Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1397/14.0TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CASTELA RIO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
REPARAÇÃO
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
TRANSACÇÃO
Nº do Documento: RP201703081397/14.0TDPRT.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 13/2017, FLS. 39-45)
Área Temática: .
Sumário: Não integra o conceito de reparação integral para os fins do artº 206º1 CP, nomeadamente extinção do procedimento criminal, a transação entre as partes sobre o pedido civil deduzido no processo penal, tendo em vista o pagamento em prestações da indemnização acordada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Na Secção Judicial / Criminal do TRP acordam em Conferência os Juízes no Recurso
Penal 1397/14.0TDPRT.P1 vindo do Juiz 5 da Secção Criminal da Instância Local do Porto
PARTE I - RELATÓRIO

No PCS 1397/14.0 aberta em 06-6-2016 a Audiência de Julgamento do Arguido B… sob Pronúncia de 28-5-2015 a fls 322-325 pelos factos e conforme o Direito da Acusação de 10-11-2014 a fls 255-260 pela prática de um crime doloso de abuso de confiança qualificado p.p. pelo art 205-1-4 do CP com conexo Pedido Civil de 04-12-2014 a fls 272-276 / 278-280 do Assistente C… de condenação do Arguido / Demandado Civil no pagamento de 6.134 € para indemnização de danos patrimoniais mais juros moratórios vencidos e vincendos desde a data de notificação até integral e efectivo pagamento, sucedeu que:

«… pelo requerente, representado neste acto pelo seu mandatário judicial, com poderes para o ato [1], e pelo requerido foi dito que haviam chegado a acordo quanto ao pedido cível, com base nas seguintes cláusulas:
1ª O requerente reduz o pedido cível à quantia de € 5.204,00;
2ª Tal quantia será paga em 21 prestações mensais e sucessivas, sendo as primeiras 20 no montante de € 250,00 e a última no montante de € 204, vencendo-se a primeira no dia 1/10/2016 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes;
3ª O pagamento será efectuado através de transferência bancária para a conta com o IBAN a indicar perlo ilustre mandatário do assistente;
4ª As custas do pedido cível serão suportadas pelo requerente, prescindindo ambas as partes de custas de parte e procuradoria.

Seguidamente, o Mmº Juiz proferiu a seguinte:
SENTENÇA:
Face à qualidade dos intervenientes e à natureza disponível do objecto do processo, julgo válida e relevante a transacção efectuada, quanto ao pedido cível de fls. 278 a 280, homologando a mesma e declarando, em consequência, extinta a instância cível (artº 284º, 290º e 277º, al. d) todos do C.P.C. (nova versão)).
Custas nos termos acordados (artº 537º, nº 2 do C.P.C. (nova versão)).

De seguida, pelo Assistente, representado neste acto pelo seu mandatário judicial e pelo arguido, foi requerido, de comum acordo, a extinção da responsabilidade criminal, nos termos do artº 206º, nº 1 do C.P., considerando-se, o assistente, integralmente ressarcido dos prejuízos causados, atento o acordo celebrado.

Seguidamente, o Mmº Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO
Atento o requerido pelo assistente e pelo arguido e, ainda, o disposto no artº 206º, nº 1 do C.P., julgo extinta a respectiva responsabilidade criminal e ordeno o oportuno arquivamento dos autos.
Dou sem efeito o julgamento designado.
Notifique”.
Do despacho acabado de proferir foram todos os presentes notificados, do que disseram ficar cientes, tendo o ilustre mandatário do demandante, sido notificado, para, nos termos do disposto no artº 15º, nº 2, do Regulamento das Custas Processuais, no prazo de 10 DIAS, proceder à autoliquidação da taxa de justiça devida pelo pedido de indemnização cível formulado nos presentes autos».

Inconformado com o decidido, em tempo o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs RECURSO pela Declaração de interposição com MOTIVAÇÃO a fls 408-416 rematada com as sgs 6 CONCLUSÕES [2]:

1. O presente recurso é interposto do despacho judicial proferido em 6 de junho de 2016, constante da Ata de Audiência de Julgamento a fls. 390, nos termos do qual foi declarada extinta, por aplicação do disposto no art. 206º, n.º 1, do Código Penal, a responsabilidade criminal do arguido B…, a quem era imputada a prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205º, n.º 1 e 4, al. a), do mesmo diploma legal.

2. Na situação em apreço, não estão reunidos os pressupostos previstos no art. 206º, n.º 1, do Código Penal, para a referida extinção a responsabilidade criminal, uma vez que não ocorreu a restituição da coisa ilegitimamente apropriada.

3. Na verdade, o que ficou consignado na Ata de Audiência de Julgamento de fls. 389 a 391 foi um acordo celebrado entre o assistente/demandante civil e o arguido/demandado civil no sentido deste último proceder ao pagamento faseado da quantia peticionada em sede de pedido de indemnização civil, ao longo de vinte e um meses, com início em 1 de outubro de 2016;

4. Ou seja, em 6 de junho de 2016, aquando da prolação do despacho judicial ora recorrido, não existiu nenhuma restituição da coisa apropriada nem uma reparação integral dos prejuízos causados, mas apenas uma expectativa de ressarcimento que, a ser cumprida, apenas se concluirá em julho de 2018.

