Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
672/11.0T3AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIOS INDEMNIZATÓRIOS
PORTARIA
Nº do Documento: RP20150211672/11.0T3AVR.P1
Data do Acordão: 02/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Os critérios indemnizatórios decorrentes da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio, não vinculam os tribunais, não servem para a fixação definitiva de valores indemnizatórios, são valores mínimos em ordem à aferição da razoabilidade das propostas apresentadas por companhias de seguros.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 672/11.0T3AVR.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… vem interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro (Comarca do Baixo Vouga) que o condenou, pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, e 15º, b), do Código Penal, na pena de doze meses de prisão; pela prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200º, nº 1 e 2, do mesmo Código, na pena de seis meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena de quinze meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sob condição de pagamento da quantia de setecentos e cinquenta euros às “C…” em quinze prestações mensais; e condenou o Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao Hospital … a quantia de 6.904,90 €, acrescida dos juros legais; e a pagar ao demandante D… e à habilitada do demandante E… (F…) a quantia de 61.000 €, acrescida dos juros legais, quantia a repartir entre ambos na proporção dos respetivos quinhões hereditários; ao demandante D… a quantia de vinte mil euros, acrescida dos juros legais, e à habilitada F… também a quantia de vinte mil euros, acrescida dos juros legais.

As conclusões da motivação deste recurso são as seguintes:
«I. O tribunal deu como provado que o veículo automóvel da ofendida se encontrava estacionado em local próprio e de forma paralela, ainda que ligeiramente dentro da faixa de rodagem. Porém, a prova produzida foi em sentido contrário, pelo que dever-se-á concluir que o veículo da vítima estava mal estacionado e a sua atitude impudente concorreu directamente para a ocorrência do acidente.
II. O tribunal deu ainda como provado que a vítima se encontrava junto à porta da frente, invadindo cerca de 50 cm no interior da hemi-faixa da direita, quando se dispunha a abrir ou fechar a porta do veículo. Apesar de concluir deste modo, ignorou totalmente o facto de a vítima se ter colocado numa posição que, no mínimo, era propícia a embaraçar o trânsito, e que podia colocar a sua vida em risco efetivo, pelo que, não observou o dever de cuidado que as circunstâncias exigiam.
III. A vítima manifestou um comportamento temerário porque após estacionar o seu veículo em local proibido, deslocou-se pela faixa de rodagem.
IV. Houve, por isso, no mínimo concorrência de culpas entre o arguido e a vítima, sendo óbvia a existência da negligência da última, dada a omissão dos deveres gerais de cuidado.
V. Na fixação da medida concreta da pena dever-se-ia ter tido em conta a culpa da vítima uma vez que, não acumulando a especial qualificação da culpa do arguido, implica um diminuição desta, pelo que, tendo em conta (artigo 71º do Código Penal) o grau de ilicitude do facto, a gravidade das suas consequências (morte da vítima), a intensidade da negligência, as condições pessoais do arguido e a sua situação económica, a sua conduta anterior ao facto e as exigências de prevenção afigura-se adequada uma pena inferior àquela que veio a ser fixada.
VI. No que respeita ao pedido de indemnização civil e à condenação do FGA, considera-se que os valores fixados são excessivos e devem ser reduzidos.
VII. Tanto mais que, como se disse, o comportamento da vítima concorreu directamente para a ocorrência do acidente.
VIII. Assim, o tribunal deveria determinar a indemnização com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, o que não fez.
IX. Aliás, não levou em conta a aplicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio (alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho), como critério de ponderação.
X. A condenação não coincide de todo com os princípios aí plasmados, mormente, por referência à idade da lesada que à data dos factos contava 67 anos.
XI. Pela aplicação dos critérios da portaria, o valor a fixar por danos relativos à perda da vítima, seria de 40.000,00 €.
XII. E deveria ter sido considerado, em resultado dos factos que resultaram provados, que houve concorrência de culpas porquanto a vítima não usou do dever de cuidado que lhe era exigido.
XIII. Acresce que no que respeita aos danos morais sofridos pela vítima, o tribunal deu como não provada a consciência da morte por parte da vítima, como aliás resultou da prova produzida em audiência.
XIV. Porém, decidiu condenar o FGA em 1.000 € pelos danos referidos.
XV. Em nosso entender, não havia lugar a qualquer indemnização, porquanto foi dado como não provada a existência do dano.
XVI. Ao não decidir da forma supra exposta, o tribunal a quo violou os artigos 496.º, 494.º e 570.º do CC.»

Na sua resposta a tal motivação, o Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância pugnou pelo não provimento do recurso.

