Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
392/13.1TTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO JOSÉ RAMOS
Descritores: TRANSPORTE GRATUITO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20140630392/13.1TTPRT.P1
Data do Acordão: 06/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: Os associados da Autora - “B…, S.A.- reformados e ex-trabalhadores da C…, sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, integrada no domínio do sector empresarial do estado (SEE), independentemente da forma como os seus contratos cessaram, estão contemplados pela oblação prevista no artigo 144º, nº 1 da Lei Lei nº 66-B/2012, de 31/12, não violando qualquer princípio constitucional o nº 3 da citada norma que impõe a sua imperatividade e a sua prevalência sobre instrumentos de regulamentação colectiva e contratos de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

PROCESSO Nº 392/13.1TTPRT.P1
RG 388

PARTES:
RECORRENTE: B…, S.A.
RECORRIDA: C…, S. A.

Valor da acção: €30.001,00
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Acordam os Juízes que compõem a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
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I – RELATÓRIO
1.
“B…, S.A.”, com sede na Rua …, .., Porto, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra “C…, S.A.”, com sede na …, …., ..º Piso, no Porto, pedindo que se julgue procedente, por provada, a acção e em consequência, ser:
a) declarada nula a decisão da R. de bloquear os passes dos associados da A., por ser ilegal, violando o AE vigente na R., e os acordos de cessação do contrato de trabalho, por mútuo acordo que celebrou com os associados da A.
b) declarado materialmente inconstitucional o nº 3 do artº 144º da Lei nº66-B/2012, de 31 de Dezembro e, em consequência ser:
c) reconhecido aos reformados da A., quer tenham cessado o contrato por motivo de reforma, quer por acordo mútuo, o direito à utilização dos passes da rede geral da R., nos termos acordados.
d) condenada a R. a repor a reactivação dos passes da sua rede geral distribuídos aos associados da A. que bloqueou ao abrigo dos cortes previstos no Orçamento de Estado de 2013 e
e) relegado para execução de sentença a possibilidade de cada associado vir exercer os seus direitos após o Tribunal decretar a anulação do bloqueamento dos seus passes.

