Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
52/15.9SLPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: ACUSAÇÃO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
Nº do Documento: RP2016121552/15.9SLPRT-A.P1
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 703, FLS.14-21)
Área Temática: .
Sumário: Não constando de acusação particular o elemento subjetivo do tipo legal de crime imputado ao arguido e havendo lugar a instrução, a decisão instrutória só poderá ser de não pronúncia, uma vez que o objeto do processo ficou definido pelos termos da acusação particular que ficou sujeita à comprovação judicial em sede de instrução.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 52/15.9SLPRT.P1
Data do acórdão: 15 de Dezembro de 2016

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Origem:
Comarca do Porto
Instância Central | 1ª Secção de Instrução Criminal

Sumário:
Não constando de acusação particular o elemento subjetivo do tipo legal de crime imputado ao arguido e havendo lugar a instrução, a decisão instrutória só poderá ser de não pronúncia, uma vez que o objeto do processo ficou definido pelos termos da acusação particular que ficou sujeita à comprovação judicial em sede de instrução.

Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente a assistente B…;

I - RELATÓRIO
1. Em 15 de Junho de 2016 foi proferido nos presentes autos um despacho de não pronúncia da arguida C… pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo disposto no artigo 180° do Código Penal.
2. Inconformada com tal decisão, a assistente interpôs recurso da mesma, terminando a respetiva motivação com a formulação das conclusões a seguir reproduzidas:
5. O Ministério Público também respondeu à motivação de recurso dos arguidos, pugnando pela sua improcedência.
«A Assistente acusou bem e isso é indesmentível.
Que á prova mais que suficiente resultante do Inquérito que suporta quer uma acusação, quer uma pronuncia.
A Arguida pediu Abertura da Instrução, limitando-se ao óbvio e ao resultado do Inquérito, que por assim dizer é feio e mau, isto co o devido respeito por diferente opinião.
A Instrução avaliou mal o caso pois não acionou e produziu o efeito a que se destina a Instrução e que é avaliar e corrigir o que de errado resulta do Inquérito
O resultado foi o não pronunciamento da Arguida para julgamento.
É contra esta decisão que levamos ao V. Douto conhecimento o presente Recurso de Alegações com o único propósito fazer ver a má decisão do Tribunal de Instrução em relação ao caso em apreço e com isso levar a Arguida C… a julgamento, tudo pelo aqui melhor alegado.
É evidente a falta de empenho e mérito na fase de Inquérito e o mesmo se passa com Instrução quando resulta claro que a Arguida com muita certeza cometeu um determinado crime e mais grave ainda resultar de tais evidencias um desinteresse completo em ter como sério e grave determinados comportamentos sociais que são com certeza censuráveis criminalmente e, não obstante ter como efeito a não pronuncia.
O RAI apresentado pela Arguida, acima de tudo, deveria demonstrar a verificação da (não) prática de factos criminalmente punidos, bem como a sua não autoria, algo que não vimos acontecer.
Se o trabalho do Ministério Publico já era pobre, isto com o maior respeito por melhor opinião, a Arguida, a Instrução repetir tais erros e mais grave, confirmando-os, não mais do que isto, da forma que o fez, acabou, por realçar o que de mau tinha tal anterior trabalho, destacando o quanto a Instrução tinha por obrigação investir e empenhar-se na reavaliação do caso em apreço e tomar melhor decisão.
Tudo com um único resultado e que era a pronuncia da Arguida C…
O Juiz de Instrução, qual o papel e função que deve desempenhar neste momento do processo.
De averiguador e retificador da justiça, dando com isso dignidade ao ato instrutório e acima de tudo um sentido.
Não acusar sem cuidar de conformar/sustentar argumentos à estrutura de uma acusação já é grave
Não pronunciar cometendo os mesmos erros é ainda pior.
O RAI e o Juiz que conduz a Instrução tem que assumir as vestes de um inquérito, já que ele, ao caso, não se "vestiu" convenientemente.
Admitir ou complementar aquilo que não foi feito ou se o foi, foi de modo imperfeito, é algo que não e espera de uma Instrução.
A instrução visa, acima de tudo, averiguar, de modo isento e exemplar, se alguém cometeu factos qualificados como crime e apesar de não se assemelhar à função de um julgamento tem o dever de dar a importância e a utilidade que Instrução que tem.
