Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
44/19.9TXLSB-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: MODIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
RECLUSO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
DIREITO À TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Nº do Documento: RP2020080344/19.9TXLSB-C.P1
Data do Acordão: 08/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: 1 - No caso em apreço, não deveria ter sido rejeitado, por manifestamente infundado, o requerimento de modificação da execução da pena de prisão ao abrigo do artigo 120.º, n.º 1, b), do Código da Execução das Penas, devendo o Tribunal promover a instrução do processo nos termos do artigo 217.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código.
2 - O princípio da investigação e da verdade material, estruturante do processo penal e também aolicável no âmbito da execução das penas, assim como o direito fundamental do recluso à tutela jurisdicional efetiva, impõem ao Tribunal o dever de promover oficiosamente a realização das diligências necessárias a tal instrução, designadamente a realização de exames médicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 44/19.9TXLSB-C.P1 – 1.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho de 18/05/2020, proferido no processo n.º 44/19.9TXLSB-C, que corre termos no Juízo de Execução das Penas do Porto, Juiz 5, Tribunal de Execução das Penas do Porto, foi decidido rejeitar o requerimento apresentado pela reclusa B…, no qual esta pretendia a modificação da execução da pena de prisão, de molde a poder ser esta cumprida em regime de permanência na habitação, e por considerar ser tal requerimento manifestamente infundado, nos termos do artigo 148.º, alínea a), do CEPMPL.
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso a reclusa, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1- Quem tem de indicar aos autos a Doença Grave após testes médicos, nos termos do artigo 217º do CPEMPL, é o Corpo Clínico, pois faz parte do processo dos artigos e seguintes enquanto responsável e conhecedor profundo de todas as doenças dos reclusos.
2- Existe da parte do Tribunal a quo uma violação do artigo 217º do CEPMPL e seguintes. Reza o Artigo 217.º CEPMPL o que acarreta a nulidade insanável da sentença.
3- A instrução do requerimento incumbe ao Tribunal a quo e não à reclusa.
4- Em abono da verdade a doença da reclusa é do foro psiquiátrico, e cabe aos serviços aquilatar da sua gravidade.
5- A doença psiquiátrica é invisível, irreversível, grave, e no meio prisional não há assistência médica compatível.
6- O Estabelecimento Prisional onde a reclusa está, não tem no seu corpo clínico qualquer Psiquiatra. tem sim um Psicólogo e Enfermeiros que são bem diferentes da de um médico psiquiátrico.
7- O Recurso é Procedente e o Tribunal a Quo deve praticar todos os procedimentos do artigo 217º do CEPMPL e seguintes até final.”
1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:
“1.- O recurso merece ser rejeitado por falta de fundamento;
2.- o cumprimento do disposto no art.º 217º, nºs 2 e 3, do CEPMPL só se cumpre se for indicado o motivo concreto para essa pretensão, ou seja, se o requerente padece de doença grave e irreversível, com deficiência, se padecia de doença grave e permanente ou se é já pessoa de idade avançada;
3.- no requerimento para a concessão do MEP, onde a reclusa/recorrente se espraia sobre vários temas, nunca concretiza a situação clínica ou de idade;
4.- os pressupostos para a apreciação de um requerimento de modificação de pena não são os instrumentos que permitem, ou não, comprovar a situação apresentada pela requerente, sendo que, e, ainda, como bem se afirma na decisão, que mesmo que comprovado algum dos possíveis requisitos a concessão daquela só poderia ocorrer se à mesma se não opusessem as necessárias exigências de prevenção especial ou geral.”
1.4. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela procedência do recurso, nos seguintes termos:
“(…)
No requerimento apresentado pela arguida em 23.03.2020, refere-se, designadamente (art.º 30.º) que a arguida padece e sempre padeceu de anomalia psíquica grave e que se modificou por agravamento na reclusão; que (art.º 31.º) a reclusão agrava o quadro clínico da condenada; (art.º 32.º) que a reclusão nos termos atuais colide com os direitos à vida e à saúde.
