Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
742/05.4TVPRT.1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
FINALIDADES
LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP20201216742/05.4TVPRT.1.P1
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - À prestação de caução, enquanto garantia especial das obrigações, são associadas finalidades como a de prevenir o incumprimento de obrigações que possam vir a ser assumidas por quem exerce determinadas funções, como requisito de exercício de um determinado direito, ou para afastar o direito de outra parte.
II - Pode, no entanto, suceder que as partes atribuam à caução, além da sua função específica, também uma função limitativa da indemnização. Tal ocorre quando a caução signifique, ao mesmo tempo, o limite máximo a que a indemnização deverá ascender, ou traduzir a indemnização do credor ou uma função penal, convertendo-se a caução numa figura híbrida ou mista.
III - No caso vertente, atento o clausulado no contrato, servindo a caução de garantia para o incumprimento, o recorrente tem direito a fazê-la sua para pagamento da responsabilidade do devedor e, apenas, se sobrar algum valor da caução, no caso de resolução, o recorrente pode fazer seu o montante remanescente a título de cláusula penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2020:742/05.4TVPRT.1.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, S.A., instaurou o presente incidente de liquidação contra C…, onde concluiu pedindo a condenação do requerido a pagar à requerente a quantia de € 12.040,50, pelos prejuízos causados com a resolução do contrato, nos termos previstos na cláusula 16.ª do contrato; a quantia de € 12.880,00, correspondente à indemnização resultante dos prejuízos pela resolução contratual prevista na cláusula 17.ª do contrato; bem como a quantia de € 5.0544,77 conforme sentença proferida no processo judicial n.º 742/05.4TVPRT, que correu termos na 9.ª Vara Cível do Porto, 1.ª Secção.
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Notificado, o requerido não deduziu oposição.
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Por despacho saneador sentença proferido a 08.07.2020 o Tribunal a quo decidiu julgar o incidente parcialmente procedente e liquidou a quantia em € 8.016.73.
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Não se conformando com o despacho saneador sentença proferido, o recorrente B…, S.A. veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I)Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu parcialmente do pedido o Réu.

II) Resumidamente, o Tribunal refere que por força da cláusula 17.ª “a autora tem direito a uma indemnização de € 12.880,00€ (280€ x 2 x 23 meses)”.

III) Contudo, tendo em conta que foi prestada caução no valor de 4.863,27€, entendeu o Tribunal que a Autora sempre poderia fazer seu esse valor, pelo que fixou o valor do crédito indemnizatório em 8.016,73€ - valor pelo qual foi o Réu condenado.

IV) Ora, as partes estipularam nas Condições Particulares que o Réu entregaria à Autora a quantia de 4.863,27 € a título de caução para garantia do cumprimento pontual de todas as obrigações emergentes do contrato, inclusivamente a entrega do veículo no seu termo.

V) Assim, visando a caução a garantia de tais obrigações e considerando que após a resolução contratual o Réu não restituiu o veículo à Autora, o valor por aquele pago a título de garantia nunca teria que lhe ser devolvido, pois caso assim não fosse a caução perderia a sua essência de garantia.

VI) Ainda mais, ficou estipulado na cláusula 22.ª, al. c) das Condições Gerais que, em caso de resolução pela Autora, esta faria seu o valor pago pelo Réu a título de caução.

VII) Verificado o incumprimento do Réu, o contrato foi resolvido pela Autora, motivo pelo qual fez seu o valor da caução nos termos definidos em sede contratual.

VIII) Isto posto, não se compreende como pode o Tribunal a quo deduzir ao montante da indemnização o valor da caução, porquanto faz aqui operar uma compensação que não existe uma vez que a Autora nada deve ao Réu.

IX) Efectivamente, a Autora tem na sua posse a quantia de 4.863,27 € paga pelo Réu, contudo esse valor servia para garantir o bom cumprimento das obrigações assumidas por estes, sendo que apenas e tão só seria devolvido em caso de cumprimento total dessas mesmas obrigações, aliás conforme estipulado na al. b) da cláusula 22.ª das Condições Gerais.

X) Deste modo, não se tendo verificado o cumprimento integral das obrigações emergentes do contrato celebrado, a Autora nada tem a devolver ao Réu, pelo que o valor da caução não deverá ser deduzido ao montante peticionado a título de dano moratório.