O assistente D… também apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Fundo de Garantia Automóvel também interpôs recurso dessa sentença, constando da motivação deste recurso as seguintes conclusões:
«1. O arguido deve ser condenado solidariamente com o FGA ao pagamento de todas as quantias em cujo pagamento o FGA seja condenado a pagar aos demandantes cíveis;
2. É o arguido o responsável civil primário perante os demandantes cíveis, sendo o FGA um mero garante do seu dever de indemnizar;
3. A absolvição do arguido dos pedidos cíveis dirigidos contra o mesmo, afronta o litisconsórcio necessário passivo;
4. Os critérios plasmados na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio não podem deixar de se erigir em referente para o julgador, pois reduzem a incerteza e a subjectividade da decisão e asseguram um melhor tratamento igual entre todos os lesados;
5. Os critérios de tal instrumento normativo resultam de uma ponderação prudencial, médico-legal e económica e social e devem, por isso, ser considerados;
6. Havendo uma divergência substancial entre o resultado que se alcançaria pela aplicação da portaria e o resultado da decisão judicial, deve considerar-se que é possível o excesso da decisão judicial;
7. A indemnização pela perda do direito à vida deve fixar-se em 40.000,00 €;
8. Ao não os interpretar da forma acima assinalada, o tribunal a quo violou os artigos 496.º, 494.º, 562.º e 566.º do CC e o artigo 62.º do DL n.º 291/2007.»

O demandante D… apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento deste recurso, exceto no que se refere à condenação do arguido no pedido de indemnização civil.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso interposto pelo arguido.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões das motivações dos recursos, as seguintes:
Quanto ao recurso interposto pelo arguido:
-saber se a prova produzida impõe que não se considere (ao contrário do que consta da sentença recorrida) que o veículo da vítima estava estacionado em local próprio e de forma paralela;
- saber se, pelo facto de a vítima se ter deslocado pela faixa de rodagem após ter estacionado o veículo em local proibido, deve considerar-se que concorreu com a sua culpa para a ocorrência do acidente;
- saber se a pena em que o arguido foi condenado é excessivamente severa, face aos critérios legais;
- saber se os valores fixados para o pedido de indemnização civil são excessivos, porque a vítima concorreu para o acidente, porque não correspondem aos critérios decorrentes da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio, e porque não se provou que a vítima tivesse sofrido danos morais antes de falecer.
Quanto ao recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel:
- saber se o arguido e demandado deve ser solidariamente condenado, juntamente com esse Fundo, no pedido de indemnização civil em causa;
- saber se a fixação do valor da indemnização pela perda do direito à vida deve ser reduzida, em consonância com os critérios decorrentes da Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos provados
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 30 de Março de 2011, pelas 15h20m, o arguido B… tripulava o motociclo, com a matrícula ..-..-TJ, propriedade de G…, pela Rua …, no sentido Sul/Norte, na freguesia …, na cidade de Aveiro, nesta comarca do Baixo Vouga.
2. O local onde o arguido se deslocava é uma rua urbana, com dois sentidos.
3. A faixa de rodagem no local mencionado tem um traçado recto, apresenta uma largura de 9 metros, sendo 4,5 metros para cada uma das hemi-faixas, encontrando-se próxima de uma passagem para peões devidamente sinalizada (no próprio pavimento e por sinalização vertical) e um sinal de proibição de exceder a velocidade máxima de 40km/hora no referido local (por sinalização vertical).
4. O tempo apresentava-se chuvoso, com pouca intensidade de tráfego.
5. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, à frente do arguido, atento o seu sentido de marcha, não circulava qualquer outro veículo.
6. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, no mesmo sentido Sul/Norte, junto ao número … da referida Rua, encontrava-se estacionado, em local próprio e de forma paralela. Ainda que ligeiramente dentro da faixa de rodagem, o veículo automóvel, propriedade do peão H…, id. A fls. 3 e 4.
7. H… encontrava-se junto à porta da frente do lado esquerdo do seu veículo, invadindo cerca de 50 cm no interior da hemi-faixa direita, quando se dispunha para abrir ou fechar a porta daquele.
8. O arguido, em virtude da desatenção em que tripulava o motociclo, o arguido não viu o peão que ali se encontrava, e com a parte frontal direita do motociclo embateu na H….
9. Com o embate, H… foi projetada, vindo a cair no solo a 2 metros de distância, à frente do local em que foi colhida pelo veículo.
10. Como consequência do embate e consequente projeção de H…, e apesar do pronto tratamento esta veio a sofrer lesões traumáticas toracoabdomino-pélvica e dos membros, melhor descritas no relatório da autópsia, constante de fls. 172 a 174 cujo teor se dá, por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos, e que foram causa adequada da sua morte, que foi declarada às 21 horas e 12 minutos do dia 30 de Março de 2011, no Hospital …, em Aveiro.
