Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
966/19.7T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO PELA PERDA DE RENDIMENTOS DE TRABALHO
DANO NÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RP20201209966/19.7T8PNF.P1
Data do Acordão: 12/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O peão que caminha com a bicicleta pela mão, pelo lado direito da via, a 0,5 m do passeio, sem que se prove que a via da esquerda oferece segurança para o trânsito de peões, não tem a obrigação de proceder ao desvio da sua marcha, recaindo essa obrigação sobre o condutor do veículo, que surge na sua retaguarda, como decorre da norma contida no art. 38º/2 e) do Código da Estrada e se impõe em obediência ao dever de diligência na condução que resulta do art. 13º/1 do Código da Estrada.
II - Considerando os valores arbitrados na jurisprudência e ponderando o grau de limitação de que ficou a padecer o autor – défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional -, não existindo qualquer perspetiva de recuperação, a idade (46 anos), o salário líquido (€ 686,45), a profissão (carpinteiro), o tempo profissional de vida ativa (70 anos), a dedução de 10%, ponderando a entrega antecipada do capital produtor de rendimento, mostra-se proporcional e adequado, segundo um juízo de equidade atribuir uma indemnização pela perda de ganho de € 190.000,00 (cento e noventa mil euro).
III - Encontrando-se o lesado deitado numa cama e sem qualquer autonomia para os atos mais elementares de satisfação das suas necessidades, irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde, necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; a casa onde vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para o receber, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas; o Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado numa instituição, segundo um critério de equidade mostra-se proporcional e adequado arbitrar a título de assistência vitalícia e tratamentos especializados a quantia de € 360.000,00.
IV - Mostra-se adequada para compensar o dano não patrimonial a indemnização de € 200.000,00, quando o sinistro ocorreu por facto imputável a título de culpa do lesante, o lesado está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma; apesar de consciente, apenas consegue verbalizar o seu nome e reconhecer os familiares, apresentando-se desorientado; as lesões sofridas provocaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional; com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7; ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7; com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7 e ainda, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7; sofreu dores e incómodos com os tratamentos e intervenções cirúrgicas e a sua mobilidade ficou seriamente comprometida, apesar dos tratamentos, de tal forma que permanece 24 horas sobre 24 horas deitado numa cama e a carecer de permanentes cuidados médicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Via-RMF-Peão-966/19.7T8PNF.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTOR: B…, divorciado, carpinteiro, residente no …, nº …, ….-… freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, NIF ……… e beneficiário da Segurança Social Portuguesa nº ………..; representado por C…, sua mãe, consigo residente, NIF ……… e beneficiária da Segurança Social nº ………...
- RÉ: “D…., Companhia de Seguros, S.A.”, com sede no …, .., ….-…, Lisboa
pede o autor a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de €1.006,062,46; quantitativo global (constituído por valores parcelares que se pretendem meramente indicativos) acrescido de juros, calculados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento; a ressarcir os Autores pelos danos patrimoniais e morais futuros, alegados nos arts. 46º e 47º da p. i., a apurar mediante incidente de liquidação de sentença.
Alegou para o efeito e em síntese, que ocorreu um acidente de viação em 16 de setembro de 2017, pelas 20 horas e 40 minutos, na E.N. …, próximo do n.º de porta …., na freguesia …, nesta comarca, no qual foi interveniente, na qualidade de peão, assim como o veículo de matrícula ..-..-HD, propriedade de E… e por este conduzido, circulando ambos no sentido de marcha …-…, sendo que o Autor caminhava a pé com a bicicleta pela mão e, por razões que desconhece, já que circulava de costas para o referido veículo, foi embatido por trás.
Concluiu que o sinistro ficou a dever-se única e exclusivamente ao condutor do veículo “HD” por ter atuado com negligência.
Alega que sofreu danos patrimoniais, danos futuros e não patrimoniais com o acidente dos presentes autos, cuja indemnização peticiona.
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A Ré citada contestou, defendendo-se por impugnação.
Alegou, em síntese, que o acidente ocorreu por facto imputável ao autor, por circular com o seu velocípede com uma elevada taxa de álcool, em zig zag, inexistindo assim qualquer responsabilidade pela sua ocorrência.
Alegou, ainda, que o Autor recebe uma pensão por invalidez, não estando verificado o nexo de causalidade entre os danos sofridos e o alegado sinistro.
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Na resposta à contestação o autor manteve a posição inicial.
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O Instituto de Segurança Social veio deduzir pedido de reembolso contra a Ré do subsídio de doença que pagou ao autor.
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Elaborou-se o despacho saneador e o despacho que fixou o objeto do litígio e os temas de prova.
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Realizou-se o julgamento, com gravação da prova e demais formalidades legais.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:
a) condenar a Ré, “D…, Companhia de Seguros, S.A.”, a pagar ao Autor, B…, aqui representado por C…, sua mãe, as seguintes quantias:
- € 538.062,46 pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento, devendo deduzir-se a tal quantia, os montantes que a Ré pagou ao Autor, por força da sentença proferida no âmbito da Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória apenso aos presentes autos.
- € 200.000,00, pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescido dos juros legais, contados a partir da presente data.
b) condenar a Ré “D…, Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao Instituto de Segurança Social, Centro Distrital do Porto, I.P. a quantia de € 1.540,87, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
c) absolver a Ré dos restantes pedidos contra si deduzidos.
Custas por Autor e Ré na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Autor”.
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O autor e a ré vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante ré D…, Companhia de Seguros, SA formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso de apelação e a revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo, com absolvição da ré do pedido.
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Nas alegações que apresentou, formulou o autor as seguintes conclusões:
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Termina por pedir que o recurso seja julgado totalmente procedente condenando-se a Ré na totalidade do pedido bem como relegando para liquidação de sentença nas questões acima enunciadas.
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O autor apresentou resposta ao recurso interposto pela ré, concluindo que sendo o mesmo infundado se deve julgar improcedente.
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Os recursos foram admitidos como recursos de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
a) Apelação da ré Companhia de Seguros D…, SA
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova;
- responsabilidade pela produção do sinistro;
- quantificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais.
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b) Apelação do Autor
- reapreciação da decisão de facto com fundamento em erro na apreciação da prova;
- quantificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais;
- liquidação em execução de sentença dos montante a apurar com ajudas técnicas e tratamentos.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal de primeira instância:
1 - No dia 16/09/2017, cerca das 20 horas e 40 minutos, na E.N. …, próximo do nº de Polícia/porta …., na freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um embate em que foram intervenientes o Autor e o veículo matrícula “..-..-HD”, marca Renault, conduzido por E…, seu dono.
2 - O Autor caminhava a pé, com a bicicleta pela mão, sem capacete, pelo lado direito da via, a cerca de 0,5 metros do passeio, no sentido de marcha … – ….
3 - Tal velocípede não estava munido de qualquer luz ou sinalização refletora.
4 - O condutor do veículo “HD” circulava no mesmo sentido, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 50 KM/h e com as luzes médias ligadas.
5 - A dada altura, o Autor, que caminhava de costas voltadas para a circulação do “HD”, foi embatido na sua parte lateral esquerda, pela frente direita deste veículo.
6 - No momento do embate não havia veículos a circular em sentido contrário ao da viatura “HD”.
7 - No local onde ocorreu o embate existia um poste de iluminação pública, mas que se encontrava avariado.
8 - Após o atropelamento, relativamente ao ponto fixo inalterável – nº de porta …., o Autor ficou caído a 5,70 metros, o velocípede ficou a 2,00 metros e a frente do HD imobilizou-se a mais de 19,20 metro.
9 - O Autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l.
10 - Como consequência do embate, o Autor perdeu a consciência.
11 - O Autor foi transportado, em estado de coma, para o Centro Hospitalar …, na cidade do Porto.
12 - À entrada do qual apresentava as seguintes lesões:
13 - TCE grave com HSA temporoparietal direita, frontal esquerda e contusão frontal direita;
14 - Fratura do côndilo occipital (tipo 1 de Anderson e Montesano);
15 - Fratura de C5 e pequenas fraturas de C3-C6 e do rebordo inferior de C4 sem desvio;
16 - Hematoma intracanalar e extramedular entre C2 e C7 de predomínio esquerdo que molda a vertente anterior da medula esquerda;
17 - Fratura da diáfise do úmero esquerdo e fratura da clavícula esquerda com suspeita de lesão de plexo braquial; “tratamento conservador com suspensão braquial com banda;
18 - Trauma torácico fechado direito com fratura do 1-3º arcos costais e derrame pleural de pequeno volume;
19 - Hipoventilação de origem central;
20 - O Autor permaneceu internado no referido hospital do dia 16/09/2017 até 21/09/2017, sempre em estado de coma.
21 - Situação (coma), em que deu entrada no Centro Hospitalar …, Epe, de Penafiel, onde esteve internado desde 21/09/2017 até 22/11/2017.
22 - De seguida, foi transferido para o F…, de …, em Vila Nova de Gaia, onde esteve até 01/02/2018.
23 - Em 01/02/2018 foi transferido do F… para a G…, S.A., onde permaneceu internado até 01/08/2018.
24 - Daqui foi transferido para o serviço de cuidados continuados da H…, de Penafiel, onde esteve internado mais cerca de 03 semanas.
25 - Atualmente está internado no serviço de cuidados continuados da I…, estando consciente, mas desorientado, conseguindo apenas dizer o seu nome e reconhecer familiares.
26 - Por causa das lesões sofridas com o embate, o Autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
27 - Apesar dos tratamentos, o Autor continua a permanecer, 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos – cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados.
28 - O Autor está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma.
29 - As lesões sofridas com o embate provocaram ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional.
30 - Com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7.
31 - Ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
32 - Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
33 - Com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7.
34 - O Autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa;
35 - O Autor nasceu em 19/07/1971.
36 - O Autor, à data do embate, era divorciado.
37 - À data do embate, o Autor exercia funções de carpinteiro na empresa “J…, Lda.” e tinha uma retribuição mensal de €882,58.
38 - Atualmente, após ter sido reformado por invalidez, o Autor recebe da Segurança Social pensão de invalidez, no montante de €575,65.
39 - O Autor tem vindo a fazer face às despesas do seu dia-a-dia, com a aquisição de medicamentos, produtos alimentares, vestuário e do custo do internamento nos cuidados continuados em que se encontra internado, com recurso à aludida pensão de invalidez e com a ajuda da sua mãe, familiares e amigos.
40 - A mãe do Autor carece, atualmente, de recursos económicos para continuar a apoiá-lo.
41 - O Autor sofreu, sofre e continuará a sofrer, dores por todo o corpo.
42 - E sofreu com os muitos e diversificados tratamentos e exames a que foi sujeito;
43 - O Autor tem consciência da sua extrema dificuldade em comunicar, o que o leva a irritar-se e a sentir-se profundamente deprimido.
44 - O Autor sente-se muito triste e deprimido por não poder efetuar uma “vida dita normal”, nomeadamente, comunicar, trabalhar, brincar com a sua filha, sair com amigos, refazer a sua vida afetiva, ter mais filhos, correr, subir e descer escadas, jogar a bola, andar de bicicleta.
45 - O Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde.
46 - A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
47 - A sua filha (menor) vive, neste momento, com a sua ex-mulher no estrangeiro.
48 - O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido.
49 - Permanecer numa instituição como a I… tem um custo médio mensal de 1.500,00€ - que não inclui medicamentos, fraldas.
50 - O Autor desde o acidente até à presente data procedeu ao pagamento de valores relativos a internamento nas várias instituições por onde passou e custos relacionados com os transportes por parte dos Bombeiros Voluntários …;
51 - Tendo pago, até à presente data, as seguintes quantias:
- À K… a quantia de 2.345,22€;
- À H1… a quantia de 560,79€;
- À I… a quantia de 5.124,42€;
- Aos Bombeiros Voluntários … a quantia de 32,03€;
52 - O Instituto de Segurança Social, Centro Distrital do Porto, I.P. pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, a quantia de € 1.540,87 referente ao período de 16/9/2017 a 1/2/2018.
53 - À data do embate, o veículo matrícula “..-..-HD” tinha a sua responsabilidade, relativa a danos causados a terceiros, transferida para a Ré, mediante a apólice nº ……….
54 - Na Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória apenso aos presentes autos, a Ré foi condenada, por sentença proferida a 11/2/2019, a pagar a quantia de € 420,00 mensais.
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Não se provaram com relevância para a causa os restantes factos, nomeadamente que:
- O Autor foi embatido, por trás.
- Quando ocorreu o embate, o Autor conduzia a bicicleta.
- O Autor circulava na faixa de rodagem de forma claudicante, vacilante, em zig-zag.
- Que o aludido veículo de matrícula “...-..-HD” embateu igualmente no referido velocípede sem motor.
- Que o veículo “HD” não apresentava danos compatíveis com o embate descrito nos pontos 1 a 8.
- O Autor, no futuro, terá que vir a efetuar alguma ou algumas cirurgias.
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3. O direito
Autor e Ré vieram interpor recurso da sentença, suscitando as mesmas questões, motivo pelo qual se vai apreciar tais questões em conjunto, autonomizando apenas os argumentos que respetivamente os apelantes apresentaram.
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- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso os apelantes suscitam a reapreciação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 5 (pontos 1 a 10 das conclusões na apelação da ré D…, Companhia de Seguros, SA) e ponto 9 (conclusões 1 a 4 da apelação do autor B…) dos factos provados.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[2].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso - , motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto – fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante ré veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, a prova testemunhal (com transcrição na motivação do recurso das passagens relevantes) e documental a reapreciar e decisão que sugere.
O apelante autor de igual forma indica os pontos de facto a reapreciar e ainda, a prova a considerar e a decisão que sugere.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
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Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[3].
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[4].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[5].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados ( art. 607º/4 CPC ).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[6].
Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[7].
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[8].
Justifica-se, assim, proceder a uma análise crítica das provas com audição dos registos gravados.
Ponderando estes aspetos cumpre reapreciar a prova – testemunhal, documental -, face aos argumentos apresentados pelos apelantes, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto.
Procedeu-se à audição da gravação que consta do sistema Citius e analisados os depoimentos prestados, bem como, os documentos juntos aos autos e no apenso da providência cautelar, conclui-se que a decisão sobre a matéria de facto, quanto aos concretos pontos objeto de impugnação não merece censura.
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A impugnação da decisão da matéria de facto versa sobre os seguintes factos provados:
5 - A dada altura, o Autor, que caminhava de costas voltadas para a circulação do “HD”, foi embatido na sua parte lateral esquerda, pela frente direita deste veículo.
9 - O Autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l.
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Na fundamentação da decisão ponderou-se, como se passa a transcrever:
“Os factos relativos à dinâmica do acidente e respetivo circunstancialismo temporal e espacial basearam-se nas declarações da testemunha, E…, condutor da viatura “HD”, que começou por dizer que seguia na sua faixa de rodagem, a reduzida velocidade porque tinha acabado de sair da sua residência, que dista a cerca de 100 metros do local do acidente e que, a data altura, apenas sentiu o embate, não tendo visto a bicicleta ou o Autor, e só quando saiu do carro é que viu um vulto. Disse que estava escuro, que não havia iluminação porque duas lâmpadas encontravam-se fundidas. Explicou também que, pouco antes de sentir o embate, cruzou-se com uma viatura em sentido contrário, passando dos máximos para os médios, afastando a hipótese de ter ficado encadeado com as luzes da viatura que momentos antes se tinha cruzado consigo. Instado para explicar como é que, tendo o campo de visão dos médios ( cerca de 30 metros ), não se apercebeu da presença do Autor, o mesmo disse não saber como tal ocorreu, ignorando se o mesmo seguia na berma da estrada, se vinha a pé, se vinha em cima da bicicleta, pois que apenas sentiu a colisão.
No que se prende com os estragos da sua viatura, referiu que a mesma apresentava apenas uma pequena marca no para-choque lateral direito.