5. E, não tendo ocorrido a restituição da coisa ilegitimamente apropriada, não poderia o Tribunal concluir pela extinção da responsabilidade criminal do arguido e ordenar o arquivamento dos presentes autos.

6. Tendo declarado extinta a responsabilidade criminal do arguido, o tribunal violou o disposto no art. 206º, n.º 1, do Código Penal.

Pelo exposto, é nosso parecer que deverá ser revogado o douto despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, com a realização do julgamento para a apreciação do crime de abuso de confiança imputado ao arguido B…» [3].

ADMITIDO o Recurso a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo para este TRP ut arts 399, 401-1-a-I, 406-1, 407-2-a, 408-1 a contrario sensu e 427 do CPP por Despacho a fls 417 NOTIFICADO a Sujeitos Processuais inclusive nos termos e para os efeitos dos arts 411-6 e 413-1 do CPP, o ARGUIDO apresentou RESPOSTA a fls 421-429 a final «Considerando que:

a. o pagamento faseado era a única forma de o arguido ressarcir o ofendido dos prejuízos causados;
b. o próprio ofendido não pretende ver o arguido condenado, dando de bom grado a sua concordância para a extinção da responsabilidade criminal,
c. o ofendido declarou e considerou-se ressarcido de forma integral de todos os danos e prejuízos,
d. o arguido se encontra a trabalhar e em condições de cumprir o acordo;
e. protelar no tempo este processo só significaria perda de tempo e dinheiro para os envolvidos e para o Estado;
f. uma putativa condenação do arguido nenhum efeito reparador significaria para o assistente e para a sociedade, pois quando ela tivesse lugar, há muito que poderia estar reparado o assistente;
g. desaparecem as necessidades preventivas, pois que, a ameaça de uma possível condenação, e a carga que este processo impendeu sobre o arguido fazem cessar as necessidades de prevenção especial;
facilmente se percebe porque não merece qualquer reparo a sentença em crise, e por que andou bem o tribunal a quo ao decidir homologar o acordo e extinguir a responsabilidade criminal nos termos exarados.
• Termos em que, deverão negar provimento ao presente recurso do Ministério Público; e por consequência, deverão manter a sentença recorrida nos seus precisos termos …» [4].

Em Vista ut art 416-1 do CPP o Exmo Procurador Geral Adjunto emitiu a fls 445-446 II o PARECER que «… o recurso do MºPº não merece provimento» por considerar que:

«Com a transação cível celebrada entre o arguido e o assistente este declarou expressamente mostrar-se inteiramente ressarcido dos prejuízos que lhe tinham sido causados pela conduta ¡lícita do arguido.

Por isso, o assistente e o arguido, de comum acordo, dirigiram-se ao tribunal e pediram, a extinção da responsabilidade criminal, nos termos do artigo 206.º, n.º 1, do CP.

No artigo 206., n.º 1, do CP, diz-se o seguinte: | “... extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados

O C… considerou-se inteiramente ressarcido dos prejuízos que lhe tinham sido causados.

Parece-nos que basta esta declaração do ofendido para se mostrar preenchida a condição prevista no mencionado artigo da reparação integral dos prejuízos causados, não importando saber se tal declaração corresponde, ou não, inteiramente à realidade» [5].

NOTIFICADOS ut art 417-2 do CPP os Sujeitos processuais NÃO apresentaram RESPOSTA.

Na oportunidade – após demais serviço vg premente quando não urgente - efectuado EXAME PRELIMINAR e colhidos os VISTOS LEGAIS os autos foram submetidos à CONFERÊNCIA.
PARTE II - APRECIANDO

Contra a decisão de Direito do Despacho recorrido motivou o MP a quo concretamente que:

«[…] De acordo com a acusação pública deduzida nos autos, para qual remete o despacho de pronúncia, ao arguido B… foi imputado o facto de, no exercício das funções que desempenhou, entre 17 de novembro de 2011 e outubro de 2012, como Presidente da Direção do C…, ter efetuado, de forma abusiva, diversos levantamentos e transferências de quantias monetárias existentes na conta bancária titulada pelo C…, fazendo sua a quantia pecuniária global de 6.134,0€ (seis mil, cento e trinta e quatro euros), da qual então se apoderou em benefício próprio, sem o conhecimento e contra a vontade da instituição e que era Presidente.

Segundo tal acusação e pronúncia, tendo o arguido atuado voluntária, livre e conscientemente, conhecendo o caráter proibido da sua conduta, o mesmo incorreu na prática de um crime de abuso de confiança (qualificado) previsto e punível pelo art. 205º, n.º 1 e 4, al. a), do Código Penal.

[…] Dispõe o art. 205º, n.º 1 e 4, al. a), do Código Penal que “quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido (…) se a coisa referida no n.º 1 for (…) de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.

Analisada a redação do referido preceito legal, conclui-se que o crime em questão assume natureza pública, ou seja, o respetivo procedimento criminal não se encontra dependente da apresentação de queixa por parte de algum ofendido, circunstância essa que torna ineficaz qualquer desistência de queixa que seja requerida.

Acontece que, sendo imputado ao arguido o cometimento do crime de abuso de confiança, na forma agravada ou qualificada, prevista pelo art. 205º, n.º 4, al. a), o Código Penal prevê no art. 206º, n.º 1, a possibilidade de a responsabilidade criminal do arguido, ainda assim, ser extinta verificados que sejam determinados pressupostos.