Alegou, para tanto, e em síntese, que representa os antigos trabalhadores da ré e desde há mais de 45 anos as relações de trabalho entre a ré e seus trabalhadores regem-se por várias regulamentações colectivas de trabalho.
No âmbito dessa regulamentação colectiva, tem estado previsto que aos trabalhadores reformados, cônjuges, viúvos daqueles e filhos menores ou inválidos, são fornecidos, gratuitamente, passes da rede geral, sendo que esta atribuição constitui uma compensação pelo facto de não existirem aumentos nas tabelas salariais.
Desde 1998 tais passes passaram a ser atribuídos também aos trabalhadores que cessaram os seus contratos de trabalho com a ré, por mútuo acordo, sendo uma das condições desse mesmo acordo.
Desde 2 de Fevereiro deste ano todos os trabalhadores reformados da ré, independentemente do motivo de cessação dos contratos, viram bloqueados os seus passes, por decisão unilateral da ré, tendo esta fundado a sua decisão na Lei de Orçamento de Estado para 2013 – Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro.
Tal norma não se aplica à situação em apreço uma vez que a atribuição de tais passes constitui uma forma de retribuição. A não se entender assim, a norma em causa é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13º, 17º, 18º, 26º, 56º, n.º 3, 59º,n.º 1, a) e 72º, n.º 1, todos da CRP.
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2.
Foi realizada a audiência de partes, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação.
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3.
A Ré apresentou contestação, quer por excepção, quer por impugnação.
Invoca a ilegitimidade activa, nomeadamente pelo facto de a autora não representar a totalidade dos ex-trabalhadores da ré e a ineptidão da petição inicial por ser ininteligível a causa de pedir.
Mais alega que o artigo 144º, n.º 3 da Lei de Orçamento de Estado para de 2013 aplica-se à utilização gratuita dos transportes públicos por parte dos ex-trabalhadores da ré, tendo em conta o facto de a ré fazer parte do sector empresarial do Estado.
Pugna pela improcedência da acção.
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4.
Respondeu a Autora defendendo a improcedência das excepções deduzidas pela Ré, pedindo, ainda, a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização no montante de €2.500,00, acrescido de juros até integral pagamento e em multa condigna, por litigar de má-fé processual.
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5.
Respondeu a Ré pedindo que seja rectificado o lapso de escrita, no sentido de onde se lê “D…, S.A.” deve ler-se C…, S.A.; no que respeita aos artigos 6.º a 14.º deve o articulado sob resposta ser considerado como não escrito e, consequentemente, desentranhado.
No que respeita a condenação da ré como litigante de má-fé não deve a mesma ser admitida, pelo que deve a resposta ser julgada improcedente por não provada, concluindo-se no demais como na contestação.
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6.
Findos os articulados, foi proferido despacho que indeferiu o desentranhamento da resposta da Autora aos artigos 6º a 14º, julgou-se ainda improcedente a excepção da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, bem como a excepção de ilegitimidade invocada. Entendendo que os autos já continham todos os elementos necessários para a decisão foi proferida sentença, cuja parte decisória assim se expressa:
“Por todo o exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a ré dos pedidos.
Sem custas por delas estar isentas a autora – artigo 4º, n.º 1, f) do RCP.
Registe e notifique.”
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7.
Inconformada com esta decisão dela recorre a Autora, pugnando pela sua revogação, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª –Na explicação da conclusão, o Meritíssimo Juiz a quo considera como retribuição, o direito a transporte gratuito por parte dos associados da autora e respectivos familiares.
2ª-sendo os passes considerados retribuição não são, pois, gratuitos;
3ª- provado que ficou que os passes da rede geral da Recorrida, iguais aos que foram suspensos aos associados da ora Recorrente, custam €46,80 cada um, representam assim tal retribuição, com que os mesmos contavam para si e outro tanto para o seu cônjuge;
4ª- nos termos da mesma lei, a ora Recorrida mantém os passes para os trabalhadores no activo, assim estabelecendo uma substancial diferença entre situação de trabalhador no activo e a de aposentado;
5ª- a situação financeira da ora Recorrida não é da responsabilidade dos seus reformados;
6ª- foi a ora Recorrida quem negociou as cláusulas do AE e os acordos de cessação e, por isso, sabe muito bem que os passes funcionaram como “moeda de troca” pela não integração de aumentos nas tabelas salariais e como compensação pela cessação do contrato dos trabalhadores que aderiram ao seu convite;
7ª- a ora Recorrida sabe muito bem que da negociação colectiva nada resultou gratuitamente e que em vez de dinheiro entregou aos reformados e trabalhadores que cessaram por mútuo acordo o contrato de trabalho, associados da ora Recorrente, os referidos passes;
8ª- se a ora Recorrida em vez dos passes tivesse entregue dinheiro, correspondente ao seu custo calculado em função da esperança de vida, aos seus reformados e aos trabalhadores que cessaram o contrato por mútuo acordo, não seria razoável nem aceitável que agora viesse pedir o seu reembolso;
9ª- É assim desrazoável e desproporcional a limitação imposta aos associados da ora Recorrente.
10ª- A R. sabe muito bem que da negociação colectiva em que ela foi parte e subscritora dos acordos encontrados, nada resultou gratuitamente e que os passes representam para os seus beneficiários dinheiro correspondente ao seu custo actualizado e que, com a sua suspensão está, unilateralmente, a subtrair-lhes tal verba e, no caso do acordo mútuo de cessação a reduzir-lhe a compensação e, assim, a incumprir o acordado, não condicionado a qualquer vicissitude.
11ª- Assim, a R. bloqueou os ditos passes, porque fez uma errada interpretação do nº 3 doartº 144º da Lei66/B/2012, bem sabendo que os passes são retribuição e, por isso, não são gratuitos.
12ª- A R. ora Recorrida, ao considerar os passes gratuitos, considerou-os abrangidos pelo nº3do artº144º da Lei do Orçamento do Estado, quando não estavam.
13ª- E, assim, para os bloquear socorreu-se de uma norma materialmente inconstitucional:
14ª- com efeito, os reformados associados da ora Apelante, já sacrificados pelas medidas de austeridade que são do conhecimento geral, com esta ablação foram discriminados em relação aos demais reformados, pelo facto haverem tido vínculo à R. e ainda por não ter entrado no cálculo da sua reforma, a retribuição correspondente aos passe cuja utilização, agora, lhes foi bloqueada.
15ª- O nº3 do artº 144º da Lei 66/B/2012, viola o princípio da igualdade consagrado no artº13º da Constituição da República Portuguesa; esse princípio é violado na sua dimensão de “igualdade perante a repartição de encargos públicos”.
16ª- Está-se perante uma dualidade de tratamento entre cidadãos a quem os sacrifícios são exigidos pelo Estado essencialmente através de impostos e outros cidadãos a quem os sacrifícios são exigidos não só por essa via, mas também, e cumulativamente através de suspensão de direitos relevantes que integram a sua retribuição por terem sido trabalhadores de um empresa transportadora do Sector Empresarial do Estado.
17ª- Atenta a idade dos reformados, associados da ora Apelante, entre 65 e os 90 anos, este corte imposto pela R. viola o artº 72º da CRP que consagra no seu nº 1 “as pessoas idosas têm direito às à segurança económica e às condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeite a sua autonomia pessoal e evite e superem o isolamento ou a marginalização social e no seu nº 2 “ a política de terceira idade engloba medidas de carácter económico e social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal”.
18ª- Os passes dos reformados, associados da ora Recorrente, são um direito adquirido pelos associados da ora Recorrente com o que contavam na sua economia e a sua suspensão inesperada, desta forma, impostos pelo Estado por serem reformados da ora Recorrida quando a questão da responsabilidade do Estado é da responsabilidade de todos, consubstancia uma discriminação em razão do vínculo e frustra a sua confiança, assim violando o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artº 2º da CRP.
19ª- o nº 3 do artº144º da Lei 66/B/2012 é absolutamente indiferente à segurança do negócio jurídico, à confiança que os sujeitos do negócio depositaram no sistema jurídico, de acordo com o qual negociaram um contrato que estabeleceu direitos e deveres;
20ª- os reformados associados da ora Apelante vêem assim modificado, por vontade unilateral de um dos contraentes, o contrato que celebraram, por vontade unilateral de um dos contraentes, em clara violação do artº 406º do Código Civil, sendo que “pacta sunt servanda”.
21ª- Os passes integram o cômputo da compensação pela cessação do contrato.
22º- A sentença ora em crise não se pronuncia sobre o direito dos reformados associados da R. que cessaram o contrato por mútuo acordo, matéria que foi invocada e que o Meritíssimo Juiza quo deveria apreciar, nos termos do disposto no artº72º do Código do Processo do Trabalho;
23ª- a douta decisão viola os artºs 2º, 13º,17º,18º,26º,56º nº3, 59ºnº1 e 72º da CRP, os artºs 406º do código Civil e o artº 615ºnº1 al. d) do CPC.
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8.
A apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido, assim concluindo:
I. Nada existe a apontar a douta sentença a quo que fundamentadamente absolveu a aqui Ré dos pedidos.
II. O artigo 144.º do Orçamento de Estado para o ano de 2013, Lei n.º 66-B/2012 de 31 de Dezembro, com natureza imperativa vedou a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários, fluviais e ferroviários aos Associados da aqui Recorrente.
III. Atento o teor do n.º 3 daquele artigo é evidente que se aplica também ao caso dos associados da Recorrida, pelo que a aqui Recorrida, como sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, integrada no denominado Sector Empresarial do Estado, estava obrigada a dar cumprimento aquela norma.
IV. Os passes atribuídos aos reformados e familiares são gratuitos, nem outra coisa resulta da sentença, ora recorrida, sendo apenas a questão colocada em termos teóricos pelo Meritíssimo Juiz.
V. Sendo, aliás, a solução a mesma quer os passes atribuídos aos reformados fossem ou não considerados retribuição, atenta a natureza imperativa do artigo 144.º, n.º 3 da da Lei do Orçamento de Estado.
VI. Não existe dúvidas que se trata de uma regalia de transporte conforme melhor se pode ver pelas Actas 3/98 de 19.02 e 7/99 de 12.03 do Conselho de Administração da Recorrida e também pelo Acordo de Empresa.
VII. Nunca os passes gratuitos funcionaram como alternativas aos aumentos nas tabelas salarias, nem como compensação pela cessação do contrato de trabalho.
VIII. Nunca tendo sido tal benefício um incentivo a qualquer cessação por mútuo acordo ou essencial para a formação de vontade em qualquer acordo de cessação.
IX. Nem tal resulta de nenhuma das disposições dos acordos de cessação do contrato de trabalho.
X. Não existindo qualquer violação dos contratos celebrados.
XI. Trata-se assim de uma regalia atribuída pela Ré, ora Recorrida, a trabalhadores de longa data.
XII. Mesmo considerando, por mera hipótese académica e sempre sem conceder, que os passes são efectivamente retribuição, mesmo assim a aqui Recorrida teria que proceder ao cancelamento dos passes em consequência da norma constante do Orçamento de Estado.
XIII. Tal norma nunca foi julgada inconstitucional, tendo o Orçamento de Estado de 2013, sido promulgado.
XIV. Não restam dúvidas que é possível a limitação por via legislativa, ao acordado em negociação colectiva.
XV. O direito a transporte não integra o núcleo essencial dos direitos dos trabalhadores, nem se pode sequer classificar como “grave” a perda do direito ao transporte gratuito.
XVI. Esta norma vem eliminar a descriminação positiva que existia favorável aos reformados das empresas de transporte público em relação aos reformados em geral que, para andar de transportes públicos necessitam de comprar o respectivo título, não se violando assim qualquer princípio da igualdade.
XVII. Pelo contrário os reformados ex–trabalhadores da C… na sua generalidade, têm uma situação de privilégio em relação aos demais reformados do País dispondo de um “Fundo de Pensões” que, lhes assegura um rendimento mensal superior à pensão mínima destes.
XVIII. O Orçamento de Estado de 2013 foi um dos mais gravosos de sempre com elevadíssimos aumentos fiscais e cortes nas remunerações e drásticas reduções de pessoal em concreto no sector dos transportes onde se procura a autos sustentabilidade.
XIX. Encontrando-se um país num estado de grave crise económica.
XX. Os passes gratuitos representam um custo para empresa, representando uma dupla perda de receita sendo certo que quem viaja gratuitamente não compra o título necessário à viagem e está a reduzir a disponibilidade de lugares vagos no meio de transporte pretendido.
XXI. Nem se pode aceitar que o sacrifício exigido aos ex-reformados tendo em conta o interesse público subjacente e a conjetura económica do país não se pode aceitar que seja contrário ao direito a uma existência condigna prevista no artigo 59.º n.º 1 al. a) da Constituição da República Portuguesa (CRP).
XXII. Sendo esta limitação razoável e proporcional.
XXIII. Nem o facto de tal medida também constar do Orçamento de Estado para 2014 lhe retira o caracter de “temporária”.
XXIV. Sempre se dirá mesmo que, por mera hipótese académica, se considere como retribuição o transporte gratuito não existe qualquer regra que estabeleça de forma directa e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários.
XXV. O que se proíbe, é que a entidade empregadora, tanto pública como privada diminua arbitrariamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
XXVI. Não existe também qualquer violação do artigo 72.º da CRP.
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9.
AExª. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta deu o seu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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10.
Respondeu ao aludido parecer a recorrente.
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11.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento e dado o vencimento do relator houve necessidade da sua mudança.
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II - QUESTÕES A DECIDIR
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, temos que as questões a decidir são as seguintes:
A – NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
B – VIOLAÇÃO DAS NORMAS DOS ARTIGOS 23º, 72º E 2º DA CRP E 406º DO CC
C – INAPLICABILIDADE DA NORMA DO Nº 3 DO ARTIGO 144º DA LEI Nº 66-B/2012, DE 31/12 (LOGE)
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III – FUNDAMENTOS
1.
A DECISÃO RECORRIDA DEU COMO PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS, OS QUIAS NÃO FORAM OBJECTO DE QUALQUER IMPUGNAÇÃO:
1. A ora A., B…, SA é uma pessoa colectiva de utilidade pública nos termos do Dl nº 460/77,de 07.11,
2. Esta B… foi constituída por escritura pública de31 de Janeiro de 1978, iniciada a fls.76 do Livro nº460-C das notas do2º Cartório Notarial do Porto, com estatutos publicados no DR. de 15de Janeiro de 1987, III Série, nº12. II
3. São associados da A. os reformados e pensionistas de sobrevivência dos Regulamentos dos Empregados Superiores e Caixa de Socorros e Pensões, de 21.05.1927, da E…, ora designada por “C…, SA.”
4. Os representados pela ora A. foram trabalhadores da ora R., tendo cessado o contrato por reforma, alguns deles há mais de 30 anos e outros por mútuo acordo no âmbito dos programas de redução de efectivos, alguns deles há mais de 23 anos.
5. A R. é uma Sociedade Anónima de capitais exclusivamente públicos, estando integrada no Sector Empresarial do Estado.
6. Na sequência do acordado nos vários acordos de empresa, a ora R. forneceu, a todos os trabalhadores no activo, ou reformados ou pensionistas e seus familiares que reuniam as descritas condições, passes da sua rede geral.
7. E, na sequência do contrato individual de trabalho, no início da sua execução, no acto da admissão, a R., fornecia, aos novos trabalhadores, independentemente de serem ou não filiados nos Sindicatos subscritores do AE, passes da sua rede geral, para si e para os seus familiares que a ele tivessem direito, o que, no decurso do tempo da sua validade e respectiva renovação, era controlado pelos respectivos serviços da Requerida.
8. Decorrente de negociação colectiva, desde há mais de há mais de 45anos que aos reformados da C…, associados da A., vem sendo garantido o direito vitalício aos passes de rede geral igual aos do público.
9. Aquando da cessação do contrato, por reforma, ou por mútuo acordo no âmbito da redução do efectivo, foi entregue pela R. a cada um dos reformados, associados da A., no qual consta a sua identificação e a matrícula geral que sempre teve, desde a sua admissão, seguida de um “R”, traduzindo a sua situação de reformado e outro também da rede geral, nos mesmos moldes, para o seu cônjuge, contra a evolução do passe que detinham enquanto trabalhadores no activo.
10. Os referidos passes eram renovados pela Requerida, nas datas que neles constavam e o seu custo é actualmente de € 46,80 cada um, montante este sujeito a actualização, em regra anual.
11. No início do ano de 1990 a R. implementou um programa de redução do efectivo, através de um incentivo à cessação por mútuo acordo dos trabalhadores com idade próxima dos 57 anos que, na altura, lhes permitia a antecipação da reforma.
12. Então para os trabalhadores, ora representados pela A., que cessassem o contrato de trabalho por mútuo acordo e que tivessem uma antiguidade igual ou superior a 25 anos, a ré, por deliberação do seu Conselho de Administração que confirma na acta nº07/00, de 12de Março, atribuiu passe de rede geral, a título gratuito aos trabalhadores da C… e seus cônjuges com antiguidade mínima na Empresa de 25 anos (arredondamento para este mínimo a partir dos 24 anos e seis meses).
13. A R., na sequência dessa deliberação, forneceu aos trabalhadores que, nas referidas situações, cessaram o contrato, um passe da rede geral da mesma, onde consta a sua matrícula geral que sempre cada um teve, desde a sua admissão, seguida da letra “R”, de reformado e um outro igual para o seu cônjuge e sendo o caso para filho deficientes, que foram sendo renovados pela mesma.
14. No dia 02 de Fevereiro de 2013, os representados da ora A., reformados, independentemente do motivo da cessação do contrato, viram bloqueados os seus passes, por acção da ré;
15. Desde essa data estão os reformados, mesmo os que cessaram o contrato por mútuo acordo, a serem notificados, por carta de 31 de Janeiro de 2013, daquela decisão;
16. Na referida carta, embora dirigida individualmente, mas com igual teor para todos, a R. invoca para a cessação da utilização gratuita de transporte nos veículos das empresas afectas ao serviço público, a Lei nº 66-B/2012 de 31 de Dezembro, de 31 de Dezembro.
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2.
DO OBJECTO DO RECURSO
2.1.
NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