Nem que para isso recorra à reiteração da prova ou dos esclarecimentos conforme prevê, ou do que se considerar necessário por via dos artigos 290.° e seguintes do C.P.P..
Já não é o primeiro processo que assim acontece, há processos a correr termos no TCIC, de maior complexidade, que assim o exige, será que por ser este processo caracterizado de "bagatela jurídica", que não carreia a mesma importância dos outros?
Acima de tudo precisa-se de dar utilidade à Instrução.
A nosso humilde ver, não foi isso que aconteceu na instrução e mais grave ainda, foi "impedida", a Assistente, que a sua queixa e competente acusação particular contra a Arguida C…, de passar e de a levar, a Arguida, como merece, a julgamento.
Disso a Assistente deu evidente e esclarecida nota.
Posto isto.
Aconteceu o arquivamento do processo pelo MP e de tal arquivamento posterior competente Acusação Particular.
Sucedeu-se um requerimento do Arguido para a abertura da instrução.
Estamos na Instrução, instrução essa, como definidora de um processo autónomo, e, sem querer substituir-se ao Ministério Publico, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-se, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando aqueles dados e factos concretos, materiais e objetivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas (porque lhe faltaram, ao Inquérito).
Pelo que o presente e competente recurso de Alegações só tem um objetivo e que é dar Luz a esta asserção por justa que é, e com isto, ver reposta a verdade e essa, tem que acontecer, sem duvida, em julgamento.
O que para tal a decisão da Instrução deve ser revogada e substituída por uma outra que deverá ir no sentido de pronunciar a Arguida C… para julgamento.
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. O Ministério Público respondeu, pugnando pela rejeição do recurso, por ser manifestamente improcedente.
5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, expressando concordância com a resposta já produzida na primeira instância, concluindo pela improcedência do recurso.
6. A recorrente respondeu ao parecer, reiterando, no essencial, os termos do recurso e concluindo que o Ministério Público junto deste Tribunal constitui uma "má e inadequada contribuição que presta à comunidade jurídica" e terminando com a defesa da procedência do recurso, admitindo, ainda, a repetição da instrução "com o respeito e a dignidade que merece", bem como do debate instrutório.
7. Corrigiu-se o modo de subida do recurso, que é em separado, mas não se ordenou a baixa dos autos à primeira instância, para a extração de certidão para instruir o recurso em separado, uma vez que tal representa um ato processual inútil, uma vez que este recurso irá ser decidido – como todos - em curtíssimo prazo, podendo descer já com a decisão final.
8. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que os recorrentes extrairam da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Da questão a decidir neste recurso:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a questão substancial a seguir concretizada, que sintetiza as conclusões da recorrente, constituindo, assim, o thema decidendum:
- Existência de indícios da prática do crime de difamação imputado pela assistente à arguida C… na sua acusação particular – desacompanhada do Ministério Público -.

Para decidir a matéria acima descrita, importará recordar os factos imputados pela assistente à arguida na acusação particular, bem como a fundamentação da decisão instrutória recorrida.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A acusação particular:
«Quanto ao mais, vem deduzir a competente acusação particular que poderá ser em Processo Sumaríssimo, conforme resulta dos autos.
(…)
Pelo que o faz nos fundamentos que se segue.
Foi a Assistente em tempos, mais precisamente no ano 2014, solicitar trabalho para a denunciada C… prestando assim ao serviço da empresa pertencente a C…, serviços de limpeza.
Tais serviços eram pagos a 4,00€/hora.
De repente e sem qualquer razão que o justificasse, a C… deixou de chamar a Assistente para o trabalho na empresa de limpezas.
Como a Assistente não entendia das razões para tal atitude foi saber o que justificou tal mudança de comportamento.
Foi quando tomou conhecimento através de duas ex-colegas de trabalho, D… e a E… (melhor identificadas nos autos) e ainda por intermédio de uma colega e amiga a F… (também esta identificada nos autos) que a C… deixou de a contratar para o trabalho porque teve conhecimento e andava a espalhar, com toda a gente com quem falava, que a Assistente é uma ladra, que rouba por maldade e que para alem disso era uma mentirosa, uma ignorante e que vivia deste tipo de expedientes.
Inclusive, andou a dizer que a Assistente gosta de vasculhar as carteiras das colegas de trabalho para lhes roubar dinheiro.
O que levou a Assistente a ficar confusa pois não percebeu quais as razões de tal mudança de atitude por parte da C….