11. Assim, o arguido, porque não prestava atenção ao que se passava à sua frente, conduzindo distraído, não viu H… que ali se encontrava, razão pela qual não efetuou nenhuma manobra de evasão, com o intuito de evitar o atropelamento.
12. O arguido atuou sem usar do cuidado que, naquelas circunstâncias, lhe era exigível e de que é capaz, na medida em que, seguindo, numa rua citadina, não conduzia com a atenção que deve ser dispensada a uma atividade perigosa como é a condução, omitindo as precauções de segurança exigidas no exercício desta, de facto se assim não fosse, o arguido tinha que ter avistado a H… e evitado o acidente.
13. Assim, atuou o arguido com falta de cuidado.
14. Acresce que, o arguido conduziu com uma taxa de álcool no sangue de 0,48 g/l.
15. Após, o arguido ter embatido com o seu veículo na vítima, apesar de ter visto a queda da ofendida, e não obstante saber que a mesma carecia de socorro, não parou o seu motociclo, a fim de a auxiliar, e assim por termo à situação de risco para integridade em que aquela se encontrava.
16. O arguido, ao invés de imobilizar o seu veículo e de lhe prestar os necessários socorros ou providenciando para que outrem os prestasse de imediato, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências que dessa omissão pudessem advir para a vítima.
17. Não obstante, sabia que sobre si impendia o dever acrescido de a socorrer, quer por si, quer promovendo o seu auxílio, e estava em condições de o fazer.
18. Ao abandonar o local do acidente por si originado, omitindo tal socorro ou auxílio, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
19. O arguido bem sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
20. O arguido foi condenado:
No âmbito do processo 73/07.5PBAVR, 1º Juízo Criminal de Aveiro, na pena de 190 dias de multa, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, remontando os factos a 11-01-2007, a decisão a 2008 e o trânsito a 28/01/2009.
No âmbito do processo 194/13.5PFAVR do Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo na pena de 1 ano e 9 meses de prisão suspensa por igual período pela prática de um crime de detenção de arma proibida, remontando os factos a 09/02/2013, a decisão a 09/02/2013 e o trânsito a 08/04/2012
21 – O ofendido D… recebeu da Segurança Social, a título de subsídio por morte pelo óbito de H… a quantia de 2515,32,€, processada em Setembro de 2011.
22 – O motociclo interveniente no acidente, embora tivesse a propriedade registada em nome de G…, pertencia ao arguido, sendo este que habitualmente o conduzia e que era o responsável pela sua manutenção. Não estava segurado pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil
23 A vítima nasceu a 25/11/43.
24 – Era casada há muitos anos com D… e era mãe de E….
25 – Era uma pessoa saudável, alegre, feliz e dinâmica que apreciava a vida e obtinha grande prazer da vivência diária, dedicando-se de corpo e alma à família e amigos.
26 – O casal que formava com o demandante D… vivia em harmonia. Adoravam dançar e passear o que faziam todas as semanas.
27 – Com a morte de H…, o demandante D… deixou de sair, perdendo a vontade de viver.
28 – A vítima mantinha com o filho E… uma relação sólida, de um apreço, entre si, constantes, tendo com o filho uma relação de profunda amizade e cumplicidade, sendo a sua confidente e conselheira.
29 – A sua morte causou ao demandante E… uma sensação de perda irreparável e uma grande angústia. Passados alguns meses sobre a morte da mãe o demandante suicidou-se.
30 – O arguido encontra-se desempregado. A companheira é cabeleireira e tem dois filhos a cargo. Pagam 460 € de renda de casa.
31 – O arguido ficou perturbado com o acidente. Participa em atividades de cariz social com crianças.
Não se provou que:
- Desde o momento em que se apercebeu da iminência do sinistro até ao momento da sua morte, ocorrida cerca de 6 horas depois, a H… sofresse incontáveis dores e sofrimento atroz e tivesse consciência da sua inevitável morte bem como a certeza de que nunca mais teria a companhia dos seus entes queridos...
- As roupas e acessórios que a vítima envergava no momento do acidente valessem 350 €.
4. Motivação.
O tribunal fundou a sua convicção:
Na certidão de óbito de fls. 4 e boletim de informação clínica de fls. 5 e ss,
Na participação de acidente, no que se refere à identificação dos veículos envolvidos, ao croqui e medições efetuadas;
- no talão relativo ao teste quantitativo de álcool, constante de fls. 17
- no auto de contra-ordenação de fls. 24, relativo à falta de seguro obrigatório.
- no auto de apreensão de fls. 26.
- na reportagem fotográfica de fls. 29 e ss e 37 e ss e 104 e ss
- no relatório técnico do acidente de viação, nomeadamente no que se refere às características do local do acidente e características do veículo interveniente e danos por ele sofridos
- no relatório de autópsia de fls. 172 e ss;
- no assento de óbito de fls. 196 e ss
- na fatura de fls. 202 e no relatório pericial de fls. 347 e ss
No CRC de fls. 424 e ss;
No documento de fls. 529 – relativo à quantia recebida pelo demandado D… em consequência da vítima do acidente.