Ora, tais declarações foram pouco elucidativas no que se refere à conduta do Autor imediatamente antes do sinistro, tendo as mesmas sido conjugadas com a participação do acidente e respetivo croqui, juntos a fls. 76 a 78, elaborado pelo agente da GNR, L…, que corroborou as medições constante do croqui feitas por si no local, de acordo com aquilo que viu e de acordo com as declarações prestadas pelo condutor do veículo “HD” supra identificado logo após a ocorrência do sinistro e que constam da respetiva participação, assegurando que teve oportunidade de verificar que o Autor, que ainda se encontrava no local à sua chegada, não tinha capacete nem colete refletor e a bicicleta não tinha qualquer farol.
Mais se relevou as fotografias extraídas do google, juntas a fls. 69 e 69 v. da providência cautelar apensa, retratando o local e permitindo, através delas, apurar-se do campo de visão de quem seguia no sentido de marcha do veículo “HD”, o relatório de averiguação do acidente, junto a fls. 72 a 100 da providência cautelar apensa, dele constando, além do mais, fotografias da viatura e da bicicleta, no estado em que ficaram após o sinistro, constatando-se, da análise das mesmas, que a viatura tinha danos quase impercetíveis no canto lateral direito e que o velocípede não tinha qualquer dano visível.
Mais se relevou as fotografias extraídas, pelo técnico que elaborou tal relatório, do interior do veículo, circulando no mesmo com as mesmas condições climatéricas e temporais que o veículo seguro, fazendo uma espécie de “reconstituição” do acidente, dando assim a perspetiva que o seu condutor tinha quando se deu o descrito embate.
Relevou-se, ainda, o documento de folhas 13 e 14, demonstrativo das lesões físicas sofridas pelo Autor, em particular, as lesões no ombro esquerdo.
Ora, conforme se refere na sentença proferida na providência cautelar apensa, face aos danos verificados na viatura do veículo “HD”, precisamente do canto lateral direito compatíveis com a localização dessas lesões físicas, o que indicia, pelas regras da normalidade e experiência, que o Autor não podia já estar caído na estrada quando se deu a colisão, pois se assim fosse a roda da sua viatura teria de ter passado por cima da pessoa e não podia apresentar os danos materiais que apresentava.
Tal significa que o embate ocorreu com o Autor em pé e, mais, sem estar em cima da própria bicicleta, pois aqueles danos na viatura não são compatíveis com a colisão no velocípede, sendo certo que este último não apresentou qualquer marca/dano, o que significa que a bicicleta tinha de estar a ser transportada pela mão do Autor, estando aquela do seu lado direito (daí não ter ocorrido o seu embate com a viatura), atento o seu sentido de marcha.
Por outro lado, face à localização do Autor e da própria bicicleta, após o embate, aquele tinha de circular junto ao passeio e não em plena faixa de rodagem.
Salientando-se, ainda, conforme se refere na sentença proferida na providência cautelar apensa, o traçado curvilíneo da estrada e a perspetiva de visão do condutor circulando no interior da viatura, atento o sentido de marcha do Autor e da viatura segurada – vide fotografias de folhas 80-verso a 85; a localização dos danos no veículo seguro (pequena marca no canto direito do para-choques frontal) – vide fotografias de folhas 86 a 89-verso; a inexistência de danos no velocípede – vide fotografias de folhas 97 e 98, podendo afirmar-se, a partir da conjugação destes fatores, primeiro, que o condutor da viatura “HD”, circulando com as luzes ligadas e ainda que o poste de iluminação estivesse avariado, como o próprio afirmou, tinha possibilidade de ver quem seguia junto ao passeio e no próprio passeio – vide folhas 84 a 85-verso – pelo que, se não viu, como o próprio reconheceu, já que só se deu conta do embate quando este efetivamente ocorreu e não tendo ficado encadeado com as luzes de uma outra viatura que pudesse ter por ali passado, não existindo indícios da existência de nevoeiro, então, é porque seguia distraído e sem atentar, como devia, a toda a extensão da via em que circulava, incluindo, portanto, à parte junto ao passeio, por onde seguia o próprio Autor.
É certo que há ainda um dado objetivo que se prende com o grau de álcool detetado no sangue do Autor, após o sinistro em apreço – cfr. aditamento ao auto policial de fls. 56, 57 e 68 da providência cautelar apensa, sendo que, conjugado com as regras da experiência comum, atento o grau detetado, poderíamos dizer que as suas capacidades motoras poderiam estar afetadas, ignorando-se, porém, a sua dimensão. É que não foi produzida nenhuma prova minimamente segura no sentido de que efetivamente o Autor seguia de forma claudicante, vacilante, em zig zag, etc. uma vez que a única pessoa inquirida que poderia de alguma forma confirmar essa factualidade, o condutor da viatura segurada, não foi capaz de o fazer, já que, como referimos, apenas se apercebeu e viu o Autor, depois do embate e quando saiu do seu carro – logo, desconhecendo por completo o modo como aquele seguia, sendo certo que a posição em que o Autor ficou após a colisão também não foi suscetível de atestar essa alegação.
Assim, atenta a localização dos danos e a perspetiva da via a partir do interior da viatura, por forma a conjugá-los entre si e, ainda, com as regras da experiência comum, devidamente conjugados com as declarações das testemunhas supra elencadas, o tribunal, tal como na sentença proferida na providência cautelar apensa, ficou convencido que o sinistro em apreço ocorreu nos termos dados como provados”.
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A apelante D…, Companhia de Seguros, SA insurge-se contra o decidido sob o ponto 5, que reflete a matéria alegada sob o art. 5º da petição, sugerindo a modificação da decisão no sentido de ser julgado não provado “na parte na qual é afirmado que o recorrido circulava a pé”.
Justifica a alteração com excertos dos depoimentos das testemunhas L…, E… e M…, transcritos na motivação do recurso e demais prova documental.
No art. 5º da petição, alegou o autor:
- A dada altura, por razões que o A. B… desconhece – uma vez que caminhava de costas voltadas para a circulação do HD – mas seguramente conexas com condução desatenta e imperita, foi violentamente embatido, por trás, pela frente direita do HD.
A matéria em causa mereceu a seguinte resposta:
5 - A dada altura, o Autor, que caminhava de costas voltadas para a circulação do “HD”, foi embatido na sua parte lateral esquerda, pela frente direita deste veículo.
Cumpre desde logo observar que a alteração sugerida pela apelante – “o autor circulava a pé” - constitui um facto que foi alegado pelo autor no art. 4º da petição, o qual se julgou provado, sob o ponto 2, com a seguinte redação:
2 - O Autor caminhava a pé, com a bicicleta pela mão, sem capacete, pelo lado direito da via, a cerca de 0,5 metros do passeio, no sentido de marcha … – ….
A ré não se insurgiu contra tal decisão o que obsta à sua alteração e nem oficiosamente tal alteração se justifica, como se passa a demonstrar.
A matéria que consta do ponto 5 só pode ser interpretada na sequência lógica dos factos que a precedem, pois também é com esse sentido que foi alegada pelo autor. Daí se entender que quando se julgou provado que “o autor caminhava de costas”, se está necessariamente a afirmar que […] “o autor caminhava a pé e de costas[…]”.
A alteração sugerida pela apelante não está contida no elenco de factos provados no ponto 5, o que só por si determinaria a improcedência da alteração.
Contudo, sempre se dirá que os depoimentos transcritos na motivação de recurso, não justificam a alteração pretendida. Procedeu-se à audição integral da gravação dos depoimentos das testemunhas referenciadas e constatou-se que as transcrições são fiéis aos depoimentos, mas em nada alteram os fundamentos da decisão, nem revelam qualquer erro na apreciação da prova.
É de notar que sobre as circunstâncias da colisão apenas veio depor o condutor do veículo interveniente no sinistro, E…, pois o autor dado o seu estado de saúde, não revelou ter condições para depor.
Ao depoimento da testemunha E…, anotam-se algumas contradições: remoção do corpo pelos paramédicos antes da chegada dos agentes da GNR, mas depois afirmou que não viu ninguém a mexer no corpo; posição do velocípede e posição do autor na via em locais distintos daqueles que constam das medições do agente de autoridade indicadas no croqui, mas depois admite que viu o agente a fazer as medições que ali ficaram registadas; cruzamento com um veículo em sentido contrário que não consta das declarações registadas pelo agente de autoridade no auto de participação.
Tais contradições desvalorizam o seu depoimento.
Contudo, decorre de forma muito clara do seu depoimento, que embateu no autor e que antes do embate não o viu. Nunca se refere sequer à existência da bicicleta, que apenas visualiza, após a colisão, quando surge um veículo que ilumina o local e então é nessa altura que, como referiu, se apercebe de uma bicicleta; o corpo estava “debruçado sobre a bicicleta”, mas sem qualquer outra explicação (onde, em que posição, em que parte da via).
Referiu que circulava a 30-40km/h e tinha “acabado de arrancar” [iniciar a marcha] a 100 metros do local do sinistro. Seguia com os máximos ligados porque a estrada se encontrava mal iluminada e porque se cruzou com um veículo em sentido contrário, passou para médios e a seguir sente uma pancada do lado direito do seu veículo. Parou, um pouco à frente, saiu e deslocou-se ao local, quando verificou que estava caído na berma uma pessoa.
Disse que não viu o autor devido à má iluminação do local e esclareceu que “não ía distraído” e “não sabe se [o autor] ía em cima ou em baixo[do passeio], ou se estava para o lado direito nos contentores; não viu”.
Disse que os médios [luz de cruzamento] não atingem mais de 30 metros.
Referiu que não estava ninguém no local e logo após a ocorrência surgiu um veículo, que seguia no mesmo sentido da testemunha e parou, solicitando a testemunha ao condutor que ligasse para os bombeiros e a polícia.
A restante prova é apenas indiciária, já que nenhuma outra testemunha assistiu à colisão, mas é da sua apreciação conjunta que decorre que o autor circulava a pé. Tais circunstâncias foram devidamente ponderadas na sentença, como se extrai do excerto da fundamentação da decisão de facto que de transcreveu e onde se ponderou o auto de participação e ainda, o teor do relatório elaborado por ordem da apelante, de averiguação de sinistro, junto com a providência cautelar (requerimento com data de 29 de janeiro de 2019 -REFª: 31379314).
Os excertos dos depoimentos das testemunhas a que se reporta a apelante na motivação do recurso não permitem conclusão distinta e a justificação que a testemunha E… apresentou para o facto de não se aperceber da presença do autor – a má iluminação do local - acaba por não obter comprovação na restante prova produzida. Aliás, se atendermos ao seu depoimento, constatamos que o condutor do veículo que compareceu no local, após a colisão e seguia no sentido de marcha do veículo HD, não revelou dificuldade em visualizar, não só a testemunha, como o corpo do autor e parou ao deparar-se com os obstáculos na via. A mera iluminação dos faróis seria suficiente nas concretas circunstâncias para ter uma visão de toda a estrada, pelo menos numa extensão de 30 metros.
Resta por fim referir que a apelante não impugna a efetiva matéria de facto que consta do ponto 5 dos factos provados, onde se tratava de apurar se o autor caminhava de costas para o veículo “HD” e local em que ocorreu o embate do veículo no autor.
Conclui-se, assim, que não se justifica alterar o ponto 5 dos factos provados, que como tal se mantém.
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No ponto 1 a 4 das conclusões de recurso do autor B… visa o autor a alteração do ponto 9 dos factos provados no sentido de julgar não provado, por entender que nada constando dos autos quanto ao cumprimento dos procedimentos previstos na Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto, nomeadamente como foi obtida a referida taxa de álcool e se foram cumpridos os requisitos legais, competindo à Ré fazer tal prova, o mero aditamento ao auto de acidente de viação onde consta tal taxa deverá ser considerado insuficiente para que se dê como provado tal facto.
No ponto 9, julgou-se provado:
- O Autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l.
A prova de tal matéria resulta dos elementos que constam do aditamento ao auto de participação, junto pelo autor, com a petição inicial.
O auto de participação constitui um documento autêntico, cujo valor probatório não foi posto em causa por nenhuma das partes nos autos, fazendo prova plena das declarações nele contidas – art. 371º CC.
Deste auto, lavrado pelo soldado da GNR L…, testemunha nos autos, consta que foi efetuada ao autor recolha de amostra de sangue para apuramento de TAS e refere-se, ainda, que “conforme Relatório Nº ........... do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., Delegação do Porto, Serviço de Química e Toxicologia Forense relativo a bolsa GNR nº ….., em arquivo no posto de Marco de Canaveses, a análise de sangue efetuada ao autor indicou: quantificação de etanol em sangue (HS/GC-FID): 1,99+/- G/l”.
Tal facto deu origem ao auto de notícia com o Nuipc 652/17.2Gamcn.
Acresce que a testemunha L… referiu que não realizou teste de alcoolemia ao autor e que a recolha de sangue é realizada no Hospital.
O regime de deteção e quantificação de taxa de álcool no sangue, no âmbito da fiscalização da condução sob influência de álcool está subordinado à Lei 18/2007 de 17 de maio e Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto.
Em conformidade com tal regime a deteção de álcool no sangue pode realizar-se por análise de sangue, quando as condições físicas do examinado não permitem a realização do teste por ar expirado.
A colheita é realizada por estabelecimento de rede pública de saúde e posteriormente enviada à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal da área respetiva, pelo estabelecimento que procedeu à colheita (art. 3º, 5º, 6º da citada lei).
Os procedimentos a adotar constam da referida portaria.
Verifica-se, assim, que o procedimento adotado para pesquisa de álcool no sangue, a que se reporta o aditamento à participação de acidente, por recolha de amostra de sangue está contemplado na lei. O exame foi realizado pela autoridade com competência para o fazer, o Instituto de Medicina Legal e o resultado indicado resulta desse exame pericial, conforme atestado pelo agente de autoridade.
Acresce que nenhuma das partes, em particular o autor, questionou os procedimentos adotados para recolha da amostra e técnicas utilizadas para execução do exame pericial.
Aliás, a taxa de álcool no sangue constituiu sempre um aspeto considerado na avaliação clínica do autor, como decorre do relatório médico do hospital …, junto pelo autor com a petição, onde se anotou uma TAS de 2,8 (documento nº 2/1).
Conclui-se, assim, que o aditamento à participação de acidente constitui meio de prova bastante e suficiente da taxa de álcool no sangue atribuída ao autor no momento do acidente. Motivo pelo qual não se justifica a alteração do ponto 9 dos factos provados.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 10 da apelação da ré e pontos 1 a 4 da apelação do autor.
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Na apreciação das demais questões cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados, no tribunal de 1ª instância:
1 - No dia 16/09/2017, cerca das 20 horas e 40 minutos, na E.N. …, próximo do nº de Polícia/porta …., na freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um embate em que foram intervenientes o Autor e o veículo matrícula “..-..-HD”, marca Renault, conduzido por E…, seu dono.
2 - O Autor caminhava a pé, com a bicicleta pela mão, sem capacete, pelo lado direito da via, a cerca de 0,5 metros do passeio, no sentido de marcha … – ….
3 - Tal velocípede não estava munido de qualquer luz ou sinalização refletora.
4 - O condutor do veículo “HD” circulava no mesmo sentido, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 50 KM/h e com as luzes médias ligadas.
5 - A dada altura, o Autor, que caminhava de costas voltadas para a circulação do “HD”, foi embatido na sua parte lateral esquerda, pela frente direita deste veículo.
6 - No momento do embate não havia veículos a circular em sentido contrário ao da viatura “HD”.
7 - No local onde ocorreu o embate existia um poste de iluminação pública, mas que se encontrava avariado.
8 - Após o atropelamento, relativamente ao ponto fixo inalterável – nº de porta …., o Autor ficou caído a 5,70 metros, o velocípede ficou a 2,00 metros e a frente do HD imobilizou-se a mais de 19,20 metro.
9 - O Autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l.
10 - Como consequência do embate, o Autor perdeu a consciência.
