundada.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«CONCLUSÕES
A) O objeto do presente recurso consiste no despacho proferido a fls. 71 a 74 que, nos termos do disposto no art. 311.°, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do Código de Processo Penal, que rejeitou parcialmente o recebimento da acusação pública deduzida nos autos a fls 40 a 44 contra o aqui arguido B…, na parte em que nesta o mesmo vem acusado pela prática (em concurso efetivo com o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, que foi recebida pela Mm,ªJuíza) de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.°, n.º l e artigo 155.°, n º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pessoa do ofendido C…, por entender que o comportamento que ali se imputa ao arguido consubstancia um ato de violência iminente que se esgota no próprio momento, não havendo por isso, ameaça de um mal futuro, característica essencial deste tipo legal de crime.
B) Face ao princípio do acusatório o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, iuízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e, incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada.
C) Em nosso entendimento, a acusação por nós deduzida contra o arguido B… é manifestamente fundada, integrando os factos nela vertida todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de ameaça agravada, que se autonomizam, e não atos de execução, do crime de homicídio qualificada tentado.
D) O Douto Despacho Recorrido violou o disposto nos arts.º 311.°, n.º 2, al. a) e n.º 3, alíneas d) do Código de Processo Penal e artigos 153.°, n.º 1 e 155.°, n.º l, alínea a), ambos do Código Penal.
Nestes termos, deverá ser determinado que o Douto Despacho Recorrido seja revogado e substituído por outro que receba a acusação pública na íntegra e designe a audiência de julgamento, assim se fazendo Justiça.»
Admitido o recurso, e chegados os autos a este Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer, no sentido do provimento do recurso.
Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
II – Fundamentação
Conforme entendimento pacífico são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos submetidos à sua apreciação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
No presente caso, a questão suscitada, reconduz-se a saber se o despacho proferido nos termos do disposto no artigo 311º do Código Processo Penal podia rejeitar a acusação proferida contra o arguido, na parte em que lhe é imputada a prática de crime de ameaça agravada, por considerar-se tal crime consumido na execução do crime de homicídio tentado igualmente imputado ao arguido.
Com interesse para a decisão, o processo fornece os seguintes elementos:
(i) a acusação formulada pelo Ministério Público tem o seguinte teor [transcrição]:

«Em processo comum para julgamento perante Tribunal Singular (artigo 16º, nº 3 do Código Processo Penal), o Ministério Público deduz acusação contra, B... (…)
Porquanto:
O arguido contratou com o ofendido C… e D… a substituição de um telhado de uma casa de arrumos da sua residência, sita residente na Rua …, n.º …, em …, Oliveira de Azeméis.
Durante os trabalhos o arguido visitava habitualmente a obra e conversava com o ofendido C…, falando-lhe mal de outros empreiteiros a quem anteriormente tinha contratado outras obras.
No dia 28 de outubro de 2014, pela manhã o ofendido C… entregou tal obra concluída ao arguido que a achou em conformidade, tendo sido combinado que nesse dia à tarde ou no dia seguinte aquele passaria lá em casa a fim de se efetuar o pagamento da obra.
Sucede que, nesse mesmo dia o ofendido C… foi contactado por D… que lhe transmitiu que o arguido lhe havia dito que o trabalho não estava em conformidade.
Pelo que o ofendido e D… se deslocaram à habitação do arguido a fim de se inteirarem do que estava mal e repararem eventuais irregularidades.
Ai chegados, cerca das 14:30 horas, o arguido expôs ao ofendido e acompanhante o que entendia não estar de acordo com o contratado, direcionando um jato de água de uma mangueira para o telheiro tentando fazer crer que o trabalho estava mal acabado enquanto, em voz alta, afirmava que o telhado deixava entrar água.
O ofendido, já saturado, prontificou-se a alterar o que, no entender do arguido, estaria mal, não deixando, no entanto, de lhe fazer o seguinte reparo:
"Ó Sr. B…, você chateia-se com toda a gente, deve ser é para não pagar! ..."