O arguido confirmou o referido na acusação quanto ao local onde ocorreu o acidente e características desse local.
No mais disse que não viu a ofendida, porque acha que ficou encadeado com alguma coisa que não conseguiu descrever. Apercebeu-se que embateu em qualquer coisa mas não se apercebeu em quê. Tentou travar mas verificou que não tinha travões. Assim, de modo a imobilizar o motociclo, dirigiu o mesmo no passeio, junto aos bombeiros, situados na mesma rua, mas mais à frente. Uma viatura parou atrás dele e o seu condutor disse-lhe que tinha atropelado uma pessoa. Quis ir ao local mas um amigo disse-lhe para não ir porque estavam a gritar assassino. Assim, deslocou-se de imediato à esquadra.
O seu depoimento tem diversas fragilidades:
- É completamente inverosímil que, atenta a hora do dia, as condições de visibilidade, a forma como ocorreu o embate e a sua violência (a vítima estava junto à viatura, de pé e a testemunha I… que presenciou os factos comparou o embate a um pega de touros, sendo a vítima projetada), o arguido não se tivesse apercebido que tivesse embatido numa pessoa.
- Não se percebe a sua explicação para não ter travado. De facto, segundo o que consta do exame pericial, apenas o travão da frente esteva inoperacional, já o mesmo não acontecendo com o travão de trás, que embora seja menos utilizado e menos eficaz, permitiria a travagem, ainda que de forma mais lenta (tal como foi também explicado pela testemunha J…, agente da PSP). Ora, para um condutor experiente, e que até faz parte de um grupo de motards, essa travagem seria porventura a resposta mais óbvia a uma situação de falha do travão da frente.
- O local “escolhido” para o arguido para imobilizar o motociclo (através de uma manobra de mudança de direção) foi precisamente o local onde costuma virar para se dirigir para sua casa (segundo o que foi dito pelo próprio costuma virar na rua que ladeia o edifício dos Bombeiros). Assim, a possibilidade de o arguido não ter parado voluntariamente mas ter parado porque perdeu o controlo do motociclo, numa altura em que efetuava a manobra de mudança de direção, é bem mais provável;
- não se percebe também que o arguido tenha tido receio da reação dos presentes. De facto, não é usual, em situação de acidente, as testemunhas ameaçarem e insultarem os intervenientes (mesmo em situações com feridos graves). No entanto, já é mais normal essa reação das pessoas quando constatam, em situações de atropelamento, que o seu autor se pôs em fuga.
- Há ainda a considerar o teor do aditamento ao auto de notícia de fls. 79. Ainda que não se possam valorar as declarações prestadas pelo arguido, constata-se que nesse aditamento se indica que o arguido compareceu na esquadra, apenas cerca de uma hora depois do acidente (e não de imediato como resultou do seu depoimento). É também percetível que o agente que o ouviu já tinha conhecimento do acidente e suas consequências (ou porque fora ao local e já estava de regresso à esquadra, ou porque o mesmo lhe fora relatado por outrem) o que não aconteceria se o arguido, de imediato, se tivesse dirigido à esquadra).
Foi também ouvida a testemunha, K…, agente da PSP que elaborou o auto. Confirmou o seu teor e o croqui. No mais, o seu depoimento foi pouco esclarecedor.
No entanto afirmou que os ânimos não estavam exaltados embora houvesse alguns insultos relacionados com o facto de o arguido ir, alegadamente em excesso de velocidade e ter fugido.
Disse que não havia rastos de travagem e que a porta da viatura da vítima estava fechada, fazendo crer que no momento do acidente a vítima se dirigia para o carro.
Mais disse que a vítima esteve sempre inconsciente.
A testemunha I…, presenciou todo o acidente, depondo de foram clara, verosímil e credível. Afirmou que seguia na direção contrária à do arguido e cruzou-se com este. Chamou-lhe à atenção o facto de a mota ir aos zig zags, razão porque seguiu o seu trajeto pelo espelho retrovisor. Viu a mota embater na vítima que foi projetada. Mais disse que a vítima estava encostada à viatura e que a porta desta estava fechada. Não havia qualquer veículo entre a mota e a vítima que obstasse à sua visibilidade. Também não se apercebeu de qualquer luz ou reflexo, sendo que o tempo estava chuvoso. Depois do embate não se apercebeu o que fez o arguido porque a sua preocupação foi a senhora que esteve sempre inconsciente. Referiu ainda que a sua perceção é a de que a mota seguiria a velocidade superior a 50 km/h.