Alega a Recorrente que«[a] sentença ora em crise não se pronuncia sobre o direito dos reformados associados da R. que cessaram o contrato por mútuo acordo, matéria que foi invocada e que o Meritíssimo Juíza quo deveria apreciar, nos termos do disposto no artº 72º do Código do Processo do Trabalho».

O artigo 615º do CPC, sob a epígrafe de “causas de nulidade da sentença”e na parte que ora releva, refere que:
1- É nula a sentença quando:
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar […]”.

As nulidades podem ser processuais, se derivam de actos ou omissões que foram praticados antes da prolação da sentença; podem também ser da sentença, se derivam de actos ou omissões praticados pelo Juiz na sentença.
Aquelas, constituindo anomalia do processado, devem ser conhecidas no Tribunal onde ocorreram e, discordando-se do despacho que as conhecer, pode este ser impugnado através do respectivo recurso. Porém as nulidades da sentença, tendo sido praticadas pelo Juiz, devem ser invocadas no requerimento de interposição do recurso da forma imposta pelo artigo 77º, nº 1, do CPT – expressa e separadamente (a arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”).
A referida norma do CPT encontra a sua razão de ser na circunstância da arguição das nulidades serem, em primeira linha, dirigidas à apreciação pelo juiz pelo tribunal da 1ª instância e para que o possa fazer.
Radica no “princípio da economia e celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade”[1].
No entanto, recentemente, o Tribunal Constitucional, pelo seu Acórdão n.º 304/2005, de 2005-06-08, proferido no Processo nº 413/04 decidiu, nomeadamente, o seguinte:
Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.ºs. 2 e 3), com referência aos n.ºs. 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro [que corresponde, com alterações, ao Art.º 72.º, n.º 1 do Cód. Proc. do Trabalho de 1981], na interpretação segundo a qual o tribunal superior não pode conhecer das nulidades da sentença que o recorrente invocou numa peça única, contendo a declaração de interposição do recurso com referência a que se apresenta arguição de nulidades da sentença e alegações e, expressa e separadamente, a concretização das nulidades e as alegações, apenas porque o recorrente inseriu tal concretização após o endereço ao tribunal superior[2].

Acontece, porém, que no caso em apreço, o recorrente não invocou a nulidade da sentença no requerimento de interposição de recurso, mas apenas na respetiva alegação e nas conclusões. Por conseguinte, reconhecendo a razão da Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer, ao levantar essa questão, uma vez que o procedimento utilizado pela autora/apelante, para a arguição da nulidade da sentença, não está de acordo com o legalmente exigido em processo de trabalho.
Assim, não se conhecerá da mencionada nulidade, uma vez que, não tendo sido dado cumprimento ao estabelecido no artigo 77º, nº 1, do CPT, a sua arguição é extemporânea.
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2.2.
VIOLAÇÃO DAS NORMAS DOS ARTIGOS 23º, 72º E 2º DA CRP E 406º DO CC

Alega a recorrente que um passe igual ao que a Ré suspendeu aos seus associados corresponde, conforme ficou provado, actualmente a um custo de € 46,80. Se assim é, refere, constituiem tais passes retribuição.
E não sendo gratuitos, não integram o nº 3 do artigo 144º da Lei nº 66-B/2012, de 31/12[3], pelo que a Ré os não podia bloquear.
Alega ainda que o nº3 do artigo 144º da LOE2013, viola:
- O princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa; esse princípio é violado na sua dimensão de “igualdade perante a repartição de encargos públicos”.
- O artigo 72º da CRP que consagra no seu nº 1 “[a]s pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeite a sua autonomia pessoal e evite e superem o isolamento ou a marginalização social” e no seu nº 2 “ [a] política de terceira idade engloba medidas de carácter económico e social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal”.
- O princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da CRP.
- O artigo 406º do Código Civil.

Vejamos:

2.2.1.
A LOE2013, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2013, estatui no seu artigo 144º, sob a epígrafe “Transporte gratuito”, o seguinte:
1 - É vedada a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários, fluviais e ferroviários.
2 - Ficam excluídos do disposto no número anterior:
a) Os magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, juízes do Tribunal Constitucional, oficiais de justiça e pessoal do corpo da Guarda Prisional, para os quais se mantêm as normas legais e regulamentares em vigor;
b) O pessoal com funções policiais da Polícia de Segurança Pública, os militares da Guarda Nacional Republicana, o pessoal de outras forças policiais, os militares das Forças Armadas e militarizados, no ativo, quando em serviço que implique a deslocação no meio de transporte público;
c) Os trabalhadores das empresas transportadoras, das gestoras da infraestrutura respetiva ou das suas participadas, que já beneficiem do transporte gratuito, quando no exercício das respetivas funções, incluindo a deslocação de e para o local de trabalho.
3 - O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.

Resulta claramente deste artigo que é vedada a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários, fluviais e ferroviários (nº 1), com as excepções previstas no nº 2, nas quais não se incluem os associados da recorrente e, por outro, a sua imperatividade e a sua prevalência sobre instrumentos de regulamentação colectiva e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado sobre os mesmos (nº 3).

Alega a recorrente que os passes que eram concedidos pela Ré aos seus associados são considerados retribuição, não sendo gratuitos e, que isso, foi reconhecido pela sentença recorrida e, como tal, não se lhes pode aplicar regime consagrado no artigo 144º da LOE2013.

Procedendo à leitura da sentença recorrida, não vislumbramos que na mesma seja reconhecido como retribuição a atribuição dos aludidos passes. O que se diz na mesma é que «parece-nos claro que a matéria em causa nos autos – direito a transporte público gratuito por parte dos associados da autora e respectivos familiares, ainda que considerado como retribuição– não integra o núcleo essencial dos direitos dos trabalhadores, nomeadamente tendo em conta o teor do artigo 59º da CRP».

Nos termos do artigo 258º do CT «[c]onsidera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho»(nº 1), nela se incluindo «a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie»(nº 2) e «presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador»(nº 3).
A retribuição é, pois, um conjunto de valores, expressos ou não em moeda, a que o trabalhador tem direito, por título contratual e normativo, correspondentes a um dever da entidade patronal.
A atribuição de um passe da rede geral pela entidade empregadora a um seu trabalhador, pode ou não constituir retribuição, conforme a finalidade da sua utilização seja ou não apenas para fins profissionais ou também possa ser utilizado independentemente dessa finalidade, ou seja, para fins pessoais e egoístas do trabalhador.
Assim, tais passes revestirão a natureza de contraprestação quando a sua utilização pelo trabalhador lhe acarrete um benefício de natureza económica, por evitar a aquisição de um passe igual ou bilhete na utilização de tais transportes.
Neste domínio, deverá distinguir-se a situação de mera tolerância da entidade patronal na utilização de tais passes na vida pessoal do trabalhador, que não implica um direito integrante da retribuição, da existência de um direito a essa utilização, com um valor económico a considerar na quantificação da retribuição.
Com efeito, só integram a retribuição as prestações a que o trabalhador tenha direito, por título contratual ou normativo e que, portanto, correspondam a um dever da entidade empregadora. Afastam-se, consequentemente, do objecto da retribuição as meras liberalidades, os valores atribuídos com "animus donandi", sem prévia vinculação da entidade patronal[5].
Assim, a atribuição daquele passe atribuído ao trabalhador pelo empregador têm ou não natureza retributiva para o serviço e uso particular daquele, conforme se demonstre que essa atribuição é feita com carácter obrigatório ou como um acto de mera tolerância.