Ato contínuo o arguido proferiu a seguinte expressão, dirigindo-se ao ofendido C…: "Ó C… tu não digas isso que eu vou já lá acima buscar a caçadeira e dou-te dois tiros que te fodo!".
No entanto, o arguido não fez qualquer gesto indicativo que iria buscar a dita arma, continuando no mesmo local com o ofendido e seu acompanhante, enquanto estes não abandonaram o local, o que veio a acontecer, momentos após, a conselho do D… que temeu que tal ameaça pudesse vir a ser concretizada.
Cerca de 45 minutos após, entre as 15:00 e as 16:00 horas, encontrava-se o ofendido C… a trabalhar na esplanada do "E…", sito na Rua …, em …, Oliveira de Azeméis, quando o arguido ali se deslocou ao volante da sua viatura, que estacionou na via pública, do lado oposto ao do referido estabelecimento comercial, e dirigiu-se ao ofendido C… com as seguintes expressões:
"Seu ladrão! Filho da puta! Estás a dizer que eu não pago?! ... Eu pago a toda a gente. Vou ali ao carro buscar uma coisa e mato-te já!"
Nisto, o arguido foi ao seu veículo, retirou uma catana detrás do banco do condutor, e regressou munido com aquela, que empunhou, levantando-a no ar, desferindo com a mesma um golpe na direção da cabeça do ofendido C…, que só não chegou a ser atingido por esta na cabeça por, instintivamente, se ter desviado no último segundo.
Neste momento, o arguido foi agarrado por F…, que ali se encontrava, que segurou o arguido e o obrigou a abandonar o local, não sem antes continuar a proferir as descritas frases, dirigidas ao ofendido C… - "Seu ladrão! Filho da puta! Estás a dizer que eu não pago?! ... Eu pago a toda a gente. Eu mato-te! Eu racho-te essa cabeça".
Ao ter desferido um golpe com a catana na direção da cabeça do ofendido C…, o arguido teve a intenção de lhe tirar a vida o que só não sucedeu por circunstâncias exteriores à sua vontade.
Ao ouvir todas as expressões que lhe foram dirigidas, tanto na residência do arguido, como já no "E…", acompanhadas do descrito golpe fatal falhado, o ofendido C… sentiu-se muito receoso e temeroso que o arguido pudesse voltar a atentar contra a sua vida.
O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei criminal.
Pelo exposto, o arguido B… incorreu, em concurso efetivo, na prática de:
-de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.°, n.º l e artigo 155.°, n.º1, alínea a), ambos do Código Penal;
-de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.°, n.º l e n.º 2, alínea b), 23.°, 73.°, n.ºs 1, alíneas a) e b) , 131.°, n.º l e 132.°, n.º 1 e 2, alínea i), todos do Código Penal.
(…)»
(ii) a decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.
Questão prévia:
Dispõe o art. 311°, nº 1 que recebidos os autos o tribunal pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer, prevendo a possibilidade de rejeitar a acusação quando manifestamente infundada, enumerando taxativamente no seu nº 3 os casos em que a acusação se considera manifestamente infundada, designadamente se os factos não constituirem crime – al. c) do nº 2 daquele dispositivo.
E, da análise da acusação pública resulta que vem imputada a prática ao arguido também a prática de um crime de ameaça agravada da previsão do artigo 153°, n° 1/155°, n° 1 al a) do Código Penal, descrevendo-se, relativamente a este tipo legal de crime a seguinte os factos não factualidade: “ Oh C… tu não digas isso que eu vou lá acima buscar a caçadeira e dou-te dois tiros que te fodo”…… “vou ali ao carro buscar uma coisa e mato-te já”…… “ eu pago a toda a gente. eu mato-te! Filho da puta. Eu mato-te. Eu racho-te essa cabeça”.
Na sequência deste diálogo e comportamento outros factos vem imputados ao arguido que sequenciais lhe imputa o Ministério Público em concurso real a prática de um crime de homicídio qualificado tentado.