A testemunha L…, também presenciou o acidente, circulando a pé no lado contrário àquele em que ocorreu o acidente. Olhou para o local do acidente quando ouviu o embate, sendo a vítima projetada. Esta estava ao lado de uma viatura que aí estava estacionada Não lhe pareceu que o motociclo fosse a uma velocidade exagerada. O motociclo desequilibrou-se mas o condutor prosseguiu a marcha, embatendo uns metros adiante, altura em que a mota parou.
As testemunhas M…, N…, O…, sobrinhos da falecida e P…, Q… e S…, suas amigas depuseram quanto às características de personalidade da vítima bem como quanto à relação que a mesma mantinha com o marido e filho.
As amigas da arguida afirmaram que no dia do acidente ainda falaram com a vítima, à chegada ao hospital e que esta estava consciente, falando que sabia que “Tinha chegado a sua hora”. No entanto, face aos depoimentos do agente e das testemunhas que presenciaram o acidente e que afirmaram que a vítima esteve sempre inconsciente o que é compatível com a gravidade dos ferimentos e não se entendendo bem como é que estas testemunhas conseguiram falar com a vítima no hospital, nesta parte, os seus depoimentos não mereceram credibilidade.
Quanto ao valor das roupas que a vítima envergava também não se fez qualquer prova.
Foram ouvidas também como testemunhas T…, companheira do arguido e U… e V…, seus amigos.
Nenhuma delas presenciou o acidente. No entanto, as duas primeiras, por serem donas de um cabeleireiro e de um café situados muito perto do local onde o motociclo se imobilizou, estiveram com o arguido na altura.
Referiram ambos que o arguido, estava muito nervoso e se queria deslocar ao local onde tinha sido o acidente, sendo impedido de o fazer pela testemunha U… por na altura ouvir pessoas a gritar “assassino”. Mais referiram que o arguido se deslocou de imediato à esquadra, sendo acompanhado pela testemunha U….
A companheira do arguido esclareceu ainda que a mota pertence ao arguido embora tenha a propriedade registada em nome do seu filho, G…, numa tentativa de evitar a sua penhora por dívidas do arguido. Mais referiu que o seu filho já não reside com eles desde 2006, não sendo sequer titular de licença de condução.
Quanto à testemunha V…, o seu depoimento foi completamente inverosímil. Passou, por acaso, no local, e viu o arguido sentado e todo dorido. O arguido dirigiu-se para a polícia e ele levou a mota para a garagem. No local as pessoas estavam exaltadas.
No entanto, e apesar do teor deste depoimento, quando confrontado com a razão por que retirou a mota do local, afirmou que o fez porque na altura não fazia ideia que tivesse havido um atropelamento, não tendo também explicação para o facto de o arguido ter ido à polícia.
Do seu depoimento, ficou a convicção que não retirou qualquer mota do local (que foi retirada sim pelo arguido que antes de ir à polícia foi para casa) e que nem sequer terá estado no local.
As testemunhas W… e X… depuseram quanto ao carácter do arguido.
Este depôs ainda no que toca à sua situação pessoal
Do teor da prova produzida retira-se que:
- o acidente ocorreu porque o arguido seguia de forma desatenta (porventura motivada pelo consumo de álcool), condução esta que, malgrado ser ainda pleno dia e o motociclo circular numa via desimpedida e com boa visibilidade, não lhe permitiu ver o peão;
- após o embate, o arguido prosseguiu a sua marcha, parando mais à frente por ter perdido o controlo do veículo, admitindo-se que nessa altura, mercê do comportamento do arguido que não parou no local do acidente, pudessem existir insultos por parte dos presentes, o que poderá ter motivado a que fosse aconselhado a não se dirigir ao local do acidente.
- sem possibilidade de ignorar os factos, terá achado melhor apresentar-se voluntariamente na esquadra, o que todavia não terá ocorrido de imediato, como quis fazer crer.

III - DO DIREITO
Quanto ao crime de homicídio negligente estabelece o art. 137º que:
“Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Segundo o disposto no art. 15º do CP age com negligência quem por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz representa como possível a realização de facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização ou não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Para que haja consumação deste crime tem portanto de ocorrer a morte de alguém e que essa morte seja provocada por:
- Violação de um dever objectivo de cuidado ou dever de diligência aferida essa violação pelos padrões do homem médio.
De facto, na sua vida quotidiana o homem tem de pautar a sua conduta por regras e cuidados adequados a evitar determinados resultados. Esses cuidados deverão ser acrescidos se em causa está uma atividade perigosa para terceiros.
Ora, sendo a condução uma atividade potencialmente perigosa, podendo por em perigo a vida ou integridade física de terceiros é uma atividade que exige que se observem determinados cuidados.
A não observância de tais cuidados conduz à negligência enquanto elemento subjectivo do tipo de ilícito.
