Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
684/16.8SMPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA
DETENÇÃO DE OUTROS DISPOSITIVOS
PRODUTOS OU SUBSTÂNCIAS EM LOCAIS PROIBIDOS
ARTIGOS DE PIROTECNIA
Nº do Documento: RP20190710684/16.8SMPRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º806, FLS.264-271)
Área Temática: .
Sumário: I - A imputação do crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, p. e p. pelo artigo 89.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, depende de descrições do artigo de pirotecnia em causa, não bastando a inclusão genérica nessa categoria para concluir pela punibilidade da conduta.
II - A designação de um artefacto como “petardo” não é, para tal, suficiente, pelos inúmeros significados que lhe estão associados e que não permitem estabelecer que tipo de substâncias ou mistura de substâncias entram a sua composição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 684/16.8SMPRT.P1
Secção Criminal
Conferência
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Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg
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Comarca: …
Tribunal: …/Juízo Local Criminal-J7
Processo: Comum Singular n.º 684/16.8SMPRT

Recorrente: Ministério Público
Arguido: B…
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
a) No âmbito dos autos supra referenciados, por sentença proferida a 11 de Dezembro de 2018, mas apenas depositada no dia seguinte, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de 1 (um) crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, previsto e punível pelo art. 89º, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €6,00.
b) Inconformado, o Ministério Público que, na audiência de julgamento, em sede de alegações, se limitou a pedir justiça, interpôs recurso, em benefício do arguido[1], terminando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição sem destaques/sublinhados)
Nos presentes autos de processo comum singular, o arguido foi condenado, como autor imediato e sob a forma consumada, de um crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, previsto e punido pelo artigo 89º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições (RJAM), praticado em 24/4/2014, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6 euros.
Para o efeito de tal condenação entendeu o Tribunal, entre o mais, que:
"1. No dia 2 de Outubro de 2016, cerca das 21.13 horas, o arguido encontrava-se no sector 10, da bancada sul, do Estádio de Futebol C1…, sito na Via C…, no …, a assistir ao jogo de futebol entre o C… e o D…;
2. Nessa altura, o arguido accionou um artefacto pirotécnico, vulgarmente conhecido por petardo, e arremessou o mesmo para o solo provocando um efeito fumígeno e sonoro;
3. O arguido usou o referido objecto bem sabendo que o seu uso não é permitido em estádios e recintos desportivos todavia, não deixou de accionar o mesmo bem sabendo que poderia colocar em perigo a integridade de terceiros;
4. Bem conhecia o arguido as características explosivas do mencionado objecto e que o mesmo poderia atingir terceiros colocando assim em risco a integridade física destes;
5. Também não desconhecia o arguido o carácter ilícito da sua conduta." (sublinhado nosso).
A prova produzida (baseada nas declarações do arguido), contudo, salvo melhor opinião, aponta apenas a existência de um objecto cilíndrico com um rastilho, do qual, deflagrado, saía fumo, o que, por si só, não permite a subsunção no conceito de artigo de pirotecnia nos termos do RJAM.
Na verdade, o arguido, quando perguntado sobre o que é um petardo, esclareceu a este respeito apenas que terá segurado um objecto "mais ou menos deste tamanho, redondo, com rastilho (...), acende-se e sai um bocado de fumo (...). Não, não! Queimar, não, admitindo que pudesse magoar alguém apenas como objecto de arremesso (cfr. depoimento que consta gravado no dia 30/11/2018 através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática deste Tribunal, 02.40 a 06.48).
Regista-se (apesar de em tal elemento de prova não se louvar a fundamentação de facto) que, E…, agente da PSP, pese embora se tenha referido ao objecto como "petardo", quando perguntado concretamente sobre se apreendeu ou examinou o objecto e sobre as suas características, referiu que "não" (cfr. depoimento que consta gravado no dia 30/11/2018 através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática deste Tribunal, 00.25 a 00.54).
Petardo não é um conceito juridicamente definido nem tem um significado de recorte rigoroso no uso comum.
Fumo (e eventuais centelhas), por seu turno, podem ser produzidas por uma um de vários materiais ou substâncias, designadamente, qualquer material combustível (v.g. papel, madeira, com qualquer material inflamável como pólvora, gasolina, álcool).