Assim, de acordo com tal preceito legal: “nos casos previstos nas alíneas a), b) e) do n.º 1 e na al. a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano legítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados” (sublinhados nossos).

De acordo com este preceito legal, a extinção da responsabilidade criminal do arguido estará, então, dependente da verificação dos seguintes requisitos:
- que se trate de um dos crimes previstos no art. 204º, n.º 1, als. a), b) e e) e n.º 2, al. a) e no art. 205º, n.º 4, do Código Penal;
- que arguido e ofendido concordem com a extinção da responsabilidade criminal;
- que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou a reparação integral dos prejuízos causados.

Trata-se de uma previsão taxativa que, por isso, não admite interpretações extensivas, o que se compreende dado o caráter público dos ilícitos criminal em questão e os bens jurídicos que o legislador quis proteger com as incriminações.
Acontece que, na situação em apreço, o que ficou descrito na Ata de Audiência de Julgamento de fls. 389 a 391 não é a verificação dos aludidos pressupostos do art. 206º, n.º 1, do Código Penal, mas uma mera expectativa da sua verificação. | Senão vejamos.

Analisado o texto consignado em Ata, constata-se que, entre o assistente e o arguido, foi celebrado um acordo quanto ao pedido de indemnização civil (formulado a fls. 278 a 280), resultando do clausulado a redução do pedido à quantia de 5.204,00€ (cinco mil, duzentos e quatro euros) e a obrigação, para o arguido, de proceder ao pagamento de tal quantia, em 21 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 1 de outubro de 2016 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes.

Ora, tendo homologado a transação entre as partes civis nos termos referidos, não poderia o tribunal ter declarado extinta a responsabilidade criminal do arguido considerando verificados os pressupostos do art. 206º, n.º 1, do Código Penal.

É que, em tal ocasião, 6 de junho de 2016, esses pressupostos não estavam verificados, uma vez que, em tal data, não tinha havido restituição da coisa ilegitimamente apropriada, ou seja, a restituição das quantias monetárias retiradas da conta bancária do assistente C…, nem a reparação integral dos prejuízos causados ao assistente.

Em tal data foi celebrado, é certo, um acordo, visando a restituição futura, expectável, de parte da quantia ilegitimamente apropriada, sendo previsto um período dilatado de tempo – 21 prestações mensais, com início em 1 de outubro de 2016 - para o cumprimento pelo arguido do clausulado.

Ou seja, sendo tal acordo cumprido pelo arguido, apenas em 1 de julho de 2018 terá o mesmo restituído parcialmente a quantia ilegitimamente apropriada e ressarcido o assistente dos prejuízos causados.

Sendo esses os termos do acordo celebrado, é nosso parecer que a extinção da responsabilidade criminal decidida pelo tribunal decorreu de uma interpretação errada do disposto no art. 206º, n.º 1, do Código Penal.

O que em tal preceito legal se prevê é uma “válvula de escape” à impossibilidade de desistência de queixa em determinados ilícitos criminais que assumem natureza pública, constituindo um estímulo à restituição da coisa furtada ou apropriada e à reparação dos danos.

Assim, em ilícitos que contendem, fundamentalmente, com a integridade do património de terceiros, o legislador de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, com entrada em vigor a 15/09/2007) entendeu que seria, ainda assim, admissível extinguir-se a responsabilidade criminal do arguido, exigindo-se, para tal, a restituição da coisa furtada ou apropriada ou a reparação integral dos prejuízos, bem como o acordo entre arguido e ofendido no sentido dessa extinção.

Trata-se, então, de admitir uma extinção da responsabilidade/procedimento criminal, mediante o cumprimento de determinadas exigências.

E, prevendo o artigo 206º do Código Penal um regime excecional, não se afigura possível a sua aplicação a situações que não são ali previstas, como a restituição faseada no tempo ou o ressarcimento futuro de prejuízos.
A restituição ou reparação dos prejuízos causados tem de ser livre, completa e atempada. A restituição consiste na devolução da coisa tal qual a mesma se encontrava no momento do desapossamento. Essa questão deixa de ser pertinente, tratando-.se de coisa fungível. A restituição da coisa sem as suas características integrais pode ser tomada como apenas parcial, remetendo para o nº 3.

A reparação integral tem o sentido de global, com satisfação dos danos integrais, incluindo os danos não patrimoniais e os lucros cessantes que possam ser contabilizados. Não se prevê um sistema de prestações (…)” – comentários 7. e 8. ao artigo 206º in “Código Penal – Parte geral e especial - Com notas e comentários”, 2014, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Almedina, págs.867 e 868.

No mesmo sentido, atente-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de setembro de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 844/09.8TAMAI.P1, relatado por Neto de Moura e disponível no site www.dgsi.pt, onde, no respetivo sumário, se refere, a propósito de um crime de burla qualificada, que “I- Para que ocorra a extinção do procedimento criminal pelo crime de burla (…) exige-se além do mais a concordância dos ofendidos e a reparação dos prejuízos causados; II- Não se verifica a reparação, se os ofendidos se declaram ressarcidos dos prejuízos de natureza patrimonial apenas no pressuposto de que os arguidos suportarão todas as responsabilidades decorrentes do seu acto perante um terceiro credor, traduzindo-se tal assunção numa declaração de que se obrigam a efectuar essa reparação, sem que ela tenha ocorrido ainda”.