Funda o TEPMPL a sua decisão, além do mais, no facto de “o que ali se refere são hipóteses abstratas, nada se afirmando e, por isso, não se sustentando, designadamente, através de relatório médico, relativamente à concreta situação de saúde da reclusa”.
É sabido que a determinação da doença caracterizada como anomalia psíquica, que poderá não ser patente nem facilmente detetável, carece de contactos, mais ou menos demorados, entre o médico e a/o paciente.
Ora, encontrando-se a reclusa, ora recorrente, em cumprimento de pena, como poderia juntar relatório médico relativo à sua concreta situação de saúde, sem que o tribunal, previamente, tenha ordenado a realização da respetiva perícia?
O art.º 30.º da Constituição prescreve que “os condenados (…) mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução”.
Daqui decorre que “o recluso permanece titular de todos os seus direitos fundamentais; em segundo lugar, que as restrições desses direitos fundamentais pressuporá sempre uma lei, que obedecerá aos princípios estabelecidos no art.º 18.º da Constituição, e, em terceiro lugar, que a restrição terá de ter por fundamento o sentido da condenação e as exigências próprias da condenação”[1].
Por outro lado, conforme dispõe o art.º 1.º da Constituição, “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (…)”.
“A constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana é, pois, a referência axial de todo o sistema de direitos fundamentais”[2].
A dignidade da pessoa humana “tem um valor próprio e uma dimensão normativa específicos. Desde logo, está na base da concretização do princípio antrópico ou personicêntrico inerente a muitos direitos fundamentais (direito à vida, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito à integridade física e psíquica (…))”[3].
“O princípio da dignidade da pessoa humana implica uma especial proteção das pessoas mais idosas, daquelas que vivem na miséria, das que são portadoras de doença física ou mental (…), ou seja de todas aquelas que são, por força da sua menor autonomia factual, mais vulneráveis”[4].
A convenção Europeia dos Direitos Humanos proíbe, no seu art.º 3.º, a tortura.
Irineu Cabral Barreto salienta que “é preciso ter em conta a especial vulnerabilidade dos doentes mentais.
A recomendação n.º R/98/7, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, relativos aos aspetos éticos e de organização dos cuidados de saúde no meio penitenciário, prevê que os detidos sofrendo de doenças mentais graves devem ser colocados e tratados num serviço hospitalar dotado de equipamento adequado e dispondo de um pessoal qualificado”[5].
Aliás, a natureza dos crimes pelos quais a arguida foi condenada, de profanação de cadáver, de recém-nascido, e de homicídio, são já indiciadores de que a arguida poderia, no momento da sua prática, e poderá ainda, encontrar-se perturbada.
Temos assim, que tendo sido suscitada a possibilidade de a reclusa B… sofrer de doença mental grave, de acordo com o seu requerimento apresentado em 23.03.2020, no qual refere, designadamente (art.º 30.º) que padece e sempre padeceu de anomalia psíquica grave e que se modificou por agravamento na reclusão; e (art.º 31.º) que a reclusão agrava o quadro clínico da condenada, importa determinar a sua sujeição a perícia médico-legal, a fim de que seja determinado qual o seu estado de saúde mental e, sofrendo de anomalia psíquica grave, se o seu tratamento é ou não compatível com o prosseguimento do cumprimento da pena em que foi condenada no Estabelecimento Prisional em que se encontra.
Deverá, pois, ser determinada a sujeição da reclusa B… a perícia médico-legal psiquiátrica, dando-se cumprimento ao determinado no art.º 217.º, n.º 2, do CEPMPL.”
1.5. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pela reclusa e os poderes de cognição deste Tribunal, tendo em conta ademais que o recurso visa apenas matéria de direito, a questão a resolver consiste fundamentalmente em saber se ocorre ou não fundamento para a revogação da decisão recorrida, por ter sido proferida em violação dos art.ºs 217º e ss. do CEPMPL.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1. A decisão recorrida é do seguinte teor:
“A reclusa B… veio apresentar pedido de modificação da execução da pena de prisão que cumpre, com os fundamentos que se colhem do requerimento de 23/03/2020, requerendo que lhe seja permitido cumprir a pena de prisão em Regime de Permanência na Habitação com vigilância eletrónica, nos termos do art.º 120º do CEP.