11 - O Autor foi transportado, em estado de coma, para o Centro Hospitalar …, na cidade do Porto.
12 - À entrada do qual apresentava as seguintes lesões:
13 - TCE grave com HSA temporoparietal direita, frontal esquerda e contusão frontal direita;
14 - Fratura do côndilo occipital (tipo 1 de Anderson e Montesano);
15 - Fratura de C5 e pequenas fraturas de C3-C6 e do rebordo inferior de C4 sem desvio;
16 - Hematoma intracanalar e extramedular entre C2 e C7 de predomínio esquerdo que molda a vertente anterior da medula esquerda;
17 - Fratura da diáfise do úmero esquerdo e fratura da clavícula esquerda com suspeita de lesão de plexo braquial; “tratamento conservador com suspensão braquial com banda;
18 - Trauma torácico fechado direito com fratura do 1-3º arcos costais e derrame pleural de pequeno volume;
19 - Hipoventilação de origem central;
20 - O Autor permaneceu internado no referido hospital do dia 16/09/2017 até 21/09/2017, sempre em estado de coma.
21 - Situação (coma), em que deu entrada no Centro Hospitalar …, Epe, de Penafiel, onde esteve internado desde 21/09/2017 até 22/11/2017.
22 - De seguida, foi transferido para o F…, de …, em Vila Nova de Gaia, onde esteve até 01/02/2018.
23 - Em 01/02/2018 foi transferido do F… para a G…, S.A., onde permaneceu internado até 01/08/2018.
24 - Daqui foi transferido para o serviço de cuidados continuados da H…, de Penafiel, onde esteve internado mais cerca de 03 semanas.
25 - Atualmente está internado no serviço de cuidados continuados da I…, estando consciente, mas desorientado, conseguindo apenas dizer o seu nome e reconhecer familiares.
26 - Por causa das lesões sofridas com o embate, o Autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
27 - Apesar dos tratamentos, o Autor continua a permanecer, 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos – cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados.
28 - O Autor está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma.
29 - As lesões sofridas com o embate provocaram ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional.
30 - Com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7.
31 - Ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
32 - Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
33 - Com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7.
34 - O Autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa;
35 - O Autor nasceu em 19/07/1971.
36 - O Autor, à data do embate, era divorciado.
37 - À data do embate, o Autor exercia funções de carpinteiro na empresa “J…, Lda.” e tinha uma retribuição mensal de €882,58.
38 - Atualmente, após ter sido reformado por invalidez, o Autor recebe da Segurança Social pensão de invalidez, no montante de €575,65.
39 - O Autor tem vindo a fazer face às despesas do seu dia-a-dia, com a aquisição de medicamentos, produtos alimentares, vestuário e do custo do internamento nos cuidados continuados em que se encontra internado, com recurso à aludida pensão de invalidez e com a ajuda da sua mãe, familiares e amigos.
40 - A mãe do Autor carece, atualmente, de recursos económicos para continuar a apoiá-lo.
41 - O Autor sofreu, sofre e continuará a sofrer, dores por todo o corpo.
42 - E sofreu com os muitos e diversificados tratamentos e exames a que foi sujeito;
43 - O Autor tem consciência da sua extrema dificuldade em comunicar, o que o leva a irritar-se e a sentir-se profundamente deprimido.
44 - O Autor sente-se muito triste e deprimido por não poder efetuar uma “vida dita normal”, nomeadamente, comunicar, trabalhar, brincar com a sua filha, sair com amigos, refazer a sua vida afetiva, ter mais filhos, correr, subir e descer escadas, jogar a bola, andar de bicicleta.
45 - O Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde.
46 - A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
47 - A sua filha (menor) vive, neste momento, com a sua ex-mulher no estrangeiro.
48 - O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido.
49 - Permanecer numa instituição como a I… tem um custo médio mensal de 1.500,00€ - que não inclui medicamentos, fraldas.
50 - O Autor desde o acidente até à presente data procedeu ao pagamento de valores relativos a internamento nas várias instituições por onde passou e custos relacionados com os transportes por parte dos Bombeiros Voluntários …;
51 - Tendo pago, até à presente data, as seguintes quantias:
- À K… a quantia de 2.345,22€;
- À H1… a quantia de 560,79€;
- À I… a quantia de 5.124,42€;
- Aos Bombeiros Voluntários … a quantia de 32,03€;
52 - O Instituto de Segurança Social, Centro Distrital do Porto, I.P. pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, a quantia de € 1.540,87 referente ao período de 16/9/2017 a 1/2/2018.
53 - À data do embate, o veículo matrícula “..-..-HD” tinha a sua responsabilidade, relativa a danos causados a terceiros, transferida para a Ré, mediante a apólice nº ……….
54 - Na Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória apenso aos presentes autos, a Ré foi condenada, por sentença proferida a 11/2/2019, a pagar a quantia de € 420,00 mensais.
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Não se provaram com relevância para a causa os restantes factos, nomeadamente que:
- O Autor foi embatido, por trás.
- Quando ocorreu o embate, o Autor conduzia a bicicleta.
- O Autor circulava na faixa de rodagem de forma claudicante, vacilante, em zig-zag.
- Que o aludido veículo de matrícula “..-..-HD” embateu igualmente no referido velocípede sem motor.
- Que o veículo “HD” não apresentava danos compatíveis com o embate descrito nos pontos 1 a 8.
- O Autor, no futuro, terá que vir a efetuar alguma ou algumas cirurgias.
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- Responsabilidade pela produção do acidente
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 11 a 44, a apelante/ré D…, Companhia de Seguros, SA, insurge-se contra a solução de direito, a respeito da responsabilidade na produção do acidente.
Na sentença ponderando os factos provados em confronto com a posição das partes atribuiu-se ao condutor do veículo com matrícula ..-..-HD a exclusiva responsabilidade pela produção do sinistro, no que se considerou, como se passa a transcrever:
“Segundo o disposto no art.487º do C.Civil é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo presunção legal de culpa.
Temos pois e para já que, constituindo a culpa um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a sua prova – como aliás decorre do princípio geral ínsito no art. 342º, nº 1 do C.Civil – incumbe ao lesado.
Cumpre apreciar se, no caso ora em apreço, existe uma presunção legal de culpa.
Ora, segundo o que dispõe o nº 3 do art. 503º do C.Civil com a extensão que lhe foi conferida pelo Assento do S.T.J. de 28 de Junho de 1983 aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte.
Conduzir por conta de outrem é um conceito de direito que abrange não só a condução no interesse de outrem, como também a condução em nome ou por incumbência de outrem – cfr. Ac. S.T.,J. De 1/2/89, Tomo 1, pág. 7.
Por sua vez, no tocante à presunção de culpa, dir-se-á, por um lado, que se trata de uma presunção legal “Tantum Iuris” (art. 350º, nº 2 do C.Civil) que se não for ilidida pelo condutor comissário, coloca este a responder subjetivamente por todos os danos sofridos pelo lesado em consequência do acidente – cfr. Neste sentido Antunes Varela Ver. Leg. Ano 121, pág. 31.
Por outro lado, o ónus da prova da exclusão da culpa recai, segundo afirmação inequívoca da lei, sobre o condutor comissário. O que aliás se compreende pois não se pode esquecer que o lesado nada sabe do que se passa nos bastidores do acidente e, muito menos, sobre a ligação profissional ou outra, que intercede entre o dono e o condutor da viatura.
Ora, no caso vertente, não resultou provado que quaisquer dos intervenientes no acidente circulasse à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direção efetiva de terceiros, pelo que não impende sobre os mesmos qualquer presunção de culpa.
Importa, pois, averiguar se é possível imputar o facto ao agente, ou melhor, se o condutor do veículo interveniente no acidente, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o acidente ocorreu podia e devia ter agido de forma diferente, ou seja, se atuou com a diligência que um bom pai de família - o homem normal teria em face do condicionalismo do caso concreto - cfr. Ac. do S.T.J., de 15/6/88, B.M.J., nº 378, pág. 677.
Da factualidade provada ficou demonstrado que a viatura segurada seguia com as luzes médias ligadas, a velocidade inferior a 50 km/hora e que no momento da colisão não havia veículos a circular em sentido contrário ao daquela, tendo ocorrido o embate com o aqui Autor, o qual seguia no mesmo sentido de marcha que a viatura segurada, a pé e sem capacete, a menos de 0,5 metros do passeio, com o seu velocípede sem motor pela mão, pelo lado direito, atento esse mesmo sentido de marcha, velocípede esse que não estava munido de qualquer luz ou sinalização refletora e que, nessas circunstâncias, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 gramas/litro.
Atenta a factualidade descrita, temos de concluir, tal como na sentença proferida na providência cautelar apensa, com a qual concordamos na íntegra, que à luz do critério legal do bonus pater familiae (bom pai de família) e em face das circunstâncias do caso, como determina o artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, devendo o grau de diligência exigível ao agente ser medido de acordo com a diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso, aquele condutor deveria ter visto o Autor e efetuado as manobras necessárias para evitar a colisão, o que não sucedeu.
Veja-se que, por força do preceituado no citado artigo 38.º, n.º 2, alínea e), à passagem de peões que circulem na berma, o condutor do veículo, para evitar a colisão com aqueles – salientando-se que, no caso, em sentido contrário, não circulava nenhum outro veículo, deve guardar a distância lateral mínima de 1,5 metros e abrandar a velocidade, razão pela qual, dando-se o embate aqui em apreço, nas circunstâncias em que se deu, é de concluir que tal distância não foi respeitada, o que aliado à falta de atenção em que seguia, pois caso contrário, com as luzes ligadas, deveria ter visto o aqui Autor.
A atuação do condutor do veículo seguro foi desconforme com as indicadas normais estradais que foi a causa adequada e determinante do acidente que vitimou o Autor, omitindo assim os deveres de cuidado e zelo que o desencadearam.
Assim, o referido condutor circulava com a mais completa falta de cuidado, de prudência, de consideração, de respeito, de diligência, de habilidade e de destreza, pelo que o acidente ficou a dever-se a culpa do mesmo, por violação do disposto nos arts. 1.º, alíneas b) e h), 3.º, n.º 2, 11.º, n.ºs 1, 2 e 3, 13.º, 18.º, n.º 3 e 38.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na redação em vigor à data do descrito acidente.
Cumpre apreciar se a atuação do Autor contribuiu para a ocorrência do acidente.
No que toca à conduta do Autor, apenas se sabe, que este seguia no mesmo sentido de marcha que a viatura segurada, a pé e sem capacete, a menos de 0,5 metros do passeio, com o seu velocípede sem motor pela mão, pelo lado direito, atento esse mesmo sentido de marcha, velocípede esse que não estava munido de qualquer luz ou sinalização refletora e que, nessas circunstâncias, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 gramas/litro.
Por referência aos artigos 1.º, alíneas b) e h), 17.º, n.º 2 e 99.º, todos do aludido Código da Estrada, não se vislumbra nessa atuação a violação dos indicados preceitos, na medida em que, enquanto peão, e transportando a aludida bicicleta, o mesmo podia circular pela faixa de rodagem, como fazia, ainda que a menos de 0,5 metros do passeio, ou seja, pela berma, porque estava a transportar a bicicleta, talqualmente o admite o n.º 2, alínea c), do citado artigo 99.º.
É certo que o mesmo seguia com uma elevada taxa de álcool, mas nada ficou demonstrado no sentido de se extrair de tal facto uma conduta descuidada do Autor, enquanto peão, e designadamente a tal alegada marcha claudicante e vacilante, ou seja, não ficou demonstrado que tal circunstância tivesse contribuído para a produção do sinistro.
Atento o supra exposto, entendemos que a responsabilidade pela ocorrência do acidente em apreço deve ser atribuída, em exclusividade, ao veículo segurado.
Apurada a fonte da responsabilidade na produção do acidente, tendo resultado apurado que à data da sua ocorrência o proprietário do veículo matrícula “..-..-HD” tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente a danos causados a terceiros, transferida para a Ré “D…, Companhia de Seguros, S.A.”, S.A.” mediante a apólice nº ……… (ponto 53), face ao preceituado nos art. 427º do Código Comercial, e 5º al. a) do D.L. 522/85, de 31/12, será sobre a Ré que impenderá a obrigação de indemnizar o Autor e ISSS”.
A questão a apreciar consiste em apurar a quem deve ser atribuída a responsabilidade pela produção do acidente.
A obrigação de indemnizar por responsabilidade civil tem como pressupostos a prática de um facto ilícito, imputável a título de culpa, existindo entre o facto e o dano um nexo de causalidade (art. 483º CC).
No domínio da responsabilidade civil por acidentes de viação, a responsabilidade civil pode ser imputada a título de culpa – efetiva ou presumida – ou de risco (art. 503º/3 conjugado com o art. 500º CC e art. 503º/1 CC).
É jurisprudência assente que, em matéria de responsabilidade civil, resultante de acidente de viação, cujo dano foi provocado por uma contraordenação ao Código da Estrada, existe uma presunção “iuris tantum” de negligência contra o autor da contraordenação, cabendo-lhe o ónus da contraprova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do juiz[9].
Contudo, de igual modo, entende-se que não basta a prova de factos que configuram uma contraordenação ao Código da Estrada, pois inserindo-se a apreciação da responsabilidade no domínio da responsabilidade civil, torna-se de igual forma necessário provar o nexo de causalidade entre a contraordenação praticada e o dano ou prejuízo sofrido, ou seja, a prova que a contraordenação estradal foi a causa do sinistro[10].
Torna-se, assim, necessário demonstrar a existência do nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
O acidente em discussão nestes autos ocorreu a 16 de setembro de 2017, pelo que, na apreciação da conduta do autor e condutor do veículo segurado cumpre ter presente o regime do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto –Lei n.º 114/94, de 3 de Maio (alterado pelos Decretos –Leis n.os 214/96, de 20 de Novembro, 2/98, de 3 de Janeiro, que o republicou, 162/2001, de 22 de Maio, 265 -A/2001, de 28 de Setembro, que o republicou, pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto, pelos Decretos-Leis n.os 44/2005, de 23 de Fevereiro, que o republicou, 113/2008, de 1 de Julho, e 113/2009, de 18 de Maio, pela Lei n.os 78/2009, de 13 de Agosto e Lei 72/2013 de 03 de setembro, que o republicou, Lei 116/2015 de 28 de agosto, DL 40/2016 de 29 de julho, Lei 47/2017 de 07 de julho).
Os factos a considerar:
1 - No dia 16/09/2017, cerca das 20 horas e 40 minutos, na E.N. …, próximo do nº de Polícia/porta …., na freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um embate em que foram intervenientes o Autor e o veículo matrícula “..-..-HD”, marca Renault, conduzido por E…, seu dono.
2 - O Autor caminhava a pé, com a bicicleta pela mão, sem capacete, pelo lado direito da via, a cerca de 0,5 metros do passeio, no sentido de marcha … – ….
3 - Tal velocípede não estava munido de qualquer luz ou sinalização refletora.
4 - O condutor do veículo “HD” circulava no mesmo sentido, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 50 KM/h e com as luzes médias ligadas.
5 - A dada altura, o Autor, que caminhava de costas voltadas para a circulação do “HD”, foi embatido na sua parte lateral esquerda, pela frente direita deste veículo.
6 - No momento do embate não havia veículos a circular em sentido contrário ao da viatura “HD”.
7 - No local onde ocorreu o embate existia um poste de iluminação pública, mas que se encontrava avariado.
8 - Após o atropelamento, relativamente ao ponto fixo inalterável – nº de porta
1986, o Autor ficou caído a 5,70 metros, o velocípede ficou a 2,00 metros e a frente do HD imobilizou-se a mais de 19,20 metro.
9 - O Autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l.
10 - Como consequência do embate, o Autor perdeu a consciência.