Do exposto resulta, assim, que o tribunal errou quando concluiu pela verificação dos pressupostos da extinção da responsabilidade criminal, concluindo-se que o despacho judicial proferido a fls. 390 viola o disposto no art. 206º, n.º 1, do Código Penal, devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos com a realização da audiência de julgamento» [6].

Contra a citada lógica motivadora do MP a quo respondeu o Arguido concretamente que:

3. … o aqui arguido foi pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo artigo 205.°, n.° 1 e 4, al. a) do Código Penal.

4. Nessa sequência, na data aprazada para a Audiência de Julgamento, no passado dia 6 de Junho de 2016, assistente e arguido requereram a extinção da responsabilidade criminal e o consequente arquivamento dos autos, atentos que estavam reunidos os pressupostos legais para tal extinção, nos termos do disposto no artigo 206.°, n.° 1 do mesmo código.

5. O Tribunal a quo, e bem, julgou extinta a responsabilidade criminal do arguido.

6. E bem, dizemos nós, uma vez que este último preceito legal determina que:
Artigo 206. ° - Restituição ou reparação
1 - Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e na alínea a) do n.° 2 do artigo 204. ° e no n.° 4 do artigo 205.°, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados. (negrito nosso)

7. Ora, não é este o entendimento prosseguido pelo Ministério Público, que diz não estarem preenchidos os pressupostos de aplicação da faculdade concedida por aquela norma.
8. Isto é, a Digníssima Procuradora do M.P., entendeu que o que ficou descrito na Ata de Audiência de Julgamento, foi uma mera expectativa da verificação dos pressupostos a que alude o artigo 206.°, n.° 1 do Código Penal.

9. No entanto, e salvo o devido respeito, não podemos estar mais discordantes da posição assumida pelo Ministério Público.
Notemos,
10. A disposição legal de que ora nos ocupamos, foi introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, cujo objetivo era de aproximação ao modelo austríaco de combate aos crimes contra a propriedade.

11. Isto é, aplica-se ao caso em apreço: crime de abuso de confiança, e para que produza efeitos, tem de existir um acordo entre o ofendido e o arguido - o que sucedeu, e foi homologado pelo Tribunal à quo.

12. Porém, o MP entende que pelo facto de o acordo em causa visar a restituição faseada no tempo, em prestações mensais e sucessivas, (uma necessidade por parte do arguido de que nos ocuparemos infra), o mesmo constitui uma restituição parcial da quantia ilegitimamente apropriada (cfr. fls 413 dos autos);

13. e que por via disso, não estarão — alegadamente - preenchidos os pressupostos para a extinção da responsabilidade criminal, nos termos do supra citado n.° 1 do artigo 206.° do CP.

14. Mais promoveu o MP que “em tal ocasião, 6 de junho de 2016, esses pressupostos não estavam verificados, uma vez que em tal data, não tinha havido restituição da coisa ilegitimamente apropriada”.
15. Ora, salvo melhor opinião, cremos que quem terá feito uma interpretação errada do disposto no art. 206.°, n.° 1 do CP, foi a Digníssima Procuradora do Ministério Público junto deste juízo.

16. Isto porque, compulsada a norma, interpretando-a, facilmente se obtém do sentido da mesma, que não obstante a exigência da reparação integral dos prejuízos causados, o que tem de acontecer até à publicação da sentença da 1.ª instância é a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro — o que de facto, aconteceu.

17. Isto é, ofendido e arguido, chegaram a um acordo e requereram a extinção da responsabilidade criminal antes da publicação da sentença do Tribunal “a quo”.

18. E, como se pronunciam M. Miguez e J.M. Castela Rio, “embora a norma não se refira ao modo como se processa essa reparação, (...) não é questão que o juiz tenha de acautelar quando se trata do n.° 1.”, fazendo crer que essa decisão é algo que estará, à partida, na disponibilidade dos sujeitos processuais.
Mais referem que,
a lei também não se ocupa do modo como se chega a acordo com vista à reposição integral, podendo ser iniciativa do arguido ou aparecer por sugestão do ofendido
in “Código Penal — Parte Geral e Especial — Com notas e comentários”, comentários 8 e 9, Almedina 2014.

19. Quanto ao facto de o MP entender que, a restituição em prestações mensais e sucessivas constitui uma restituição parcial e não integral da quantia ilegitimamente apropriada, receamos que, também no que a isto diz respeito, não terá feito uma correta interpretação nem da norma, nem dos factos.

20, Neste sentido, veja-se a pág. 816 da obra “Comentário do Código Penal: à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem” / Paulo Pinto de Albuquerque — 3.ª ed. — Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2015, onde se pode ler que:
Reparação integral consiste na satisfação dos danos patrimoniais e não patrimoniais, dos danos emergentes e dos lucros cessantes que decorreram crime.”.

21. Ou seja, pelo facto de ofendido e arguido terem acordado no pagamento faseado, isso não significa que a reparação não seja integral, pois ela será.

22. Aliás, a única forna que arguido tem de reparar de forma integral o ofendido é, precisamente, nos termos daquilo que acordaram, i.é., através do pagamento faseado.