No caso em apreço, estando já os associados da Autora reformados, portanto desligados da relação laboral, é difícil de dizer que a atribuição de tais passes corresponde a uma contraprestação, por parte da Ré, do seu trabalho. Poderá é certo e, certamente o foi, ser um direito atribuído tendo em conta o elevado número de anos de trabalho prestado à Ré que como reconhecimento e gratidão concede aos seus ex trabalhadores a atribuição de um passe geral gratuito.
Ora, «gratuito» tem o significado de dado ou recebido de graça, que não se paga.
Quando no artigo 144º, nº 1 da LOE2013 se refere que «[é] vedada a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários, fluviais e ferroviários», está-se a referir certamente, já que outra não pode ser a sua incidência, a uma utilização daqueles transportes públicos por pessoas que não pagam bilhete ou não pagam o respectivo passe para a sua utilização.
Como se sabe a aquisição de um passe ou de um bilhete que faculta a utilização por parte dos utentes daqueles transportes está dependente do pagamento de um determinado preço. A lei faculta a um determinado leque de pessoas ligadas a determinadas profissões e funções a utilização daqueles transportes públicos, sem o pagamento de qualquer contraprestação, por essa mesma utilização. Essa utilização, independentemente da fonte da sua concessão, seja normativa ou contratual, terá de ser considerada gratuita, na medida em que o custo fica a cargo da entidade pública ou organismo público e não a cargo do utilizador ou do utente. Na medida em que este não desembolsa, na utilização daqueles transportes, qualquer quantia, a sua utilização terá de ser considerada gratuita.
É bem de ver que não gastando o utilizador qualquer quantia na utilização dos aludidos transportes, não tem um gasto, logo tem um lucro correspondente ao preço do bilhete ou do passe que teria de adquirir. Mas isso não faz com que a utilização do transporte público não seja gratuita.
Parece-nos, assim, que a gratuitidade expressa na lei no artigo 144º, nº 1, da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro está relacionada com a utilização dos transportes públicos por quem não paga para essa utilização o bilhete ou o passe, independentemente da motivação que subjaz a essa atribuição gratuita.
E, no caso em apreço, é manifesto que a atribuição dos passes, aos associados da Ré, o foi a título gratuito, conforme decorre dos factos provados sob os itens 8,9 e 12. Também a cláusula 70ª do AE (BTE nº 43, de 22/11/1984), com a epígrafe “ Transportes”, dispõe no seu nº 1 que «[a] pedido dos trabalhadores, no activo ou reformados, ser-lhes-ão fornecidos e aos seus cônjuges (…) passes gratuitos da rede geral com os mesmos direitos dos emitidos ao público».

Se assim é, resulta de forma inequívoca que o artigo 144º da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, é aplicável aos associados da Autora, pelo que lhe é vedada a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários independentemente da fonte (normativa ou contratual) que teve por fundamento a atribuição gratuita desses passes.
Na verdade, como se diz na decisão da providência cautelar apensa a estes autos, sendo a Ré «uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, integrada no domínio do sector empresarial do estado (SEE), encontra-se vinculada à determinação legal constante do artº 144.º da Lei n.º 66-B/2012 de 31 de Dezembro, a qual estabeleceu imperativamente ser vedada a utilização gratuita dos transportes públicos rodoviários, fluviais e ferroviários (….)”
“Ou seja, a existência do direito dos associados da requerente à gratuita utilização do serviço de transporte público rodoviário garantido pela requerida foi suprimido por força daquela norma, geral e abstracta do Orçamento de Estado».

Mas mesmo que se defenda que tal atribuição dos passes gratuitos se integra no conceito legal de retribuição e que a sua suspensão, nos termos definidos pela LOE2013, representa uma diminuição no rendimento anual dos associados da Autora, tal não representa uma violação do princípio da irredutibilidade dos salários, conforme se defendeu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 396/2011, de 21 de Setembro de 2011[6] «[n]ão consta da Constituição qualquer regra que estabeleça a se, de forma directa e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários. Essa regra inscreve-se no direito infraconstitucional, tanto no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (artigo 89.º, alínea d)), como no Código do Trabalho (artigo 129.º, n.º 1, alínea d)).
Vem arguido que tal garantia, ainda que integrando a legislação ordinária, goza de “força constitucional paralela”, por via do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição.
Deve começar por se anotar que tal regra de direito ordinário apenas vale para a retribuição em sentido próprio. Na verdade, ela não abrange, por exemplo, as ajudas de custo, outros abonos, bem como o pagamento de despesas diversas do trabalhador (Maria do Rosário Ramalho, Direito do Trabalho, II, Situações laborais individuais, Coimbra, 2006, p. 564 e 551). Nessa medida, os subsídios de fixação e de compensação de que gozam os magistrados, expressamente equiparados a ajudas de custo, encontram-se, à partida, fora do âmbito da garantia.
Mas importa sobretudo sublinhar que a regra não é absoluta. De facto, a norma que proíbe ao empregador, na relação laboral comum, diminuir a retribuição (artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código de Trabalho) ressalva os “casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva do trabalho”. Quanto à relação de emprego público, admite-se que a lei (qualquer lei) possa prever reduções remuneratórias (cfr. o citado artigo 89.º, alínea d)). O que se proíbe, em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
Deste modo, não colhe a argumentação de que existiria um direito à irredutibilidade do salário que, consagrado na legislação laboral, teria força de direito fundamental, por virtude da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição. Se assim fosse, o legislador encontrar-se-ia vinculado por tal imperativo, o que, como vimos, não sucede. Em segundo lugar, não se pode dizer, uma vez garantido um mínimo, que a irredutibilidade do salário seja uma exigência da dignidade da pessoa humana ou que se imponha como um bem primário ou essencial, sendo esses os critérios materiais para determinar quando estamos perante um direito subjectivo que se possa considerar "fundamental" apesar de não estar consagrado na Constituição e sim apenas na lei ordinária (Cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, 2009, p. 79-80).
De resto, o legislador constituinte teve a preocupação de estabelecer uma densa rede protectiva da contrapartida remuneratória da prestação laboral, dando consagração formal, no texto da Constituição, às garantias que entendeu serem postuladas pelas exigências de tutela, a este nível, da condição dos trabalhadores. Assim é que, para além do reconhecimento do direito básico à retribuição, manda-se observar o princípio de que “para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna” (alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º), fixa-se como incumbência do Estado “o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional” (alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo), acrescentando-se, na revisão de 1997, a imposição constitucional de “garantias especiais dos salários” (n.º 3 do artigo 59.º). Não é de crer que o programa constitucional, tão exaustivamente delineado, nesta matéria, só fique integralmente preenchido com a atribuição da natureza de direito fundamental legal ao direito à irredutibilidade da retribuição, qualificação para a qual não se descortina fundamento material bastante.
Direito fundamental, esse sim, é o "direito à retribuição", e direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, como é pacífico na doutrina e este Tribunal tem também afirmado (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 620/2007). Mas uma coisa é o direito à retribuição, outra, bem diferente, é o direito a um concreto montante dessa retribuição, irredutível por lei, sejam quais forem as circunstâncias e as variáveis económico-financeiras que concretamente o condicionam. Não pode, assim, entender-se que a intocabilidade salarial é uma dimensão garantística contida no âmbito de protecção do direito à retribuição do trabalho ou que uma redução do quantum remuneratório traduza uma afectação ou restrição desse direito.
Inexistindo qualquer regra, com valor constitucional, de directa proibição da diminuição das remunerações e não sendo essa garantia inferível do direito fundamental à retribuição, é de concluir que só por parâmetros valorativos decorrentes de princípios constitucionais, em particular os da confiança e da igualdade, pode ser apreciada a conformidade constitucional das soluções normativas em causa.
Tem sido essa, aliás, a orientação constante deste Tribunal, sempre que chamado a julgar questões atinentes, directa ou indirectamente, a reduções remuneratórias. Foi assim no Acórdão n.º 303/90, sobre vencimentos dos ex-regentes escolares, no Acórdão n.º 786/96, sobre alterações ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, com repercussão no subsídio da condição militar, e no Acórdão n.º 141/2002, referente à fixação de limites de vencimentos a funcionários em funções em órgãos de soberania, a membros dos gabinetes de órgãos de soberania, a funcionários dos grupos parlamentares e a funcionários das entidades e organismos que funcionam juntos dos órgãos de soberania, a qual importou uma efectiva e significativa redução dos vencimentos auferidos por esses sujeitos. Independentemente do sentido das pronúncias, foi exclusivamente à luz do conteúdo normativo desses princípios que elas foram emitidas.».

Por outro lado, a norma do nº 3 do artigo 144º da LOE2013, ao dispor que o regime de abolição da utilização gratuita de transportes públicos prevalece sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos, não viola o nº 3 do artigo 56º da Constituição.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 187/20013, de 03 de Abril de 2013[7] o nº 3 do artigo 56º da Constituição «confere às associações sindicais o direito e a competência de exercer o direito de contratação coletiva, “garantido nos termos da lei”.
Deve começar por dizer-se que a existência de normas legais imperativas, entendendo-se como tais as normas que estabelecem cláusulas fixas (que não podem ser substituídas) ou que impõem condições mínimas para a tutela da relação laboral (que apenas podem ser substituídas por outras disposições que prevejam um regime mais favorável), não é, em si, contraditória com o direito à contratação coletiva. Apenas significa que tais normas consagram o estatuto legal do contrato – aplicável aos trabalhadores abrangidos por contrato de trabalho em funções públicas – e que não põem em causa o estatuto contratual, que é constituído, além do mais, pelas normas dos instrumentos de regulamentação coletiva que não contrariem aquelas outras disposições. A interligação entre essas diferentes disposições e a sua adição às cláusulas do contrato, definindo, na sua globalidade, o regime jurídico da relação laboral, não representa uma qualquer violação do direito instituído pelo artigo 56º, n.º 3, da Constituição (cfr. artigos 3º e 478º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho, e 4º, n.º 1, do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro).
Por outro lado, e ainda que as normas em causa, por consagrarem reduções remuneratórias, possam ser qualificadas como “legislação do trabalho”, para efeitos do âmbito de incidência do artigo 56.º da Constituição, o certo é que, conforme pacificamente resulta da doutrina e da jurisprudência constitucionais, o n.º 3 daquele preceito, embora atribua às associações sindicais a competência para o exercício do direito de contratação coletiva, “devolve ao legislador a tarefa de delimitação do mesmo direito, aqui lhe reconhecendo uma ampla liberdade constitutiva” (acórdão n.º 94/92 e, no mesmo sentido, Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, pág. 1118).
O direito à autonomia contratual coletiva, apesar de constitucionalmente colocado sob reserva de lei, implica que não possa deixar de haver um espaço abrangente de regulação das relações de trabalho que se encontre submetido à disciplina contratual coletiva, o qual não pode ser aniquilado por via normativo-estadual. Sendo este direito garantido «nos termos da lei», tal significa que “a lei não pode deixar de delimitá-lo de modo a garantir-lhe uma eficácia constitucionalmente relevante, havendo sempre de garantir uma reserva de convenção coletiva, ou seja, um espaço que a lei não só não pode vedar à contratação coletiva, como deve confiar a esta núcleos materiais reservados” (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 745).
Assim configurada, a questão a resolver consistirá então em saber se o legislador ordinário, ao retirar à regulamentação coletiva uma certa matéria — no caso, a possibilidade de fixar para a retribuição do trabalho normal um valor distinto daquele que resulta da aplicação das medidas orçamentais consagradas para o ano de 2013 nos artigos 27.º e 29.º, todos da Lei n.º 66-B/2012 – veio “reduzir de tal modo aquele espaço da autorregulação constitucionalmente garantido que põe em causa a possibilidade de realização do direito de contratação coletiva” (acórdão n.º 94/92).
Considerando a atendibilidade do interesse público prosseguido através do esforço de consolidação orçamental – ponto que mais detidamente desenvolveremos no âmbito da ponderação implicada nos princípios da proteção da confiança e da igualdade – não parece que da obrigação que ao legislador ordinário constitucionalmente se impõe de “deixar sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto”à negociação coletiva possa extrair-se um argumento para a invalidação constitucional do caráter necessariamente imperativo das normas orçamentais que, com base naquele interesse público, impõem, a título excecional e transitório, a redução do valor anual da retribuição dos trabalhadores do setor público.
Subtrair ao âmbito da negociação coletiva a faculdade de derrogar o regime consagrado nas normas em questão, não só constitui a condição que torna tais normas aptas a prosseguir o fim a que se dirigem, como não representa uma intromissão nos “núcleos materiais reservados”, que o legislador ordinário se encontra constitucionalmente obrigado a não excluir do âmbito material da reserva de contratação coletiva.
O argumento retirado da pretensa retroatividade atribuída às normas em causa não deverá fazer variar os termos da solução.
Não estando em causa a afetação da estabilidade dos contratos de trabalho geradores do direito à retribuição cujo montante é conjunturalmente atingido pelas normas cujo caráter imperativo se impugna, a suposta eficácia retroativa resume-se, afinal, à impossibilidade de as convenções coletivas se imporem para futuro à lei imperativa e não à possibilidade de a lei imperativa se sobrepor retroativamente a estas, invalidando efeitos pretéritos que ao respetivo abrigo hajam sido produzidos.
A conclusão no sentido da inexistência de fundamento para a invalidação constitucional, através do n.º 3 do artigo 56.º da Constituição, das normas constantes do n.º 15 do artigo 27.º e do n.º 9 do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, é assim de manter.».

2.2.2.
A Recorrente alega que o nº3 do artigo 144º da Lei 66/B/2012, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa; esse princípio é violado na sua dimensão de “igualdade perante a repartição de encargos públicos”.
Para o efeito refere que «os reformados associados da ora Apelante, já sacrificados pelas medidas de austeridade que são do conhecimento geral, com esta ablação foram discriminados em relação aos demais reformados, pelo facto haverem tido vínculo à R. e ainda por não ter entrado no cálculo da sua reforma, a retribuição correspondente aos passe cuja utilização, agora, lhes foi bloqueada.
Há aqui uma dualidade de tratamento entre cidadãos a quem os sacrifícios são exigidos pelo Estado essencialmente através de impostos e outros cidadãos a quem os sacrifícios são exigidos não só por essa via, mas também, e cumulativamente através de suspensão de direitos relevantes que integram a sua retribuição por terem sido trabalhadores de uma empresa transportadora do Sector Empresarial do Estado».

O artigo 13º da CRP que se intitula «Princípio da Igualdade», dispõe que:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[8] referem que tal princípio «abrange na ordem constitucional portuguesa as seguintes dimensões: «(a) proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias (cfr. nº 2, onde se faz expressa menção de categorias subjectivas que historicamente fundamentaram discriminações); (c) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades (…)».
Obrigando que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, aquele princípio não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade. Ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante[9].

«O princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, enquanto manifestação específica do princípio da igualdade, constitui um necessário parâmetro de actuação do legislador. Este princípio deve ser considerado quando o legislador decide reduzir o défice público para salvaguardar a solvabilidade do Estado. Tal como recai sobre todos os cidadãos o dever de suportar os custos do Estado, segundo as suas capacidades, o recurso excepcional a uma medida de redução dos rendimentos daqueles que auferem por verbas públicas, para evitar uma situação de ameaça de incumprimento, também não poderá ignorar os limites impostos pelo princípio da igualdade na repartição dos inerentes sacrifícios. Interessando a sustentabilidade das contas públicas a todos, todos devem contribuir, na medida das suas capacidades, para suportar os reajustamentos indispensáveis a esse fim.
É indiscutível que, com as medidas constantes das normas impugnadas, a repartição de sacrifícios, visando a redução do défice público, não se faz de igual forma entre todos os cidadãos, na proporção das suas capacidades financeiras, uma vez que elas não têm um cariz universal, recaindo exclusivamente sobre as pessoas que auferem remunerações e pensões por verbas públicas. Há, pois, um esforço adicional, em prol da comunidade, que é pedido exclusivamente a algumas categorias de cidadãos.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se recentemente no Acórdão n.º 396/11, proferido em 21 de Setembro de 2011 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), sobre a constitucionalidade das reduções remuneratórias constantes do artigo 19.º, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011), as quais se mantém no presente ano de 2012, como acima se referiu, proferindo um juízo de não inconstitucionalidade.
Nesse aresto, o Tribunal, não deixou de confrontar essas reduções salariais com o princípio da igualdade, na dimensão invocada pelos Requerentes, tendo concluído que “o não prescindir-se de uma redução de vencimentos, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de actuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador. Intentando-se, até por força de compromissos com instâncias europeias e internacionais, conseguir resultados a curto prazo, foi entendido que, pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata, sendo, nessa medida, indispensável. Não havendo razões de evidência em sentido contrário, e dentro de “limites do sacrifício”, que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardam, é de aceitar que essa seja uma forma legítima e necessária, dentro do contexto vigente, de reduzir o peso da despesa do Estado, com a finalidade de reequilíbrio orçamental. Em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido a essa categoria de pessoas – vinculada que ela está, é oportuno lembrá-lo, à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual”.
Entendeu-se que o recurso a uma medida como a redução dos rendimentos de quem aufere por verbas públicas como meio de rapidamente diminuir o défice público, em excepcionais circunstâncias económico-financeiras, apesar de se traduzir num tratamento desigual, relativamente a quem aufere rendimentos provenientes do sector privado da economia, tinha justificações que a subtraíam à censura do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, uma vez que essa redução ainda se continha dentro dos “limites do sacrifício”».[10]

No relatório do Orçamento de Estado para 2013[11], página 57, o Governo refere-se que «no sector Empresarial do Estado (SEE), o Governo dará continuidade à reestruturação das empresas públicas e à criação de condições para assegurar a sustentabilidade económica financeira destas empresas (…).
Nas empresas do SEE do sector de transportes terrestes (…) a redução deve ser de 20% face ao efetivo existente a 1 de Janeiro de 2011 (…).
As empresas pública do SEE devem assegurar, em 2013, uma poupança de, no mínimo, de 50%, nos gastos com deslocações, ajudas de custo e alojamentos (…).»