Ponderando os factos provados verifica-se que a conduta do condutor do veículo com matrícula ..-..-HD (E…) é suscetível de integrar as contraordenações previstas no arts. 1.º, alínea h), n), u) 3.º, n.º 2, 11.º, n.ºs 1, 2 e 3, 13.º/1/2, todos do Código da Estrada, as quais estão na origem do embate do veículo no peão, sendo causais dos danos sofridos pelo autor.
Não logrou a ré-apelante ilidir a presunção de culpa do condutor do veículo.
Contudo, defende sob o ponto 12 das conclusões de recurso, que a conduta do condutor do veículo não consubstancia a violação de normas estradais, face à matéria de facto que consta do ponto 4 – “O condutor do veículo “HD” circulava no mesmo sentido, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 50 KM/h e com as luzes médias ligadas”.
Prevê o art. 3º/2 do Código da Estrada que as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias.
Determina o art. 13º/1 que o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes.
O dever geral de cuidado que resulta destes preceitos e que se impõe a todos os utentes da via, surge depois especificado em relação a certas regras de trânsito.
No art. 38/2 e) do Código da Estrada prevê-se que o condutor deve. especialmente, certificar-se de que na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade.
Esta regra, reflete o dever geral de cuidado, a que se alude no art. 13º/1 e por isso, não pode deixar de ser extensiva às situações em que o peão transporta objetos e caminha pela faixa de rodagem, ainda que não destinada à sua posição na via, quando não se provou que o lado esquerdo da faixa de rodagem oferecia condições para caminhar em segurança, como ocorreu no caso presente.
Na sentença não se atribui ao condutor do veículo ..-..-HD a violação das normas que regulam a velocidade (art. 24º do Código da Estrada) e a utilização dos dispositivos de iluminação ( art. 60º e 61º do Código da Estrada). O facto de não violar tais normas não significa que as demais foram cumpridas. Aliás, é precisamente porque o veículo seguia a uma velocidade adequada e com as luzes de médios ligadas, que se justifica o juízo de censura, pois estava em condições de poder aperceber-se do peão na via, quando não se provou que existisse qualquer obstáculo que impedisse a visibilidade (árvores, vegetação sobre a estrada, nevoeiro, chuva, neve, vento intenso com objeto no ar), sendo certo que na faixa de rodagem contrária não circulavam veículos (ponto 6), o que permitiria afastar-se para a esquerda ocupando a faixa de rodagem contrária ou então parar.
O facto da via no local não dispor de iluminação (ponto 7 dos factos provados) não constitui um motivo que justifique a falta de cuidado e de atenção, pois o veículo segurado circulava com os médios ligados, os quais em conformidade com o regime legal permitem um campo de visão em frente de 30 metros (art. 60º/b) do Código da Estrada).
É de considerar, por isso, que o condutor do veículo segurado não usou da atenção e cuidado exigíveis a um condutor normal e médio colocado nas mesmas circunstâncias.
Numa segunda ordem de razões e apreciando a conduta do autor, defende a apelante que a posição que o autor ocupava na via constitui uma violação do disposto no art. 100º/2 do Código da Estrada, sem que o tribunal tenha retirado qualquer consequência de tal facto.
O art. 99º do Código da Estrada regula os lugares em que podem transitar os peões.
Determina o art. 99º/1 que os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas.
Prevê-se, no nº2 do mesmo preceito, que os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, quando transportem objetos que, pelas suas dimensões ou natureza, possam constituir perigo para o trânsito dos outros peões.
De acordo com o art. 100º/2 os peões, nas circunstâncias previstas no art. 99º/2 b), devem transitar pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, a não ser que tal comprometa a sua segurança.
Cumpre ter presente que a apelante desenvolveu a sua defesa, em sede de contestação, no sentido do autor conduzir o velocípede sem motor, pela hemi-faixa de rodagem da direita, impugnando os fundamento da ação quando se alegou que o autor caminhava, a pé, com a bicicleta pela mão.
Apenas nesta sede vem colocar esta questão, da incorreta posição do autor na via, sendo portanto um novo fundamento de defesa, que com efeito não foi apreciado pelo tribunal “a quo”.
Recaía sobre a ré o ónus de alegação de factos suscetíveis de configurar tal contraordenação e que a mesma foi causal dos danos. A lei não impede que os peões que transportem objetos transitem na hemi-faixa de rodagem, mesmo quando dispõem de passeio para o fazer. Contudo, nestas circunstâncias, o trânsito de peões que transportam objetos deve realizar-se pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, mas tal regra não é absoluta, pois ressalva-se a hipótese de tal procedimento comprometer a segurança do peão.
Os factos provados não permitem qualquer avaliação sobre as condições de trânsito pelo lado esquerdo da faixa de rodagem.
Constituindo um facto impeditivo do direito do autor, recaía sobre a ré o ónus de alegar as circunstâncias que em concreto revelavam a contraordenação, mais propriamente que o lado esquerdo da faixa de rodagem garantia a trânsito em segurança do autor e respetivo velocípede (sem motor) (art. 342º/2 CC).
Considera-se, no confronto dos factos provados, que o autor não violou a regra prevista no art. 99º/2 e não se pode atribuir ao autor a contraordenação prevista no art. 100º/2 do Código da Estrada.
Analisando, ainda, a conduta do autor, refere a apelante, que provou-se um facto fundamental para a sua apreciação: apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99g/l.
Refere, ainda, que “as regras da experiência comum, atento o grau detetado de alcoolemia, obrigam o Tribunal a concluir que as capacidades motoras do Recorrido estavam indelevelmente afetadas, determinando esta tão elevada taxa de álcool, necessariamente, uma marcha claudicante. Uma taxa de álcool no sangue, tal como a que o Recorrido apresentava, de 1,99 g/l de sangue, tem impacto direto no sentido e reflexo da sua marcha”.
Nos termos do art. 81º/1/2 do Código da Estrada é proibido conduzir sob influência de álcool e considera-se sob a influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
Provou-se, sob o ponto 9 que o autor apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,99 g/l no sangue. Não se provou que conduzia o velocípede sem motor [facto não provado:”quando ocorreu o embate o autor conduzia a bicicleta”]. Na sentença, considerou-se tal circunstância, apesar de se concluir que não foi causal do sinistro.
Os factos considerados pela apelante julgaram-se não provados - “o autor circulava na faixa de rodagem de forma claudicante, vacilante, em zig-zag”.
A apelante não se insurgiu contra tal decisão.
Por outro lado, no ponto 28 das conclusões de recurso, a apelante leva em consideração factos que não foram alegados, motivo pelo qual não constam da apreciação da decisão de facto.
Não se ignora que em termos de normalidade a ingestão de bebidas alcoólicas importa alterações no comportamento, com reflexos nas funções motoras e de perceção. Porém, a responsabilidade civil afere-se pela culpa (art. 483º, 487º CC) no contexto dos factos provados e dos mesmos não se extrai que o autor apresentasse uma alteração de comportamento que determinasse a ocorrência do acidente. A mera taxa de álcool no sangue não constitui, só por si, um fator que permita atribuir a responsabilidade do sinistro ao autor.
Numa última ordem de argumentos, no sentido de demonstrar a concorrência de responsabilidade entre o autor e o condutor do veículo segurado, refere a apelante que o comportamento do Recorrido contribuiu, decisivamente, para a verificação do sinistro, ao circular numa berma reduzida sem qualquer luz ou sinalização refletora, quando deveria deslocar-se utilizando o passeio existente no local cuja largura seria suficiente para transportar o velocípede pela mão, ou transitar pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, em cumprimento do disposto no nº2 do art. 100º do CE. Transitando de costas para o trânsito, não poderia, outrossim, efetuar antecipadamente qualquer manobra de desvio que fosse necessária atenta a proximidade de veículo que lhe seria perfeitamente visível pela utilização de luzes, pelo que o facto de apresentar uma taxa de álcool no sangue de 1,99 gramas/litro, contribuindo para tal atuação do autor.
Conforme resulta dos factos provados, o autor não caminhava na berma, mas pelo lado direito da via, a cerca de 0,5 metros do passeio, no sentido de marcha …-…. Não seguia pois pela berma.
Não se apuraram as caraterísticas do passeio, porque não foram alegados factos que o demonstrem, recaindo sobre a ré o ónus de alegação, porque impeditivos do direito do autor (art. 342º/2 CC).
Como já se referiu, a posição do peão na via, tal como determina o art. 100º/2 do Código da Estrada, não constitui uma regra absoluta, recaindo sobre a ré o ónus de alegação e prova de tais circunstâncias, porque extintivas do direito do autor (art. 342º/2 CC).
Nestas circunstâncias os peões não estão obrigados a caminhar com sinalização e o facto do velocípede, como se provou, não dispor de qualquer luz ou sinalização refletora, mostra-se irrelevante porque não se provou que o autor circulava no velocípede. Por outro lado, o veículo do autor dispunha de iluminação que garantia, em frente, a visualização da via, numa extensão de 30 metros.
Resta referir que não era sobre o autor que recaía a obrigação de proceder ao desvio da sua marcha, mas sim ao condutor do veículo, que tinha que transpor o peão, como decorre da norma contida no art. 38º/2 e) do Código da Estrada e se impõe em obediência ao dever de diligência e condução em segurança que resulta do art. 13º/1 do Código da Estrada.
Ao contrário do afirmado no ponto 24 das conclusões de recurso, os argumentos expostos pelo apelante não permitem concluir pela exclusão da responsabilidade da apelante com base no risco, porque não se provou que o acidente ocorreu por facto imputável ao lesado (art. 505ºCC).
Resta referir que imputada a responsabilidade pelo sinistro a culpa do condutor do veículo segurado fica excluída a responsabilidade pelo risco (art. 506º CC).
Perante o exposto, não merece censura a decisão que concluiu no sentido de julgar o condutor do veículo segurado como único responsável pela produção do sinistro, a título de culpa efetiva.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 11 a 44 da apelante D…, Companhia de Seguros, SA.
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- Da indemnização devida pelos danos causados ao autor -
Os apelantes insurgem-se, ainda, contra o segmento da decisão que fixou o montante da indemnização. Nas conclusões de recurso da apelante D…, Companhia de Seguros, SA, sob os pontos 45 a 73, por considerar a mesma desproporcionada e excessiva. Nas conclusões de recurso do autor, sob os pontos 5 a 25, por entender diminuta e insuficiente para ressarcir os danos sofridos.
Cumpre apreciar as questões colocadas a respeito de cada um dos danos.
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- Dano futuro por perda de ganho -
Na petição o autor quantificou a indemnização de € 200.000,00 a título de dano patrimonial futuro, por incapacidade permanente geral/dano biológico e incapacidade total para o trabalho.
Na sentença fixou-se a indemnização em € 170.000,00.
Em sede de danos patrimoniais a apelante D…, Companhia de Seguros, SA insurge-se contra o montante arbitrado a título de indemnização pela perda de capacidade de ganho e considera que o montante da indemnização deve fixar-se em € 68.752,30 (pontos 45 a 55 das conclusões de recurso).
O apelante B… insurge-se de igual forma contra o montante arbitrado e defende que a indemnização não deve ser arbitrada em montante inferior a € 300.000,00 (pontos 5 a 14 das conclusões de recurso).
A questão a apreciar consiste em verificar se o valor arbitrado na sentença, a título de dano patrimonial, por perda da capacidade de ganho respeita o critério legal e o critério de equidade, que habitualmente a jurisprudência tem atendido.
Na sentença para apurar o montante da indemnização considerou-se como se passa a transcrever:
“A jurisprudência tem usado, ao longo dos tempos, critérios ou fórmulas diferentes para o cálculo da perda da capacidade de ganho.
Aquele que nos parece mais correto, embora como critério meramente orientador, sendo provavelmente o mais seguido, determina que a indemnização seja calculada “em atenção ao tempo de vida do lesado, de forma a representar um capital que, com os rendimentos gerados e com a comparticipação do próprio capital, compense, até ao seu esgotamento, a vítima dos ganhos de trabalho que, durante esse tempo, perdeu”.
É muito abundante a jurisprudência neste sentido, podendo ver-se designadamente, os Acórdãos do STJ, de 10/5/77, BMJ-267, 144; de 9/1/79, BMJ-283, 260; de 18/1/79, BMJ-283, 275; de 19/5/81, BMJ-307, 242; de 8/5/86, BMJ-357, 396; de 15/5/86, BMJ-357, 412; de 4/2/93, CJ, Ac. STJ, Ano I, Tomo I, p. 128.
Importa, também, ter presente as regras expressas na Portaria n.º 377/08, de 26 de maio, que, apesar de não ser vinculativa para o tribunal (cfr. Ac. da Relação do Porto de 17/09/09, in www.dgsi.pt, descritores acidente de viação, aplicabilidade, danos não patrimoniais), deverá ser levada em linha de conta como mais um elemento coadjuvante na fixação da indemnização agora em apreço.
Tal como se defende no Ac. da Relação do Porto de 31/03/2009 e no Ac. da Relação de Lisboa de 6/05/2010, in www.dgsi.pt, descritores, respetivamente, acidente de viação, perda de capacidade de ganho, indemnização, e danos futuros, danos morais, justificando-se que o ponto de partida tenha uma base técnico contabilística, como critério indicativo e orientador, a final não poderá deixar de se corrigir o capital obtido fazendo apelo à equidade e às características específicas do caso concreto.
Nesse quadro de cálculo sob juízos de equidade devem ponderar-se, entre outras, circunstâncias como o rendimento anual perdido, a percentagem de incapacidade para o trabalho em geral e para a profissão habitual, a idade da vítima à data do acidente, a idade normal da reforma, o tempo provável de vida posterior e o acerto resultante da entrega do capital de uma só vez, as suas condições de saúde ao tempo do sinistro, o tempo provável da sua vida ativa, a natureza do trabalho que realizava, o salário líquido obtido, a depreciação da moeda, a evolução dos salários, as taxas de juro dos mercados financeiros, a perenidade do emprego, a progressão na carreira, o desenvolvimento tecnológico e os índices de produtividade (cfr. neste sentido o citado Ac. da Relação de Lisboa de 6/05/2010).
Ao nível do tempo de vida ativa, seguimos o entendimento vertido no Ac. do STJ de 27/05/2010, in www.dgsi.pt, descritores acidente de viação, IPP, IPAT, danos patrimoniais e danos não patrimoniais, segundo o qual o mesmo vai até aos 70 anos.
Assim, sendo previsível, considerando um quadro normal de vida e saúde, que o Autor viesse a exercer a sua atividade, pelo menos, até aos 70 anos, estando a esperança de vida dos homens fixada nos 78 anos de idade.
Revertendo ao caso concreto e tendo em conta que as lesões sofridas pelo Autor são muito graves, estando o mesmo deitado numa cama 24 horas sobre 24 horas, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de total incapacidade para o que quer que seja, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional, tendo presente a referida matéria de facto apurada, nomeadamente que o Autor já se encontra reformado por invalidez nos termos supra referidos, e todas as considerações teóricas expostas, julga-se justo e adequado fixar a indemnização pela sua IPG em € 170.000,00, acrescida de juros legais contados desde a citação até integral pagamento”.
Cumpre ter presente que está em causa a indemnização pelo dano biológico decorrente das sequelas das lesões sofridas, perspetivado não como fonte de uma perda de rendimentos laborais, mas antes como diminuição global das capacidades gerais do lesado, envolvendo uma verdadeira “capitis deminutio” para a realização de quaisquer tarefas, que passam a exigir-lhe um esforço acrescido e constitui um dano autónomo e pode ter como consequência danos patrimoniais e danos de natureza não patrimonial.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o conceito de dano “biológico” tem sido acolhido como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, o qual é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial[11].
O dano biológico é suscetível de ser indemnizado quer acarrete para o lesado uma diminuição efetiva do seu ganho laboral, quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado[12].
Acresce que neste âmbito se situa a ponderação da privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal.
Dispõe o art. 566º CC que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Por outro lado, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e que teria nessa data se não existissem danos.
Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados – art. 566º/3 CC.
Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior, conforme decorre do art. 564º/2 CC.
Consagram-se, assim, a teoria da diferença e a equidade como critério de compensação de danos futuros.
Não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, deve a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, em termos de normalidade de vida, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exato valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no art. 566°, n.º 3, do C.C.[13]
O recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade (cf. art.13º, nº1, da CRP), o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso. Quer isto significar que as decisões judiciais devem ter em consideração os critérios jurisprudenciais adotados em casos idênticos por forma a obter, tanto quanto possível, uma interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. art.º 8.º, n.º 3, do CC).
Neste sentido, entre outros, se tem pronunciado a jurisprudência nos Ac. STJ 30 de maio de 2019, Proc. 3710/12.6TJVNF.G1.S1 (www.dgsi.pt), Ac. STJ 10 de maio de 2020, Proc. 3907/17.2T8BRG.G1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020:3907.17.2T8BRG.G1.S1-(www.dgsi.pt)), Ac. STJ 30 de abril de 2020, Proc. 370/16.9T8BGC.G1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020: 370/16.9T8BGC.G1.S1 (www.dgsi.pt)), Ac. STJ de 10 de setembro de 2019, Proc. nº 16/13.7TVPRT.P1.S1 e Ac. STJ 05 de novembro de 2019, Proc. nº 7053/15.5T8PRT.P1.S1, in Sumários dos Acórdãos do STJ – Secções Cíveis, e de Ac. STJ 01 de outubro de 2019, Proc. nº 683/11.6TBPDL.L1.S2, www.dgsi.pt),
Na avaliação do dano, a jurisprudência, partindo de um juízo de equidade tem apontado vários critérios, sendo certo que o que melhor reflete o princípio geral enunciado no art. 562º CC – reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado a lesão – segue basicamente a ideia, que o montante da indemnização em dinheiro deve corresponder a um capital gerador de rendimento equivalente ao que o lesado deixará de receber, durante o período em que poderia trabalhar, de forma a esgotar-se no tempo provável de vida ativa.
Em todos os critérios surgem como elementos comuns a ponderação da idade do lesado, a incapacidade de que ficou afetado, o salário que auferia na data em que ocorreu o evento danoso (quando já exerce uma atividade profissional) e ainda, o período de vida ativa.
Quando está em causa a avaliação da perda de rendimentos provenientes da atividade profissional habitual, tem a jurisprudência[14] considerado como parâmetros a atender os seguintes:
a) – o capital produtor do rendimento que a vítima deixará de auferir e que se extinguiria no período de vida profissional provável;
b) – no cálculo a equacionar de forma equitativa, o relevo das regras da experiência que, segundo o curso normal das coisas, seja razoável atentar;
c) – as tabelas financeiras como mero instrumento auxiliar, sem substituição da equidade;
d) – o facto de ocorrer a antecipação, de uma só vez, do pagamento de todo o capital, o que permite ao beneficiário rentabilizá-lo financeiramente, introduzindo-se, para o efeito, uma dedução de forma a evitar um enriquecimento injustificado à custa de outrem e que se poderá situar entre 1/3 e 1/4.
Mais recentemente o Ac. STJ 04 de fevereiro de 2020, Proc. 46/08.0TBVVD.1.G1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020:46.08.0TBVVD.1.G1.S1) fazendo uma síntese da posição da jurisprudência sobre a matéria, indicou como elementos a considerar:
- O recurso à equidade deve ser mantido sempre que se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais generalizadamente adotados, em face das exigências do princípio da igualdade, o que implica a ponderação do julgamento de casos paralelos – Acórdão de 24-01-2018, Revista n.º390/12.2TBVPA.G1.S1; Acórdão de 17-05-2018, Revista n.º 268/11.7TBAVV.G1.S1; Acórdão de 25-10-2018, Revista n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1; Acórdão de 06-11-2018, Revista n.º 2416/16.1T8BRG.G1.S1;
- A indemnização do dano patrimonial futuro deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir e que se extinga no final do período provável de vida deste, suscetível de garantir, durante essa vida, as prestações periódicas correspondentes ao rendimento perdido – Acórdão de 22-01-2015, Revista n.º 237/05.6TBBAI.P1.S1, de 19-10-2017, Revista n.º 2222/12.2TBVCT.G1.S1;
- No cálculo da indemnização por dano patrimonial futuro, devem tomar-se em consideração, além de outros fatores, o salário auferido pelo sinistrado, o grau de incapacidade permanente de que ficou a padecer e a depreciação da moeda – Acórdão de 02-07-2009, Revista n.º 179/04.2TBMTR.S1, de 16-03-2017, Revista n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1;
- Quanto ao período de vida a considerar, deve ter-se em conta o tempo provável de vida laboral quando a incapacidade afeta a capacidade de ganho, e a esperança média de vida quando a incapacidade se traduz num esforço acrescido (dano biológico) – Acórdão de 04-05-2010 - Revista n.º 1288/03.0TBLSD.P1.S1, de 19-04-2012 - Revista n.º 3046/09.0TBFIG.S1;
- O dano biológico pode ter natureza patrimonial ou não patrimonial e a indemnização é devida (mesmo que não afete o exercício da profissão ou o salário do lesado) – Acórdão de 07-04-2016, Revista n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1, de 13-10-2016, Revista n.º 171/14.9TVPRT.P1.S1, de 25-05-2017, Revista n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1, 14-12-2017, Revista n.º 589/13.4TBFLG.P1.S1, de 08-11-2018, Revista n.º 1500/14.0T2AVR.P1.S1;
- A incapacidade funcional pode traduzir-se, em termos de previsibilidade e normalidade, na maior dificuldade de progressão na carreira, a necessidade de escolha de profissão mais adequada à incapacidade existente, e a perda de oportunidade profissionais, o que deve ser indemnizado – Acórdão de 07-11-2016, Revista n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, 19-04-2018, Revista n.º 196/11.6TCGMR.G2.S2”.
Verifica-se, assim, que os parâmetros seguidos na sentença estão conformes com os acolhidos na jurisprudência para idênticas situações, pois considerou-se o rendimento anual perdido, a percentagem de incapacidade para o trabalho em geral e para a profissão habitual, a idade da vítima à data do acidente, a idade normal da reforma, o tempo provável de vida posterior e o acerto resultante da entrega do capital de uma só vez, as suas condições de saúde ao tempo do sinistro, o tempo provável da sua vida ativa, a natureza do trabalho que realizava, o salário líquido obtido, a depreciação da moeda, a evolução dos salários, as taxas de juro dos mercados financeiros, a perenidade do emprego, a progressão na carreira, o desenvolvimento tecnológico e os índices de produtividade.
Entende, contudo, a apelante D…, Companhia de Seguros, SA que, para além do vencimento fixo habitual do lesado (€ 882,58), os factos tidos como relevantes para a determinação do quantum indemnizatório a título de dano biológico serão os seguintes: (a) idade: 46 anos à data do evento danoso; (b) atividade profissional a que se dedicava: carpinteiro; (c) natureza das lesões e sequelas sofridas em consequência do acidente – sequelas permanentes que lhe demandam um défice funcional de integridade físico-psíquica de 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas do exercício da atividade profissional; (d) idade da reforma: 65 anos.
Por outro lado, apoiando-se em cálculo decorrente de utilização da fórmula matemática, considera que o prejuízo patrimonial efetivo do Recorrido é de € 306,93 considerando a diferença entre o salário auferido pelo Recorrido e o montante que já recebe a título de pensão pela Segurança Social (€ 882,58 - € 575,65).
Por fim, refere que ao valor apurado, segundo o cálculo que sugere devia ser efetuado um desconto de 1/3 por antecipação do pagamento, efetuado de uma só vez e considerando que a esperança média de vida do Recorrido é relativamente menor, atenta a sua situação clínica, sempre tal cálculo deverá considerar uma esperança média de vida até aos 70 anos de idade.
Conclui que o valor de € 170.000,00, decidido pela sentença, é excessivo, e não respeita os critérios jurisprudenciais e doutrinários.
Considerando os parâmetros seguidos na jurisprudência entendemos que o critério sugerido pela apelante não respeita desde logo o critério legal do art. 562º a 566º CC quando entra em consideração com o valor da pensão de invalidez para proceder ao cálculo do montante da indemnização.
No cálculo da indemnização por dano patrimonial futuro deve tomar-se em consideração o salário líquido auferido pelo sinistrado à data do acidente, por ser o rendimento que deixou de auferir por efeito da lesão.
Neste sentido pode consultar-se, entre outros, o Ac. STJ 09 de janeiro de 2019, Proc. 1649/12.14.0T8VCT.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt).
O rendimento a considerar deve corresponder ao valor do salário líquido, sem qualquer dedução da pensão de invalidez atribuída pela Segurança Social.
Sugere, ainda, a apelante que no cálculo da indemnização se atenda apenas à idade da reforma – 65 anos.
Como se vem entendendo na jurisprudência, no período de vida a considerar, deve ter-se em conta o tempo provável de vida laboral quando a incapacidade afeta a capacidade de ganho.
Se a idade de reforma se situa nos 66 anos, o período de vida laboral considerado habitualmente situa-se nos 70 anos de idade.
Neste sentido, entre outros, Ac. STJ 04 de maio de 2010, Proc. 1288/03.0TBLSD.P1.S1, Ac. STJ 19 de abril de 2012, Proc. 3046/09.0TBFIG.S1 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt); Ac. STJ 06 de fevereiro de 2020, Proc. 2251/12.6TBVNG.P1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020:2251.12.6TBVNG.P1.S1).
A sentença não merece censura quando considera que o período de vida laboral se situa nos 70 anos. Com efeito, atenta a profissão do autor, carpinteiro, seria provável que mesmo depois de atingir a idade da reforma, ainda continuasse a exercer a sua profissão, por conta própria ou em pequenos trabalhos pontuais na área da construção civil. Não se justifica, atender apenas à idade de reforma de 65 anos.
Considera, ainda, a apelante que no cálculo a efetuar se deve ponderar a utilização de fórmulas matemáticas, sendo certo que em concreto não indicou a fórmula a aplicar.
Na sentença considerou-se tal aspeto, apenas como referencial e ponderou-se para o efeito a fórmula prevista na Portaria 377/2008 de 26 de maio.
A Portaria 377/2008 de 26 de maio foi revogada pela Portaria 679/2009 de 25 de junho.
Na jurisprudência tem-se considerado que as referidas tabelas funcionam para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08 e destinam-se a ser aplicadas na esfera extrajudicial, não sendo lícita a sua sobreposição aos critérios legais e de equidade pelo julgador. O critério fundamental para a determinação das indemnizações é o fixado no Código Civil.
Neste sentido, entre outros, os Ac. STJ de 19 de maio de 2020, Proc. 3907/17.2T8BRG.G1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020:3907.17.2T8BRG.G1.S1), Ac. STJ 06 de fevereiro de 2020, Proc. 2251/12.6TBVNG.P1.S1 (ECLI:PT:STJ:2020:2251.12.6TBVNG.P1.S1)- acessíveis em www.dgsi.pt
Como se começou por referir, neste tipo de situações, a solução seguida pela jurisprudência é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma.
Daí entender-se que as apontadas fórmulas apenas podem ser consideradas como referencial, mas sempre temperadas pelo concreto juízo de equidade, sendo esse o entendimento que seguimos.
Considera, ainda, a apelante que ao valor apurado deve ser efetuado um desconto por antecipação do pagamento e um outro desconto, este, de 1/3, porque a esperança média de vida do autor é menor, atenta a sua situação clínica.
Na sentença, no valor apurado ponderou-se “o acerto resultante da entrega do capital de uma só vez”, ainda que sem indicar a concreta percentagem.
A ponderação de tal aspeto mostra-se justificado, segundo um juízo de equidade, ainda que se conheçam posições discordantes[15], perante situações de grande dependência económica e elevado grau de lesões. Contudo, o próprio autor no cálculo efetuado na petição pondera este fator, o que significa que o admite como proporcional.
Com efeito, pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la de imediato, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia.
Essa redução tem por referência os possíveis ganhos resultantes da aplicação financeira do capital antecipadamente recebido (taxa de capitalização) – na medida em que, colocando o capital a render, o beneficiário sempre receberá os correspondentes juros ou rendimentos remuneratórios.
Porém, no atual quadro económico, em que se tem assistido a uma redução substancial dos rendimentos gerados com aplicações financeiras do capital tem-se optado pela aplicação de uma taxa mínima, na ordem dos 10%, sendo essa a taxa a considerar.
Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 25 de novembro 2009, Proc. nº 397/03.0GEBNV.S1, Ac. STJ 15 de março de 2018, Proc. nº 4084/07.2TBVFX.L1.S1, Ac. STJ de 30 de março de 2017, Proc. 2233/10.2TBFLG.P1.S1, Ac. STJ 19 de maio de 2020, Proc. 3907/17.2T8BRG.G1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:3907.17.2T8BRG.G1.S1, Ac. 30 de abril de 2020, Proc. 370/16.9T8BGC.G1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:370.16.9T8BGC.G1.S1- todos em www.dgsi.pt.
Contudo, a dedução de 1/3 ao valor apurado, considerando que a esperança média de vida do autor é menor, pois não ultrapassa os 70 anos de idade, atenta a sua situação clínica, não merece acolhimento, porque desvirtua o fim da indemnização a atribuir ponderando a teoria da diferença.
A indemnização visa ressarcir a perda de ganho, ou seja, o montante da indemnização em dinheiro deve corresponder a um capital gerador de rendimento equivalente ao que o lesado deixará de receber, durante o período em que poderia trabalhar, de forma a esgotar-se no tempo provável de vida ativa. A vida ativa para o efeito corresponde ao período de vida laboral, que no caso se situou nos 70 anos.
Efetivamente, em caso de incapacidade permanente a consideração do dano biológico servirá para cobrir ainda, no decurso do tempo de vida expectável, a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, mesmo fora do quadro da profissão habitual ou para compensar custos de maior onerosidade com o desempenho ou suprimento dessas atividades ou tarefas, assumindo assim uma função complementar.
Contudo, no caso concreto, na indemnização arbitrada não se atendeu a essa vertente do dano biológico, pelo que, não se justifica proceder à dedução pretendida.
Acresce ao exposto que segundo um juízo de equidade e ponderando o princípio da igualdade, o valor proposto pela apelante não se enquadra nos valores atribuídos como forma de ressarcimento do dano sofrido em situações que se podem considerar idênticas àquela em que se encontra o autor.
Sob este aspeto, passamos a apreciar de igual forma, as conclusões de recurso do apelante autor, sob os pontos 10 a 14, por considerar que o valor arbitrado não está conforme com os valores atribuídos a este título.
Analisando os valores arbitrados na jurisprudência dos tribunais superiores, em obediência ao princípio da igualdade, sempre presente num juízo de equidade e tomando como referência, entre outros, os arestos a seguir indicados é de considerar que a indemnização arbitrada fica aquém dos valores médios considerados como adequados para indemnizar o dano sofrido.
Ponderando as doutas decisões proferidas nos seguintes processos:
- Ac. 27 de setembro de 2012, Proc. 560/04.7TBVVD.G1.S1
- Tendo em atenção que (i) à data do acidente a autora tinha 32 anos de idade; (ii) auferia o vencimento mensal de € 550,00 / x 12; (iii) tinha uma esperança de vida de cerca de 50 anos; (iv) sofreu, por via do acidente, uma IPP de 85%; (v) sendo previsível o agravamento das duas queixas ao nível da cervical; (vi) com necessidade de tratamento fisiátrico de forma periódica ao longo da sua vida; (vii) e levando em atenção o atual estado do mercado de trabalho; afigura-se adequado o montante indemnizatório, fixado pela Relação, de € 150.000.
- Ac. STJ 19 de dezembro de 2018, Proc. 1173/14.0T2AVR.P1.S1
- Jovem com 17 anos, à data do acidente, que sofreu lesões que determinaram u défice da integridade física –psíquica de 91 pontos, manteve-se a decisão do Tribunal da Relação do Porto que atribuiu à lesada de acordo com um juízo de equidade a indemnização de € 551.650,00.