Foi quando descobriu que quem iniciou/incitou tais comentários e tais divulgações acerca da Assistente tinha sido a G… que, em conversa com a C…, ao saber que a Assistente trabalhava para a C…, referiu-se à Assistente nestes termos:"... o quê... contrataste essa sujeita.... no que tu te meteste... essa sujeita é uma ladra, é uma gatuna.. .só se mete em problemas e é uma mentirosa..." entre outros impropérios.
Todos produzidos por esta senhora de nome G…, contra a Assistente.
Deste modo e porque a Assistente fez prova testemunhal e documental (mensagens escritas gravadas em telemóvel).
Quer acionar criminalmente contra os indivíduos C… e G… por, crimes praticados p. e p. pelos 180.° e ss do CP, nomeadamente o crime de difamação do 180.° do CP.»

O despacho de não pronúncia:
«(…) Inconformada com o despacho de acusação da assistente não acompanhado pelo Ministério Público, a arguida C… veio requerer a abertura de instrução, alegando, em síntese que inexistem nos autos indícios para que lhe possa ser imputada o cometimento do crime de difamação p.p. pelo art° 180° do Cod. Penal devendo ser proferido despacho de não pronúncia.
Foram analisados e reapreciados os elementos constantes dos autos, designadamente, a prova testemunhal ouvida em sede de inquérito.
Impõe-se assim e apenas nesta fase processual apreciar se, se os autos contém elementos de onde se possa retirar que a arguida requerente da instrução imputou perante terceiros e relativamente à assistente factos ofensivos da honra e consideração desta e, em consequência, verificar se se mostram preenchidos os elementos constitutivos do crime de difamação tal como vêm descritos na acusação da assistente.
(…)
Pode afirmar-se que o crime de difamação pressupõe, desde logo, um elemento objectivo - concretizado na circunstância de o agente, dirigindo-se a terceiros imputar a essa pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, factos ofensivos da sua honra ou consideração, tratando- se, nesta medida, de um crime de dano.
Por outro lado, no que tange ao elemento subjectivo, é largamente dominante a doutrina e jurisprudência que entende bastar-se o crime em apreço com a presença do dolo enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude, isto é, o conhecimento de que determinados factos são lesivos da honra ou consideração de outrem e a vontade ao menos eventual, de os concretizar (Cfr. Silva Dias "Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos crimes de difamação e de injúria" AAFDL, 1989, pags. 35 e 36 e Maia Gonçalves "Código Penal Português Anotado 6a ed., 1992, pag. 425 e 426 Ac R.C. de 28/11/96 Boi M.J. 461, pag.532 Ac.R.P. Bol.M.J.434 pag. 686 AC.R.C. 2/10/96 Boi M.J. 460, pag.818 Ac. R.E. 14/1/97 Bol M.J. 463, pag. 660).
Analisado o tipo legal em causa, atentemos na prova produzida na perspectiva de que, a fase processual em que nos encontramos cura de prova de natureza indiciária, sendo certo que, as exigências em relação à prova, nesta fase, são diferentes das da fase de julgamento.
Posto atentemos no caso em apreço:
Vem a arguida requerente da instrução acusada de "andar a espalhar com toda a gente com quem falava, que a assistente é uma ladra, que rouba por maldade e que para além disso era uma mentirosa, uma ignorante e que vivia desse tipo de expedientes que gosta de vasculhar carteiras das colegas de trabalho para lhes roubar o dinheiro".
Porém, com excepção da versão apresentada pela assistente, não existem nos autos quaisquer indícios que sustentem a versão formulada. Já que a arguida (que foi ouvida na qualidade de testemunha em inquérito) apenas admitiu que em conversa terá referido que não mais havia contratado a assistente porque alguém em quem tinha muita confiança lhe tinha mencionado que a arguida era uma ladra e que apenas repetiu esta conversa não com o intuito de a difamar mas apenas para comentar a circunstância de não confiar na arguida e de não mais ter solicitado os seus serviços. Este facto foi também confirmado pelos depoimentos das testemunhas ouvidas em inquérito.
*
A lei define no art° 283° n°2 do C.P.P. o que considera indícios suficientes, ou seja, o conjunto de elementos dos quais resulte a probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
A prova indiciária não conduz a um julgamento de certezas. A prova indiciária contém apenas, um conjunto de factos conhecidos que permitirão partir para a descoberta de outro/outros, que deixarão de se mover no campo das probabilidades para entrarem no domínio das certezas. Contudo, o indicio é (em si) um facto certo, do qual, por interferência lógica baseada em regras de experiência, consolidadas e fiáveis, se chega á demonstração de um facto incerto, a provar segundo o esquema do chamado silogismo judiciário.