XI) Assim, deve o Réu ser condenado ao pagamento da quantia 12.880,00 €, devendo por isso a presente sentença ser substituída nesta parte por douto Acórdão em conformidade.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo considerou provados, além dos factos já julgados provados na sentença proferida no processo judicial n.º 742/05.4TVPRT, que correu termos na 9.ª Vara Cível do Porto, 1.ª Secção, os seguintes factos:
1. Autora e réu, na qualidade de fiador subscreveram o documento junto a fls. 13 e ss. do processo principal onde consta, além do mais que se dá por transcrito:
«Contrato de Aluguer de Veículos Sem Condutor Condições Gerais (…) 1. Objecto do Contrato a D…, S.A. doravante designada apenas por D1…, dá de aluguer ao LOCATÁRIO e este toma de aluguer aquela o veículo identificado nas Condições Particulares. (…) 6. MORA Em caso de não pagamento pontual de quaisquer quantias por força deste Contrato, e sem prejuízo de outras penalidades dele ou da lei decorrentes, serão devidos juros de mora à taxa publicitada pela Associação Portuguesa de Bancos, acrescido de quatro pontos percentuais, a título de cláusula penal moratória. (…) 12. SEGUROS a) O LOCATÁRIO terá obrigação de custear, relativamente ao prazo de duração do aluguer: − Um Seguro, cujo beneficiário será a D… ou o proprietário do veículo quando esta não se revista dessa qualidade, que abranja as eventualidades de perda ou deterioração, causais ou não causais, do veículo. (…) 16. CASOS DE RESOLUÇÃO DE CONTRATOS a) (…). b) (…). c) Como consequência da resolução do contrato, a D1… terá o direito de retomar o veículo, reter as importâncias pagas pelo LOCATÁRIO e de exigir as vencidas e não pagas até à data da resolução, bem como a de ser indemnizada pelos prejuízos resultantes da resolução do contrato. 17. MORA NA DEVOLUÇÃO DO BEM Se, cessando o aluguer, por decurso do prazo, denuncia ou resolução, o locatário não devolver atempadamente o veículo, a D1… terá direito a título de cláusula penal por esta mora na devolução, a receber uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito se o aluguer permanecesse em vigor e por um lapso de tempo igual à mora. (…) 21. GARANTIAS Como garantia do cumprimento, do LOCATÁRIO, das obrigações por ele assumidas no presente contrato, são as constituídas a favor da D… as garantias previstas nas Condições Particulares. 22. DEPÓSITO DE CAUÇÃO a) Ao locatário poderá ser exigida uma caução para o bom cumprimento das obrigações decorrentes deste contrato pelo montante indicado nas condições particulares. b) No termo do contrato, haverá lugar a prestações de contas respondendo à caução; até à concorrência do seu montante, pelos pagamentos que haja que efectuar, sendo devolvido o excesso ou pago o remanescente pelo locatário, conforme o caso. c) Em caso de rescisão e denúncia nos termos previstos na cláusula 16.ª, o valor da caução reverterá na sua totalidade para a D1…».
2. Autora e réu subscreveram este documento em 25 de Setembro de 2002.
3. O prazo de duração do acordo foi fixado pelas partes em 60 meses.
4. Para garantia do cumprimento das suas obrigações, o réu prestou uma caução no valor de € 4.863.27
5. A autora operou a resolução do contrato em 20 de Fevereiro de 2004.
6. Na data da resolução do contrato, a contrapartida mensal a cargo do réu ascendia a € 280,00.
7. O autor recuperou a viatura em 2.2.2006.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso consiste em apurar da existência ou não de fundamento para deduzir o valor da caução ao montante liquidado.