Assim, um objecto a que o arguido chamou petardo que descreveu como tendo um tamanho determinado, sendo redondo, do qual sai fumo sem que queime, por si só, salvo melhor opinião, não é necessariamente um artefacto explosivo ou que contenha substâncias explosivas ou ainda que contenha uma mistura explosiva de substâncias cujos efeitos se produzam devido a reacções químicas autossustentadas.
Pelo exposto, e salvo melhor opinião, não poderia o Tribunal ter dado como provados os factos acima referidos.
10º
E, não tendo sido apurado quais as características físicas e o material que compunha o artefacto que o arguido detinha, não nos parece poder ser a sua detenção subsumida na previsão típica da norma incriminadora.
11º
Foram violados, por isso, os artigos 127º do CP e 89º do RJAM.
c) Admitido o recurso, por despacho de fls. 113, não houve resposta.
d) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso, com a consequente absolvição do arguido, por entender, em síntese, que «… os factos provados não contêm descrição suficiente das características do “petardo” accionado pelo arguido e são completamente omissos quanto aos materiais de que era feito e tipo de matéria explosiva que continha» sendo, pois, insuficientes para preencher os elementos do tipo objectivo do ilícito imputado ao arguido, não sendo viável qualquer outra indagação para apurar os factos necessários pois que tal matéria seria estranha ao objecto do processo definido pela acusação.
e) Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido.
f) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Assim, no caso sub judicio, a única questão suscitada é a da inexistência dos requisitos típicos da infracção imputada.
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2. A fundamentação de facto da decisão recorrida, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A) Factos Provados
1. No dia 22.10.2016, cerca das 21.13 horas, o arguido encontrava-se no sector 10, da bancada sul, do Estádio de Futebol C1…, sito na Via C…, no …, a assistir ao jogo de futebol entre o C… e o D…;
2. Nessa altura, o arguido accionou um artefacto pirotécnico, vulgarmente conhecido por petardo, e arremessou o mesmo para o solo provocando um efeito fumígeno e sonoro;
3. O arguido usou o referido objecto bem sabendo que o seu uso não é permitido em estádios e recintos desportivos todavia, não deixou de accionar o mesmo bem sabendo que poderia colocar em perigo a integridade física de terceiros;
4. Bem conhecia o arguido as características explosivas do mencionado objecto e que o mesmo poderia atingir terceiros colocando assim em risco a integridade física destes;
5. Também não desconhecia o arguido o carácter ilícito da sua conduta.
6. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta;
7. O arguido trabalha numa fábrica de bicicletas, na …, desde o dia 23 de Novembro e aufere o vencimento mensal de €580, acrescido de subsídio de alimentação. O arguido vive na companhia dos pais, dois irmãos e da avó. O arguido encontra-se a concluir o 12º ano de escolaridade.
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B) Motivação
A convicção do tribunal resultou do conjunto da prova, que se encontra integralmente documentada, valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127° do Código de Processo Penal.
O arguido confessou os factos de que vem acusado de modo integral e sem reservas. Explicou que o objecto em causa lhe foi entregue por um colega na bancada e estava perfeitamente ciente de que não podia fazer uso do mesmo. Instado a fazê-lo descreveu o objecto como tendo cerca de um palmo de comprimento (através de gesto que efectuou com as mãos) que "tem um rastilho, acende-se e rebenta".
O arguido demonstra-se arrependido da sua atitude afirmando que vivia uma fase mais complicada da sua vida.
Depôs sobre a sua situação pessoal.
Mais se valorou o relatório de visionamento de imagens e fixação de fotogramas de fls. 27 a 32, onde se visualiza a deflagração pelo arguido do artefacto pirotécnico, e o certificado do registo criminal do arguido junto a fls. 93 e do qual nada consta.
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3. Por seu turno, do teor da fundamentação jurídica importa ponderar o seguinte: (transcrição)
O arguido vem acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86º, n.º 1, al. d) e 89º, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Estabelece o citado artigo 89º que: "Quem, sem estar especificamente autorizado por legítimo motivo de serviço ou pela autoridade legalmente competente, transportar, detiver, usar, distribuir ou for portador, (...) em recintos desportivos ou na deslocação de ou para os mesmos aquando da realização de espetáculo desportivo, (...) qualquer das armas previstas no n.º 1 do artigo 2.º, ou quaisquer munições, engenhos, instrumentos, mecanismos, produtos, artigos ou substâncias referidos no artigo 86.º, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
Por seu turno a al. d) do n.º 1 do artigo 86º alude precisamente a artigos de pirotecnia que o artigo 2º, n.º 5, al. af) define como "qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas".