23. Isto porque, à data do acordo, o arguido não tinha condições de pagar de uma só vez. Encontrava-se desempregado (com a promessa de assinar contrato de trabalho em Setembro deste ano, o que chegou a acontecer), havia perdido a mãe que falecera um ano antes na sequência de doença oncológica galopante, e em consequência do acompanhamento que foi prestando a esta durante os tratamentos médicos, e em virtude do seu débil estado psicológico e emocional, havia perdido igualmente uma bolsa de investigação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

24. Ou seja, se o arguido não tivesse a possibilidade de cumprir o acordo de forma faseada, nunca teria conseguido cumprir a restituição de forma integral;

25. e aí sim, não estariam preenchidos os pressupostos para a extinção da responsabilidade criminal nos termos do artigo 206.°, n.° 1 do CP..

26. Neste mesmo sentido, atente-se na obra supra indicada, em que Paulo Pinto Albuquerque a propósito dos termos do/a acordo/transação estarem na disponibilidade das partes, refere que:
Nada obsta à relevância da restituição ou reparação que resulte de uma proposta feita pelo ofendido ao arguido, e por este aceite.”

3. In casu foi o que aconteceu. Na sentença pode ler-se:
foi requerido, de comum acordo, a extinção da responsabilidade criminal, nos termos do art. 206. °, n.° 1 do CP, considerando-se, o assistente, integralmente ressarcido dos prejuízos causados, atento o acordo celebrado.”.

28. É que apesar de se tratar de um crime público, estamos no âmbito dos crimes contra o património, e os interesses que aqui estão em causa são de natureza disponível.

29. Ora, tudo isto nos leva a uma reflexão sobre os fundamentos deste recurso, quando os confrontamos com os propósitos de política criminal desta inovação legislativa introduzida em 2007» [7].

Ora, o Recurso merece provimento por autonomia da «questão cível» relativamente à «questão crime» por diversidade do «critério cível» relativamente ao «critério penal» da «medida da reparação do dano» só quando «integral» podendo ser extintiva da «responsabilidade criminal».
Desde a vigência em 01-10-1995 do DL 48/95 de 15/3 que o Código Penal consagra os seguintes «mecanismos premiais»: primo, «Quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância, a pena é especialmente atenuada» ut art 206-1 até 15-9-2007, 206-2 mercê da reordenação do art 1 da Lei 59/2007 de 4/9; secondo, «Se a restituição ou a reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente atenuada» ut art 206-2 até 15-9-2007, 206-3 mercê da reordenação do art 1 da Lei 59/2007 de 4/9; e ambos autónomos da «atenuação especial da pena» ut art 72-2-c com fundamento em «Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados» pelo facto da reparação no caso daqueles dois «mecanismos premiais» não se integrar «…num “arrependimento sincero” do agente e, assim, numa atitude moral que não é condição do regime do preceito aqui em análise» [8], entenda-se, o sobredito art 206-1-2 relativamente ao qual JORGE DE FIGUEIREDO DIAS anotou que:

«§ 4 … no caso do art. 206º-1, a intervenção do instituto da atenuação especial é obrigatória e, hoc sensu, automática, verificados que estejam os respectivos pressupostos objectivos naquele número contidos. Por isso se deve concluir que, de um ponto de vista político-criminal, a alteração introduzida pela reforma de 1995 não foi significativa, mas só de um ponto de vista dogmático e técnico-jurídico: a sua motivação residiu apenas em dar claramente a entender que a moldura penal aplicável é encontrada segundo as regras da atenuação especial e comandada por um dos seus pensamentos fundamentais: a sensível diminuição da necessidade de pena.

«§ 5 O relevo atribuído à reparação do dano em sentido amplo nos crimes patrimoniais – sob a forma seja da reparação do prejuízo em sentido estrito, seja da restituição da coisa – constitui hoje um capítulo fundamental da consideração da vítima como destinatário da política criminal relativamente ao discurso da vitimização/desavitimização e ao seu papel e estatuo perante as instâncias formais de controlo (vitimologia, vitimodogmática). É neste preciso contexto de pensamento político-criminal e dogmático que deve ser entendido o regime do art. 206º, não como refracção de uma qualquer “disponibilidade” do objecto do crime patrimonial conducente ao seu tratamento ainda que em quadros subsidiários (ou aparentados com os) do direito privado, nomeadamente do direito.

§ 6 Não falta hoje, de resto, quem vá bem mais longe e sustente que, numa grande parte dos crimes patrimoniais (e não só), deveria fazer-se da reparação em sentido amplo uma verdadeira sanção penal reparatória (cf. sobre o ponto já o Projecto alternativo alemão de reparação do dano, 1992, ROXIN § 3 63 ss. e FIGUEIREDO DIAS, DP II § 64 ss.), como instrumento básico de uma prática criminal vocacionada para a instauração de um modelo de restorative justice. Assim deveria ser porque o interesse da vítima é, nestes casos, melhor servido através da reparação do que da aplicação de uma pena de prisão ou de multa. Porque, em segundo lugar, em muitos casos de pequena ou de média gravidade, a reparação é bastante para satisfazer as necessidades de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na vigência da norma violada. E finalmente porque à reparação deve ser atribuído um acentuado efeito ressocializador, na medida em que conduz a que o agente se entreteça de perto com as consequências do seu facto para a vítima e poderá, inclusivamente, levar a que ele se concerte com ela, a uma mútua compreensão e eventualmente à desculpa pela vítima da falta cometida; o que, sem dúvida, reforçará a vigência e a validade da norma violada e contribuirá poderosamente para o restabelecimento da paz jurídica quebradas pelo crime.