- Ac. STJ 25 de outubro de 2018, Proc. 902/14.7TBVCT.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt)
- O valor de € 350 000 mostra-se adequado a indemnizar o lesado pelos danos patrimoniais futuros, na consideração do seguinte quadro: (i) à data do acidente, o lesado tinha 54 anos; (ii) exercia a atividade de serralheiro naval, mecânico e civil; (iii) por força do acidente, ficou a padecer de um défice funcional permanente de 72 pontos incompatíveis com a atividade profissional habitual; (iv) o grau de incapacidade e as graves limitações funcionais associadas dificultarão ou impossibilitarão o exercício de outra atividade profissional na respetiva área, traduzindo, na prática, uma situação de incapacidade total permanente.
- Ac. STJ 19 de maio de 2020, Proc 3907/17.2T8BRG.G1.S1 ECLI:PT:STJ:2020:3907.17.2T8BRG.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt)
- Lesado com 21 anos, que exercia uma atividade profissional e foi atribuído um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 55 pontos; a indemnização em causa na revista, relativa à perda da capacidade de ganho e ao dano biológico, no seu conjunto foi fixada em € 450.000,00; atribuído o valor de € 390.000,00 por perda de capacidade de ganho.
- Acórdão do STJ de 19 de setembro de 2019, Proc 2706/17.6T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt):
- “Tendo em conta que o recorrente: (i) ficou afetado com um défice funcional permanente de 32 pontos, que o impede de exercer a sua profissão habitual de serralheiro mecânico, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; (ii) contava com 45 anos à data do acidente; (iii) auferia um rendimento mensal ilíquido de € 788,00, à data do acidente, que subiu cerca de dois meses depois para € 816,00, acrescido de € 80,00 de subsídio de alimentação; afigura-se ser acertado o montante indemnizatório de € 200.000,00, considerando o benefício emergente da entrega antecipada do capital, para compensar os comprovados danos sofridos pelo autor no que respeita à perda de capacidade de ganho e dano biológico (no plano estritamente material e económico)”;
- Ac do STJ de 23 de maio de 2019, Proc. 2476/16.5T8BRG.G1.S2, in Sumários dos Acórdãos do STJ – Secções Cíveis:
“Resultando da factualidade provada que a autora, em consequência do acidente de viação de que foi vítima e das sequelas ao nível da coluna cervical de que ficou a padecer, (i) ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual de educadora de infância mas não de exercer outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional embora com acrescidas dificuldades; (ii) auferia uma retribuição mensal de € 1.706,20, catorze meses por ano; (iii) ficou com um défice funcional de 26 pontos; e (iv) tinha 44 anos de idade à data do acidente, é de confirmar o montante de € 250 000,00 fixado pela Relação a título de indemnização por perda de capacidade de ganho, aqui incluída a vertente patrimonial do dano biológico.
- Ac. STJ 30 de abril de 2020, proc. 6918/16.1T8VNG.P1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:6918.16.1T8VNG.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt)
- O défice funcional permanente de 15 pontos de que o autor se encontra afetado, sem esquecer que as sequelas de que ficou a padecer definitivamente o impedem de exercer a sua profissão habitual (cf. pontos 21, 26, 28 e 29, dos factos provados).
- A circunstância de o referido dano funcional ter com elevada probabilidade determinado a sua reforma, sendo de notar que, não obstante não se tratar de uma incapacidade total, as limitações que o autor apresenta, associadas à sua idade (prestes a fazer 59 anos, à data da consolidação das lesões) e às crescentes exigências do mercado laboral, permitiriam formular um juízo de prognose muito reservado quanto à obtenção de emprego, no futuro, ainda que noutro ramo de atividade, pelo menos com a estabilidade daquele que possuía e que, não fora o acidente, provavelmente manteria.
- A idade do autor (tinha 56 anos, à data do acidente) e os demais vetores acima referidos para projetar o rendimento perdido.
- Os proventos auferidos: à data do acidente dos autos, exercia a profissão de motorista profissional, com um salário mensal de € 596,57, acrescido de subsídio de alimentação no montante de € 50,60€ e de subsídio de diuturnidade no valor de € 80,82 (cf. ponto 20, dos factos provados).
- A redução do capital que assim se obtiver, em resultado da sua entrega antecipada, para que o valor encontrado corresponda a um capital (produtor de rendimento) que tendencialmente se extinga no final do período provável de vida deste.
Neste quadro factual, tudo ponderado, afigura-se-nos ser mais acertado o montante indemnizatório de € 60.000,00 para compensar os comprovados danos sofridos pelo autor no que respeita à perda de capacidade de ganho e dano biológico (no plano estritamente material e económico)”.
Em todas as situações existe um denominador comum: as lesões sofridas impedem o exercício da atividade profissional habitual do lesado, como ocorre no caso concreto. O valor da indemnização varia em função da idade do lesado e grau de habilitações e montante do salário auferido.
Os valores próximos do sugerido pela apelante D…, Companhia de Seguros, SA são considerados em situações com limitações funcionais menos graves do que aquela de que ficou a padecer o autor. Em relação ao valor sugerido pelo autor, verifica-se que se aproxima de situações em que o lesado quase sempre é uma pessoa jovem.
Considerando tais aspetos e ponderando no caso o grau de limitação de que ficou a padecer o autor – défice funcional permanente de integridade físico-psiquica de 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional -, não existindo qualquer perspetiva de recuperação (ponto 26 dos factos provados), a idade (46 anos), o salário líquido (€ 686,45), a profissão (carpinteiro), o tempo profissional de vida ativa (70 anos), a dedução de 10%, ponderando a entrega antecipada do capital produtor de rendimento, considera-se proporcional e adequado, segundo um juízo de equidade atribuir uma indemnização de € 190 000,00 (cento e noventa mil euro)
Desta forma julgamos ser equitativo o montante de € 190.000,00 – cento e noventa mil euros.
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- Assistência vitalícia/tratamentos especializados -
O autor na petição liquidou o dano patrimonial, que qualificou como tratamentos especializados em € 548.000,00.
Na sentença fixou-se o montante da indemnização em € 360.000,00.
Nos pontos 56 a 63 das conclusões de recurso, insurge-se a apelante D…, Companhia de Seguros, SA contra o montante arbitrado a título de assistência vitalícia/tratamentos especializados, considerando que o valor adequado para ressarcir tal prejuízo não deve ultrapassar o montante de € 176.000,00.
O autor B… de igual forma se insurge contra o decidido, nos pontos 15 a 20 das conclusões, sugerindo a fixação da indemnização no montante de € 523.260,00.
A questão a apreciar consiste em avaliar o montante necessário em gastos com tratamentos médicos e medicamentosos e internamento do autor, perante a situação em que se encontra.
Na sentença enquadrou-se o dano futuro, na vertente patrimonial do dano biológico e arbitrou-se a indemnização com os fundamentos que se transcrevem:
“O Autor peticiona a quantia de € 548.000,00 pela necessidade de tratamentos especializados.
Da factualidade provada resulta que o Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde, necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa; (ponto 34 e 43).
A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido.
Permanecer numa instituição como a I… tem um custo médio mensal de 1.500,00€ - que não inclui medicamentos, fraldas. (pontos 44 a 47)
Trata-se de um dano futuro dado como previsível que decorre das limitações físico-psíquicas sofridas pelo lesado e derivadas do dano biológico, inerentes como são ao exercício das tarefas pessoais em que o mesmo lesado ficou diminuído.
Atendendo à situação de dependência em que o Autor se encontra no contexto psicossomático resultante das sequelas sofridas, teremos que atuar numa base equitativa presumível, atendendo ao período provável da vida do Autor, conferindo-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável, devendo ponderar-se não só a esperança de vida dos homens em geral, mas também se deve ponderar a situação do Autor em particular, encontrando-se este com uma IPG de 95 pontos, pelo que, salvo melhor opinião, não se pode efetuar um cálculo aritmético puro, conforme peticionado, devendo, ainda, ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, impõe-se considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia; e deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida dos homens, a esperança medida de vida do Autor.
Assim, recorrendo à equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, fixa-se o montante de € 360.000,00, acrescido de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento”.
Na apreciação do concreto dano cumpre ter presente os seguintes factos provados:
26 - Por causa das lesões sofridas com o embate, o Autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
27 - Apesar dos tratamentos, o Autor continua a permanecer, 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos – cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados.
28 - O Autor está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma.
29 - As lesões sofridas com o embate provocaram ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional.
34 - O Autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa;
35 - O Autor nasceu em 19/07/1971.
36 - O Autor, à data do embate, era divorciado.
39 - O Autor tem vindo a fazer face às despesas do seu dia-a-dia, com a aquisição de medicamentos, produtos alimentares, vestuário e do custo do internamento nos cuidados continuados em que se encontra internado, com recurso à aludida pensão de invalidez e com a ajuda da sua mãe, familiares e amigos.
40 - A mãe do Autor carece, atualmente, de recursos económicos para continuar a apoiá-lo.
41 - O Autor sofreu, sofre e continuará a sofrer, dores por todo o corpo.
42 - E sofreu com os muitos e diversificados tratamentos e exames a que foi sujeito;
43 - O Autor tem consciência da sua extrema dificuldade em comunicar, o que o leva a irritar-se e a sentir-se profundamente deprimido.
45 - O Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde.
46 - A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
47 - A sua filha (menor) vive, neste momento, com a sua ex-mulher no estrangeiro.
48 - O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido.
49 - Permanecer numa instituição como a I… tem um custo médio mensal de 1.500,00€ - que não inclui medicamentos, fraldas.
No contexto dos factos apurados e ponderando o critério da lei e os valores praticados na jurisprudência, afigura-se proporcional e adequado o valor atribuído a título de indemnização com assistência vitalícia e tratamentos especializados.
Considera, porém, a apelante D…, Companhia de Seguros, SA que o tribunal nos cálculos que efetuou ponderou um custo médio mensal de € 1.500,00 correspondente ao ponto 49 dos factos provados, o qual configura um valor médio que não se encontra factualmente estribado, não podendo ser considerado como correspondente a um custo efetivo do serviço de cuidados continuados da I….
Entende que o custo mensal real com despesas com assistência vitalícia não ultrapassam o valor de € 900,00, sendo que, e partindo de um valor hipotético mensal de € 1000,00 e um prazo atual de 30 anos (48 aos 78 anos) o valor da indemnização ascenderia a € 360.000,00.
Decorre dos factos provados que o custo médio mensal com despesas de internamento do autor, resulta provado sob o ponto 49. Tal matéria não foi objeto de impugnação.
Os restantes factos apurados não permitem alcançar a conclusão a que chegou a apelante quando defende que o “custo mensal real com despesas com assistência vitalícia não ultrapassam o valor de € 900,00”.
Cumpre ter presente que o valor apurado destina-se não só a cobrir as despesas com o internamento na instituição, como ainda, as despesas com as ajudas técnicas, consultas médicas e despesas medicamentosas.
Desta forma, não merece censura a consideração do valor provado, como base de cálculo da indemnização devida. Acresce que tal valor, por ser o valor médio, leva já em consideração o normal aumento de custo deste género de serviços ao longo do tempo. Por outro lado, o valor apurado não cobre todas as despesas, pois não inclui despesas com fraldas e cremes. Em situações idênticas, onde se inclui ainda este género de despesas, apurou-se uma despesa mensal de € 2 500,00 (cfr. Ac. STJ 11 de abril de 2019, Proc. 5686/15.9T8VIS.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt).
Numa segunda ordem de argumentos refere a apelante que ao valor apurado deveria ser feito um desconto de cerca de 1/3 por antecipação do pagamento integral da indemnização, o que representaria uma indemnização de € 240.000,00 e sendo a esperança média de vida do autor mais reduzida impunha-se também uma redução para, pelo menos, os 70 anos de idade.
No valor apurado ponderaram-se tais aspetos:”[…] o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, impõe-se considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia; e deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida dos homens, a esperança medida de vida do Autor”.
Acresce que o valor sugerido pela apelante está fora dos valores considerados em idênticas situações pela jurisprudência dos nossos tribunais.
Em 2012, no Ac. STJ 27 de setembro de 2012, Proc. 560/04.7TBVVD.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), para uma situação de idêntica incapacidade (85%), mas sem o grau de dependência em que se encontra o autor, atribuiu-se a título de dano resultante da necessidade de acompanhamento permanente por terceira pessoa a quantia de € 148 450,00.
Porém, no Ac. STJ 11 de abril de 2019, Proc. 5686/15.9T8VIS.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) numa situação em que a lesada com 64 anos, reformada, por efeito das lesões ficou em situação de tetraparésia, ponderando-se o período de sobrevida, atribuiu-se a indemnização de € 240 000,00 para ressarcimento das despesas com tratamentos, em regime de internamento em instituição especializada e cuidados de saúde.
Também no Ac. STJ 12 de novembro de 2019, Proc. 468/15.0T8PDL.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), estando em causa lesada com 41 anos que perdeu a marcha, movimentando-se apenas em cadeira de rodas, com necessidade de permanente auxílio de terceira pessoa, atribuiu-se a indemnização de € 400.000,00.
O montante arbitrado está pois dentro dos valores médios que segundo um juízo de equidade foram atribuídos para ressarcir o dano sofrido com assistência e tratamentos.
Analisando os argumentos do apelante-autor.
Refere o autor que considerando o eventual aumento da esperança de vida, o aumento de custos dos serviços e o facto de o autor receber de uma vez, e as taxas de juros se encontrarem negativas, será justo e equitativo retirar apenas 10% do valor proposto de € 581.400,00.
O autor considera a esperança média de vida dos homens em Portugal, a qual ronda os 78,3 anos, sendo expetável que venha a subir.
Começando por analisar este último argumento é de referir que o mesmo apenas tem validade quando estamos na presença de um individuo do sexo masculino que apesar das lesões sofridas, permanece ativo e com plena autonomia.
O estado de saúde do autor não permite considerar que a sua esperança de vida se situa dentro da média do homem português, dado o elevado número de lesões sofridas e limitações funcionais de que ficou a padecer. A debilidade física e a doença é uma evidência e o estado de saúde, em regra, nestas situações tende a agravar-se, pelo que o tempo de sobrevida é sempre mais curto, mesmo ponderando os avanços da medicina.
Revela-se, aliás significativo, a este respeito a observação feita no Ac. STJ 11 de abril de 2019, Proc. 5686/15.9T8VIS.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “[o]ra o que releva, em matéria de sobrevida, para a determinação do montante da indemnização por despesas a realizar com o tratamento e assistência da vítima, não são as situações excecionais mas sim o que é normal, previsível ou provável que ocorra, dentro duma probabilidade estatística. A equidade pressupõe critérios de normalidade”.
Neste contexto, a ponderação da “esperança média de vida do autor”, tal como consta da sentença, constitui o critério que melhor satisfaz o juízo de equidade.
Considera, ainda, que cumpre atender ao aumento de custos dos serviços e o facto de o autor receber de uma vez, e as taxas de juros se encontrarem negativas a percentagem a deduzir deve fixar-se em 10%.
Tais aspetos foram considerados na sentença, pois o valor provado, sob o ponto 49, corresponde ao valor médio, o que significa que o mesmo já inclui as naturais oscilações por efeito do agravamento dos custos dos serviços.
Na sentença também se ponderou uma dedução em função da antecipação do pagamento, ainda, que sem quantificação. Mas mostrando-se o valor apurado dentro dos valores que segundo juízos de equidade foram arbitrados na jurisprudência e onde se ponderou tal dedução, não se justifica alterar o valor atribuído.
Conclui-se que o valor arbitrado para indemnização das despesas com assistência vitalícia/tratamentos especializados não merece censura.
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- Danos não patrimoniais -
Na petição o apelante quantificou a indemnização a título de danos não patrimoniais em € 250.000,00.