Ora, tal factualidade, em nosso entendimento, não é susceptível de integrar a prática de um crime de ameaça da previsão do artigo 153°/155° do Código Penal, que vem imputada ao arguido na acusação pública.
Com efeito, tem entendido a jurisprudência dos tribunais superiores e a doutrina que quanto ao crime de ameaça, são elementos constitutivos deste tipo legal de crime o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro que constitua crime, que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade, e que o agente tenha actuado com dolo.
O crime de ameaça não é um crime de resultado, pelo que desde que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime.
É pois, um crime de perigo.
Segundo Dr. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo 1, pg. 343, são três as características essenciais do conceito de ameaça:
a) um mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de ser futuro (“ O mal objecto da ameaça não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça “);
b) que não haja iminência de execução, no sentido de que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (art.° 22°, n.º 2, al. c do Código Penal);
c) É indispensável que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente.
Por outro lado, o crime é doloso, isto é, o agente tem de agir com a consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade do ameaçado.
Pelo que, analisados os elementos do tipo e a factualidade assim descrita na acusação pública, afigura-se-nos que tal comportamento consubstancia um acto de violência iminente que se esgota no próprio momento, não havendo, por isso, ameaça de um mal futuro, que, como já referimos, é característica essencial deste tipo legal de crime.
Consequentemente, não poderá tal factualidade, assim descrita, ser enquadrada no tipo legal de crime em causa.
Assim sendo, ao abrigo dos dispositivos em análise rejeita-se a acusação pública no que respeita aos factos subsumíveis ao imputado crime de ameaça, por se considerar manifestamente infundada.
Porém afigura-se-nos que os mesmos são atos de execução que conjuntamente com os demais integram o crime que em concurso real o Ministério Público também imputa ao arguido e que infra se recebe
Notifique.
Não existem outras questões prévias ou incidentais, susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, de que ora cumpra conhecer.
Autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.
Recebo a acusação pública pelos factos e crime de homicídio qualificado na forma tentada nos termos que lhe são imputados a fls 42 a 44 e relativamente ao arguido B… melhor identificado a fls 41. (…)».
Conhecendo.
A questão que nos é colocada, como acima já se deixou enunciada, resume-se a saber se aquando da prolação do despacho previsto no artigo 311.º do Código de Processo Penal pode – ou não – ser rejeitada a acusação na parte em que imputou ao arguido a prática de um crime de ameaça agravada, por considerar-se manifestamente infundada, entendendo-se que os factos subsumíveis ao aludido crime são atos de execução que conjuntamente com os demais integram o crime de homicídio qualificado na forma tentada, também imputado ao arguido.
Assentando o nosso processo penal numa estrutura acusatória - artigo 32.º nº 5 da Constituição da República Portuguesa – apresenta uma distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase acusatória e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto dessa acusação.
«O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A “densificação” semântica da estrutura acusatória faz se através da articulação de uma dimensão material (fase do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento. No plano subjectivo, significa diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio do acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz do julgamento (…).» Gomes Canotilho e Vital Moreira In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, Coimbra Editora, 2007, a página 522.
A Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, com as alterações que introduziu, permitiu explicitar, de forma clara, as funções dos vários sujeitos processuais determinando, inclusive, a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.
Nesse sentido e com essa intenção estabeleceu-se, normativamente, no artigo 311º nº 3 do Código Processo Penal, as situações que o legislador entendeu poder o juiz sustentar uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido.
Estatui o artigo 311º do Código Processo Penal, sob a epígrafe “Saneamento do processo”:
1 — Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 — Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 — Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
Assim e de harmonia com o nº 2 do normativo legal citado, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada – alínea a) -, encontrando-se taxativamente enumerados no nº 3 os casos em que, para efeitos do nº 2, a acusação se considera manifestamente infundada.
Pretendeu o legislador “evitar o prosseguimento do processo, perante a situação de clara inexistência de objeto, assim se evitando sujeitar o arguido, inutilmente, a julgamento.” [cfr. António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes e António Pires Henriques da Graça, Código de Processo Penal Comentado, 2014., pág. 1028].