§ 7 Não foi esta a solução recolhida pelo legislador português no presente artigo. Até porque o regime da reparação não é função da pequena ou média gravidade do crime, mas vale igualmente para o crime patrimonial grave. Foi de todo o modo o mesmo caldo de cultura político-criminal e dogmático que o motivou e está na base das soluções encontradas. Uma perspectiva, pois, toda ela, baseada na diminuição (preventiva) da necessidade da pena, e não, repete-se, em qualquer “degradação” do crime patrimonial para um lugar a meio caminho entre o direito público (penal) e o direito privado (civil), para sancionamento do qual bastassem sanções substancialmente civis, travestidas de sanções (formalmente) penais» [9].

Ora, o sobredito «…caldo de cultura político-criminal e dogmático…» levou a Lei 59/2007 de 4/9 a inovar em 15-9-2007 o «mecanismo premial» da «extinção da responsabilidade criminal» do novel art 206-1 conforme o qual «Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados» além dos «mecanismos premiais» do art 206-1 e 206-2 ante 15-9-2007 mantidos no art 206-2 e 206-3.

Sobre o sistema dos três «mecanismos premiais» do art 206-1-2-3 do CP de 15-9-2007 já se teve ensejo noutra sede de se explicitar a seguinte compreensão sistemática:

«1. Trata-se de um crime privilegiado criado, desde início, para estímulo da restituição ou reparação da vítima de certos casos de furto e de abuso de confiança, ACTAS, 1979, p. 125.

2. O regime do nº 1 foi introduzido pelas alterações de 2007. É aplicável aos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 do art. 204º e no nº 4 do art. 205º, isto é: diretamente, a crimes de furto e de abuso de confiança; por remissão, a crimes de dano, burla, burla relativa a seguros, burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de crédito e recetação qualificados. Para produzir efeitos, tem de haver acordo entre o ofendido e o arguido. A responsabilidade criminal extingue-se se houver restituição ou reparação integral até à publicação da sentença da primeira instância.

A lei não exige nem o arrependimento nem a sua manifestação. Trata-se, sem dúvida, de situação de facto distinta da prevista no art. 72º/2, c). A extinção da responsabilidade criminal concedida pelo nº 1 para o caso de restituição ou reparação integral não corresponde à figura da renúncia (“Entsagung”).

3. A responsabilidade criminal é declarada extinta mesmo que seja um, ou um dos coarguidos, ou um terceiro, que pode ser um familiar, a satisfizer por inteiro o prejuízo, em tempo oportuno, à custa do seu próprio património. Não basta, como acontece no código austríaco (§ 167, Abs. 4) que se conclua um acordo entre esse terceiro e o ofendido, mesmo com a colaboração ativa do arguido.

4. Permite-se que também em relação a certas formas de crime, de natureza pública, se aplique o regime deste nº 1. A razão apontada – satisfação do interesse do ofendido à custa da extinção da responsabilidade criminal e o desaparecimento de necessidades preventivas (Pinto de Albuquerque, 2010, p. 650), não coincide, a não ser em alguns pormenores, com o já experimentado § 167 do CP austríaco.

O chamado arrependimento ativo (“die tätige Reue”), a exemplo do que acontece com a desistência voluntária da tentativa, é verdadeiramente posto no interesse do ofendido – é, de resto, um dos mais interessantes institutos da dogmática e da política criminal austríacas, Kienapfel, 1993, p. 388. O agente é, aí, declarado isento de pena se em devido tempo e livremente satisfaz o prejuízo, seja através de outrem, seja por contrato com a vítima, contrato esse que, em certas condições, pode vir a ser alterado.

Não concordamos com a aproximação deste modo de legislar ao art. 328º/3; trata-se, é certo, neste outro caso, de um crime público (ofensa à honra do Presidente da República, que pode fazer cessar o procedimento criminal, em crime público, se expressamente declarar que dele desiste), que nada tem a ver com prejuízos patrimoniais, mas só e apenas com a figura do Chefe do Estado, carregando, por isso mesmo, uma significativa carga simbólica.

5. O regime do nº 2, em vigor já antes dessas alterações de 2007, leva à atenuação especial da pena (obrigatória), desde que a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada seja restituída ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado e a restituição ou reparação se façam sem dano ilegítimo para terceiro até ao início da audiência de julgamento em 1ª instância. Além da questão temporal, o regime difere do anterior por não ser necessária a concordância do ofendido. Limita-se, além disso, nos seus efeitos, à atenuação especial da pena, sendo correto afirmar-se que o privilegiamento não é aplicável à mera tentativa de furto ou de abuso de confiança, Figueiredo Dias, CCCP II, 1999, p. 119.

6. Acresce o caso especial da restituição ou reparação apenas parciais, podendo a pena ser especialmente atenuada (facultativa).