4. Conhecendo do mérito do recurso
No caso vertente, por despacho saneador sentença decidiu a Sr.ª Juiz a quo o incidente de liquidação, condenando o Réu/recorrido no pagamento da quantia de € 8.016,73.
O Tribunal a quo refere que por força da cláusula 17.ª “a autora tem direito a uma indemnização de € 12.880,00€ (280€ x 2 x 23 meses).”.
Entendeu, todavia, tendo em conta que foi prestada caução no valor de € 4.863,27, que a Autora/recorrente sempre poderia fazer seu o referido valor, fixando em € 8.016,73 o valor final do crédito indemnizatório.
Vejamos, então, se assiste razão ao Tribunal a quo quando deduz ao valor do crédito indemnizatório a quantia paga pelo Réu/recorrido a título de caução.
Como é sabido, à prestação de caução, enquanto garantia especial das obrigações, são associadas finalidades como a de prevenir o incumprimento de obrigações que possam vir a ser assumidas por quem exerce determinadas funções, como requisito de exercício de um determinado direito, ou para afastar o direito de outra parte - cf., entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 25.10.1994, proferido no processo 505/13.3TBMMV-B.C1, publicado na Colectânea de Jurisprudência, XIX, 5, 32 e de 05.5.2015, in www.dgsi.pt.
Como refere Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, 471, no seu sentido corrente, a caução designa a entrega feita por uma das partes à outra de certa quantidade de coisas móveis (fungíveis algumas vezes - como o dinheiro, mercadorias, títulos ao portador; não fungíveis outras vezes - como jóias, títulos nominativos, etc.), para garantia da cobertura do dano proveniente do não cumprimento de determinada obrigação.
Também para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª edição, 812, em regra, a prestação de caução tem por função prevenir o cumprimento de obrigações que possam vir a ser assumidas por quem exerça uma certa função ou esteja adstrito à entrega de bens ou valores alheios.
A caução constitui, portanto, uma forma de garantia das obrigações (artigo 623º do Código Civil) e não de substituição das mesmas, não podendo a existência de uma garantia, como é o caso da caução, impedir a resolução do contrato, se se verificar o incumprimento que permita legal ou contratualmente operar a resolução.
A caução mais não representa, em princípio, do que a garantia, para o credor, de que a indemnização a que eventualmente tenha direito, lhe será efectivamente satisfeita, revertendo, portanto, a mesma a favor do credor, em caso de incumprimento da obrigação caucionada pelo devedor.
Limitando-se a prestação da caução a assegurar o cumprimento de uma eventual obrigação de indemnizar, não a substitui, nem acresce, em princípio, a essa obrigação. Em regra, terminado o contrato, a parte que prestou a caução, terá o direito de reaver a quantia entregue, incluindo os juros que ela tenha vencido.
Se, porém, tiverem ocorrido danos por que a caução deva responder, o valor dos mesmos ser-lhe-á deduzido. Caso assim não suceda e, ao invés, se o valor do dano for superior, a parte a favor de quem a caução foi prestada, terá direito a uma indemnização integral.
Mas também pode suceder que as partes atribuam à caução, além da sua função específica, também uma função limitativa da indemnização. Tal ocorre quando a caução signifique, ao mesmo tempo, o limite máximo a que a indemnização deverá ascender, ou traduzir a indemnização do credor ou uma função penal, convertendo-se a caução numa figura híbrida ou mista - cf. neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa de 20.01.2011, proferido no processo 1320/08.1YXLSB.L1.
Reconhece-se, assim, que a caução pode ter ínsita uma função penal, porquanto paira sobre a parte que a prestou a ameaça de uma sanção em caso de não cumprimento, o que implica que, neste caso a caução deva ser submetida ao regime da cláusula penal, dada a patente afinidade substancial entre ambas.
No caso vertente, e segundo a cláusula 21.º do contrato de ALD, o depósito de caução destina-se a garantir/caucionar o bom cumprimento das cláusulas pecuniárias do contrato.
E, de acordo com a alínea b), da cláusula 22ª no termo do contrato haverá lugar à prestação de contas respondendo a caução até à concorrência do seu montante pelo pagamento de todas as importâncias e/ou indemnizações que o Locatário, nos termos deste contrato haja de efectuar ou pagar, sendo devolvido o excesso ou pago o remanescente pelo locatário, conforme o caso.
Da leitura da aludida cláusula resulta que o convencionado e acordado entre as partes foi precisamente que o depósito da caução prestada, se destinasse a garantir/caucionar o bom cumprimento das cláusulas pecuniárias do mesmo contrato.
Todavia, da alínea c) da referida cláusula 22ª do contrato aqui em apreciação resulta que em caso de rescisão e denúncia nos termos da cláusula 16ª o valor da caução reverterá na sua totalidade para o Locador.
Afigura-se-nos que a caução prestada perdeu a sua total função de garantia e passou a assumir, cumulativamente, uma feição penal, dado que, em caso de incumprimento, o recorrido que prestou a caução perde o direito de reaver a quantia entregue, ainda que o valor do dano seja inferior.
Assim, da interpretação conjunta das referidas alíneas do contrato parece-nos que servindo a caução de garantia para o incumprimento, o recorrente tem direito a fazê-la sua para pagamento da responsabilidade liquidada do devedor e, apenas, se sobrar algum valor da caução, no caso de resolução, o recorrente pode fazê-lo seu a título de cláusula penal.
Ou seja, por se considerar que as partes atribuíram à caução, além da sua função específica de garantia, também uma função limitativa da indemnização, razão assiste ao Tribunal a quo quando entende que o valor da caução deverá ser utilizado, em primeiro lugar, para amortizar as obrigações pecuniárias em dívida à data da resolução, por forma a dar cumprimento à finalidade para a qual foi estabelecida, sendo tão-somente o excedente que reverterá para a autora/recorrente, assumindo, nessa parte, a natureza de cláusula penal.
No caso vertente, porém, atento o valor da caução (€ 4.863,27) e dado o montante indemnizatório liquidado (€ 12.880,00) constata-se que não há excedente a reverter para a autora/apelante pelo que a decisão do Tribunal a quo não nos merece censura – cfr., neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.05.2013, publicado in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto, bem como o acórdão do mesmo Tribunal de 20.12.2017, publicado in www.dgsi.pt.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante.
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Notifique.

Porto, 16 de Dezembro de 2020
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas)