Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
263/20.5GBOVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
CONVOLAÇÃO PARA CRIME DE NATUREZA PARTICULAR
INEXISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RP20211110263/20.5GBOVR.P1
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Pessoa particularmente indefesa, conceito normativo consagrado no artigo 152º, nº1, alínea d) do Código Penal, será aquela que, com concretização fatual, se encontra numa situação de especial fragilidade, que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz em função de qualquer das qualidades previstas na norma - idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica.
II - No âmbito de uma acusação pública de violência doméstica convolada, entre outros crimes, para o crime de injúria, de natureza particular, a ausência de acusação particular ou de acusação como assistente pelos mesmos factos, até por adesão, determina a extinção do procedimento criminal relativamente ao mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº263/20.5GBOVR.P1

Acórdão deliberado em conferência na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator):
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I. B… veio interpor recurso da sentença proferida no processo comum singular nº263/20.5GBOVR do Juízo Local Criminal de Ovar, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica, p.e p. pelo artigo 152.º, nºs 1, al. d), e 2, 4 e 5, do Código Penal:
a) na pena de dois anos e seis meses de prisão;
b) na pena acessória de Proibição de contactar com a assistente C…, por qualquer modo, designadamente presencial, telefone, carta, correio eletrónico, redes sociais, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
c) na pena acessória de proibição de se aproximar a menos de 500 (quinhentos) metros da residência e do local de trabalho da assistente C…, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
d) na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência;
e) a título de indemnização por danos não patrimoniais, no pagamento da quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), aditada de juros, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente sentença, até integral pagamento.
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I.1. Sentença recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso).
“(…) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1º O arguido é filho da assistente C… a quem, recorrentemente, ao longo dos últimos anos, vem afrontando e agredindo, física e verbalmente em diversas ocasiões, na residência familiar sita na …, em Ovar, onde habita nuns barracões anexos à mesma e que recusa abandonar.
2.º E, por tais factos, foi já condenado nos processos 305/16.9GBOVR, 265/17.9GBOVR e 50/17.8GBOVR.
3.º Todavia, não obstante tais condenações e a circunstância de estar em cumprimento de pena de prisão suspensa na sua execução – na sequência da condenação irrogada no processo 50/17.8GBOVR – o arguido não refreia os seus comportamentos violentos, antes os retomou.
4.º Com efeito, após cumprimento de pena de prisão e por ocasião da imposição de cerco sanitário em Ovar - decorrente da situação de Pandemia de COVID 19 – em meados de março de 2020, o arguido regressou à residência familiar, instalando-se nuns barracões sitos nas traseiras da mesma e do estabelecimento de vidraria que a família ali possui, onde se introduziu – e onde permanece contra vontade da assistente.
5.º Desde então, com periodicidade diária e sempre que ao longo do dia avista a assistente no pátio, no jardim ou no armazém anexo à residência, aborda-a e interpela-a de modo violento, apelidando-a, repetidamente de: - “sua filha da puta”, “grande vaca”, “és uma puta, uma cabra.”
6.º E, repetidamente, anuncia-lhe em tom firme e sério que: “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta”, ao mesmo tempo que agarra quaisquer objetos que encontra, nomeadamente paus ou vassouras que empunha na direção da ofendida, fazendo menção de a agredir fisicamente, deixando-a aterrorizada.
7.º Aliás, por causa do regresso do arguido e do seu comportamento violento, a assistente viu-se obrigada a, de novo, tomar redobradas cautelas e vigilância, mantendo portas fechadas à chave, com cadeados e aloquete e colocando trancas nas janelas, de modo a impedir entrada daquele.
8.º Não obstante, o arguido, recorrentemente, procura arrombar portas e janelas, seja da residência, seja do armazém anexo à mesma, parte vidros e destrói quaisquer objetos que encontre.
9.º Muitas vezes, o arguido desliga o quadro elétrico situado no exterior da casa, ficando a assistente privada de energia elétrica, por temer que, caso saia de casa para o ligar, o arguido a surpreenda e agrida.
10.º A assistente vê-se igualmente privada de usufruir em sossego do espaço exterior à casa, pois sempre que, diariamente, sai para o pátio ou jardim, o arguido logo a aborda, exigindo-lhe dinheiro, e apodando-a de “puta”, “cabra”, anunciando-lhe o propósito de a agredir fisicamente ao dizer-lhe “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta.”
11.º Desde o seu regresso em meados de março de 2020, quase todas as noites – e como sucedeu, nomeadamente a 25/11/2020 – o arguido passa grande parte da noite a deambular pelo pátio, jardim e anexos da casa, até de madrugada, gritando alto, batendo com paus e objetos não apurados, nas paredes e nas portadas das janelas, sobretudo do quarto dos progenitores, fazendo com que acordem sobressaltados.
12.º E, dirigindo-se à assistente, assegura-lhe que “tu e o teu cão” – referindo-se desse modo ao irmão D… – “vão para um sítio bem pior do que eu vim” e, “se eu tivesse dinheiro tu ias ver”, proferindo contínuos insultos apodando-os de “grandes filhos da puta.”
13.º E num crescendo de violência, continua a bater com paus nas paredes, nas portadas e a gritar, garantindo à assistente, quando esta lhe pede que vá embora ou que aceite tratar-se:
- “Eu não saio daqui, vão ter que levar comigo”;
- “Tu é que tens de te tratar sua maluca, sua puta.”
14.º Em 11 de dezembro de 2020, o arguido B… foi presente a primeiro interrogatório judicial, tendo-lhe sido, então, aplicadas as seguintes medidas de coação: proibição de se deslocar e/ou permanecer na habitação da assistente; proibição de contactar direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por intermédio de outra pessoa, ou através de meios de comunicação eletrónicos com a assistente.
15.º O arguido ignorou as medidas de cocção impostas e, pese embora proibido, além do mais, de permanecer na residência da assistente, ali permanece, contra vontade daquela, a quem, continua, diariamente, a invetivar apodando-a de “puta”, “cabra”, e asseverar que “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta.”
16.º Consequência deste comportamento do arguido, a assistente não consegue descansar, vive aflita e ansiosa, em constante sobressalto, temendo que aquele atente de novo contra a sua integridade física, ou até contra a sua vida, ou contra os seus bens, assim como se vê quase refém na sua própria casa – que tem de trancar – pois que, sempre que, ao longo do dia, sai para o pátio ou jardim, logo o denunciado a insulta e ameaça, do descrito modo.
17.º Ao assim atuar, age o arguido sempre de modo livre deliberado e consciente, com o propósito, concretizado, de infligir à ofendida - sua mãe, pessoa que conhece particularmente indefesa relativamente a si até pela idade e estado físico debilitado, e no próprio domicílio daquela - sofrimento, molestando-a física e psicologicamente, perturbando-lhe o sono, privando-a de sossego e tranquilidade, humilhando-a, acometendo contra a sua honra e consideração, intimidando-a, importunando-a, coartando a sua liberdade e prejudicando a sua liberdade de determinação.