Por indiciação suficiente, entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova existentes, uma pena ou medida de segurança.
Conforme dispõe o art° 286° n°1 do C.P.P. "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Contudo, essa possibilidade, é uma certeza mais positiva do que negativa, sendo que o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
Do já citado art° 308° do C.P.P. conjugado com a noção de indícios suficientes dada pelo art° 283°n°2 do C.P.P., resulta pois, que a lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena, ou uma medida de segurança, não impondo porém, a mesma exigência de verdade requerida no julgamento final.
Analisada a prova dos autos e atentas as razões supra referidas, entendemos não reunirem os autos elementos que sustentem a sujeição da arguida requerente da instrução a julgamento, porquanto não resulta existir probabilidade séria e razoável dg lhe vir a ser aplicada uma pena, pelo cometimento do crime de que vem acusada, pelo menos do ponto de vista subjetivo.
Pelo exposto, determino, NÃO PRONUNCIAR a arguida C….
(…)»

Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Sobre a matéria, importa recordar os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.
A estrutura acusatória do processo penal, imposta a nível constitucional (artigo 32°, nº 5 da Constituição da República Portuguesa), implica que o conhecimento do tribunal esteja limitado pelo objeto processual.
O objeto processual penal começa por ser inicialmente delimitado, ainda que com grande flexibilidade, pela participação, denúncia ou queixa.
Posteriormente, o objeto processual será definitivamente delimitado pela acusação –neste caso, pela acusação particular -, neste caso, referente a um crime de difamação.
O assistente pretende, substancialmente, que a arguida C… seja pronunciada por tal crime.
Nestes termos, começa-se por recordar os requisitos legais previstos para a prolação de despacho de pronúncia:
O artigo 308° do Código de Processo Penal estatui que há lugar a despacho de pronúncia, se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Uma noção legal de indícios suficientes encontra-se na redação do número 2 do art. 283° do mesmo texto legal, considerando suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
A jurisprudência pouco acrescentou a esta noção, limitando-se a esclarecer que «indiciação suficiente é a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder».
Essa verificação e subsequente formação da convicção não devem ser proferidas de forma apressada ou precipitada.
Para ser proferido despacho de pronúncia, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, de modo que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade da arguida, impondo um juízo de probabilidade no que respeita aos factos que lhe são imputados. Estas exigências indiciárias encontram-se diretamente relacionadas com a importância social e pessoal de alguém ser sujeito a julgamento de natureza penal, gerando sequelas proporcionais ao grau de inocência das pessoas injustamente acusadas/pronunciadas.
Também a prova indiciária é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, com a amplitude prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, tendo enquanto pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio.
Exercendo a sua liberdade de convicção, o juiz de instrução criminal apenas tem de indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre a prova indiciária.
*
Cumpre, ora, caracterizar o ilícito criminal identificado pela assistente e analisar a prova indiciária junta aos autos, de modo a aferir se, de acordo com a motivação do recurso, a mesma é apta a fundamentar um despacho de pronúncia ou antes, conforme decidido pelo Tribunal a quo, um despacho de não pronúncia.
*
Do crime de difamação
O artigo 180.º, n.º 1 do Código Penal (que prevê o tipo-base de crime de difamação) traduz uma medida restritiva da liberdade de expressão, conferindo tutela penal ao direito do cidadão à sua integridade moral e aos seus bom nome e reputação, ao estabelecer que comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se traduz, normalmente, num juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.
Na definição de Beleza dos Santos "A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale". A consideração é, ainda na doutrina daquele autor "aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público".
São estes os valores que integram o bem jurídico protegido pelo crime de difamação, sendo certo que a sua consagração constitucional opta pela referência aos conceitos de "bom nome" e "reputação".
Nestes termos, "a difamação pode definir-se como atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social".
Nos termos da lei, o ataque à honra tanto pode ocorrer mediante a imputação de um facto como de um juízo e valor, sendo relativamente pacífico na doutrina e na jurisprudência que um facto será "um acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente e susceptível de prova" e um juízo de valor será "toda a afirmação contendo uma apreciação sobre o carácter da vítima que não está inscrita em factos".