As situações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 referido (quando a acusação não contenha a identificação do arguido; não contenha a narração dos factos ou não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam) não suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e configuram casos de nulidade da acusação.
A alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código Processo Penal não se mostra de tão fácil identificação, referindo a lei “se os factos não constituírem crime”.
E, os factos só não constituirão crime quando seja apresentada uma insuficiente descrição fática ou a conduta imputada ao agente não revista relevância penal. Este fundamento, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779 “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa”.
Para que o juiz possa rejeitar a acusação é necessário que os factos descritos não constituam inequivocamente crime; o entendimento divergente das várias correntes seguidas pela jurisprudência, não se basta para o efeito.
“Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.”. – Ac. da RC de 25/3/2010, Proc. nº 127/09.3SAGRD.C1 -.
No mesmo sentido se pronuncia Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644 “Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do n.º 3 («Se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.” E pacificamente a jurisprudência, v.g. Acs. RL de 15/9/2011, Proc. nº 3769/08.TASNT e de 25/11/2009, Proc. nº 742/08.2 GCMFR, disponíveis, www.pgdl.pt; Ac. R.C. de 12/7/2011, Proc. 66/11.8GAACB.C1, disponível em www.dgsi.pt; Acs RP de 13/7/2011, Proc. nº 6622/10.4TDPRT.P1, de 11/7/2012, Proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1, de 15/10/2013, Proc. nº 321/12.0TDEVR.E1 e de 21/10/2015, Proc. nº 658/14.GAVFR.P1; Acs RE de 15/10/2013, Proc. nº 321/12.0TD e de 3/12/2013, Proc. nº 289/4.0EAEVR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Revertendo ao caso sub judice, vejamos se o Meritíssimo Juiz podia rejeitar a acusação relativamente ao crime de ameaça agravada imputada ao arguido nos termos em que o fez.
Determina o artigo 153º do Código Penal que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Por seu turno o art.º 155.° n.º1 al. a) do supra citado artigo estabelece que, se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
A ameaça consiste em anunciar que se vai fazer algo que implica um mal, uma lesão ou dano futuro. Exigível é que a ameaça, o mal futuro que se promete fazer constitua crime (contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor),e seja adequado a provocar medo ou inquietação, mesmo que em concreto o não tenha provocado (Vide Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2° Vol., pág. 305)
Como refere Taipa de Carvalho (ln Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 343), são três as características essenciais do conceito de ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial e tem de ser futuro. A ocorrência desse mal futuro terá ainda de depender da vontade do agente, o que se analisará de acordo com a perspetiva do homem comum, tendo no entanto em conta as características individuais da pessoa ameaçada.
A ação de ameaçar pode revestir a forma oral, escrita ou gestual, ponto é que o mal ameaçado configure em si mesmo um facto ilícito típico.
É ainda necessário que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. No entanto, “exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do "homem comum "); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (Ob.cit, pág.348).
É fundamental que a promessa de causar o mal se revista de um aspeto sério, que o agente demonstre estar realmente resolvido a praticar o facto. Assim, desde que estejamos perante uma ameaça idónea a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime.
Neste sentido, pode legitimamente concluir-se que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado. Mais precisamente, trata-se de um crime de perigo.
Quanto ao tipo de ilícito subjetivo, o crime de ameaça exige o dolo. "Este dolo exige e basta-se com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado. Isto, assim como o próprio conceito de ameaça, pressupõe, naturalmente, que o agente tenha a vontade de que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário". Cfr. Américo Taipa de Carvalho, Ob. cit. pág. 351.
Como se referiu, o tipo de ilícito objetivo exige que a ameaça consista num mal, futuro, e que dependa da vontade do agente.
Tem-se realçado a necessidade de que o mal integrador da ameaça, não pode ter um caráter iminente e contemporâneo desta, mas antes constituir o anúncio intimador de uma ação futura.