18.º Em 11 de março de 2021, o arguido foi novamente sujeito a interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva.
19.º O arguido sofreu as seguintes condenações:
- Por sentença de 21 de junho 2017, transitada em julgado a 6 de setembro de 2017, foi condenado pela prática, em 27 de dezembro de 2016, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta) dias, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Por sentença de 14 de julho de 2017, transitada em julgado a 20 de dezembro de 2017, foi condenado pela prática, em 21 de fevereiro de 2017, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima;
- Por sentença de 24 de janeiro de 2018, transitada em julgado a 23 de fevereiro de 2018, foi condenado pela prática, em 31 de março de 2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade;
- Por sentença de 24 de outubro de 2018, transitada em julgado em 3 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em 11 de outubro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Por sentença de 14 de dezembro de 2018, transitada em julgado em 12 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em janeiro de 2018, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
20.º O arguido B… nasceu e cresceu em Ovar, junto de um agregado familiar constituído pelos progenitores e três descendentes, dos quais é o mais novo e com significativa diferença de idade em relação aos irmãos.
21.º A vivência familiar, ao longo do processo de crescimento do arguido, decorreu em torno da atividade profissional dos pais, proprietários de uma vidraria, com respetiva oficina, instalada nas traseiras da habitação.
22.º O arguido teve um percurso escolar regular e adequado até ao 2.º ciclo de escolaridade. No 7.º ano de escolaridade, em plena adolescência, o arguido iniciou um percurso descendente, vincado pela desmotivação, baixo compromisso com o estudo e reprovações recorrentes, abandonando os estudos com 16 (dezasseis) anos de idade e apenas com o 6.º ano de escolaridade.
23.º Em termos profissionais, o arguido apenas colaborou, de forma esporádica, na vidraria dos progenitores.
24.º A assistente C… é natural de Ovar, concelho onde sempre viveu. Reside com o seu cônjuge em habitação unifamiliar há vários anos.
25.º Está casada há 48 (quarenta e oito) anos com E…, de 67 (sessenta e sete) anos de idade, vidraceiro. Do casal nasceram três filhos, dois autonomizados, residentes em Ovar, e o arguido, preso preventivamente.
26.ºO casal sempre se dedicou ao comércio de vidros, tendo fundado um estabelecimento comercial, instalado na residência, e em que trabalha o filho D….
27.º A assistente, atualmente, executa limpezas domésticas, encontrando-se financeiramente autónoma do cônjuge, apesar do casal partilhar as despesas domésticas.
Factos Não Provados:
Com interesse para a decisão da causa, não resultou provado qualquer outro facto, designadamente não se provou que:
a) O arguido tenha forçado e rebentado as fechaduras das portas dos barracões da residência dos seus progenitores;
b) O arguido tenha regressado à residência da assistente e do seu marido em 11 de dezembro de 2020, data em que foram aplicadas medidas de coação, designadamente: proibição de se deslocar e/ou permanecer na habitação da assistente; proibição de contactar direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por intermédio de outra pessoa, ou através de meios de comunicação eletrónicos com a assistente;
c) O arguido exija dinheiro à assistente.
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Motivação da decisão de facto:
Os factos provados resultaram da análise crítica da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento.
Assim, e antes de mais, e quanto à matéria dos pontos 1.º a 17.º dos Factos Provados, foram tidas em consideração as declarações da assistente C… que descreveu, de forma sofrida, os vários episódios referidos na acusação, conseguindo enquadrá-los espácio-temporalmente.
Pronunciou-se, igualmente, sobre as consequências da conduta do arguido no seu equilíbrio emocional e psicológico. De salientar que no seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido ou que procurasse ampliar a gravidade dos factos no intuito de o prejudicar.
Pelo contrário, a sua postura em audiência foi de evidente naturalidade, humildade e serenidade, por vezes, tentando desvalorizar alguns episódios e negando outros, designadamente que o arguido lhe peça dinheiro, que tenha forçado a porta para entrar nos anexos, e que tenha voltado a casa no próprio dia da aplicação da medida de coação de afastamento da assistente.
Depôs, assim, com isenção, respondendo, pronta e tranquilamente, aos esclarecimentos suscitados.
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Foi, também, tido em consideração o depoimento das seguintes testemunhas:
- F…, militar da GNR, autor do relatório fotográfico de fls. 232, confirmando a existência de cadeado nas portas e de barrotes nas janelas, a fim de impedir o ingresso do arguido na habitação;
- D…, irmão do arguido, residente a cerca de 300 m dos progenitores e que trabalha na vidraria instalada na residência daqueles. Apesar de demonstrar inimizade relativamente ao arguido, relatou alguns dos episódios em causa de forma espontânea e segura;
- E…, pai do arguido, que prestou um depoimento em tudo idêntico ao da assistente. Revelou uma ligação afetiva forte ao arguido, que não o impediu de relatar e confirmar os vários eventos descritos no despacho acusatório. No decurso do seu depoimento não demonstrou qualquer obsessão em obter a condenação do arguido, tendo, outrossim, algumas vezes, tentado desculpar o seu filho, referindo que este não consome bebidas alcoólicas e estupefacientes e tem uma boa “imagem social”, não registando quaisquer conflitos com vizinhos.
Tais testemunhas depuseram com isenção, tranquilidade e conhecimento direto da factualidade, respondendo, prontamente, aos esclarecimentos suscitados.
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Foram, ainda, tidos em consideração os seguintes documentos:
- Auto de notícia de fls. ¾;
- Cota e relatório fotográfico de fls. 231/232;
- Cópia das decisões proferidas nos processos comuns singulares n.ºs 50/17.8GBOVR, 305/16.9GBOVR, 265/17.9GBOVR, de fls. 32/50 e 63/92.
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A prova do ponto 18.º dos Factos Provados, estribou-se na análise do auto de interrogatório judicial de fls. 253/264.
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Para prova dos antecedentes criminais, foi ponderado o teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 302/309.
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Por fim, para prova da factualidade relativa à origem, modo de vida e inserção social e profissional de arguido e assistente (pontos 20.º a 27.º dos Factos Provados) foi tido em consideração o teor dos Relatórios sociais de fls. 312/314 e 315/317, que se encontram bem elaborados, indicando a forma de obtenção dos dados que lhe serviram de base.
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Quanto aos factos não provados, resultaram da ausência de prova ou de prova convincente sobre os mesmos.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
Vem imputada ao arguido B… a prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, d), n.º 2, 4 e 5, do Cód. Penal.
O bem jurídico protegido por tal ilícito criminal reconduz-se à harmonia das relações familiares e dignidade pessoal de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que conviva com o agente.
Trata-se de um crime de dano quanto ao bem jurídico e de resultado quanto ao objeto da ação – cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, dezembro de 2008, pág. 404.