O artigo 2º, n.º 5, al. q), define como recinto desportivo "o local destinado à prática do desporto ou onde este tenha lugar, confinado ou delimitado por muros, paredes ou vedações, em regra com acesso controlado e condicionado".
Da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido na bancada do Estádio C1… enquanto assistia ao jogo de futebol entre o C… e o D…, deflagrou um artefacto pirotécnico, sem autorização. E fê-lo, como o próprio admitiu, ciente de que não estava autorizado a fazê-lo, conhecendo as características do objecto cujo rastilho incendiou assim permitindo o seu rebentamento.
Pelo exposto é objectiva e subjectivamente imputável ao arguido a prática do crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, p. e p. pelo artigo 89º da Lei n.º 5/2006, de 23/02, que lhe vem imputado.
(…)
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4. Apreciando de mérito
4.1 Do recurso em matéria de facto
1º Como decorre da fundamentação da decisão recorrida, única que aqui cumpre ponderar, está em causa um crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, assente na posse e utilização de artefacto pirotécnico, sem autorização, num recinto desportivo, cuja verificação é questionada pelo Ministério Público, agindo no interesse do arguido, ao abrigo do disposto no art. 410º, n.º 1, al. a), parte final, do Cód. Proc. Penal.
Embora o Digno Recorrente tenha lançado mão da previsão do art. 412º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, fazendo referência à prova gravada, cujos segmentos mais significantes transcreveu, para concluir que os factos provados sob os n.ºs 1 a 5 deviam ser tidos como não provados, com a consequente absolvição do arguido, cremos que a apreciação da questão suscitada nem sequer demanda tal indagação probatória, por serem evidentes as desarmonias e insuficiências do texto decisório.
2º Com efeito, sendo consabido que os Tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto [art. 428º, do Cód. Proc. Penal], os moldes que delimitam o instituto recursório, entendido como um remédio para os vícios do julgamento da 1ª instância[2], determina que a modificação da matéria de facto apenas seja possível quando ocorra impugnação nos estritos termos previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, visando os chamados erros de julgamento. Esta via recursória é a única que admite a reapreciação da prova produzida e/ou gravada em audiência, impondo ao interessado a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [pontos de facto da discórdia], as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – por referência ao consignado na acta, nos termos do art. 364º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, e com indicação [ou transcrição se a acta for omissa – v. Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012] das concretas passagens da gravação em que apoia a sua pretensão - e as provas que devem ser renovadas.
A outra vertente do recurso em matéria de facto refere-se a anomalias que, tendo ainda a sua fonte na decisão recorrida [vícios da decisão], podem extravasá-la e inquinar, total ou parcialmente, o próprio julgamento, se não puderem ser colmatados no tribunal de recurso, como decorre do estatuído nos arts. 410º, n.º 2, 430º, n.º 1 e 431º, als. a) e c), do Cód. Proc. Penal.
O elenco legal destes vícios abrange nas alíneas:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (reportada, essencialmente, a hiatos factuais que podiam e deviam ter sido averiguados e se mostram necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição);
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (desdobrável em três hipóteses - contradição insanável de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão e contradição entre os factos); e
c) O erro notório na apreciação da prova (em regra associado desconformidades de tal modo evidentes que não passam despercebidas a qualquer pessoa minimamente atenta, ou seja é um erro patente que não escapa ao homem comum)[3].
Para além das características inerentes à sua espécie, a distinção fulcral entre ambas as categorias reside na circunstância dos vícios terem que patentear-se do texto da sentença, por si ou em conjugação com as regras de experiência, mas sempre sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, designadamente a análise de prova junta aos autos ou produzida em audiência, e os erros de julgamento admitirem a reapreciação de toda e qualquer prova, nomeadamente as declarações e depoimentos objecto de gravação.
3º Com vista ao enquadramento e cabal compreensão da questão em análise, cumpre ainda recordar que, na decorrência dos requisitos legais impostos à formulação da acusação, entre os quais, nos termos da previsão do art. 283º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Penal, o dever de narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido e de quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, é pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que as meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, são inadmissíveis no processo criminal, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas.