Na sentença fixou-se o montante da indemnização em € 200.000,00.
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 64 a 73, insurge-se a apelante D…, Companhia de Seguros, SA contra o segmento da sentença que em obediência a um juízo de equidade fixou o montante da indemnização devida a título de danos não patrimoniais, em € 200.000,00, por entender que o montante arbitrado, ponderando os factos provados, se mostra desajustado de acordo com os padrões jurisprudenciais em face da concreta situação, justificando-se a atribuição da indemnização de € 125.000,00.
O autor, por sua vez, considera que o concreto dano deve ser compensado com uma indemnização nunca inferior a € 300.000,00.
Na sentença arbitrou-se a indemnização para compensar os danos sofridos com os fundamentos que se transcrevem:
“Preceitua o art. 496º, nº 1, do C.Civil, que na fixação da indemnização devem atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Tem-se entendido doutrinal e jurisprudencialmente, que a merecem, aqueles danos que “espelham uma dor, angustia, desgosto ou sofrimento”.
Entende-se igualmente, que é pecuniariamente compensável o abalo moral sofrido pelo receio natural pela integridade física.
Ora, releva para a fixação desta indemnização os factos descritos nos pontos 10 a 34, 41 a 45 e 48.
No caso em apreço, os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor e que têm subjacente a matéria de facto vertida naqueles números são indemnizáveis, pois são extremamente graves, já que se consubstanciam numa lesão muito grave da sua integridade física e psicológica.
Valorizando-se os mencionados danos por referência ao momento atual, considerando que o Autor, apesar dos tratamentos, está 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos – cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados. O Autor está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma, necessitando de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa; Com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7, ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7, com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7.
Não se ignorando que o Autor encontra-se consciente, sofreu, sofre e continuará a sofrer, dores por todo o corpo, sofre com os muitos e diversificados tratamentos e exames a que foi sujeito;
Tem consciência da sua extrema dificuldade em comunicar, o que o leva a irritar-se e a sentir-se profundamente deprimido, por não poder efetuar uma “vida dita normal”, nomeadamente, comunicar, trabalhar, brincar com a sua filha, sair com amigos, refazer a sua vida afetiva, ter mais filhos, correr, subir e descer escadas, jogar a bola, andar de bicicleta.
Assim, não restam dúvidas que estamos perante um dano não patrimonial muito relevante - merecedor da tutela do direito - quer se opte pela formulação negativa, que inclui nesta categoria todos aqueles que não atingem os bens materiais do sujeito passivo ou que, de qualquer modo, não alterem a sua situação patrimonial - cfr. De Cupis, II Danno, Teoria Generale della Responsabilitá Civile, I, 2ª ed., Milano, 1966, págs. 44 e ss. -, quer pela formulação positiva, segundo a qual, o dano não patrimonial ou dano moral, tem por objeto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível em rigor, de avaliação pecuniária. A indemnização não visa então propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido - cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª ed., pg. 560 e Rui Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, pg. 270.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante), segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização - art. 494º, “ex vi” do art. 496º, nº 3 do C.Civil -, aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda etc., sendo fundamental que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica ou miserabilista.
Aplicando as considerações expostas ao caso vertente, fixa-se a indemnização pelos danos morais sofridos pelo Autor no montante de € 200.000,00, acrescida de juros legais contados desde a presente data até integral pagamento”.
A questão a decidir consiste em apurar se na fixação da indemnização, segundo um juízo de equidade se observou o critério legal.
Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, a jurisprudência dos tribunais superiores tem defendido que o tribunal de recurso deve limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”. Tal como escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal” em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras[16].
Tendo presente o art. 496º/1CC, verificamos que tão só, são indemnizáveis, a título de danos morais, os danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e a indemnização, neste âmbito, visa compensar o dano sofrido, pois pela sua natureza o dano não é suscetível de restituição natural.
Em conformidade com o nº4 do art. 496º CC o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º do CC e de acordo com um critério objetivo.
Na decisão segundo a equidade terá de se considerar essencialmente as particularidades que o caso concreto apresenta, configurando-se a consideração dos elementos e realidades a ter em conta sobretudo como questão metodológica[17].
Por outro lado, tem a jurisprudência defendido que na quantificação do dano, os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objetivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objetivamente um enriquecimento injustificado[18].
No recurso à equidade devem observar-se as exigências do princípio da igualdade, “o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso”[19].
Deve atender-se, assim, nos termos do art. 496º/4 CC, conjugado com o art. 494º CC, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica, do lesado e do titular de indemnização e às demais circunstâncias do caso. Nestas, podem incluir-se a desvalorização da moeda, bem como os padrões de indemnização geralmente adotados pela jurisprudência[20].
Neste contexto mostraram-se relevantes na avaliação do dano os seguintes factos:
10 - Como consequência do embate, o Autor perdeu a consciência.
11 - O Autor foi transportado, em estado de coma, para o Centro Hospitalar …, na cidade do Porto.
12 - À entrada do qual apresentava as seguintes lesões:
13 - TCE grave com HSA temporoparietal direita, frontal esquerda e contusão frontal direita;
14 - Fratura do côndilo occipital (tipo 1 de Anderson e Montesano);
15 - Fratura de C5 e pequenas fraturas de C3-C6 e do rebordo inferior de C4 sem desvio;
16 - Hematoma intracanalar e extramedular entre C2 e C7 de predomínio esquerdo que molda a vertente anterior da medula esquerda;
17 - Fratura da diáfise do úmero esquerdo e fratura da clavícula esquerda com suspeita de lesão de plexo braquial; “tratamento conservador com suspensão braquial com banda;
18 - Trauma torácico fechado direito com fratura do 1-3º arcos costais e derrame pleural de pequeno volume;
19 - Hipoventilação de origem central;
20 - O Autor permaneceu internado no referido hospital do dia 16/09/2017 até 21/09/2017, sempre em estado de coma.
21 - Situação (coma), em que deu entrada no Centro Hospitalar …, Epe, de Penafiel, onde esteve internado desde 21/09/2017 até 22/11/2017.
22 - De seguida, foi transferido para o F…, de …, em Vila Nova de Gaia, onde esteve até 01/02/2018.
23 - Em 01/02/2018 foi transferido do F… para a G…, S.A., onde permaneceu internado até 01/08/2018.
24 - Daqui foi transferido para o serviço de cuidados continuados da H…, de Penafiel, onde esteve internado mais cerca de 03 semanas.
25 - Atualmente está internado no serviço de cuidados continuados da I…, estando consciente, mas desorientado, conseguindo apenas dizer o seu nome e reconhecer familiares.
26 - Por causa das lesões sofridas com o embate, o Autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
27 - Apesar dos tratamentos, o Autor continua a permanecer, 24 sobre 24 horas, deitado numa cama e a carecer, de forma permanente, de cuidados médicos – cuidados médicos a prestar, necessariamente, por profissionais e com recursos clínicos qualificados.
28 - O Autor está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma.
29 - As lesões sofridas com o embate provocaram ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional.
30 - Com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7.
31 - Ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
32 - Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7.
33 - Com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7.
34 - O Autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa;
35 - O Autor nasceu em 19/07/1971.
36 - O Autor, à data do embate, era divorciado.
39 - O Autor tem vindo a fazer face às despesas do seu dia-a-dia, com a aquisição de medicamentos, produtos alimentares, vestuário e do custo do internamento nos cuidados continuados em que se encontra internado, com recurso à aludida pensão de invalidez e com a ajuda da sua mãe, familiares e amigos.
40 - A mãe do Autor carece, atualmente, de recursos económicos para continuar a apoiá-lo.
41 - O Autor sofreu, sofre e continuará a sofrer, dores por todo o corpo.
42 - E sofreu com os muitos e diversificados tratamentos e exames a que foi sujeito;
43 - O Autor tem consciência da sua extrema dificuldade em comunicar, o que o leva a irritar-se e a sentir-se profundamente deprimido.
44 - O Autor sente-se muito triste e deprimido por não poder efetuar uma “vida dita normal”, nomeadamente, comunicar, trabalhar, brincar com a sua filha, sair com amigos, refazer a sua vida afetiva, ter mais filhos, correr, subir e descer escadas, jogar a bola, andar de bicicleta.
45 - O Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde.
46 - A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
47 - A sua filha (menor) vive, neste momento, com a sua ex-mulher no estrangeiro.
48 - O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido”.
Conforme resulta dos factos provados o autor à data do sinistro tinha 46 anos de idade, vivia na companhia da mãe e na casa desta, trabalhava e era uma pessoa com autonomia.
Estão em causa lesões na integridade física do autor que pela sua gravidade e extensão justificam a tutela do direito, quando além do mais determinaram um défice permanente de integridade físico-psiquica e vão condicionar para sempre a sua vida de relação, pois está incapaz para a prática de quaisquer atos necessários à satisfação das suas necessidades, designadamente, cuidar da sua higiene pessoal, sentar-se e levantar-se da sanita, para se alimentar, para se vestir e calçar, cortar a barba, para comunicar por qualquer forma.
Apesar de consciente, apenas consegue verbalizar o seu nome e reconhecer os familiares, apresentando-se desorientado.
As lesões sofridas com o embate provocaram ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 95 pontos, sendo tais sequelas impeditivas de qualquer atividade profissional.
Com os tratamentos a que foi submetido, o Autor sofreu dores que implicaram um “quantum doloris” de grau 6/7 numa escala de 1 a 7. Ficou com um dano estético permanente de grau 7/7 numa escala de 1 a 7.Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 7/7 numa escala de 1 a 7 e ainda, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 7/7.
O Autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa.
Acresce que o autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas e tratamentos, durante um longo período de tempo, que causaram dores e incómodos e a sua mobilidade ficou seriamente comprometida, apesar dos tratamentos, de tal forma que permanece 24 horas sobre 24 horas deitado numa cama e a carecer de permanentes cuidados médicos.
Acrescenta-se, ainda, o facto de o acidente ter ocorrido por facto imputável, a título de culpa exclusiva, ao condutor do veículo segurado, porque na avaliação do dano está presente o caráter sancionatório da indemnização a atribuir. O dano especificamente sofrido de caráter não patrimonial a fixar equitativamente há de ter sempre em conta o pressuposto ético que está na base da obrigação de indemnizar - que é o da sanção da conduta culposa do agente - cfr. arts. 494º, 497º nº2 e 500º nº3 do Código Civil[21].
De modo particular na jurisprudência é de referir as indemnizações arbitradas em situações que apresentam alguma identidade com a do autor (acessíveis em www.dgsi.pt):
- Ac. Rel. Porto 18 de abril de 2017, Proc. 461/13.0TBPVZ.P1
- Possuindo o lesado 51 anos de idade à data do acidente, tendo sido submetido a uma cirurgia, a internamentos e tratamentos vários que perduraram por quase três anos e de que carecerá para o resto da sua vida, ficando o mesmo a sofrer, em termos irreversíveis, de tetraparésia com compromisso motor e sensitivo (incapaz de andar, de se vestir, de se alimentar, de cuidar da sua própria higiene, de mudar sequer a posição do seu corpo), na estrita dependência de uma terceira pessoa para qualquer acto da sua vida diária e até ao fim da vida, tendo de usar fraldas de dia e de noite até ao fim da vida, tendo sofrido um quantum doloris de 6 (em 7), um prejuízo estético de 6 (em 7), um prejuízo de relacionamento sexual total (7 em 7), passando a sentir-se um inútil e um fardo para os familiares e os amigos, chorando com frequência, sentindo-se angustiado e triste e pondo em causa a sua própria existência e a vontade de viver, é de considerar como equitativa a indemnização de €200.000,00 (duzentos mil euros), a título de danos não patrimoniais.
- Ac. STJ 25 de novembro de 2009, Proc. 397/03.0GEBNV.S1
- o menor ficou paraplégico, sem sensibilidade abaixo da linha intermamilar, fazendo infecções urinárias, respiratórias e dermatológicas e úlcera na região occipital, sendo ventilado durante 15 dias;
- em consequência do acidente ficou internado mais de 8 meses;
- foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, com anestesias gerais e sequente sujeição a programas de reabilitação física;
- a incapacidade temporária geral total foi de 765 dias, o que significa que durante os anos completos de 2004 e 2005, esteve impedido de realizar com razoável autonomia as actividades da vida diária, familiar e social, sendo do mesmo período a incapacidade temporária para a atividade ocupacional habitual de estudante;
- efetuou 197 deslocações ao Centro de Medicina de Reabilitação entre a data da alta deste e a data da propositura da ação cível enxertada, tendo efetuado outras 82 deslocações ao Hospital no mesmo período;
- foi submetido a tratamentos de acupunctura;
- padece de quantum doloris de grau 6, numa escala de 7, de dano estético de 5, numa escala de 7 graus;
- padece de ausência de controle de esfíncteres, obrigando a uso de fraldas e de bebegel, tendo a necessidade de fazer algaliação de 3 em 3 h, constituindo uma situação irreversível;
- tem necessidade de ter vigilância do foro urológico, tomando diariamente dois comprimidos para o funcionamento da bexiga;
- ficou na dependência de ajudas técnicas (cadeira de rodas, ortóteses e botas ortopédicas), médicas fisiátricas e medicamentosas, bem como do apoio de terceira pessoa;
- tem a perspetiva de viver numa cadeira de rodas até ao fim dos seus dias;
- necessita de fisioterapia e hidroterapia para não agravar o seu estado;
- acresce a perda do avô, com quem seguia no veículo embatido, estando encarcerado cerca de 40 m. ao lado do mesmo, já morto, só dele conseguindo falar e chorar a sua morte mais de dois meses transcorridos sobre o acidente, afigura-se adequado fixar a indemnização por danos não patrimoniais em € 250.000.
- Ac. STJ 16 de março de 2011, Proc. 1879/03.0TBACB.C1.S1
- Encontrando-se o autor, com 10 anos de idade, tetraplégico e possuindo sequelas que o incapacitam, na totalidade, para o resto da sua vida, tendo ficado afetado de uma incapacidade permanente geral de 80%, à qual acresce, a título de dano futuro, o coeficiente de 10%, o que exige o apoio permanente de terceiro especializado para tratar de si, e o recurso a instituições especializadas para apoio e reabilitação, com um quantum doloris, fixável, num grau muito elevado, mostra-se adequada a compensação, por danos de natureza não patrimonial, no montante de € 120.000.
- Ac. STJ 19 de dezembro de 2018, Proc. 1173/14.0T2AVR.P1.S1
- Lesada com 17 anos, que sofreu lesões que originaram um défice funcional da integridade físico-psíquica de 91 pontos, com tetraparésia, atribuiu-se a indemnização para compensação do dano não patrimonial de € 350.000,00.
- Ac. 16 de março de 2017, Proc Revista n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1 - 2.ª Secção
- VII - Resultando da factualidade provada que o lesado, de 19 anos de idade, em consequência do acidente em causa nos autos: (i) sofreu graves lesões, que determinaram a amputação de órgãos (baço, rim direito, glândula supra renal direita, segmento do intestino) e "limitação da flexão do joelho direito"; (ii) ficou a padecer de uma taxa de incapacidade geral de 41 pontos; (iii) exerce profissão (pedreiro e carpinteiro de cofragens), que exige elevados níveis de força e destreza tísicas, tendo as lesões por si sofridas diminuído de forma "considerável e definitiva" a sua capacidade de trabalho, sendo embora compatíveis com o exercício da atividade habitual — sendo certo que, considerando as características da sua profissão, encontram-se limitadas, de forma irremediável, as possibilidades de, a médio prazo, progredir (ou mesmo prosseguir) na profissão habitual; sendo certo que, num mercado de trabalho particularmente exigente, a incapacidade geral do lesado praticamente inviabiliza as possibilidades de mudança para profissão alternativa compatível às suas competências, assim como dificulta ou inviabiliza as possibilidades de exercício de outras atividades económicas — afigura-se justo e adequado manter a indemnização de € 250.000 por perda de capacidade geral de ganho/dano biológico, fixada pelas instâncias.