Por outro lado, o elenco legal de maus-tratos é meramente exemplificativo e já não pressupõe a reiteração, podendo tratar-se de um ato isolado.
Aos maus-tratos físicos poderão corresponder crimes de ofensa à integridade (simples) e aos psíquicos poderão corresponder crimes de ameaça simples ou agravada, coação simples, difamação e injúria. Sendo certo que o emprego de formas mais graves de ofensas ou coação poderão ser punidas pelas respetivas incriminações, ante a regra da subsidiariedade.
Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de um crime doloso, prevendo-se o dolo em qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do Cód. Penal.
Ora, aplicando o direito aos factos provados facilmente se constata que se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do referido ilícito penal.
Conclui-se, assim, que o arguido B… incorreu na prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, 4 e 5, do Cód. Penal.
Medida da pena:
Enquadrada jurídico-penalmente a conduta do arguido B…, há que determinar a respetiva sanção.
Assim, nos termos do artigo 40.º, do Cód. Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”
O crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos (cfr. art. 152.º, n.º 2, do Cód. Penal).
Atendendo às circunstâncias aduzidas no artigo 71.º, n.º 2, do Cód. Penal, atender-se-á à modalidade do dolo, a qual revestiu a forma mais intensa.
De outra via, leva-se em consideração o elevado desvalor de ação do arguido, traduzido nas várias ações que desferiu contra a assistente, com quem coabitou, provocando-lhe temor, alterando-lhe as rotinas e provocando-lhe danos evidentes na sua integridade psicológica.
Por outro lado, as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a prevalência de condutas como as dos autos, que muitas vezes culminam em situações de extrema violência ou mesmo morte, provocando vitimização secundária.
Por sua vez, “in casu” as exigências de prevenção especial são elevadas. Assim, milita contra o arguido B… o seu passado criminal, com a prática de factos idênticos aos dos autos, e a total ausência de arrependimento.
Assim, concatenando todos estes fatores e atendendo à moldura penal, decide-se aplicar ao arguido a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.(…)
INDEMNIZAÇÃO:
De harmonia com o disposto no art. 21.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito de obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.”
Dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no art. 82.º A do Cód. Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”
Ora, no caso “sub judice” inexiste qualquer declaração expressa da ofendida a rejeitar o arbitramento de indemnização.(…)
Consagra o art. 483.º, n.º 1, do Cód. Civil, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”(…)
No nosso sistema jurídico, os danos subdividem-se em danos patrimoniais e não patrimoniais, consoante sejam ou não suscetíveis de avaliação pecuniária.
Ora, face à factualidade dada como provada, facilmente se constata, sem necessidade de grandes considerações, que relativamente à violência doméstica, de que foi vítima a assistente C…, se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, constituindo-se, assim, o arguido B… na obrigação de a indemnizar.
Com efeito, o arguido, dolosamente (a culpa), agrediu, de forma reiterada, psicologicamente, a assistente (o facto), violando, assim, a sua integridade e psicológica (a ilicitude), tendo a mesma sentido abalo psicológico e medo (o dano), lesões essas que resultaram direta e necessariamente da conduta daquele (o nexo de imputação entre o facto e o dano).
Verificada que foi a presença “in casu” da totalidade dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual, cumpre fixar o “quantum” indemnizatório.
Nos termos do disposto no art. 496.º, n.º 1, do Cód. Civil, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.”
“A gravidade do dano há de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, LIMA, Pires de e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 499.
O montante da indemnização será fixado equitativamente (cfr. art. 496.º, n.º 3, do Cód. Civil).
Ponderados todos os critérios acima referidos à luz da matéria de facto dada como provada, designadamente o tipo e o lapso de tempo em que ocorreram as ofensas e a sua gravidade, reputa-se adequado fixar a indemnização devida à assistente no montante de €5.000,00 (cinco mil euros).(…)”
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I.2. Recurso do arguido (conclusões que se reproduzem parcialmente).
B- Na motivação da decisão de facto, teve só como fundamento o depoimento da assistente, uma vez que não foi indicada nenhuma testemunha que tenha testemunhado os factos que constam na acusação.
C- Muito mal andará a justiça se se conseguir fazer prova com o mero depoimento da assistente/ ofendida, mesmo ninguém tendo assistido aos factos que a mesma diz que o arguido praticou.
D- Se esta postura for adotada por outros tribunais que compõem o tecido territorial Português, os cidadãos ficarão numa situação muito fragilizada, uma vez que não há necessidade de ser realizada prova dos facto que imputa ao arguido
E- e tão pouco há necessidade de indicar testemunhas ou prova documental bastando o depoimento da ofendida/ assistente, para fazer prova em tribunal e haver condenação.
G) O Tribunal “a quo” não teve em consideração que a assistente durante a sessão de julgamento demonstrou total desprezo (para não falar odio) pelo filho .
J) O recorrente foi acusado de um crime que não praticou.
L) O recorrente não praticou o crime em que foi condenado.
M) Pelo exposto, o tribunal não interpretou, nem aplicou, corretamente o art.. 152º n.º 1 b) e 2 do CP, pois nenhum dos factos que constam da acusação preenchem este tipo de crime.
O) (…)
1)- Não houve dano ( não houve atentado á integridade física ou psíquica)
2)- Não houve dano emocional ou moral ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão.
P) O tribunal “a quo”, teve uma incorreta interpretação dos factos, não teve em consideração que a conduta típica da violência doméstica, é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. Nada disto se verificou.
Q) Como a própria expressão legal sugere, violência domestica prevista na Lei 59/2007, de 4 SET “a ação não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”.
S)O crime de violência domestica, não pode ser utilizado de ânimo leve. Não se pode acusar alguém, pelo crime de violência doméstica, só porque tiveram uma discussão e um dos elementos do agregado familiar falou de uma forma mais rude.
T) Fundamentar o crime de violência domestica, com um episódio da uma discussão, ou chamar palavões, não havendo qualquer agressão, é subverter, os próprios critérios legais, para estarmos perante o crime de violência domestica.
U) O Tribunal,” a quo”, violou, o disposto no artigo 71º do Código Penal, por incorreta e imprecisa aplicação.
X- Não foi ainda respeitado o art. 40º do C. Penal (redação introduzida pela Reforma de 95) (…)
Z- O Tribunal,” a quo”, ao fixar o montante da indemnização, de 5.000.00( cinco mil euros) bem sabe que é impossível para o aqui recorrente, o comprimento de tal obrigação.
I- Deve o presente Recurso ser declarado procedente e seja a douta sentença recorrida substituída pela absolvição do Arguido de toda a acusação
II- Caso não seja entendimento de Vossa Excelências, haver absolvição do arguido, deve ser proferida decisão, do sentido de Redução da Medida da Pena, uma vez que a medida de pena fixada na sentença é excessiva, atendendo aos factos que o arguido vinha indiciado ter praticado e os factos que foram dados como provados.