Com a violação “de obrigação de realizar condutas de forma a não causar a morte de terceiros” preenche-se o elemento típico do crime de homicídio negligente (cf. Simas Santos e Leal Henriques, anotação ao art. 137º do seu Código Penal Anotado).
No caso, o arguido circulava de forma desatenta, pelo que não viu o peão que se encontrava à sua frente. Violou assim o dever objetivo de cuidado imposto a todos os condutores – cf. art. 11º n.º 2 e não parou o veículo no espaço livre e visível à sua frente, como se lhe impunha o art. 24º do CE.
No entanto, para que esta conduta seja punível é ainda necessário que haja culpa, isto é que “o sujeito, no caso concreto, tendo a possibilidade de agir de acordo com o direito, não o faz, o que equivale por dizer que não observou a diligência pessoal possível para evitar o resultado danoso (cf. autor citado).
A culpa afere-se portanto pela previsibilidade subjetiva, isto é pela previsibilidade atual, presente, ou seja aquela que no momento da conduta era acessível ao agente, embora se tenha em atenção as possibilidades do homem médio.
Ora, no caso, o arguido podia e devia ter visto a ofendida, não se interpondo entre eles qualquer obstáculo.
Agiu por isso com culpa.

Relativamente ao crime de omissão de auxílio estabelece o art. 200º do CP que: “1 - Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Através deste tipo legal de crime visa-se proteger bens jurídicos pessoais, sejam eles a vida, a integridade física ou a liberdade.
O seu fundamento legitimador é o da solidariedade humana que a todos deve vincular.
Estamos perante um crime de perigo concreto pressupondo, por isso, uma situação objectiva de perigo, seja esta criada por factores humanos ou naturais.
O omitente tem de ter a possibilidade de prestar o auxílio necessário, não sendo necessária a existência de um dever de garante.
Auxílio necessário é o que é indispensável e adequado a afastar o perigo.
A prestação pode realizar-se por ação pessoal ou promovendo socorro.
O n.º 2 qualifica a conduta quando a situação de perigo é criada pelo omitente de auxílio, isto é quando a mesma resulta de uma anterior conduta ilícita ou quando a situação de perigo foi objectivamente causada pelo omitente, embora de forma não ilícita.
(cf Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora 1999, em anotação ao art. 200º do CP)
Ora, resulta da matéria provada que o arguido após a ocorrência do acidente, abandonou o local não prestando qualquer auxílio à vítima.
Note-se que no caso, o crime se consumou no momento em que o arguido prosseguiu a sua marcha.
O arguido tentou demonstrar que não parou porque não se apercebeu que tinha atropelado um peão e por impossibilidade mecânica do motociclo.
No entanto, como ficou explanada na motivação, essas explicações não foram credíveis.
O facto de depois o arguido não se ter aproximado do local, por eventualmente ter receio das pessoas que aí se encontravam e se ter dirigido à polícia é irrelevante pois que, nessa altura, o crime já se tinha consumado,

Da determinação da medida da pena
Há que decidir agora qual a pena a aplicar ao arguido pelo crimes que lhe são imputados.
O crime de homicídio negligente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O crime de omissão de auxílio é punido pelo art. 200º n.º 2 com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Os limites mínimos, não estando determinados serão os limites legais de 30 dias e 10 dias.

Segundo o art. 71º nº 1 do CP a determinação da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Tenta-se por este meio que a punição assuma uma vertente pessoal ao mesmo tempo que dá resposta a exigências de carácter comunitário e de reintegração do delinquente.
Neste sentido estabelece o art. 40º do CP que “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade”. Ao mesmo tempo o nº 2 do mesmo artigo impõe como limite de qualquer pena a medida da culpa.
Estes vectores da medida da pena são concretizados pelos factores de determinação da medida concreta da pena que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Alguns desses factores são elencados no art. 71º nº 2 do CP, a título exemplificativo.
Vejamos, então, concretamente, que pena aplicar ao arguido pelo crime imputado.
Ora, no caso presente há a realçar que a conduta do arguido, globalmente apreciada se afigura grave, demonstrando uma intensa falta de cuidado e um desrespeito intenso pelo valor da vida humana. Ter-se-á, no entanto, em conta que, apesar da sua conduta anterior, o arguido se apresentou na polícia.
As razões de prevenção geral são fortes.
O arguido já tem antecedentes criminais por crime contra as pessoas e por detenção de arma proibida
Entende-se assim que se deve optar por uma pena de prisão que se fixa:
- em 12 meses pela prática do crime de homicídio negligente:
- em 6 meses pela do crime de omissão de auxílio;
Considerando a gravidade dos factos e a personalidade do agente neles demonstrada, condeno o arguido na pena de cúmulo de 15 meses de prisão.