Assim sendo, entendemos que no caso em apreço este princípio não se encontra violado, na medida em que a discriminação invocada pela recorrente não tem o peso, nem a relevância suficiente, para podermos dizer que, a situação, configura uma discriminação arbitrária ou irrazoável, impondo de forma desmesurável um sacrifício aos associados da Autora que não impõe aos restantes cidadãos.
Deveremos ter em atenção que a imposição desta norma da LOE2013 deve ser enquadrada num quadro de dificuldades económico/financeiras do Estado, numa quase bancarrota, onde foram impostas várias medidas de austeridade (muitas vezes de forma desigual e não repartida de forma proporcionada por todos o cidadãos), com enormes sacrifícios aos cidadãos. Ora, a suspensão da atribuição dos passes aos associados da Autora não pode ser considerada um sacrifício desproporcionado ou desigual em relação a medidas impostas a outros cidadãos. Tendo a mesma por finalidade a sustentabilidade económica financeira destas empresas e até a própria salvação do próprio serviço público, não vislumbramos que tal medida possa ser considerada irrazoável e injusta.
Além do mais, inexiste qualquer acto discriminatório em relação aos trabalhadores da Ré que se encontrem no activo, pois, conforme resulta da alínea c), do nº 2 do artigo 144º da LOE2013, tais trabalhadores (das empresas transportadoras, das gestoras da infraestrutura respectiva ou das suas participadas), que já beneficiem do transporte gratuito, podem continuar a utilizar tais transportes públicos gratuitamente, quando no exercício das respectivas funções, incluindo a deslocação de e para o local de trabalho, continuam a poder.
A diferenciação (aparente, diga-se) apenas existe no que toca à utilização de tais transportes “quando no exercício das respectivas funções, incluindo a deslocação de e para o local de trabalho”. Como os associados da Autora já não estão no activo, estando reformados, não podem beneficiar desta excepção. Mas se tais trabalhadores (no activo) pretenderem utilizar o meio de transporte fora daquelas condições, já o não podem fazer de forma gratuita. Aqui estão em pé de igualdade com os associados da Autora.
No que tange aos restantes reformados a medida em causa apenas veio igualar a sua situação. Na verdade, a maioria dos restantes reformados não usufruem de forma gratuita dos passes de transportes públicos, embora possam usufruir de algumas regalias face ao estatuto etário. Regalias essas que os próprios associados da Autora podem também beneficiar. A discriminação (positiva) estava no facto de os associados da Autora poderem usufruir de um direito (ou regalia) que os restantes cidadãos na mesma situação não podiam usufruir, tão só pelo facto de os primeiros terem tido um vínculo laboral com a Ré.
Também não faz qualquer sentido vir argumentar que “com esta ablação foram discriminados em relação aos demais reformados, pelo facto haverem tido vínculo à R. e ainda por não ter entrado no cálculo da sua reforma, a retribuição correspondente aos passe cuja utilização, agora, lhes foi bloqueada.” É que para o cálculo da pensão, mesmo que considerássemos como retribuição a utilização dos passes, a mesma nunca entraria no cálculo da pensão.
Ademais, a Ré garante aos trabalhadores reformados um complemento de pensão de reforma, para assegurar um mínimo de rendimento de subsistência, pelo que, ao contrário da maioria dos restantes reformados, têm um rendimento mensal superior a estes. Assim, a exigência de um plus no sacrifício aos associados da Autora, não constituirá um excesso de desrazoabilidade, nem de desproporcionalidade, em relação aos restantes. Ou seja, a dimensão da desigualdade do tratamento é proporcionada às razões que justificam esse tratamento desigual, nem se revela excessiva.
Como se salienta na sentença recorrida “estamos perante a retirada de um direito que é, pela própria natureza da lei do Orçamento de Estado para 2013, temporária, pelo que sempre seria de considerar esta limitação aos direitos em apreço como razoável e proporcional, em face dos objectivos que se pretendem com tal medida, e que passa pelo urgente equilíbrio financeiro das empresas de transportes públicos e que pertencem ao sector empresarial do Estado”.

2.2.3.
Alega a Autora que«[a]tenta a idade dos reformados, associados da ora Apelante, entre 65 e os 90 anos, este corte imposto pela R. viola o artº 72º da CRP que consagra no seu nº 1 “as pessoas idosas têm direito às à segurança económica e às condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeite a sua autonomia pessoal e evite e superem o isolamento ou a marginalização social e no seu nº 2 “ a política de terceira idade engloba medidas de carácter económico e social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal”.

O artigo 72º da CRP consagra no seu nº 1 “[a]s pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeite a sua autonomia pessoal e evite e superem o isolamento ou a marginalização social” e no seu nº 2 “ [a] política de terceira idade engloba medidas de carácter económico e social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal”.

Tal direito está, pois, apontado à realização da autonomia pessoa, e à prevenção e superação do isolamento ou marginalização social. Fundamental é, assim, o direito das pessoas idosas à segurança económica, em consideração, da situação de maior vulnerabilidade em que se encontram nesta fase das suas vidas.
RUI MEDEIROS[12] a este respeito diz: “embora velhice e reforma não sejam sinónimos, não se pode olvidar que a passagem à situação de reforma e a dependência do sistema de pensões constituem frequentemente, um importante factor de vulnerabilização e de precarização da vida das pessoas idosas (Heloísa Perista, Usos do tempo, ciclo de vida e vivências da velhice, págs. 170-171). O direito à segurança económica que a Constituição assim autonomiza tem plena justificação, embora deva ser conjugado com o direito fundamental à segurança social das pessoas idosas (...) e constitua, nessa medida, uma incumbência do Estado. O núcleo essencial do dever de proporcionar segurança económica aos idosos, que se extrai do artigo 72.º, n.º 1, tem assim em vista as pensões pagas pelo sistema de segurança social que ao Estado cumpre organizar e manter (...).
Também J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[13] referem que“[o]s direitos das pessoas idosas ou “direitos do envelhecimento” adquirem expressão prática através da concretização e efectivação de outros direitos, entre os quais a Constituição destaca o direito a segurança económica (que deve ser garantido naturalmente pelo sistema de segurança social mediante pensões de velhice e de aposentação) (cfr. Ac TC n.º 576/96) e o direito a condições de habitação, de convívio familiar e comunitário apropriadas (que devem ser asseguradas pela integração familiar dos idosos e por mecanismos comunitários, como lares, centos de convívio, etc.”
Salvo o devido respeito, não vislumbramos, nem a mesma é invocada, em que é que a referida supressão dos passes pode por em causa a segurança económica dos associados da Ré. Compreende-se que a utilização por partes dos mesmos dos transportes públicos lhes irá acarretar custos que antes não suportavam. Mas, independentemente das considerações já aduzidas, a verdade é que tal utilização será certamente esporádica, ocasional e não porá de forma excessiva em causa a sobrevivência económica dos reformados associados da Autora. Além do mais, como já se referiu, estaremos perante supressões temporárias. Por outro lado, o isolamento invocado será mitigado pela existência de medidas de protecção da terceira idade, abrangendo o universo dos reformados, nomeadamente, a concessão do passe social, em determinadas situações.
Perfilhamos, assim, o entendimento de que no caso em apreço inexiste qualquer violação da norma consagrada no artigo 72º da CRP.
2.2.4.
Mais invoca a recorrente a violação do princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da CRP.
Na verdade, para sustentar a sua posição alega que «[o]s passes são um direito adquirido pelos associados da ora Recorrente com o que contavam na sua economia e a sua suspensão inesperada, desta forma, impostos pelo Estado por serem reformados da ora Recorrida quando a questão da responsabilidade do Estado é da responsabilidade de todos, consubstancia uma discriminação em razão do vínculo e frustra a sua confiança, assim violando o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artº 2º da CRP.».
O artigo 2º da CRP estatui que «[a] República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa».

Sobre este princípio o já aludido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 396/2011 de 21 de Setembro refere que «[a] protecção da confiança traduz a incidência subjectiva da tutela da segurança jurídica, representando ambas, em concepção consolidadamente aceita, uma exigência indeclinável (ainda que não expressamente formulada) de realização do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP).
A aplicação do princípio da confiança deve partir de uma definição rigorosa dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, para ser digna de tutela. Dados por verificados esses requisitos, há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afectados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração. Dessa valoração, em concreto, do peso relativo dos bens em confronto, assim como da contenção das soluções impugnadas dentro de limites de razoabilidade e de justa medida, irá resultar o juízo definitivo quanto à sua conformidade constitucional.
Esta correcta metódica aplicativa já foi apontada, nos seus traços nucleares, pelo Acórdão n.º 287/90. Respondendo à questão de saber quando é que estamos perante a “inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva” de uma conformação que afecta “expectativas legitimamente fundadas” dos cidadãos, discorre aquele aresto:
«A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos seguintes critérios:
Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto sugerido pelo regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na “onerosidade”, isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.»
E concluía o citado acórdão, neste trecho:
«Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas».
A mesma ideia foi retomada no Acórdão n.º 303/90, proferido precisamente a respeito da questão de saber se a diminuição no montante do vencimento de uma certa categoria de funcionários afectaria o princípio da protecção da confiança:
«A questão residirá, assim, em saber se aquela afectação se reveste de jeito inadmissível, arbitrário ou excessivamente oneroso, sendo que o primeiro daqueles modos — a inadmissibilidade —, se é implicante de uma mudança na ordem jurídica, com repercussão nas situações de facto já alcançadas, com a qual, razoável e normalmente, os cidadãos destinatários das normas pré-existentes e das que operaram a modificação, não podiam e deviam contar, terá também de ser completado com a circunstância de a mutação normativa afectadora das expectativas não ter sido imposta por prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que, na dicotomia com os afectados, se postem em grau tal que lhes confira prevalência, pois, se não se postarem, haverá, então, falta de proporcionalidade e, logo, uma forma de arbítrio (veja-se, sobre o ponto, o Acórdão n.º 287/90 […])».
Em formulações variadas, estes critérios estiveram reiteradamente presentes na jurisprudência posterior em que o princípio da confiança foi convocado como parâmetro de apreciação. A partir do Acórdão n.º 128/2009 (e com acolhimento nos Acórdãos n.ºs 188/2009 e 3/2010), eles foram precisados e desenvolvidos, com recondução a quatro diferentes requisitos ou testes. Escreveu-se, nesse sentido:
«Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa».
Como se vê, a protecção da confiança, enquanto corolário e exigência do princípio do Estado de direito democrático, princípio, este, de “contornos fluidos” e “conteúdo relativamente indeterminado”, quando “não acha devido apoio noutros preceitos constitucionais” (como reconheceu o Acórdão n.º 93/84), foi objecto de um intenso labor de densificação que lhe traçou um preciso âmbito de aplicação, bem como um modo procedimental de (necessária) confrontação com princípios constitucionais e interesses constitucionalmente credenciados, em oposição. São esses critérios que há que aplicar nos presentes autos.
Vêm invocados, como precedentes, os Acórdãos n.ºs 303/90 e 141/2002, referíveis a situações em que determinadas alterações legislativas, constantes de leis do orçamento (respectivamente, o Orçamento de Estado para 1989 e os Orçamentos de Estado para 1992 e 1993) tinham como implicação uma redução remuneratória de certas categorias de trabalhadores com relação de emprego público.
E efectivamente, em ambos os casos, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas impugnadas, "por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição".
Mas urge atentar nos fundamentos que sustentam as decisões.
A razão invocada no Acórdão n.º 303/90 foi a falta de justificação específica da medida que implicava uma redução salarial. Aí se diz:
«Não nos dá a Lei n.º 114/88, nem os seus trabalhos preparatórios, qualquer indicação sobre a existência de motivos ligados à prossecução ou salvaguarda de interesses (designadamente económicos ou financeiros) tais que, de um ponto de vista proporcional, aconselhassem à suspensão do «vencimento adquirido» pelos agentes de ensino em causa e, por isso, afectasse esse direito, sob pena de se não alcançar aquelas prossecução ou salvaguarda.
[…]
Torna-se, desta arte, indescortinável qual seja o interesse e a sua suficiente relevância que levaram à suspensão do regime da Lei n.º 103/88.
[…] Atingido um nível remuneratório que lhes conferia [aos titulares da remuneração], na ocasião da entrada em vigor desta última Lei, um quantitativo então igual ao percebido pelos professores diplomados com os cursos das escolas do magistério primário, é perfeitamente compreensível que os destinatários daquele diploma ficassem possuídos da convicção de que esse «direito» subjectivado a tal quantitativo, já concretizado objectivamente, para o futuro, e sem que surgissem acentuadas alterações da conjuntura económico-financeira, era algo de reconhecido pela ordem jurídica e com o qual eles podiam e deviam contar, deste modo ficando convencidos que o dito montante não seria diminuído.
Ao suspender o referido «direito», o n.º 11 do artigo 14.º da Lei n.º 114/88 veio, de forma efectiva, frustrar a indicada convicção, sem que se antolhe a existência de situação de interesse geral ou conformação social de suficiente peso que pudessem tornar previsível ou verosímil tal suspensão.
Por isso se depara uma inadmissível (porque irrazoável, extraordinariamente onerosa e excessiva) afectação levada a cabo pela norma sindicada».
Já o Acórdão n.º 141/2002 inscreveu, na sua fundamentação, como motivos da declaração de inconstitucionalidade, a "redução substancial" da remuneração com "efeitos imediatos", conjugada com a inexistência ou falta de invocação de um específico "interesse público" que pudesse justificar a medida. Nas palavras do acórdão:
«Nesta conformidade, tem de se concluir que, por força do estabelecido na própria disposição legal que a previa, se estava perante uma remuneração acessória com um regime especial que lhe conferia uma particular estabilidade e consistência, o que justificava a expectativa do seu integral recebimento por banda dos funcionários afectados. Ora, o que aconteceu foi que, por via da norma em causa, a remuneração global dos funcionários por ela abrangidos foi objecto de uma redução substancial e com efeitos imediatos, o que também se afigura particularmente relevante.
[…]
Por outro lado, não se descortinam – nem sequer foram invocados – quaisquer motivos que pudessem aqui «justificar» a adopção da medida com efeitos retrospectivos, nomeadamente particulares razões de interesse público ou uma qualquer alteração objectiva e concreta das condições de trabalho do pessoal afectado».
Isto é, tendo sido dado por assente, em ambos os casos, que a confiança legítima saíra vulnerada com as soluções impugnadas, o Tribunal não descortinou qualquer interesse público cuja salvaguarda as pudesse justificar. Daí a decisão de inconstitucionalidade. Merecerá idêntico juízo o caso agora em apreciação?
Não custa admitir que uma redução remuneratória abrangendo universalmente o conjunto de pessoas pagas por dinheiros públicos não cai na zona de previsibilidade de comportamento dos detentores do poder decisório. O quase contínuo passado de aumentos anuais dos montantes dos vencimentos, na função pública, legitima uma expectativa consistente na manutenção, pelo menos, das remunerações percebidas e a tomada de opções e a formação de planos de vida assentes na continuidade dessa situação.
As reduções agora introduzidas, na medida em que contrariam a normalidade anteriormente estabelecida pela actuação dos poderes públicos, nesta matéria, frustram expectativas fundadas. E trata-se de reduções significativas, capazes de gerarem ou acentuarem dificuldades de manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de compromissos assumidos pelos cidadãos. Sem esquecer que, relativamente a algumas categorias de destinatários, elas se cumularam com outras medidas anteriores de redução remuneratória. Assim, a redução prevista no artigo 19.º, n.º 1, da lei do Orçamento do Estado "tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, e na Lei n.º 47/2010, de 7 de Setembro, para os universos neles referidos", sendo certo que tais diplomas já tinham operado reduções remuneratórias (artigo 19.º, n.º 8). De facto, os artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 12-A/2010 tinham reduzido, a título excepcional, em 5%, os vencimentos mensais ilíquidos dos titulares de cargos políticos e dos gestores públicos e equiparados e, também, o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 47/2010 tinha já reduzido, a título excepcional, em 5%, o vencimento mensal ilíquido dos membros das Casas Civil e Militar da Presidência da República, dos gabinetes dos membros do Governo, dos gabinetes dos Governos Regionais, dos gabinetes de apoio pessoal dos presidentes e vereadores das câmaras municipais e dos governadores civis.
Essa redução teve, além disso, efeitos imediatos, logo no dia de entrada em vigor da lei do Orçamento do Estado, ou seja, um dia após a sua publicação em Diário da República.
Não se pode ignorar, todavia, que atravessamos reconhecidamente uma conjuntura de absoluta excepcionalidade, do ponto de vista da gestão financeira dos recursos públicos. O desequilíbrio orçamental gerou forte pressão sobre a dívida soberana portuguesa, com escalada progressiva dos juros, colocando o Estado português e a economia nacional em sérias dificuldades de financiamento. Os problemas suscitados por esta situação passaram a dominar o debate político, ganhando também foros de tema primário na esfera comunicacional. Outros países da União Europeia vivem problemas semelhantes, com interferências recíprocas, sendo divulgada abundante informação a esse respeito.
Neste contexto, e no quadro de uma estratégia global delineada a nível europeu, entrou na ordem do dia a necessidade de uma drástica redução das despesas públicas, incluindo as resultantes do pagamento de remunerações. Medidas desse teor foram efectivamente tomadas noutros países, com larga anterioridade em relação à publicação da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2011, e com reduções remuneratórias mais acentuadas do que aquelas que este diploma veio a implementar.
Pode pôr-se em dúvida, em face deste panorama, se, no momento em que as reduções entraram em vigor, persistiam ainda as boas razões que, numa situação de normalidade, levam a atribuir justificadamente consistência e legitimidade às expectativas de intangibilidade de vencimentos.
Do que não pode razoavelmente duvidar-se é de que as medidas de redução remuneratória visam a salvaguarda de um interesse público que deve ser tido por prevalecente – e esta constitui a razão decisiva para rejeitar a alegação de que estamos perante uma desprotecção da confiança constitucionalmente desconforme.
Na verdade, à situação de desequilíbrio orçamental e à apreciação que ela suscitou nas instâncias e nos mercados financeiros internacionais são imputados generalizadamente riscos sérios de abalo dos alicerces (senão, mesmo, colapso) do sistema económico-financeiro nacional, o que teria também, a concretizar-se, consequências ainda mais gravosas, para o nível de vida dos cidadãos. As reduções remuneratórias integram-se num conjunto de medidas que o poder político, actuando em entendimento com organismos internacionais de que Portugal faz parte, resolveu tomar, para reequilíbrio das contas públicas, tido por absolutamente necessário à prevenção e sanação de consequências desastrosas, na esfera económica e social. São medidas de política financeira basicamente conjuntural, de combate a uma situação de emergência, por que optou o órgão legislativo devidamente legitimado pelo princípio democrático de representação popular.
Não se lhe pode contestar esse poder-dever. Como se escreveu no Acórdão n.º 304/2001:
«Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam “tocadas” relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte».
Diferentemente dos casos julgados pelos Acórdãos n.ºs 303/90 e 141/2002, o interesse público a salvaguardar, não só se encontra aqui perfeitamente identificado, como reveste importância fulcral e carácter de premência. É de lhe atribuir prevalência, ainda que não se ignore a intensidade do sacrifício causado às esferas particulares atingidas pela redução de vencimentos.
Como último passo, neste quadrante valorativo, resta averiguar da observância das exigências de proporcionalidade (cfr., quanto à necessária conjugação do princípio da protecção da confiança com o princípio da proibição do excesso, Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p. 268-269). Admitido que a expectativa de manutenção dos montantes remuneratórios e de ajudas de custo tenha que ceder, em face da tutela de um interesse público contrastante de maior peso, ainda assim há que controlar se as concretas medidas transitórias de redução remuneratória, previstas no artigo 19.º da lei do Orçamento do Estado, abrangendo todo o universo dos trabalhadores com uma relação de emprego público, e as medidas de redução de ajudas de custo que resultam dos artigos 20.º e 21.º da Lei do Orçamento de Estado para 2011, abrangendo os magistrados judiciais e do Ministério Público, traduzem ou não uma afectação desproporcionada de uma posição de confiança, tendo em conta os três níveis em que o princípio da proporcionalidade se projecta.
Que se trata de uma medida idónea para fazer face à situação de défice orçamental e crise financeira é algo que resulta evidente e se pode dar por adquirido. Quanto à necessidade, um juízo definitivo terá que ser remetido para a análise subsequente, à luz do princípio da igualdade, a que o princípio da proporcionalidade também está associado. Implicando a ponderação de eventuais medidas alternativas, designadamente as que produziriam efeitos de abrangência pessoal mais alargada, é nessa sede que a questão poderá ser mais cabalmente tratada e decidida. Por último, a serem indispensáveis, as reduções remuneratórias não se podem considerar excessivas, em face das dificuldades a que visam fazer face. Justificam esta valoração, sobretudo, o seu carácter transitório e o patente esforço em minorar a medida do sacrifício exigido aos particulares, fazendo-a corresponder ao quantitativo dos vencimentos afectados. Assim é que, para além da isenção de que gozam as remunerações inferiores a 1500 euros, as taxas aplicáveis são progressivas, nunca ultrapassando, em todo o caso, o limite de 10% – inferior ao aplicado em países da União Europeia com problemas financeiros idênticos aos nossos.
Quanto à redução dos subsídios de fixação e de compensação de que gozam os magistrados, trata-se de prestações complementares, com uma causa específica, que, à partida, por força dessa natureza, não suscitam expectativas legítimas de manutenção com consistência equivalente às que a retribuição, propriamente dita, dá azo, até porque, como vimos, não estão abrangidas pela garantia infraconstitucional de irredutibilidade.
Por outro lado, embora a taxa de redução seja bastante mais elevada do que a das reduções remuneratórias, como a sua base de incidência é de valor relativamente baixo, os montantes pecuniários que os afectados perdem não são excessivamente onerosos. Não é de crer que eles pesem de tal forma, nos patrimónios atingidos, que importem a frustração do “investimento na confiança”– requisito indispensável para a sua tutela.
Por último, há a notar que a expressa equiparação desses subsídios, para todos os efeitos legais, a ajudas de custo, é uma fixação legislativa de um regime favorável para os destinatários (tendo em conta, sobretudo, alternativas que chegaram a ser propostas), atenuando, de certa forma, o sacrifício por aqueles sofrido com a redução.
Por tudo, não é de entender que as reduções destes subsídios, ainda que se lhes atribua carácter não transitório, importem violação do princípio da confiança constitucionalmente censurável.”