No entanto, conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, tanto nacional, como estrangeira, "o juízo de valor desonroso não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão (…) numa sociedade democrática e tolerante. (acórdão do TRP, de 31.1.1996, in C.J. XXI, 1, 242). (…) Nestes casos, de crítica legítima, o visado pela crítica não pode apelar à tutela da sua reputação como parte integrante da sua "vida privada" pelo artigo 8º da CEDH (acórdão do TEDH Karako v. Hungria, de 28.4.2009, que distingue claramente entre a reputação e a "integridade pessoal").
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei.
Concretizado o enquadramento jurídico da matéria in iudicium, cumpre determinar os factos relevantes, apurados em sede indiciária, de modo a apreciar o mérito do recurso, bem como referir os meios de prova mais relevantes documentados nos autos, de modo a poder formar, de forma fundamentada, uma convicção em relação à existência, ou não, de indícios da "prática criminosa" imputada pela assistente à arguida C… no âmbito da sua acusação particular.
Chegados a este ponto, não resta outra conclusão, senão a de que a assistente não chega a imputar à arguida C…, em sede de acusação particular, a prática de um crime de difamação p. e p. pelo disposto no artigo 180º, nº1,do Código Penal, uma vez que na descrição dos factos omite qualquer referência ao elemento subjetivo do tipo legal de crime acima descrito.
Tal circunstância processual, per se, determina a improcedência do recurso, uma vez que o artigo 286º, 1 do Código de Processo Penal estatui que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, não consubstanciando um novo inquérito, cujos objetivos se encontram definidos no artigo 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Não constando da acusação particular, em termos fácticos, o elemento subjetivo do tipo legal de crime imputado à arguida, a juíza de instrução criminal já não poderia vir a acrescentá-lo em sede de pronúncia, uma vez que o objeto do processo ficou definido, in casu, pela acusação particular que ficou sujeita à comprovação judicial em sede de instrução[3].
No entanto, mesmo se a assistente não tivesse omitido o elemento subjetivo do tipo legal de crime de difamação na acusação particular, a decisão instrutória seria sempre de não pronúncia, uma vez que, conforme referido na fundamentação do despacho recorrido, os autos não evidenciam prova indiciária bastante para justificar a pronúncia:
«Porém, com excepção da versão apresentada pela assistente, não existem nos autos quaisquer indicios que sustentem a versão formulada. Já que a arguida (que foi ouvida na qualidade de testemunha em inquérito) apenas admitiu que em conversa terá referido que não mais havia contratado a assistente porque alguém em quem tinha muita confiança lhe tinga mencionado que a arguida era uma ladra e que apenas repetiu esta conversa não com o intuito de a difamar mas apenas para comentar a circunstância de não confiar na arguida e de não mais ter solicitado os seus serviços. Este facto foi também confirmado pelos depoimentos das testemunhas ouvidas em inquérito.»

Para contrariar a fundamentação da decisão recorrida, a assistente limitou-se a esgrimir com juízos de valor sobre a sua própria acusação particular ("acusou bem"), o trabalho do Ministério Público em sede de inquérito ("trabalho pobre") e do juiz de instrução criminal ("A Instrução avaliou mal o caso").
Motivação sofrível.
Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, resultou manifesto que as únicas fragilidades detetadas no processo se limitam à atividade processual da assistente: a acusação particular (que não chega a imputar à arguida C… a prática de um crime de difamação, por não incluir o elemento subjetivo do tipo legal de crime) e o recurso (por ser improcedente).
Pelo exposto, confirma-se a decisão instrutória recorrida.
Das custas:
Sendo o recurso julgado não provido, a recorrente deverá ser condenada no pagamento das custas [artigos 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do R.C.P., tendo por referência a Tabela III anexa a este texto legal], fixando-se a taxa de justiça individual, de acordo com o grau de complexidade médio/reduzido do recurso, em 4 (quatro) unidades de conta.
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em negar provimento ao recurso da assistente B….
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça respetiva em 4 (quatro) UC (unidades de conta).
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 15 de Dezembro de 2016.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1, este pesquisável, nomeadamente, através do aplicativo de pesquisa de jurisprudência disponibilizado, pelo ora relator, em http://www.langweg.blogspot.pt.
[3] Vide a este respeito, ainda, a doutrina do acórdão nº 1/2015, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República nº 18/2015, de 27 de Janeiro: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»