No entanto, uma vez que o arguido nunca foi condenado por este tipo de crime, entende-se que a censura do facto e a ameaça do cumprimento de pena são suficientes para obstar à prática de outros crimes.
Assim suspendo a pena aplicada pelo período de 15 meses.
No entanto, de molde a consciencializar o arguido da gravidade da sua conduta, essa suspensão fica condicionada ao pagamento de uma quantia pecuniária de 750 € às C…, repartida em 15 prestações mensais e sucessivas de 50 €, cada uma, devendo o arguido vir juntar aos autos, mensalmente, o comprovativo do pagamento de cada prestação.

Do pedido de indemnização civil:
Nos termos do art. 129º do CP a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, de acordo com os arts. 483º, 496º, 562º e 566º.
Nos termos do art.483º “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Pressupostos da obrigação de indemnizar são portanto:
a) a ocorrência de um facto;
b) A violação de um direito;
c) A ilicitude;
d) Imputação do facto ao agente,
e) Dano;
f) Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
g) o dolo ou a mera culpa
Ora, tal como já vimos, a conduta do arguido preenche estes pressupostos, no que se refere aos crimes cometidos.
Assim o arguido com a sua conduta e violando um dever de cuidado que se lhe impunha foi causa do acidente que esteve na origem da morte da ofendida, sendo certo que podia e devia ter agido de forma diversa.
A responsabilidade do arguido deriva de acidente de viação.
Assim, ter-se-ão de atender às normas do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.
No caso, o motociclo em que o arguido seguia não tinha seguro válido.
Assim, pelos danos causados responderá em primeira linha o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do art. 47º n.1 do DL 291/2007.
“1 - A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos da secção seguinte.
Nos termos do art. 49 n.º 1 “O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:
a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros;
b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz;
O capital mínimo seguro, nos termos do art. 12º é de 2.500.000 € relativo a danos não patrimoniais e 750.000 € por danos patrimoniais, por acidente –
O art. 51º põe limites à responsabilidade do Fundo.
Assim:
1 - Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
2 - Se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respectivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente.
3 - Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de proteção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.
No caso, a demandada veio requerer que fosse oficiado ao Instituto de Segurança Social para que esta viesse informar se os demandantes beneficiaram da atribuição de alguma subvenção em consequência do óbito de H…, tendo-se logrado provar que o demandante D… recebeu a quantia de 2515,32,€, processada em Setembro de 2011.
No entanto, o fundamento da atribuição dessa quantia é diversa da causa de pedir neste processo.
Assim, o Fundo de Garantia Automóvel responderá pela indemnização a arbitrar sem que se deva descontar qualquer quantia.
Os restantes responsáveis, sê-lo-ão, apenas por via da sub-rogação que o Fundo de Garantia Automóvel venha a acionar, nos termos do art. 54º do DL 291/2007.

Danos patrimoniais:
Quanto aos danos patrimoniais, e para além do pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes, há ainda a considerar o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital … no valor de 6.904,90 €
O art. 562º do CC. prescreve que: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Ora, face à matéria provada, sendo os danos directamente derivados da conduta do arguido e estando comprovadas as despesas hospitalares deve o FGA ser condenado a pagar essa quantia
Tais quantias vencerão os juros legais desde a data de notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento.
Passemos agora aos danos patrimoniais invocados pelos demandantes. Nesta sede cabe apenas apreciar o pedido de 350 € relativo ao valor das roupas que a vítima envergava.
Ora nada tendo ficado provado neste aspeto terá tal pedido de improceder.

Danos não patrimoniais:
Os danos não patrimoniais estão previstos no art.496º do CC. Aí se estabelece que
“1 Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Evidentemente, a fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais, não tendo um carácter de reparação mas de compensação e dependendo de factores altamente subjectivos, tem um carácter incerto.
Por isso mesmo, o n.º 3 do art. 496º do CC refere que o montante de indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso as circunstâncias referidas no art. 494º, com relevância para o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e a gravidade da lesão.
Será, portanto, em função destes critérios que se fixará a compensação a arbitrar aos demandantes.
Nos termos do n.º 2 “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por último aos irmãos ou sobrinhos que os representam.
Nos termos do n.º 4 podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização, nos termos do número anterior.
Vêm peticionados 60.000 € relativos à perda da vida por parte da vítima, 15000 € de danos morais sofridos pela vítima, 20.000 € danos morais sofridos pelo 1º demandante, 20.000 € de danos morais sofridos pelo 2º demandante.
O montante a encontrar balizado pelas circunstâncias concretas, terá como critério a equidade, isto é, um juízo de justeza sobre qual o montante a atribuir, sendo que os danos morais são sempre difíceis de quantificar

No que se refere aos danos sofridos pela própria vítima, há a considerar o dano morte e os danos morais sofridos pela mesma até à hora em que essa morte ocorreu. Seno estes danos sofridos pela própria vítima, os demandantes a eles terão direito em função da sua posição de herdeiros.