Ora, se assim é no que concerne às reduções dos subsídios, por maioria de razão será para as situações em apreço, onde estamos perante regalias ou direitos.
Acresce que, no plano das exigências de proporcionalidade, no quadro da articulação entre o princípio da protecção da confiança e o princípio da proibição do excesso, a medida ablativa da utilização gratuita de transporte públicos terrestes (no caso), na sua aplicação cumulativa, enquadra-se, pelas razões já apontadas, dentro dos “limites de razoabilidade e de justa medida”.
2.2.5.
Por fim, alega a Autora que «[d]e acordo com o artº 3º do artº144º da Lei 66/B/2012 é absolutamente indiferente à segurança do negócio jurídico e à confiança que os sujeitos do negócio depositaram no sistema jurídico, de acordo com o qual negociaram um contrato que estabeleceu direitos e deveres.
Com efeito, os reformados associados da ora Apelante vêem assim modificado, por vontade unilateral de um dos contraentes, o contrato que celebraram, por vontade unilateral de um dos contraentes, em clara violação do artº 406º do Código Civil, sendo que “pacta sunt servanda».

O artigo 406º do Código Civil, sob a epígrafe “Eficácia dos contratos”, dispõe assim:
1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
2. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.

“Os diferentes contratos produzem efeitos particulares, segundo a natureza especial de cada um e o acordo de vontades que integra o seu conteúdo. Existe, porém, um aspecto comum a todos eles, que se consubstancia no princípio da força vinculativa ou da obrigatoriedade. Este significa que, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz constitui lei imperativa entre as partes («lexprivata»). É o que expressa o art. 406.°, n.°1, do Cód. Civ.: O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
Desenvolve-se, portanto, a norma ou princípio da força vinculativa através de outros três princípios: o da pontualidade, utilizando a lei a palavra «pontualmente» com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas e não apenas no prazo estipulado; e os da irretractabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais e da intangibilidade do seu conteúdo.”[14]
“Se os contratos não fossem irretractáveis e as suas cláusulas intangíveis, desapareceria um elemento fundamental da segurança do comércio jurídico. Esta força imperativa compreende-se, aliás, no contexto da liberdade contratual, visto que, se os contraentes se vinculam por sua autónoma vontade, devem eles ficar adstritos às estipulações firmadas. E, em tal lógica, não impedem o cumprimento do contrato as consequências gravosas que resultem para qualquer das partes. O contrato, que nasce do livre consenso destas, somente por acordo das mesmas em sentido contrário («contrarius consensus») deve ser alterado.
Todavia, o próprio art. 406.°, n.° 1, do Cód. Civ., prevê desvios justificados à regra clássica «pacta sunt servanda». Tais violações da estabilidade contratual podem resultar da vontade das partes, directamente de uma providência legislativa, ou, ainda, da intervenção judicial.”[15]
Ora, um desses desvios é precisamente os chamados contratos-normativos, os quais, conforme refere a Exª Srª Procuradora-Geral no seu parecer, estão “sujeitos a um regime legal especifico, constituem excepção ou limite ao princípio da liberdade contratual, previsto no artº 405º” do Código Civil.
Segundo CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO[16] «[a] liberdade de fixação ou modelação do conteúdo dos contratos conhece também algumas restrições, logo aludidas no artigo 405º («dentro dos limites da lei»).
Refere ainda este Autor que «a lei reconhece e admite certos contratos-tipo que, celebrados a nível de categorias económicas ou profissionais, contêm normas a que os contratos individuais, celebrados entre pessoas pertencentes às referidas categorias, têm de obedecer; daí que se fale nestes casos de contratos normativas (v. g., as convenções colectivas de trabalho)».
Na mesma senda vai MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA[17] ao mencionar que os «contratos ou pactos normativos, que se caracterizam pela definição imperativa de uma disciplina uniforme, geral e abstracta, a que deve submeter-se a contratação individual celebrada no seu âmbito. Não se destinam, portanto, a uma directa regulamentação de relações concretas entre os contraentes, antes a servir de paradigma cogente para futuros acordos que venham a realizar-se.
Inclui-se nesta categoria, como subespécie, o contrato ou pacto colectivo, estabelecido por um grupo de pessoas ligadas a um mesmo interesse económico e destinado a fixar os limites de contratação de todos os que nele se enquadram, ainda que não hajam - é o traço típico - participado no acordo. Entre os exemplos que se costumam referir, contam-se: as convenções colectivas de trabalho».

Sendo assim, por todas estas razões, improcede o recurso, também nesta parte.

De todo o referido podemos concluir que os associados da Autora, reformados e ex-trabalhadores da Ré, sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, integrada no domínio do sector empresarial do estado (SEE), independentemente da forma como os seus contratos cessaram, estão contemplados pela oblação prevista no artigo 104º, nº 1 da Lei Lei nº 66-B/2012, de 31/12, não violando qualquer princípio constitucional o nº 3 da citada norma que impõe a sua imperatividade e a sua prevalência sobre instrumentos de regulamentação colectiva e contratos de trabalho.

Improcede, assim, o recurso.
◊◊◊
3.
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA

Sem custas, dada a isenção da recorrente – artigo 4º, nº 1, alínea f) do RCP.
◊◊◊
◊◊◊
◊◊◊
IV
DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto por “B…, S.A. e, em consequência manter a decisão recorrida.
Sem custas, dada a isenção da recorrente – artigo 4º, nº 1, alínea f) do RCP.
◊◊◊
Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 663º, nº 7 do actual CPC.
◊◊◊
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artº 131º nº 5 do Código de Processo Civil).

Porto, 30 de Junho de 2014
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
_____________
[1] v., por todos, Ac. desta Relação do Porto de 20-2-2006, in www.dgsi.pt, proc. nº 0515705 e jurisprudência ali citada.
[2] In www.tribunalconstitucional.pt
[3] Doravante designada por LOE2013.
[4] Sublinhado nosso.
[5] MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12ª Edição, pág. 456 e JORGE DE LEITE, Direito do Trabalho, Vol. II, 2004, pág. 109.
[6] Consultável in: http://dre.pt/pdf2sdip/2011/10/199000000/4109641106.pdf
[7] Consultável in: http://dre.pt/pdf1sdip/2013/04/07800/0232802423.pdf. Este Acórdão apreciou a (in)constitucionalidade de várias normas da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro de 2012 (Lei do Orçamento do Estado para 2013).
[8] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 2007, Coimbra Editora, p. 339.
[9] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1007/96, in Diário da República, 2.ª Série, de 12 de Dezembro de 1996.
[10] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 352/2012 de 05/07/2012, DR I Série, nº 140, de 20/07/2012.
[11] Consultável in: http://www.dgap.gov.pt/upload/Legis/2012_l_66_b_31_12.pdf
[12] in JORGE MIRANDA; RUI MEDEIROS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: WoltersKluwer Portugal, Coimbra Editora, 2010, pp. 1404-1405.
[13] J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, obra cit. p. 884.
[14] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, DIREITO DAS OBRIGAÇÕES, 9ª Edição Revista e Aumentada, Almedina, 2005, pp. 279/280.
[15] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, obra cit. p. 283.
[16] CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL, 3º Edição, Coimbra Editora, pp. 97 A 99.
[17] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, obra cit. pp. 251/252.