Deste modo, o quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há-de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, de molde que, por um lado, o arguido possa exercitar plenamente o seu direito de defesa e contraditório e, por outro, seja possível ao julgador dirimir integralmente e com segurança todas as questões que constituem o thema decidendum.
Isto posto, cumpre apreciar.
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4.1.1 Dos vícios
Cotejando a fundamentação de facto da decisão recorrida é patente que esta evidencia contradições e não contempla todos os factos necessários à decisão.
Desde logo, porque em sede de motivação da convicção se alude à confissão, “integral e sem reservas”, do arguido e bem assim ao facto deste se ter demonstrado arrependido, circunstâncias atenuantes de relevo que, todavia, não encontram eco na enumeração factual.
A tal desconformidade acresce a circunstância do tribunal a quo ter ponderado a referenciada - mas nunca enumerada em sede própria - confissão dos factos.
Estas desarmonias, sendo patentes, não são insanáveis porquanto dispõe este tribunal ad quem de todos os elementos de prova que lhe serviram de base, podendo mesmo ser reapreciada a prova gravada, fruto da impugnação recursória.
Assim sendo e inexistindo na respectiva acta de audiência de julgamento respectiva qualquer alusão ou advertência relativa à pretensa confissão integral e sem reservas, tudo se reconduziria ao aditamento de um novo facto à matéria provada no sentido do arguido ter prestado declarações confessórias, sendo irrelevante a “declaração de arrependimento”, visto não se exteriorizar em qualquer acto objectivo que lhe pudesse dar a necessária sustentação para efeitos jurídico-criminais.
Todavia, ultrapassado este obstáculo de menor importância, constata-se que, percorrida a matéria de suporte à imputação criminosa, esta se resume a uma série de chavões de natureza genérica, com apelo a conclusões e conceitos de direito, sem prévia descrição de qualquer factualidade de alicerce.
Assim, no tocante aos requisitos típicos objectivos, alude-se a “artefacto pirotécnico” e “petardo”, sem a mínima descrição do concreto objecto que estaria em causa – de molde a possibilitar a este tribunal ad quem um juízo de conformidade sobre a classificação operada - e, no ponto 4, já em sede de elemento subjectivo da infracção, considera-se assente que o arguido “conhecia as características explosivas do mencionado objecto”, sem que anteriormente se tenha feito a mínima referência a qualquer tipo de matéria que pudesse integrar a densificação normativa respectiva.
Com efeito, o art. 89º, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, consagra a punição com pena de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias (se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal) de quem, sem autorização ou motivo legítimo, entre o mais, detiver e/ou usar, em recintos desportivos aquando da realização de espectáculo desportivo, qualquer das armas previstas no art. 2º, n.º 1, ou quaisquer munições, engenhos, instrumentos, mecanismos, produtos, artigos ou substâncias referidos no artigo 86.º.
Ora, a previsão da alínea d), do n.º 1, deste último normativo legal, contempla, realmente, os “artigos de pirotecnia”, embora excepcionando os fogos-de-artifício de categoria 1.
Por seu turno, de harmonia com as definições constantes do art. 2º, n.º 5, als. af) e ag), da citada Lei n.º 5/2006, de 23/2, entende-se por «artigo de pirotecnia» qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas e por «fogo-de-artifício de categoria 1» o artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento que apresenta um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destina a ser utilizado em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais[4].
Fazendo a conjugação das normas em presença facilmente se intui que:
i) A integração na classe dos artigos pirotécnicos depende de requisitos muito precisos e pré-definidos, sendo essencial a presença de substâncias explosivas ou mistura explosiva de substâncias visando determinado efeito, decorrente de reacções químicas exotérmicas auto-sustentadas; e
ii) O apelo à classificação abstracta de “artefacto pirotécnico” é manifestamente insuficiente para estabelecer a responsabilidade criminal do agente, desde logo porque se trata de conceito muito abrangente e nem todos os itens dessa natureza foram penalmente tutelados no art. 89º, da Lei n.º 5/2006, estando excluído o fogo-de-artifício de categoria 1.
Nesta conformidade, facilmente se compreende que a imputação do crime depende da descrição das características do artigo de pirotecnia em causa, não bastando a inclusão genérica nessa categoria para concluir pela punibilidade da conduta, como fez o tribunal a quo.
E, a consideração de que tal artefacto seria vulgarmente denominado por petardo, nenhum suporte relevante fornece à questão controvertida, pelos inúmeros significados que lhe estão associados e que não permitem estabelecer que tipo de substância ou mistura de substâncias entrou na composição do objecto que o arguido arremessou para o solo e provocou fumo e efeito sonoro, uma vez que, tal como se refere no recurso interposto e no douto parecer do Ex.mo PGA junto deste Tribunal da Relação, existe um sem número de matérias sólidas, líquidas ou mesmo gasosas que, por si ou em conjugação com outras, podem produzir esses mesmos efeitos sem, contudo, atingirem a categoria de explosivo ou, pelo menos, de mistura explosiva.
Consequentemente, em hipóteses como a presente, não basta descrever os efeitos que se produziram após a utilização ou arremesso ao solo, sendo preciso estabelecer previamente de que “artigo” se trata e que substância(s) continha, só depois cumprindo, em sede de subsunção jurídica, efectuar a classificação para efeitos de responsabilização criminal (ou mesmo contra-ordenacional) ou seu afastamento.
In casu, forçosa é, pois, a conclusão que a classificação do objecto que o arguido manuseou e atirou ao chão como “artigo de pirotecnia” não tem o necessário suporte factual, não podendo subsistir, visto estar em causa simples conceito de direito que não foi devidamente sustentado nos factos que haviam de permitir tal conclusão e que, como é óbvio, pressupunham uma descrição minimamente clara, ainda que sucinta, do objecto em causa e da sua composição ou componentes (v.g., papel, tecido, pólvora, gasolina, lixívia, éter, gás? etc.) e tipo de reacção envolvida na produção do fumo e estrondo.
Nesta perspectiva, evidencia-se erro na aplicação do direito, já que a conduta objectiva imputada e dada como provada, não admite a classificação do indefinido “petardo”, como artefacto de pirotecnia, com a densificação normativa que a conjugação dos arts. 2º, n.º 5, al. af), 86º, n.º 1, al. d), e 89º, da Lei n.º 5/2006, pressupõe e exige para a responsabilização criminal, ficando sem qualquer sustentação o conclusivo elemento subjectivo vertido nos pontos 3 a 5 dos factos provados, especialmente a referência ao conhecimento das características explosivas do mencionado objecto e capacidade deste pôr em risco a integridade física de terceiros.
E, nem sequer se coloca a hipótese de mandar complementar esses factos pois que correspondem à totalidade do objecto do processo recortado na acusação, que se limitava a imputar a posse e utilização de artefacto pirotécnico, vulgo petardo - cujas características nunca sequer concretizou, nem o poderia fazer já que não foram recolhidos e, por conseguinte, examinados quaisquer vestígios do mesmo - e o conhecimento de que este não podia ser utilizado no local, que tinha características explosivas e podia colocar em risco a integridade física alheia, e ainda que tal conduta era proibida, afirmações puramente conclusivas pois que sem qualquer suporte fáctico prévio e que ficam prejudicadas pela falha do elemento objectivo da infracção, restando, face à manifesta insuficiência da matéria fáctica, decretar a absolvição do arguido.
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III – DISPOSITIVO
Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público e revogar a decisão recorrida, absolvendo o arguido B… da prática do crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, previsto e punível pelo art. 89º, com referência ao art. 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, com a consequente extinção da medida de coacção (TIR).
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Sem custas - art. 513º n.º 1, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]
Porto, 10 de Julho de 2019
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Assim, não está em causa a jurisprudência fixada no AFJ do STJ n.º 2/2011, de 16/12/2010, publicado no DR, Série I, de 27/01/2011.
[2] Germano Marques da Silva, in Forum Justitiae Maio/1999.
[3] V., a este propósito, Acs. do STJ de 26/11/2008 e 5/12/2007, Processos n.ºs 08P3372 e 07P3406, disponíveis in dgsi.pt.; Simas Santos/Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 7ª Ed., págs.75/76, e “Código de Processo Penal Anotado”, Vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º, e Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág. 340.
[4] Definição em tudo idêntica à contemplada no art. 6º, n.º 3, al. a), opção i), do Dec. Lei n.º 135/2015, de 28/07, que procede à definição das regras que estabelecem a livre circulação de artigos de pirotecnia, bem como os requisitos essenciais de segurança que os mesmos devem satisfazer tendo em vista a sua disponibilização no mercado.
[5] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.