7. A restituição ou reparação dos prejuízos causados tem de ser livre, completa e atempada. A restituição consiste na devolução da coisa tal qual a mesma se encontrava no momento do desapossamento. Essa questão deixa de ser pertinente, tratando-se de coisa fungível. A restituição da coisa sem as suas características integrais pode ser tomada como apenas parcial, remetendo para o nº 3.

8. A reparação integral tem o sentido de global, com satisfação dos danos integrais, incluindo os danos não patrimoniais e os lucros cessantes que possam ser contabilizados. Não se prevê um sistema de prestações. Embora a norma não se refira ao modo como se processa essa reparação, bastará a entrega de um cheque visado ou outra modalidade que dê a segurança da entrega de numerário, por ex., uma garantia hipotecária ou bancária. Não é questão que o juiz tenha de acautelar quando se trata do nº 1. Mas já lhe cabe indagar, nos restantes dois casos, se a restituição ou reparação foram integrais ou simplesmente parciais, e as condições em que as mesmas se processaram, por constituir elemento do privilégio a ausência de dano para terceiro.

9. A lei também não se ocupa do modo como se chega a acordo com vista à reposição integral, podendo ser iniciativa do arguido ou aparecer por sugestão do ofendido. Sempre se entendeu, porém, que a reposição de coisa apensada ao processo por ter sido apreendida pela polícia, não sendo ato do arguido, não dá lugar ao privilégio aqui previsto. A restituição relevante, para os fins do artigo 206º, é a proveniente de acto voluntário do agente, estando excluída a resultante da intervenção de forças policiais, Ac. STJ de 12/06/1996 (96P1435).

10. No caso de coarguidos, o que está em causa é a restituição ou reparação integrais. O que há a reparar ou restituir não são parcelas que caibam a este ou àquele, mas o que respeita ao conjunto. Pode, inclusivamente, haver a intervenção de um terceiro que suporta a reparação integral em benefício dos arguidos, por intervenção ativa de todos ou mesmo só de um deles» [10].

Ora, sobre o predicado da «integralidade» versus «parcialidade» da «reparação» relevante ut art 206-1 ou 206-2 do CP ante 15-9-2007 judiciosamente objectivara JORGE DE FIGUEIREDO DIAS em Dezembro de 1999 mas ainda com actualidade ut art 206-1-2-3 do CP de 15-9-2007 que:

«§ 9 b) É necessário … que tenha tido lugar a restituição da coisa ou a reparação integral do prejuízo causado. A restituição deverá verificar-se com substancial manutenção, na coisa, do conjunto de qualidades e de aptidões de uso que possuía no momento do furto ou da apropriação; se este conjunto foi excepcional ou sensivelmente diminuído poderá dizer-se (se bem que em sentido translato) que a restituição foi apenas “parcial”, como de resto supõe expressamente o asrt.206º-2: o caso só poderá então ser submetido ao regime deste preceito, não ao do art. 206º-1. A reparação integral do prejuízo causado supõe por seu turno, assim se diria, a aplicação das normas relativas à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos (CC, art. 483º ss.), abrangendo por conseguinte a totalidade dos danos emergentes e dos lucros cessantes, os danos patrimoniais com os não patrimoniais. Perante a teleologia e a específica intencionalidade político-criminal desta reparação, porém, é pelo menos duvidoso que deva seguir-se uma interpretação jurídico-civil ampla e rígida: aquela teleologia e intencionalidade deve considerar-se satisfeita, para efeito do privilegiamento sancionatório, com a reparação do dano patrimonial equivalente ao valor económico objectivo da coisa: sem prejuízo, como é óbvio, de o lesado poder formular no mesmo processo penal o pedido de indemnização fundado na prática de crime, nos termos do art. 71º ss. do CPP. Uma coisa é esta indemnização civil das perdas e danos, outra coisa a reparação do art. 206º-1 para efeito de privilegiamento sancionatório.» [11].

Confortados com tais ensinamentos o Recurso do MP merece provimento por inexistência:

Desde logo do predicado «integralidade» por “falharem” 930 € do capital objecto de apropriação mais os juros representativos da privação de capital porque a Transação em, homologada por Sentença de, 06-6-2016 do pagamento de 5 204 € em 21 prestações mensais e sucessivas, sendo 20 de 250 € e a 21ª de 204 € com vencimentos de 01-10-2016 a 01-6-2018, em que o Demandado Civil ficou condenado a pagar, consubstancia substancial desistência parcial do pedido de pagamento de 6.134 € mais juros moratórios vencidos e vincendos desde a data da notificação até integral e efetivo pagamento in casu de doloso abuso de confiança qualificado pelo valor elevado de 6.134 € que o Arguido fez seus mediante 47 levantamentos entre 21 JAN e 24 OUT de 2012 do cartão de débito do OUF mais 5 transferências bancárias entre 16 JUL e 02 NOV de 2012 conforme inalterado objecto do processo definido para julgamento crime e cível conexo;

Sequer de «reparação» jus criminal penalmente relevante ut art 206-1 nem 206-2 nem 206-3 do CP mas quando muito uma circunstância atenuativa relevante comummente ut art 72-1, por inexistência de «reparação» sequer sob o ponto de vista civil processual civil, quanto mais criminal, por inexistência de «cumprimento» ut arts 762 sgs do Código Civil, esse sim gerador de «extinção da instância» por «impossibilidade superveniente» ut art 287-e do CPC, mas apenas de «extinção da instância» por mera «transacção» ut art 287-d do CPC quanto a «dever de indemnizar» ut arts 483 sgs e 562 sgs do Código Civil, porque a Vítima / Ofendido / Assistente / Autor Civil efectivamente nada recebeu em 06-6-2016 mas apenas poderá receber 5204 € entre 01-10-2016 e 01-6-2018 caso o Demandado Civil satisfaça o pagamento de cada uma das 21 prestações acordadas visto que a Sentença homologatória de Transacção constituiu não pagamento efectivo mas apenas título executivo no caso de incumprimento pontual do acordo sancionado judicialmente.