III- Deve ainda o arguido ser absolvido do pedido de indemnização civil
IV- Deve ser diminuído o valor da indemnização fixada, uma vez que se afigura desajustada da situação económica e financeira do arguido.
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I.3. Resposta do MºPº (conclusões que se transcrevem parcialmente).
1. Foi corretamente julgada a matéria de facto, sendo que nenhuma das provas produzidas impõe decisão diversa da que sufragou a douta sentença recorrida. A factualidade dada como provada encontra-se devidamente fundamentada e assentou na livre convicção do julgador, relativamente aos meios de prova produzidos.
6. Mostra-se corretamente efetuada a subsunção jurídica e aplicação do direito atinente aos presentes autos, sendo que, os factos dados como provados integram, inequivocamente, o tipo legal de crime de violência doméstica.
7. Todos os episódios praticados pelo arguido contra a ofendida - e traduzidos, nomeadamente, na inflição de maus-tratos psíquicos através dos insultos que lhe dirigiu, - foram idóneos a afetar o bem estar psicológico da ofendida, molestando-a, humilhando-a, ofendendo-a na sua dignidade, configurando o crime de violência doméstica.
11. A conduta do arguido possui forte carga de humilhação e violência na pessoa da ofendida, sua mãe, revelando profundo desprezo para com ela. E daí também, a obrigação para o arguido, de a indemnizar no montante ficado, o qual se apresenta adequado.
16. Ao aplicar a pena de dois anos e seis meses de prisão, o Tribunal a quo atendeu designadamente, à moldura penal abstrata, à intensidade do dolo, grau de ilicitude do facto, circunstâncias que envolveram a ilicitude criminal, as consequências da conduta, a conduta anterior e posterior ao facto, a exigência de prevenção de futuras infrações da natureza das cometidas.
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I.4. Parecer do Ministério Público na Relação (que se sintetiza).
No sentido apontado na resposta oferecida em primeira instância.
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Os sujeitos processuais (recorrente, MºPº e assistente) foram notificados para, querendo, em dez dias, se pronunciarem sobre uma eventual alteração não substancial dos factos por reformulação da sua qualificação jurídica (o enquadramento jurídico do comportamento do recorrente distinto daquele constante da sentença mais concretamente nos tipos legais dos crimes de injúrias – artigo 181º do Código Penal – e de ameaça – artigo 153º do Código Penal), tendo apenas o recorrente oferecido o seu entendimento.
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II. Objecto do recurso.
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
O recorrente apresenta sequencialmente, com recurso à qualificação que opera na sua motivação, as seguintes questões:
erro de julgamento na decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados submetidos aos números 1 a 17) nos termos do artigo 412º, nº2, do Código de Processo Penal e preterição do princípio in dubio pro reo;
inexistência dos elementos típicos do crime ( de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”).
excessividade da medida da pena e:
montante indemnizatório desajustado à situação financeira e económica do arguido.
Relativamente à excessividade da medida da pena e do montante indemnizatório fixados (questões 3ª e 4ª).
O recorrente apresenta a mera discordância em relação à fixação da medida da pena e do montante indemnizatório.
O recurso (meio de impugnação de uma decisão judicial cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos de uma decisão injusta ou inválida através da sua reapreciação por outro órgão jurisdicional), no caso concreto, tem como finalidade a substituição da sentença proferida em primeira instância e visa neste segmento conclusivo a decisão sobre a matéria de direito (a determinação da sanção).
Versando matéria de direito as conclusões têm de indicar (artigo 412º, nº2, do Código de Processo Penal):
a) as normas jurídicas violadas;
b) o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada;
c) em caso de erro na determinação da aplicável, a norma jurídica que, no entender do recorrente, deve ser aplicada.
Se a ausência de indicação das normas jurídicas violadas poderia ser objeto de convite ao aperfeiçoamento (cfr. artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal) por versar uma incompletude sanável e, por outro lado, versar alegação insuscetível de limitar o conhecimento do tribunal (oficioso, nesta matéria) já a absoluta e categórica ausência de indicação e identificação (na motivação, também) do erro de julgamento da matéria de direito no âmbito do silogismo jurídico-racional efetuado na decisão recorrida não é passível de convite algum. Não se pode completar ou esclarecer uma declaração inepta e que constitui o verdadeiro objeto do recurso.
O recorrente declara, singelamente, que não foram respeitados os artigos 40º e 71º do Código Penal, sendo a pena excessiva e que deve ser diminuído o valor da indemnização fixada, uma vez que se afigura desajustada da situação económica e financeira do arguido.
O recurso tem como finalidade (salvo a eventual necessidade de conhecer oficiosamente, nas decisões finais, da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal e de algumas nulidades da sentença – artigo 379º, nº4, do Código de Processo Penal) a apreciação da justeza e validade da decisão judicial de balizada pela fundamentação (motivação) do recorrente. Só o valimento jurídico-argumentativo recursivo permite reapreciar a decisão recorrida, sendo por isso inepta, para tanto, a simples manifestação adjetiva de discordância. Mesmo alterando o enquadramento jurídico dos factos nos termos infra expostos subsiste a referida ineptidão.
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II.1. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e do princípio in dubio pro reo.
Quanto a este tipo específico de recurso (da decisão proferida sobre a matéria de facto) cumprirá esclarecer o procedimento legal de reapreciação, por este tribunal superior, da prova produzida em primeira instância.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para maximizar a garantia de descoberta, a partir da sua representação, da verdade histórica. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova que visa assegurar a existência de uma relação de contacto pessoal e direto entre o julgador e a prova avaliável.
Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se geralmente sem imediação, com a audição das provas registadas cuja análise tenha sido sugerida no recurso. Como regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita por um juiz singular ou por um coletivo de juízes (ou até jurados) de forma direta, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que potencia a descoberta da representação histórica dos factos perante os seus atores bem distinta, naturalmente, do que a avaliação feita com base na audição ou visualização do registo, meramente parcial, de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, como sucede na Relação.
Por isso a reapreciação da prova em recurso não pode, em caso algum, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes mas apenas garante que o sujeito processual interessado possa obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto através do reexame parcial da prova.
O julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal, princípio válido para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na relação, de acordo com exame crítico da prova que não deixa de estar vinculado a critérios objetivos, jurídico-racionais, e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum.
O referido princípio, relativo à prova, permite ao julgador apreciar os meios de prova na base da sua livre valoração e da sua convicção pessoal, por contraste ao sistema de prova legal onde a apreciação da prova tem lugar na base de regras legais predeterminadas.