A temporalidade futura do mal anunciado significa, nas palavras de Américo Taipa de Carvalho in Ob. cit. pág. 343 “o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que neste caso, estar-se-á diante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência”. (…) “Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa”.
Ainda, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3.ª edição atualizada, pág. 601), “O tipo objectivo consiste na comunicação de uma mensagem a um destinatário com significado da prática futura de um mal ao destinatário ou a um terceiro”.
No crime de ameaça, o agente promete vir a cometer um crime num tempo que não aquele em que faz o anúncio. Ao invés, mal iminente é aquele que está em vias de, ou prestes a, ser infligido. – neste sentido, entre muitos, Acs. RP de 20/11/2013, Proc. nº 117/12/9GAPVZ.P; de 29/4/2015 Proc nº 738/12.0GDVFR.P1 e de 27/11/2016 Proc.nº 532/14.3GBILH.P1. disponíveis em www.dgsi.pt -.
Retornando aos autos, considerou o Senhor Juiz que in casu não se verificava a característica temporal do mal anunciado visando um momento futuro, não configurando a atuação do arguido um anúncio de um mal a praticar noutro momento posterior, antes se esgotando naquele momento com a execução da conduta tipificadora do crime de homicídio na forma tentada.
Contudo, se a doutrina e jurisprudência anunciam pacificamente, como supra vem enunciado, o conceito de “mal futuro”, as dificuldades surgem quando se trata de concretização desse “mal futuro”; e as decisões jurisprudenciais têm vindo a elucidar bem essa dificuldade.
A este propósito cita-se, por ilustrativo, segmento do aresto da RC de 07/03/2012, Procº nº 110/09.9TATCS.C1, disponível in www.dgsi.pt. “Relativamente ao que deve ser entendido como “futuro”, duas teses se podem degladiar, e isto sem prejuízo de também de se opinar que o que distingue a ameaça do cometimento de um crime e o cometimento desse mesmo crime são as próprias circunstâncias da acção que revelam a intenção que lhe preside (o animus do emissor de tal mensagem):
• há uma tese que defende, a propósito, por exemplo, da expressão “eu mato-te”, proferida numa discussão verbal, que a mesma se esgota nesse momento, por ser dotada de imediatismo, inexistindo crime de ameaça: o que significa que não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo, a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente — repete-se, o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura;
• Contrariamente, há quem defenda que, nesse caso, há crime de ameaça, na medida em que o mesmo passa a existir logo a partir do momento em que é feita a afirmação.”.
A controvérsia jurisprudencial sobre a questão impede que o juiz possa rejeitar a acusação. Como se referiu, para que tal possa ocorrer, é mister que os factos descritos não constituam inequivocamente crime; o entendimento divergente das correntes seguidas pela jurisprudência, não se basta para o efeito.
Inexistindo uniformidade na jurisprudência em torno da concretização de “mal futuro” e sendo ela crucial para aferir da relevância penal e subsunção jurídica dos factos cuja prática vem imputada ao arguido na acusação, não é no momento da prolação do despacho de saneamento do processo que deve ser feita a opção por um dos entendimentos em confronto. E isto porque, perante os entendimentos divergentes, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada.
Só após realizado o julgamento deverá ser ponderado qual o entendimento a seguir. Nessa fase, poderá, eventualmente, a acusação ser julgada improcedente; porém, o efeito jurídico dessa improcedência é distinto da rejeição da acusação.
Ademais, no caso vertente, o Digno Recorrente imputa ao arguido as declarações que entende como constitutivas do crime de ameaça como proferidas em momentos não totalmente coincidentes.
De todo o exposto se conclui pela procedência do recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação nos termos em que a mesma foi deduzida.
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III – Decisão
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que que receba a acusação igualmente na parte em que acusa o arguido, B…, pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos artigos nºs 153, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) ambos do Código Penal.

Sem custas.

Porto, 23 de Novembro de 2016
Maria Ermelinda Carneiro
Raul Esteves