Como o art 206-1-2-3 do CP desde 15-9-2007 não optou pela consagração da «…reparação em sentido amplo [como] uma verdadeira sanção penal reparatória como instrumento básico de uma prática criminal vocacionada para a instauração de um modelo de restorative justice» realizando verbi gratiae por uma Transacção homologada por Sentença condenatória no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e ou não patrimoniais bastante a uma realização declarativa de Direitos Civil e Penal num modelo daquele tipo de «justiça restaurativa» assente «… num novo paradigma recreativo e conciliatório de justiça onde se percepciona a relação da vítima com o agressor já não como um «pretérito de culpabilidade» deste, mas numa visão reconstrutiva dos laços humanos e sociais estilhaçados» [12], antes optou pela consagração, nos quadros do Direito Penal tal como classicamente definido e compreendido, de mais um «… mecanismo premial» de efeito desta feita - mais incisivo que os “antigos” dois «mecanismos premiais» - inovatoriamente extintivo da responsabilidade criminal como «estímulo [mais eficaz que aqueloutros] da restituição ou reparação da vítima de certos casos de furto e de abuso de confiança» consistente em efectiva «… restituição ou reparação dos prejuízos causados livre, completa e atempada … integral tem o sentido de global, com satisfação dos danos integrais, incluindo os danos não patrimoniais e os lucros cessantes que possam ser contabilizados. Não se prevê um sistema de prestações»:
PARTE III - DECIDINDO

1. No provimento do Recurso do MINISTÉRIO PÚBLICO revoga-se o Despacho recorrido que deve ser substituído por outro que designe dia / hora / local para a Audiência de Julgamento do Arguido pelo pronunciado crime doloso de abuso de confiança qualificado em I grau pelo valor elevado p.p. pelo art 205-1-4-a do CP.

2. Decaído in totum na infundada oposição deduzida ao Recurso do MP condenam o Arguido Recorrido em 4 UC de taxa de justiça ut art 513-1 do CPP e 8-9 e tabela III do RCP.

3. Notifiquem-se os Sujeitos Processuais conforme art 425-6 do CPP.

4. Transitado, para execução do decidido remeta-se o processo a título definitivo ao Juiz 5 da Secção Criminal da Instância Local do Porto.

Porto, 08 de Março de 2017
Castela Rio
Lígia Figueiredo
___________
[1] Nota do Relator – por constar a fls 282 a PROCURAÇÃO de 03-12-2014 de C… que «…confere…» ao Sr Dr D…, «… com a faculdade de substabelecer, ... os mais amplos poderes forenses em direito permitidos e os especiais para transigir, confessar e desistir».
[2] Delimitadoras de objecto de Recurso e poderes de cognição deste TRP ut consabidas Jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores e Doutrina processual sem prejuízo do conhecimento de questão oficiosa verbi gratiae JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V, pgs 362-363, ASTJ de 17.9.1997 in CJS 3/97, ASTJ de 13.5.1998 in BMJ 477 pág 263, ASTJ de 25.6.1998 in BMJ 478 pág 242, ASTJ de 03.2. 1999 in BMJ 484 pág 271, ASTJ de 28.4.1999 in CJS 2/99 pág 196, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, 3ª edição, Verbo, 2000, pág 347, ASTJ de 01.11.2001 no processo 3408/00-5, SIMAS SANTOS, LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, Rei dos Livros, Maio de 2008, pág 107.
[3] Conforme copy paste pelo Relator do suporte digital oportunamente enviado com o processo.
[4] Conforme scanerização pelo Relator.
[5] Conforme scanerização pelo Relator.
[6] Conforme copy paste pelo Relator do suporte digital oportunamente enviado com o processo.
[7] Conforme scanerização pelo Relator.
[8] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, Coimbra Editora, DEZ 1999, pág 116.
[9] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, Coimbra Editora, DEZ 1999, pgs 117-118 – sublinhados do Relator das passagens in casu relevantes à compreensão do art 206 do CP.
[10] M MIGUEZ GARCIA, J M CASTELA RIO, Código Penal. Parte geral e parte especial, Almedina, Coimbra, 2ª edição SET 2015, pgs 911-913 – sublinhados e negritos do Relator das passagens in casu relevantes à compreensão do art 206 do CP.
[11] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, Coimbra Editora, DEZ 1999, pgs 117-118 – sublinhados do Relator das passagens in casu relevantes à compreensão do art 206 do CP.
[12] FRANCISCO AMADO FERRREIRA, Justiça Restaurativa. Natureza, finalidades e instrumentos, Coimbra Editora, Maio de 2006, pgs 11-12.