É em sede de apreciação da decisão da matéria de facto que operam o princípio da presunção da inocência, que integra o núcleo dos princípios inerentes à estrutura do processo sendo simultaneamente um princípio fundamental do processo penal, consagrado no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa (não constitui uma presunção em sentido técnico-jurídico, mas tão só um símbolo do processo equitativo ou justo) e o princípio in dubio pro reo (emanação da presunção de inocência nos princípios relativos à prova) que, tal como o princípio da livre apreciação da prova, que tem o seu campo operacional em sede de julgamento da matéria de facto, constitui um princípio lógico de prova ( cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, Vol. I, U.C.E., 2013, pág.93) que actua no âmbito da questão-de-facto (cfr. J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág.215).
Tal princípio é aplicável na incerteza valorativa dos factos: constitui uma autêntica regra de decisão que opera quando, na mente do julgador e na fase de valoração da prova, surge uma dúvida –insuperável, invencível ou, pelo menos, razoável - em relação à verificação de um facto.
Só existirá erro de julgamento da matéria de facto naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção do julgador sobre a veracidade de certo facto é inadmissível ou implausível (que não existem dados objetivos que apontem no sentido retratado na motivação ou existem outras conformações da realidade dadas pelas provas).
O erro de julgamento sobre os factos terá de ser percecionado na vertente da demonstração (no recurso a variáveis que contrariem as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e da ciência) e, por isso, para controlar tal erro estabeleceu o legislador regras claras. Deve o recorrente especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (artigo 412º, nº3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal), devendo indicar concretamente, caso as mesmas tenham sido gravadas, por referência ao consignado em ata, as passagens em que funda a impugnação, regras cumpridas de forma suficiente.
O recorrente entende que as declarações da assistente (que alegadamente nutre ódio pelo arguido, seu filho) em conjugação com a ausência de qualquer testemunho presencial não pode fundamentar qualquer convicção sobre a realidade dos factos por aquela descritos. Pretende, assim, afastar o princípio da livre apreciação da prova e consagrar um curioso princípio de prova tabelar: os comportamentos ocorridos entre duas pessoas, não presenciados por terceiros, não podem ser objeto de demonstração pelo interveniente que se queixar criminalmente do outro e/ou se constituir assistente.
Tal como se refere expressamente na sentença, quanto aos referidos factos, o tribunal formou a sua convicção, exclusivamente, no depoimento da vítima cuja credibilidade discursiva, essencialmente resultante da imediação operada na sua recolha. Nas palavras do julgador “(…) Pronunciou-se, igualmente, sobre as consequências da conduta do arguido no seu equilíbrio emocional e psicológico. De salientar que no seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingativa ou de retaliação em relação ao arguido ou que procurasse ampliar a gravidade dos factos no intuito de o prejudicar.
Pelo contrário, a sua postura em audiência foi de evidente naturalidade, humildade e serenidade, por vezes, tentando desvalorizar alguns episódios e negando outros, designadamente que o arguido lhe peça dinheiro, que tenha forçado a porta para entrar nos anexos, e que tenha voltado a casa no próprio dia da aplicação da medida de coação de afastamento da assistente.
Depôs, assim, com isenção, respondendo, pronta e tranquilamente, aos esclarecimentos suscitados.(…)”
Escutamos integralmente o seu depoimento e não encontramos qualquer motivo impeditivo da convicção formada no julgador.
É indiscutível a existência de um interesse direto da assistente no resultado do processo condicionado à sua própria atuação (por força do seu particular estatuto, a prestação do seu depoimento não é precedida de juramento, não obstante a sujeição ao dever de verdade e responsabilidade penal pela sua violação – artigos 346º, nº2, e 145º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Penal). Porém, tal apenas exige que o julgador observe, na produção oral deste meio de prova, reforçadas cautelas na sua apreciação. Por esse motivo, as declarações do assistente são prestadas sob a regra de inquirição do julgador – artigo 346º, nº1, do Código de Processo Penal.
Tais cautelas e a plena sujeição ao contraditório exercida permitem valorar as declarações da assistente no caso concreto, não existindo qualquer fundamento para modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
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II.2. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de direito.
Passaremos a tentar descrever a discordância do arguido:
- não houve dano (não houve atentado à integridade física ou psíquica)
- não houve dano emocional ou moral ou uma perda material, diretamente causada por acão ou omissão;
- o tribunal “a quo”, teve uma incorreta interpretação dos factos, não teve em consideração que a conduta típica da violência doméstica, é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais” (nada disto se verificou);
- como a própria expressão legal sugere, violência domestica prevista na Lei 59/2007, de 4 SET “a ação não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”.
Como se descreve na sentença recorrida o bem jurídico protegido por tal ilícito criminal reconduz-se à harmonia das relações familiares e dignidade pessoal de pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que conviva com o agente.
Se relativamente ao bem jurídico protegido nenhum reparo se faz, constatamos que a sentença padece de dois vícios lógico-operativos (transversais à apreciação da matéria de facto e de direito) no que concerne ao enquadramento jurídico penal dos factos.
O crime imputado ocorrerá quando o agente, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite (artigo 152º, nº1, alínea d), do Código Penal, na redação anterior àquela conferida pelo artigo 3º da Lei nº57/2021, de 16 de Agosto).
Constituem, assim, entre outros, elementos objetivos do tipo legal de crime a caracterização da vítima (pessoa particularmente indefesa) e a relação espacial de coabitação com o agente.
Relativamente à caracterização da vítima, limitou-se o julgador (tal como o acusador) a declarar: 17.º Ao assim atuar, age o arguido sempre de modo livre deliberado e consciente, com o propósito, concretizado, de infligir à ofendida - sua mãe, pessoa que conhece particularmente indefesa relativamente a si até pela idade e estado físico debilitado, e no próprio domicílio daquela - sofrimento, molestando-a física e psicologicamente, perturbando-lhe o sono, privando-a de sossego e tranquilidade, humilhando-a, acometendo contra a sua honra e consideração, intimidando-a, importunando-a, coartando a sua liberdade e prejudicando a sua liberdade de determinação.
Tal conceito normativo (pessoa particularmente indefesa) não encontra na decisão da matéria de facto (sequer quanto à idade da assistente, que se desconhece) qualquer conforto, sendo certo que a realidade demonstrada indicia características biopsicológicas da vítima de sentido contrário (25.º Está casada há 48 (quarenta e oito) anos com E…, de 67 (sessenta e sete) anos de idade, vidraceiro. Do casal nasceram três filhos, dois autonomizados, residentes em Ovar, e o arguido, preso preventivamente. 26.ºO casal sempre se dedicou ao comércio de vidros, tendo fundado um estabelecimento comercial, instalado na residência, e em que trabalha o filho D…. 27.º A assistente, atualmente, executa limpezas domésticas, encontrando-se financeiramente autónoma do cônjuge, apesar do casal partilhar as despesas domésticas.)
Sobre esta questão foi já proferido por este tribunal superior o recente acórdão datado de 14-07-2021, relatado pelo ora Juiz Desembargador adjunto (Francisco Mota Ribeiro) no âmbito do recurso nº158/20.2GDSTS.P1 (consultável em www.dsgsi.pt) cujo sumário se transcreve (com sublinhados nossos):
“(…)I-Pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, “é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.”
II-Seja em função da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, que a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender, não bastando demonstrar que a vítima tinha idade avançada, porquanto é sabido que nem sempre as pessoas idosas, só por o serem, se encontram numa situação de especial incapacidade de se defenderem ou em estado de desamparo.(…)”
Nos termos apreciados neste acórdão, para que se pudesse considerar preenchido o elemento típico objetivo do crime de violência doméstica, determinável a partir ou em função da idade da vítima, “(…) necessário seria que, por causa da sua idade, a mesma se encontrasse numa situação de incapacidade de defesa especialmente relevante, em virtude de não ser minimamente capaz de reagir ou de se defender das agressões a si dirigidas, nem contemporânea nem posteriormente a elas, designadamente por apresentar dificuldades de compreensão intelectual ou emocional do desvalor das mesmas, ou não ter a destreza ou o vigor físico ou psicológico necessários para a elas reagir, defendendo-se ou queixando-se a quem lhe pudesse dar proteção, por dificuldades, face também às características físicas e psicológicas do agressor, em se opor ou responder, nomeadamente por um particular défice na sua locomoção ou evidentes dificuldades psicomotoras, dos quais o agressor se aproveitasse para a agredir ou maltratar, mas tudo necessariamente baseado em factos concretos e não (…) em afirmações de caráter “manifestamente conclusivo, genérico e/ou normativo” (…) “
Outra questão, ainda, se levanta relativamente ao preenchimento do outro conceito normativo que integra, como elemento objetivo, o tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado – a coabitação.
Relativamente à relação espacial do agente com a vítima, limitou-se o julgador (tal como o acusador) a declarar: 17.º Ao assim atuar, age o arguido sempre de modo livre deliberado e consciente, com o propósito, concretizado, de infligir à ofendida - sua mãe, pessoa que conhece particularmente indefesa relativamente a si até pela idade e estado físico debilitado, e no próprio domicílio daquela - sofrimento, molestando-a física e psicologicamente, perturbando-lhe o sono, privando-a de sossego e tranquilidade, humilhando-a, acometendo contra a sua honra e consideração, intimidando-a, importunando-a, coartando a sua liberdade e prejudicando a sua liberdade de determinação.
Também este conceito normativo (coabitação) não encontra na decisão da matéria de facto qualquer conforto, sendo certo que a realidade demonstrada é categoricamente oposta no sentido de representar a ausência de inserção do agente no espaço familiar e vivencial da vítima (4.º (…) em meados de março de 2020, o arguido regressou à residência familiar, instalando-se nuns barracões sitos nas traseiras da mesma e do estabelecimento de vidraria que a família ali possui, onde se introduziu – e onde permanece contra vontade da assistente. 5.º Desde então, com periodicidade diária e sempre que ao longo do dia avista a assistente no pátio, no jardim ou no armazém anexo à residência, aborda-a e interpela-a de modo violento, apelidando-a, repetidamente de: - “sua filha da puta”, “grande vaca”, “és uma puta, uma cabra.”)
Não obnubilamos, com toda a certeza, a absoluta inconsistência desta opção legal entretanto retificada (apenas) quanto às situações de violência doméstica praticada contra menores, opção que deixou de exigir o preenchimento dos referidos conceitos normativos de pessoa particularmente indefesa em razão da idade e de coabitação nos termos da atual redação do artigo 152º, nº1, alínea e), do Código Penal, introduzida pelo artigo 3º da Lei nº57/2021.
Com efeito, acompanhando vozes dissonantes no âmbito das situações em que se discute, axiologicamente, o vínculo paterno-filial (onde se destaca, doutrinalmente, Maria Paula Ribeiro de Faria, Os crimes praticados contra idosos, UCEditora, 3ª edição, pág141) é pelo menos tão censurável a conduta do filho que molesta a mãe na sua integridade biopsicológica e que com a mesma não vive e se limita a visitar, como a do filho que com ela coabita diariamente, sendo ou não seu cuidador, e pratica o mesmo tipo de factos.
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II.3. Consequências jurídicas processuais e substantivas da expurgação dos conceitos normativos referidos.
II.3.1. Da matéria de facto atendível.
A matéria de facto provada suscetível de enquadramento jurídico penal será, nestes termos, a seguinte:
1º O arguido é filho da assistente C.. a quem, recorrentemente, ao longo dos últimos anos, vem afrontando e agredindo, física e verbalmente em diversas ocasiões, na residência familiar sita na …, em Ovar, onde habita nuns barracões anexos à mesma e que recusa abandonar.
2.º E, por tais factos, foi já condenado nos processos 305/16.9GBOVR, 265/17.9GBOVR e 50/17.8GBOVR.
3.º Todavia, não obstante tais condenações e a circunstância de estar em cumprimento de pena de prisão suspensa na sua execução – na sequência da condenação irrogada no processo 50/17.8GBOVR – o arguido não refreia os seus comportamentos violentos, antes os retomou.
4.º Com efeito, após cumprimento de pena de prisão e por ocasião da imposição de cerco sanitário em Ovar - decorrente da situação de Pandemia de COVID 19 – em meados de março de 2020, o arguido regressou à residência familiar, instalando-se nuns barracões sitos nas traseiras da mesma e do estabelecimento de vidraria que a família ali possui, onde se introduziu – e onde permanece contra vontade da assistente.
5.º Desde então, com periodicidade diária e sempre que ao longo do dia avista a assistente no pátio, no jardim ou no armazém anexo à residência, aborda-a e interpela-a de modo violento, apelidando-a, repetidamente de: - “sua filha da puta”, “grande vaca”, “és uma puta, uma cabra.”
6.º E, repetidamente, anuncia-lhe em tom firme e sério que: “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta”, ao mesmo tempo que agarra quaisquer objetos que encontra, nomeadamente paus ou vassouras que empunha na direção da ofendida, fazendo menção de a agredir fisicamente, deixando-a aterrorizada.
7.º Aliás, por causa do regresso do arguido e do seu comportamento violento, a assistente viu-se obrigada a, de novo, tomar redobradas cautelas e vigilância, mantendo portas fechadas à chave, com cadeados e aloquete e colocando trancas nas janelas, de modo a impedir entrada daquele.
8.º Não obstante, o arguido, recorrentemente, procura arrombar portas e janelas, seja da residência, seja do armazém anexo à mesma, parte vidros e destrói quaisquer objetos que encontre.
9.º Muitas vezes, o arguido desliga o quadro elétrico situado no exterior da casa, ficando a assistente privada de energia elétrica, por temer que, caso saia de casa para o ligar, o arguido a surpreenda e agrida.
10.º A assistente vê-se igualmente privada de usufruir em sossego do espaço exterior à casa, pois sempre que, diariamente, sai para o pátio ou jardim, o arguido logo a aborda, exigindo-lhe dinheiro, e apodando-a de “puta”, “cabra”, anunciando-lhe o propósito de a agredir fisicamente ao dizer-lhe “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta.”
11.º Desde o seu regresso em meados de março de 2020, quase todas as noites – e como sucedeu, nomeadamente a 25/11/2020 – o arguido passa grande parte da noite a deambular pelo pátio, jardim e anexos da casa, até de madrugada, gritando alto, batendo com paus e objetos não apurados, nas paredes e nas portadas das janelas, sobretudo do quarto dos progenitores, fazendo com que acordem sobressaltados.
12.º E, dirigindo-se à assistente, assegura-lhe que “tu e o teu cão” – referindo-se desse modo ao irmão D… – “vão para um sítio bem pior do que eu vim” e, “se eu tivesse dinheiro tu ias ver”, proferindo contínuos insultos apodando-os de “grandes filhos da puta.”
13.º E num crescendo de violência, continua a bater com paus nas paredes, nas portadas e a gritar, garantindo à assistente, quando esta lhe pede que vá embora ou que aceite tratar-se:
- “Eu não saio daqui, vão ter que levar comigo”;
- “Tu é que tens de te tratar sua maluca, sua puta.”
14.º Em 11 de dezembro de 2020, o arguido B… foi presente a primeiro interrogatório judicial, tendo-lhe sido, então, aplicadas as seguintes medidas de coação: proibição de se deslocar e/ou permanecer na habitação da assistente; proibição de contactar direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por intermédio de outra pessoa, ou através de meios de comunicação eletrónicos com a assistente.
15.º O arguido ignorou as medidas de cocção impostas e, pese embora proibido, além do mais, de permanecer na residência da assistente, ali permanece, contra vontade daquela, a quem, continua, diariamente, a invetivar apodando-a de “puta”, “cabra”, e asseverar que “qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta.”
16.º Consequência deste comportamento do arguido, a assistente não consegue descansar, vive aflita e ansiosa, em constante sobressalto, temendo que aquele atente de novo contra a sua integridade física, ou até contra a sua vida, ou contra os seus bens, assim como se vê quase refém na sua própria casa – que tem de trancar – pois que, sempre que, ao longo do dia, sai para o pátio ou jardim, logo o denunciado a insulta e ameaça, do descrito modo.
17.º Ao assim atuar, age o arguido sempre de modo livre deliberado e consciente, com o propósito, concretizado, de infligir à ofendida - sua mãe - sofrimento, molestando-a psicologicamente, perturbando-lhe o sono, privando-a de sossego e tranquilidade, humilhando-a, acometendo contra a sua honra e consideração, intimidando-a, importunando-a, coartando a sua liberdade e prejudicando a sua liberdade de determinação.
18.º Em 11 de março de 2021, o arguido foi novamente sujeito a interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva.
19.º O arguido sofreu as seguintes condenações:
- Por sentença de 21 de junho 2017, transitada em julgado a 6 de setembro de 2017, foi condenado pela prática, em 27 de dezembro de 2016, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta) dias, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Por sentença de 14 de julho de 2017, transitada em julgado a 20 de dezembro de 2017, foi condenado pela prática, em 21 de fevereiro de 2017, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima;
- Por sentença de 24 de janeiro de 2018, transitada em julgado a 23 de fevereiro de 2018, foi condenado pela prática, em 31 de março de 2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade;
- Por sentença de 24 de outubro de 2018, transitada em julgado em 3 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em 11 de outubro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
- Por sentença de 14 de dezembro de 2018, transitada em julgado em 12 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em janeiro de 2018, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
20.º O arguido B… nasceu e cresceu em Ovar, junto de um agregado familiar constituído pelos progenitores e três descendentes, dos quais é o mais novo e com significativa diferença de idade em relação aos irmãos.
21.º A vivência familiar, ao longo do processo de crescimento do arguido, decorreu em torno da atividade profissional dos pais, proprietários de uma vidraria, com respetiva oficina, instalada nas traseiras da habitação.
22.º O arguido teve um percurso escolar regular e adequado até ao 2.º ciclo de escolaridade. No 7.º ano de escolaridade, em plena adolescência, o arguido iniciou um percurso descendente, vincado pela desmotivação, baixo compromisso com o estudo e reprovações recorrentes, abandonando os estudos com 16 (dezasseis) anos de idade e apenas com o 6.º ano de escolaridade.
23.º Em termos profissionais, o arguido apenas colaborou, de forma esporádica, na vidraria dos progenitores.
24.º A assistente C… é natural de Ovar, concelho onde sempre viveu. Reside com o seu cônjuge em habitação unifamiliar há vários anos.
25.º Está casada há 48 (quarenta e oito) anos com E…, de 67 (sessenta e sete) anos de idade, vidraceiro. Do casal nasceram três filhos, dois autonomizados, residentes em Ovar, e o arguido, preso preventivamente.
26.ºO casal sempre se dedicou ao comércio de vidros, tendo fundado um estabelecimento comercial, instalado na residência, e em que trabalha o filho D….
27.º A assistente, atualmente, executa limpezas domésticas, encontrando-se financeiramente autónoma do cônjuge, apesar do casal partilhar as despesas domésticas.
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II.3.2. Do enquadramento jurídico penal dos factos.
Não sendo os factos subsumíveis, por ausência dos referidos elementos objetivos, ao tipo legal do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, nº1, alínea e), do Código Penal, restará determinar a sua aptidão para o preenchimento de outros comportamentos criminalmente censuráveis.
Relativamente ao proferimento de palavras ofensivas da honra e consideração da assistente o procedimento criminal dependeria, face à natureza particular do crime de injúrias (cfr. artigos 181º e 188º do Código Penal) de queixa (que foi formulada) e de acusação particular ou, face à transmutação de enquadramento jurídico operada, de acusação pelo assistente relativamente aos mesmos factos acusados pelo MºPº, mesmo limitada a mera adesão (artigo 284º do Código de Processo Penal).
Não tendo a assistente exercido tais faculdades, não tem o MºPº legitimidade (cfr. artigo 50º do Código de Processo Penal) para deduzir acusação pública sobre tais factos, determinando-se a extinção do procedimento criminal quanto aos mesmos (cfr. em sentido idêntico e em casos de convolação do crime de violência doméstica em crime de injúrias, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 04-03-2020, processo 351/18.8PBBRG, de 14-10-2020, processo 986/18.9PAVNG.P1, e de 07-07-2021, processo 1300/19.1PIPRT.P1 consultáveis em www.dgsi.pt).
Já no que concerne aos dizeres ameaçadores da prática de crime contra a integridade física e liberdade pessoal dirigidos pelo arguido à sua mãe (“qualquer dia fodo-te os cornos outra vez, sua puta”, “tu e o teu cão” – referindo-se desse modo ao irmão D… – “vão para um sítio bem pior do que eu vim”), acompanhados de comportamentos aptos e adequados a provocar na assistente a quase certeza da sua concretização (agarra quaisquer objetos que encontra, nomeadamente paus ou vassouras que empunha na direção da ofendida, fazendo menção de a agredir fisicamente, , procura arrombar portas e janelas, seja da residência, seja do armazém anexo à mesma, parte vidros e destrói quaisquer objetos que encontre, desliga o quadro elétrico situado no exterior da casa, ficando a assistente privada de energia elétrica, passa grande parte da noite a deambular pelo pátio, jardim e anexos da casa, até de madrugada, gritando alto, batendo com paus e objetos não apurados, nas paredes e nas portadas das janelas, sobretudo do quarto dos progenitores, fazendo com que acordem sobressaltados) e provocando uma inadmissível inquietação e medo, bem como limitações às suas opções relacionadas com a sua liberdade existencial (deixando-a aterrorizada, viu-se obrigada a, de novo, tomar redobradas cautelas e vigilância, mantendo portas fechadas à chave, com cadeados e aloquete e colocando trancas nas janelas, de modo a impedir entrada daquele, o arguido desliga o quadro elétrico situado no exterior da casa, ficando a assistente privada de energia elétrica, por temer que, caso saia de casa para o ligar, o arguido a surpreenda e agrida, vê-se privada de usufruir em sossego do espaço exterior à casa, a assistente não consegue descansar, vive aflita e ansiosa, em constante sobressalto, temendo que aquele atente de novo contra a sua integridade física, ou até contra a sua vida, ou contra os seus bens, assim como se vê quase refém na sua própria casa – que tem de trancar – pois que, sempre que, ao longo do dia, sai para o pátio ou jardim, logo o denunciado a insulta e ameaça, do descrito modo) o procedimento criminal apresenta-se viável.
O referido comportamento preenche os elementos objetivos e subjetivos (quanto a este o conhecimento e vontade de realização da ação típica, elementos cognitivo e volitivo) do tipo legal de crime de ameaça, previsto no artigo 153º, nº1, do Código Penal, punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias (cuja redação é a seguinte: Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias).
II.3.3. Da escolha e medida da pena.
De acordo com quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa -artigo 40º, nºs1e 2, do Código Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do Código Penal) deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente (culpa que, naturalmente, é insuscetível de ser medida com exatidão), a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da ação e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha e medida da pena.
Não se pode ignorar que o legislador, na diversidade que atribui às molduras penais, manifesta a maior ou menor relevância ético-social do bem jurídico protegido pela respetiva norma (ilicitude) e colocou este crime num patamar mínimo (da pequena criminalidade).
Como as finalidades das penas são exclusivamente preventivas, também a escolha das penas (alternativas ou substitutivas, nelas se integrando a suspensão da execução da pena) deve obedecer à regra de preferência das penas não privativas da liberdade, no pressuposto que realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 70º do Código Penal. Tal comando enquadra-se num dos princípios básicos das finalidades político criminais primárias do sistema penal: o da preferência pelas sanções criminais não detentivas face às detentivas (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág.31).
Nos termos factuais apurados entende-se como elevada a ilicitude do comportamento apurado, a intensidade do dolo e relevantes os antecedentes criminais (em crimes de ofensas corporais e da dignidade humana [Por sentença de 21 de junho 2017, transitada em julgado a 6 de setembro de 2017, foi condenado pela prática, em 27 de dezembro de 2016, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta) dias, à taxa diária de €5,00 (cinco euros); - Por sentença de 14 de julho de 2017, transitada em julgado a 20 de dezembro de 2017, foi condenado pela prática, em 21 de fevereiro de 2017, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima;- Por sentença de 24 de janeiro de 2018, transitada em julgado a 23 de fevereiro de 2018, foi condenado pela prática, em 31 de março de 2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade;- Por sentença de 24 de outubro de 2018, transitada em julgado em 3 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em 11 de outubro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);- Por sentença de 14 de dezembro de 2018, transitada em julgado em 12 de fevereiro de 2019, foi condenado pela prática, em janeiro de 2018, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).] através dos quais se patenteia que, apesar da aplicação de todos os tipos de reações penais (multa, trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), não foi possível provocar no arguido a interiorização da ilicitude das suas condutas e consequente adequação comportamental face aos mais básicos valores que constituem o fundamento da nossa existência em comunidade.
Não se verificam exigências de prevenção especial de reintegração (o arguido não tem relações de afetividade, emprego ou residência) e existem, neste conturbado vínculo materno-filial, fortíssimas exigências de prevenção geral de intimidação e prevenção especial de dissuasão.
Todas estas variáveis justificam a opção pela aplicação da pena de prisão nos termos do artigo 70º do Código Penal que, de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal, valorizados na sentença recorrida, justificam, de forma adequada, suficiente e necessária, a fixação da pena em 9 (nove) meses de prisão.
Por força das referidas variáveis não se justifica, por referência às finalidades das penas, a substituição da pena de prisão por multa, por prestação de trabalho a favor da comunidade ou suspensão da sua execução (cfr. artigos 45º, 58º e 50º do Código Penal, respetivamente).
Porém, as referidas finalidades podem ser alcançadas pelo confinamento do arguido a determinado espaço não institucional e, nesse sentido, obtido o seu consentimento e existindo uma habitação para o efeito poderá a pena de prisão ser executada em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (sendo certo que apenas o tribunal de 1ª instância poderá aquilatar da existência de condições para tanto – artigo 43º, nº1, alínea a), e nº2, do Código Penal).
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II.3.4. Do arbitramento de quantia pecuniária a título de reparação da vítima.
Não sendo a assistente vítima no âmbito de um crime de violência doméstica (cfr. artigos 1º e 2º, alínea a), da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à assistência das suas vítimas) inexiste a obrigação do julgador (estabelecida no artigo 21º, nºs 1 e 2, do diploma citado, e artigo 82º-A, nº1, do Código de Processo Penal), na ausência de dedução de pedido de indemnização civil, de arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela assistente (de natureza não patrimonial) decorrentes do crime de ameaça praticado pelo lesante.
Por outro lado, no caso concreto, não se verificam particulares exigências de proteção da assistente (designadamente, a sua dependência económica) que imponham a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela mesma, nos termos do referido artigo 82º-A, nº1, do Código de Processo Penal.
Este segmento da sentença será, por isso, revogado.
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III. Pelo exposto, concede-se provimento parcial ao recurso e, em consequência, revoga-se a totalidade do segmento dispositivo da sentença e condena-se B… na pena de nove (09) meses de prisão [que poderá ser executada em regime de permanência na habitação caso o arguido consinta e, principalmente, disponha de uma habitação, possibilidade de execução a apreciar pelo tribunal de 1ª instância] pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido no artigo 153º, nº1, do Código Penal.
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Sem custas (artigo 513º, nº1, do Código de Processo Penal)

Porto, 10 de novembro de 2021.
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota Ribeiro