Não invoca a existência de qualquer incapacidade ou doença irreversível nem juntou qualquer relatório clínico.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.
Cumpre proferir despacho liminar.
Nos termos do artigo 118.º do CEP, “Pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:
a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;
b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou
c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afete a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.”
Assim, é pressuposto formal da concessão da modificação da execução da pena:
a) que o condenado se encontre numa das situações previstas nas alíneas do art.º 118.º do CEP;
Por seu turno, é requisito substancial (ou material) da modificação da execução da pena que a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social.
Ora, lendo o requerimento apresentado pela reclusa constata-se que ali não é invocada qualquer deficiência ou doença concretas de que a reclusa padeça e, muito menos, o carácter irreversível da mesma ou a sua incompatibilidade com o cumprimento da pena em meio prisional, designadamente, com recurso ao tratamento medicamentoso e clínico de que pode dispor no estabelecimento prisional, se necessário, com recurso aos serviços clínicos ali disponíveis.
O que ali se refere são hipóteses abstratas, nada se afirmando e, por isso, não se sustentando, designadamente, através de relatório médico, relativamente à concreta situação de saúde da reclusa.
Assim, não tendo sido invocada a existência concreta de qualquer das graves situações a que alude o artigo 118.º do CEP, o requerido, enquanto modificação da execução da pena, é manifestamente improcedente.
Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, nos termos do artigo 148.º, alínea a), do CEP, por ser manifestamente infundado, rejeito o requerimento apresentado.”
2.1.2. A reclusa B… encontra-se atualmente a cumprir pena de prisão pela autoria de um crime de homicídio, previsto e punido pelo art.º 131º do Código Penal e de profanação de cadáver (sobre recém-nascido), previsto e punido pelo art.º 254º, nº 1, al. a), do CP.
2.1.3. Por requerimento entrado no processo a 23/03/2020, veio a reclusa pedir a modificação da execução da pena, nos termos do art.º 118º e seguintes do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), alegando como fundamento, em síntese:
- Padece de anomalia psíquica grave;
- Anomalia essa que, apesar de poder ter sido requerida ou oficiosamente averiguada, não o foi na fase processual que decorreu até ao trânsito em julgado do acórdão condenatório;
- Mas pode sê-lo na fase de execução da pena privativa da liberdade;
- O ato de matar um filho ocorre sempre em circunstâncias extraordinárias e patológicas;
- A reclusa é inimputável;
- O caso vertido é idêntico a outros em que foram consideradas anomalias psíquicas frequentes;
- No caso da condenada o Direito terá de se socorrer de médicos especialistas, psiquiatras para aferir a Anomalia Psíquica grave de que padece e sempre padeceu e que se modificou por agravamento na reclusão;
- A reclusão agrava o quadro clínico da condenada;
- A história clínica da condenada é caracterizável por diversas patologias emocionais, para concluir que a execução da prisão poderá fazê-la mergulhar em depressão exponenciadora que já apresenta, pondo em causa os seus direitos à saúde e à vida.
2.1.4. Terminando por afirmar:
“41º
O TEP pode, contudo, decidir da modificação da execução da pena, verificado que seja o condicionalismo legalmente exigido
42º
1- A execução das penas e medidas privativas da liberdade garante ao recluso, nomeadamente os direitos:
a. À proteção da sua vida, saúde, integridade pessoal e liberdade de consciência, não podendo ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos;
43º
Convém lembrar ainda que o sistema dispõe de hospital prisional, todos os reclusos são utentes do sistema nacional de saúde e garante que em situação emergente, são internados em unidade de saúde não prisional, sendo por essa via sempre acauteladas as suas necessidades, tal como regulamentam os art.ºs 32º a 37º do CEPMPL (cfr. em especial, os art.ºs 32º, nº 2, 34º, nº 3).”
2.1.5. Após despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicialmente apresentado, no sentido de especificar qual a modalidade em que pretendia a modificação da execução da pena requerida, veio a requerente pedir que a mesma fosse executada em regime de permanência na habitação;
2.1.6. Por despacho de 23/04/2020, foi determinada a notificação da requerente para, ao abrigo do disposto no art.º 217º, nº 1, do CEPMPL, dar o seu consentimento por escrito nos autos à modificação da execução da pena, nos termos requeridos.
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
A questão a resolver no presente recurso, como deixámos acima referido, consiste fundamentalmente em saber se ocorre ou não fundamento para a revogação da decisão recorrida, por ter sido proferida em violação dos art.ºs 217º e ss. do CEPMPL.
A pretensão deduzida nos autos pela recorrente, liminarmente desatendida pelo Tribunal a quo, sem qualquer conhecimento do mérito da mesma, numa decisão de cariz puramente formal, foi a de obter a modificação da execução da pena de prisão, nos termos previstos no art.º 118º e ss. do CEPMPL, por alegadamente padecer de anomalia psíquica grave, a qual, apesar de poder ter sido requerida ou oficiosamente averiguada até ao encerramento da audiência de julgamento, não o foi, vindo posteriormente a transitar em julgado o acórdão condenatório. Acrescentando a requerente que a sua história clínica é caracterizável por diversas patologias emocionais, e que a execução da prisão poderá fazê-la mergulhar em depressão exponenciadora, a qual já apresenta, pondo em causa os seus direitos à saúde e à vida.
Os art.ºs 216º e ss. do CEPMPL prevêem e regulam a possibilidade de modificação da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada.
O art.º 217º, nºs 1 e 2, diz que, depois de apresentado o requerimento de modificação da execução da pena e obtido o consentimento expresso ou havendo ainda que comprovar-se o consentimento presumido do condenado, o tribunal de execução das penas promove a instrução do processo com os seguintes elementos, consoante se trate de recluso com doença grave e irreversível, com deficiência ou doença grave e permanente ou de idade avançada:
a) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena;
b) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de deficiência ou da doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena.
c) Certidão de nascimento e parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena.”
Acrescentando-se no nº 3 do mesmo artigo que em todos os casos o requerimento é ainda instruído com o relatório do diretor do estabelecimento relativo ao cumprimento da pena e à situação prisional do condenado; b) Relatório dos serviços de reinserção social que contenha avaliação do enquadramento familiar e social do condenado e, tendo por base o parecer previsto no número anterior, das concretas possibilidades de internamento ou de permanência em habitação e da compatibilidade da modificação da execução da pena com as exigências de defesa da ordem e da paz social; c) Parecer de médico do estabelecimento prisional quanto à impossibilidade de o condenado conhecer os pressupostos de modificação da execução da pena ou de se pronunciar sobre eles, sempre que haja de comprovar-se o seu consentimento presumido.
Ora, como resulta dos preceitos normativos citados, ao requerimento de modificação da execução da pena, seguir-se-á necessariamente uma fase instrutória, na qual se recolherão os elementos essenciais à prolação de decisão sobre o mérito da pretensão deduzida, só assim não sucedendo nos casos em que, ao abrigo do art.º 148º, al. a), do mesmo diploma legal, o juiz do tribunal de execução das penas, ouvido o Ministério Público, considerar que o requerimento deve ser rejeitado por ser manifestamente infundado ou por conter pretensão já antes rejeitada e baseada nos mesmos elementos.
Note-se que a rejeição por manifesta falta de fundamento precede, na ordem lógica legalmente estabelecida no art.º 148º, al. a), a decisão de aperfeiçoamento prevista na al. b) do mesmo artigo, porque logicamente se afigura não ser aperfeiçoável o que manifestamente não tem qualquer fundamento, qualquer razão de ser, do ponto de vista fáctico-jurídico, conclusão que à partida se imporá com base num juízo prognóstico de evidência indiscutível, ao ponto de se poder concluir que o prosseguimento do processo seria absolutamente inútil. Valendo aqui os ensinamentos do Professor Alberto dos Reis, ainda que dirigidos ao indeferimento liminar da petição inicial, no âmbito do processo civil, mas aplicável ao caso dos autos, na justeza dos seus pressupostos lógicos, quando diz que o indeferimento liminar da petição inicial deve ser determinado nos casos (apenas nos casos) em que “for de tal modo evidente que se torna inútil qualquer instrução e discussão posterior”, dada “a evidência e a nitidez da ausência de fundamento legal para a pretensão”, de molde a poder também concluir-se que tudo o que se praticasse no processo seria pura perda”. Fazendo, por isso, o mesmo autor, apelo ao “uso prudente e moderado da prerrogativa outorgada”.[6]
Não é decisivamente esse o caso dos autos. E denuncia-o desde logo o facto de o Tribunal recorrido ter proferido o que denominou ser um despacho de aperfeiçoamento, determinando a notificação da requerente para vir dizer aos autos qual a modalidade em que pretendia a modificação da execução da pena requerida. Não sendo lógica uma tal determinação quando, à partida, fosse manifesta a inexistência de fundamento legal para a pretensão deduzida, isto é, e no entender vertido pelo Tribunal, fosse qual fosse o modo de execução da pena pretendido.
Por outro lado, resulta evidente nos autos a necessidade de instrução do requerimento apresentado, não só com os elementos probatórios referidos nas disposições normativas acima citadas, pois só com base neles poderá o Tribunal proferir decisão de mérito sobre a pretensão deduzida pela reclusa, mas desde logo na determinação prévia da existência ou não da doença grave, do foro psiquiátrico, alegada pela recorrente, pressuposto fundamental da realização das demais diligências instrutórias. Patologia, cuja correta perceção ou conhecimento não está ao alcance, nem da própria requerente, nem do tribunal, porquanto atinente à perceção e apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais, que só mediante prova pericial poderão ser apurados, nos termos previstos nos art.ºs 151º e ss. do Código de Processo Penal, ex vi art.º 154º do CEPMPL.
Por outro lado, como bem refere o Sr. Procurador-Geral-Adjunto, no seu douto parecer, é pertinente perguntar-se: “encontrando-se a reclusa, ora recorrente, em cumprimento de pena, como poderia juntar relatório médico relativo à sua concreta situação de saúde, sem que o tribunal, previamente, tenha ordenado a realização da respetiva perícia?”
O princípio da investigação e da descoberta da verdade material, estruturante do processo penal, também aplicável no âmbito da execução das penas, impõe ao tribunal o dever de proceder ele mesmo, oficiosamente, à realização das diligências que considere necessárias, tendo em vista a prolação de uma decisão materialmente justa. Não sendo possível fazer recair sobre os demais sujeitos processuais qualquer ónus de prova sobre os factos essenciais ou revelantes para a boa decisão da causa. E de tal modo que, mesmo depois de instruído o processo, com a realização de todas as diligências necessárias e relevantes, sendo neste particular transversalmente aplicável a todo o processo penal o preceituado no art.º 340º do CPP para a fase de julgamento, persistindo a dúvida, sempre haveria que se decidir, face à mesma, a favor do condenado, em obediência ao princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, constitucionalmente previsto no art.º 32º, nº 2, da CRP, ao prescrever que “do arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”, sendo certo que, por isso, “compete em último termo ao juiz, oficiosamente, o dever de instruir e esclarecer o facto sujeito a julgamento”.[7]
Correlativamente a esse poder-dever do Tribunal assoma-se o direito fundamental do recluso à tutela jurisdicional efetiva, constitucionalmente previsto no art.º 20º da Constituição da República e positivado nas disposições normativas citadas do CEPMPL, assim como a um processo equitativo, a que alude o art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Direitos que são intangíveis apesar da situação de reclusão da recorrente, porquanto de tal situação não se descortina qualquer limitação que pudesse advir ou fosse inerente ao sentido da condenação por aquela sofrida ou às exigências da respetiva execução – art.º 30º, nº 5, da CRP. Estas, aliás, é que impõem um dever acrescido de garantia do exercício efetivo e cabal daqueles direitos.
Damos aqui por reproduzidas as considerações tecidas no douto parecer do Sr. Procurador-Geral-Adjunto, acima transcrito, sublinhando a especial atenção que a consideração pela dignidade da pessoa humana exige relativamente às pessoas que possam ser mais vulneráveis, designadamente as que sejam portadoras de anomalia psíquica grave, e ao especial cuidado que sobre tal matéria deve ser adotado no meio prisional, em harmonia com a Recomendação nº R/98/7, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, relativa aos aspetos éticos e de organização dos cuidados de saúde no meio penitenciário, a impor desde logo que a abordagem de tais situações não possa ser feita de forma a priori ou através de decisões meramente formais, mas antes baseadas em factos apurados segundo critérios processualmente válidos, e sempre em obediência ao princípio da oficiosidade e da descoberta da verdade material que marca todo o processo de cariz penal, dado ademais a sua natureza de direito constitucional aplicado.
Pelo exposto, somos levados a concluir que, precipuamente às diligências de prova especificamente referidas nos nºs 2 e 3 do art.º 217º do CEPMPL, no caso dos autos havia que apurar pela via probatoriamente adequada se a reclusa padece ou não da doença grave que invoca, a qual, pela sua natureza, se assume por vezes de forma sinuosa, imperscrutável ou erroneamente percecionada por quem não possua os conhecimentos técnicos e científicos para tal necessários. Sobretudo quando o alegado pela recorrente tem fundamento, em termos de plausibilidade possível, porquanto é do conhecimento comum a associação muitas vezes existente dos crimes praticados pela recorrente a patologias graves do foro psíquico e psiquiátrico, as quais não resulta documentado nos autos que hajam sido devidamente despistadas, firmadas ou infirmadas por quem para tal pudesse ter alguma competência. Sendo que só uma perícia médico-legal forense o poderá esclarecer, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 151º, 152º, nº 1, 159º, nº 1, do CPP, 2º e 24º da Lei n.º 45/2004, de 19/08.
Podendo inclusivamente dar-se o caso de eventual aplicação do disposto nos art.ºs 104º a 106º do CP, sendo a própria recorrente, através do seu advogado, que alega no seu requerimento o substrato fáctico-jurídico de uma tal possibilidade. Cujo procedimento processual teria então cobertura nos art.ºs 164º e ss. do CEPMP.
A falta de instrução registada no caso dos autos constitui violação do dever de realização das diligências que no caso concretamente se impunham como necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa. Sendo por isso destituída de fundamento legal a rejeição do requerimento apresentado pela reclusa, dado o mesmo, ao contrário do decidido não se nos afigurar manifestamente infundado.
Irá por isso ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine a instrução do requerimento, nos termos legais, incluindo a realização de perícia médico-legal, de psiquiatria e psicologia forense, pela qual se apure da existência ou não da anomalia invocada pela recorrente, assim como da respetiva gravidade, tendo em vista a modificação ou não da execução da pena de prisão em que a reclusa foi condenada.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela reclusa B…, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que determine a instrução do requerimento, nos termos legais, incluindo a realização de perícia médico-legal, de psiquiatria e psicologia forense, pela qual se apure da existência ou não da anomalia invocada pela recorrente, assim como da respetiva gravidade, tendo em vista a modificação ou não da execução da pena de prisão em que a reclusa foi condenada.
Sem custas
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Porto, 03 de agosto de 2020
Francisco Mota Ribeiro
Joaquim Moura
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[1] MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, UCE, 2017, p. 501.
[2] MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, UCE, 2017, p. 64.
[3] 3 CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2007, p. 198.
[4] 4 MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, UCE, 2017, p. 66.
[5] 5 BARRETO, Irineu Cabral, A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 2016, 5.ª ed., Almedina, p. 100.
[6] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª Edição - Reimpressão, Coimbra Editora, LIM., Coimbra, 1981, pág. 384 e 385.
[7] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1974, p. 211 e 212.