VIII - Provando-se, ainda, que o mesmo lesado, em consequência do acidente, (i) foi submetido a cinco intervenções cirúrgicas; (ii) esteve, no total, 92 dias internado; (iii) sofreu, para além das lesões referidas em VII, manifestações ango-depressivas como humor triste e depressivo, lentificação psicomotora, anedonia, sentimentos de insegurança e desânimo (com perda da autoestima), ansiedade e angústia, cefaleias e tonturas, intolerância ao ruído, irritabilidade fácil, dificuldades de concentração, prejuízos mnésicos; (iv) no futuro e até à sua morte terá de seguir uma dieta alimentar rigorosa devido aos problemas intestinais, digestivos e sanguíneos inerentes à amputação dos respetivos órgãos; (v) as cirurgias e tratamentos a que foi submetido foram dolorosos, sendo o respectivo quantum doloris fixável em 6/7; (vi) devido às cicatrizes que para si resultaram das lesões, sente vergonha em ir à praia ou usar roupas de verão, padecendo de um dano estético permanente fixável no grau 5/7, considera-se adequado e correspondente à orientação da jurisprudência do STJ, manter a indemnização de € 100.000 por danos não patrimoniais, fixada pelas instâncias.(…)”
- Ac. STJ 19 de maio de 2020, Proc. 376/15.5T8VFR.P1.S1, ECLI:PT:STJ:2020:376.15.5T8VFR.P1.S1
- As sequelas determinam para o Autor uma incapacidade parcial permanente geral de 25, 17858 pontos, com incapacidade total para a profissão de mecânico – (cfr. Doc. de Fls. 319 e ss – Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, realizado pelo INML, com a petição, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
- Pela repercussão permanente na Atividade Profissional, “apresenta sequelas impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, em virtude das limitações nas mobilidades dos membros superior e inferiores esquerdos, por rigidez articular do joelho e cotovelos, que o impossibilitam de pegar em objetos (cfr. Doc. de Fls. 319 e ss – Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, realizado pelo INML, com a petição, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
- O A. apresenta como Dano Estético permanente de Grau 3/7.
- E Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no Grau 2, em escala de sete graus de gravidade crescente- (cfr. Doc. de Fls. 319 e ss – Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, realizado pelo INML, com a petição, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido).
- E Repercussão Permanente na atividade sexual no grau 2/7. - E Quantum Doloris de Grau 5/7
- Data de consolidação das lesões em 4/06/12.
- Profissão mecânico automóveis
Atribuiu-se a indemnização por dano não patrimonial € 100.000,00, reduzido para € 90.000,00, na proporção da responsabilidade”.
Conclui-se que a indemnização arbitrada na sentença respeita o critério legal e está compreendida dentro dos valores e parâmetros seguidos pela jurisprudência.
Contudo, considera a apelante D…, Companhia de Seguros, SA que o valor arbitrado se mostra excessivo se comparado com os valores praticados quando está em causa a indemnização do dano morte.
A este respeito é de considerar que a avaliação do dano faz-se de acordo com o caso concreto, em que as situações de perda do direito à vida não podem constituir um valor de referência, pois além do mais trata-se de realidades distintas.
Como se observa no Ac. STJ 04 de junho de 2015, Proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1 (acessível em www.dgsi.pt):”[p]ara o cálculo da referida indemnização, não se mostra adequado o confronto com a indemnização pela perda do direito à vida, cuja razão de ser é claramente diferente daquela que justifica a indemnização ao lesado que sobrevive a um acidente, do qual resulta para ele sofrimentos e sequelas mais ou menos significativas”.
Em igual sentido, o Ac. STJ de 24 de Setembro de 2009, Proc. nº 09B0037 (acessível em www.dgsi.pt,): “A compensação pela perda do direito à vida assenta em razões manifestamente diversas daquelas que justificam uma indemnização por outros danos não patrimoniais, o que torna inadequada a comparação entre os montantes arbitrados”.
O valor arbitrado não se mostra excessivo perante a gravidade da situação em causa, pois apesar de o autor se encontrar consciente, encontra-se num estado de absoluta dependência para os mais elementares atos da vida. Vivo sim, mas sem vida.
O valor sugerido pela apelante - € 126.000,00 - não se mostra de todo adequado para compensar os danos sofridos.
A este respeito é de salientar o Ac. STJ 11 de abril de 2019, Proc. 5686/15.9T8VIS.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt), que impedido de reapreciar a decisão, por motivos processuais, não deixou de marcar posição sobre a concreta medida da indemnização, decidindo: “[p]eca por defeito a indemnização de €130,000,00, por danos não patrimoniais, arbitrada à vítima de acidente de viação, com culpa exclusiva do lesante e que ficou em estado vegetativo persistente. Tal montante não pode ser alterado pelo STJ, porquanto a A. o aceitou expressamente e sendo tal valor apenas questionado pela R., a tanto obsta o princípio da proibição da “reformatio in pejus””.
Tais considerandos contribuem para aferir da justeza da decisão que fixou a indemnização em € 200.000,00.
Considerando a posição do autor na apelação, pouco mais haverá a referir, porque sugere a alteração ponderando a jurisprudência, o que já foi considerado.
Daí entendermos, face ao critério legal, natureza compensatória da indemnização e valores fixados na jurisprudência, ponderando-se a culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do lesante, as lesões sofridas, as sequelas de que o lesado ficou afetado, que se mostra equilibrado e ajustado de acordo com um juízo de equidade manter o valor arbitrado de € 200.000,00 (duzentos mil euros).
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Improcedem as conclusões na apelação da ré D…, Companhia de Seguros, SA e procedem, em parte, as conclusões na apelação do autor.
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- Dos danos a liquidar em sentença -
Nos pontos 23 a 25 das conclusões de recurso do apelante autor insurge-se o autor contra o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de liquidação em sentença das despesas que se venham a realizar com tratamentos de fisioterapia, consultas, ajudas medicamentosas, fraldas, cremes entre outras necessidades que se venham a revelar importantes para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas.
O autor alegou que à data da instauração da ação não tinha conhecimento por não ser possível estimar com o mínimo de rigor se devido às sequelas das lesões poderá ocorrer o agravamento da sua situação clínica; se carecerá terá que vir a efetuar alguma ou algumas cirurgias; se terá que vir a ser sujeito a mais e/ou a novos tratamentos e novas ajudas medicamentosas; qual o custo, no futuro, da aquisição de fraldas, cremes e outros produtos.
Formulou ainda o pedido de liquidação de tais danos em incidente de liquidação de sentença, a intentar nos termos do art. 564º do C.C.
Na sentença apreciando o pedido tomou-se a seguinte decisão:
“O Autor relega para liquidação de sentença, caso ocorra um agravamento da sua situação clínica; no caso de ter de vir a efetuar alguma ou algumas cirurgias, ser sujeito a mais e /ou novos tratamentos e novas ajudas medicamentosas; qual o custo, no futuro, da aquisição de fraldas, cremes e outros produtos;
Ora, o Autor já se encontra numa situação de quase total incapacidade (95 pontos de IPG), não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar desse estado para o que quer que seja.
Por outro lado, não resulta dos relatórios médicos juntos aos autos, nomeadamente do relatório do IML, da possibilidade futura de agravamento dessa quase total incapacidade ou da previsibilidade de realização de futura de cirurgias ou de novos tratamentos ou ajudas medicamentosas para além de ajudas técnicas permanentes já indemnizadas pela presente sentença condenatória, pelo que improcede tal pedido”.
Cumpre pois apreciar se subsistem outros danos cujo montante não é possível liquidar.
A obrigação ilíquida é aquela em que o seu valor não está apurado.
Prevê o art. 864º/2 CC que na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Contudo, a liquidação só visa concretizar o objeto da condenação, com respeito do caso julgado decorrente da ação declarativa, onde se fixou a obrigação[22].
Como observa SALVADOR DA COSTA[23] a determinação da: “[…] existência do dano, não pode ser relegada para o referido incidente”.
A liquidação da obrigação não concede uma nova oportunidade de provar os danos, mas tão só de os quantificar.
Resulta provado:
26. Por causa das lesões sofridas com o embate, o autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
34. O autor necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa.
45. O autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde.
Argumenta o autor que resulta provado sob o ponto 34 que o autor necessitará de ajudas técnicas permanentes nele discriminadas; no relatório do INML consta que o autor irá carecer de ajudas medicamentosas regulares, tratamentos médicos regulares (para evitar o retrocesso ou agravamento das lesões), de ajudas técnicas, uso de fraldas e cremes.
Na determinação dos danos cumpre ter presente apenas os factos provados, pois o relatório do IML constitui um elemento de prova (prova pericial), o qual serviu de fundamento para a prova dos factos enunciados.
Dos factos provados resulta que por causa das lesões sofridas com o embate, o autor foi sujeito a múltiplos tratamentos, não evidenciando possibilidades médicas de vir a recuperar do estado de quase total incapacidade, designadamente para cuidar de si e/ou para, futuramente, levar a cabo qualquer atividade profissional.
A situação de incapacidade motora é irreversível e tanto quanto o conhecimento médico permite alcançar não há possibilidade de reverter tal situação.
Não se provou que venha a carecer de efetuar alguma ou algumas cirurgias.
No que respeita a adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos, ajuda de terceira pessoa, despesas com tratamentos médicos e especializados, ajudas medicamentosas verifica-se que as despesas com tais procedimentos estão já consideradas na indemnização arbitrada com assistência vitalícia/tratamentos especializados.
Efetivamente, no cálculo da indemnização, levou-se em consideração: “que o Autor irá carecer, até ao fim da sua vida, de ajuda por parte de técnicos especializados, nomeadamente de profissionais de saúde, necessitará de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio, local de trabalho ou veículos; ajuda de terceira pessoa; (ponto 34 e 43).
A casa onde o Autor vivia com a mãe não tem condições, nomeadamente em termos de acessibilidade e conforto, para receber o Autor, uma vez que carece de isolamento térmico adequado e possui elevada quantidade de escadas.
O Autor terá que ir habitar e ser globalmente acompanhado em instituição com condições semelhantes às da I…, onde, à presente data, se encontra acolhido.
Permanecer numa instituição como a I… tem um custo médio mensal de 1.500,00€ - que não inclui medicamentos, fraldas. (pontos 44 a 47)”.
Contudo, a indemnização arbitrada não contempla o custo com aquisição de fraldas e cremes, mas também não se provou que o autor careça de tais produtos. Aliás, nada se alegou em concreto sobre este aspeto.
Não se provando tal despesa, não se justifica relegar para liquidação a fixação do seu montante.
Conclui-se, assim, que a sentença não merece censura ao julgar improcedente a pretensão do autor quanto ao pedido de liquidação.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 23 a 25.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas:
- na ação, pelo autor e ré, na respetiva proporção, que se fixa em ¼ e 3/4, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor;
- na apelação do autor, pelo autor e apelada ré, na proporção do decaimento, que se fixa em 2/5 e 3/5, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor;
- na apelação da ré, pela ré.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação da ré D…, Companhia de Seguros, SA e parcialmente procedente a apelação do autor B… e nessa conformidade:
- julgar improcedente a reapreciação da decisão de facto (apelação da ré e autor);
- revogar em parte a sentença e condenar a ré D…, Companhia de Seguros, SA a pagar ao Autor B…, representado pela sua mãe C… a quantia de € 558.062,46 (quinhentos e cinquenta e oito mil e sessenta e dois euros e quarenta e seis cêntimos) pelos danos patrimoniais sofridos, confirmando-se no mais a sentença.
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Custas:
- na ação, pelo autor e ré, na respetiva proporção, que se fixa em 1/4 e 3/4, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor;
- na apelação do autor, pelo autor e apelada ré, na proporção do decaimento, que se fixa em 2/5 e 3/5, respetivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor;
- na apelação da ré, pela ré.
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Porto, 09 de dezembro de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[3] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 225.
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272.
[5] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, pag. 569.
[6] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[7] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[8] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, Setembro 2008, 2ª ed. revista e atualizada pag. 299 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 (ambos em www.dgsi.pt).
[9] Entre outros podem consultar-se: Ac. do S.T.J. de 6.1.87, In B.M.J. n.º 362, pág. 488 e de 3.3.90, In B.M.J. n.º 359, pág. 534 e Ac. da Rel. de Lisboa de 26.03.92, In C.J. Ano XVII, T2, pág. 152, Ac. Rel. Porto 14.07.2008 – JTRP 00041584 – www.dgsi.pt, Ac, STJ 02.12.2008 CJ STJ XVI, III, 168; Ac STJ de 05 de fevereiro de 1998, Proc. 97A1002 e de 28 de novembro de 2013, Proc 372/07.6TBSTR.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[10] Podem consultar-se neste sentido, entre outros: Ac. STJ de 02.12.2008 CJ STJ XVI, III, 168 e Ac. Rel. Lisboa de 26.01.1995 CJ XX, I, pag. 101.
[11] Neste sentido, entre outros Ac. STJ 16.11.2010 – Proc. 1612-05.1TJVNF.P1.S1; Ac STJ 23.11.2010 – Proc. 456/06.8 TBVGS.C1.S1; Ac. STJ 16.12.2010 – Proc. 270/06.0TBLSD.P1 – www.dgsi.pt
[12] ((Ac. STJ 19.04.2012 Proc. 3046/09.0TBFIG.S1; Ac. STJ 16.11.2010 – Proc. 1612-05.1TJVNF.P1.S1; Ac. STJ 17.05.2011 Proc. 7449/05.0TBVFR.P1.S1., Ac. STJ 20.10.2011 – Proc. 428/07.5TBFAF.G1.S1 – www.dgsi.pt.
[13] Cfr Ac. STJ 02.10.2007, CJ STJ Ano XV, III, 68 e Ac. STJ 14.09.2010 Proc. 797/05.1TBSTS.P1 – www.dgsi.pt
[14] Ac STJ 19 de Abril 2012, Proc. 3046/09. 0TBFIG.S1, Ac. STJ 10 de Março 2016, Proc. 1602/10.2TBVFR.P1.S1, ambos acessíveis na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj.
[15] Ac. STJ 19 de abril de 2018, Proc. 196/11.6TCGMR.G2.S1 (disponível em www.dgsi.pt): “[…]as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa da Autora), a extrema gravidade das lesões sofridas por esta, os dolorosos tratamentos a que foi sujeita, com destaque para as duas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, o longo período de clausura hospitalar e de tratamentos, as deslocações que teve que realizar para curativos e consultas, quer ao Porto quer a Vizela, a enorme incomodidade daí resultante, as graves e extensas sequelas anátomo-funcionais decorrentes do acidente, que se traduzem num deficit funcional permanente de elevado grau (26 pontos), correspondente a uma IPP de 49,2495% e a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7, as intensas dores sofridas (de grau 5, numa escala de 1 a 7), o desgosto e amargura de, com 43 anos de idade, se ver fisicamente limitada e sem perspetivas futuras, em termos laborais”.
[16] Cfr. Ac. STJ 17 de setembro de 2014, Proc. 158/05.2PTFUN.L2.S2, disponível em www.dgsi.pt e ainda, jurisprudência ali citada.
[17] Ac. STJ 10 de setembro de 2009, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Ac. STJ 10 de setembro de 2009, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Ac. STJ 23.09.2008 e Ac.22.10.2009 disponíveis em www.dgsi.pt.
[20] Ac. Rel. Porto de 07.07.2005 - JTRP00038287 - www.dgsi.pt.
[21] Cfr. Ac. STJ 19 de fevereiro de 2015, Proc. 99/12.7TCGMR.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[22] Cfr. SALVADOR DA COSTA Os Incidentes da Instância, 8º edição, Almedina, Coimbra, 2016, pag.247
[23] SALVADOR DA COSTA Os Incidentes da Instância, ob. cit., pag. 248