Começando pelo dano morte:
Resulta da matéria provada que a vítima ainda que na altura tivesse já 67 anos era uma pessoa ativa, alegre e saudável, com gosto pela vida, feliz e que se dedicava aos amigos e família.
Ora atendendo às circunstâncias concretas o montante peticionado de 60.000 € parece adequado, enquadrando-se nos limites fixados pela jurisprudência dos tribunais superiores (cf. entre outros os Acordãos do STJ de 28/11/2013, Processo 177/11.0TBPCR.S1, de 29/10/2013, Proc. 62/10.2TBVZL.C1.S1 e de 12/09/2013, Processo 1/12.GTBTMR.C1.S1)
No que se refere aos restantes danos não patrimoniais sofridos pela vítima
Entre a hora do acidente e a sua morte decorreram cerca de 6 horas, desconhecendo-se se a vítima alguma vez recuperou a consciência, se teve dores ou se teve consciência de que ia morrer.
No entanto, parece que mesmo que tenha permanecido sempre inconsciente, tal constitui também um dano sofrido pela própria e causado pelo acidente. Deve por isso ser indemnizado, parecendo adequado o valor indicado na tabela da Portaria 679/09 de 25 de Junho que fixa como valo máximo até às 24 horas, o valor de 2052,00 €.
No caso, atendendo ao número de horas que mediaram entre a hora do acidente e a hora da morte, e não tendo resultado qualquer outro dano para além do próprio estado de inconsciência, parece adequado a fixação de um valor de 1000 €

Quanto aos danos morais sofridos pelos demandantes, marido e filho da vítima. Vem peticionado por cada um o valor de 20.000 €.
Ora, resulta da matéria provada que a vítima formava com o primeiro demandante um casal feliz que partilhava o seu dia-a-dia em harmonia. Com a morte da H…, o seu marido D… deixou de sair, perdendo a vontade de viver.
No que se refere ao filho E… resultou provado que a vítima mantinha com ele uma relação sólida, de um apreço, entre si, constantes, tendo com o filho uma relação de profunda amizade e cumplicidade, sendo a sua confidente e conselheira.
A sua morte causou ao demandante E… uma sensação de perda irreparável e uma grande angústia. Passados alguns meses sobre a morte da mãe o demandante suicidou-se.
Ora, mais uma vez, e perante as circunstâncias concretas, os montantes peticionados não se afiguram exagerados cabendo nos limites fixados pela jurisprudência dos tribunais superiores (cf primeiro acórdão atrás citado).
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido alegar, por um lado, que a prova produzida impõe que não se considere (ao contrário do que consta da sentença recorrida) que o veículo da vítima estava estacionado em local próprio e de forma paralela. Alega também que, pelo facto de a vítima se ter deslocado pela faixa de rodagem após ter estacionado o veículo em local proibido, deve considerar-se que concorreu com a sua culpa para a ocorrência do acidente.
Vejamos.
Ao contrário de que alega o arguido e recorrente, não estaremos, em qualquer caso, perante o vício de erro notório na apreciação da prova a que se reporta a alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, pois esse vício teria de decorrer do próprio texto da decisão recorrida (não desse texto em confronto com a prova produzida), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Estamos, antes, perante a impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º, nº 3, do mesmo Código. De acordo com o recorrente, das declarações da testemunha K…, agente da P.S.P. que esteve presente no local do acidente logo a seguir à ocorrência do mesmo, não resulta que o veículo da vítima estivesse estacionado em local apropriado de forma paralela, como consta da sentença recorrida, mas antes em local destinado à paragem de um autocarro e de forma oblíqua.
Dessas declarações resulta – é certo – que esse veículo estava estacionado na zona destinada à paragem do autocarro (aos 13m 52 seg desse depoimento gravado no C.D. junto aos autos), mas também que ele estava apenas ligeiramente (cerca de 10 cm) fora dessa zona de estacionamento (aos 19m 29 segs desse depoimento gravado no C.D. junto aos autos). Neste segundo aspeto, a sentença recorrida não se afasta do que foi declarado por esta testemunha, pois nela se afirma que o veículo estava «ligeiramente dentro da faixa de rodagem» (ver o ponto 6 do elenco dos factos provados).
De qualquer modo, há que considerar o seguinte.
Pode considerar-se que a vítima estacionou o veículo em local proibido porque destinado à paragem de um autocarro (artigo 49º, nº 1, c), do Código da Estrada). Mas não se vislumbra que essa infração, ou que o facto de o veículo estar «ligeiramente dentro da faixa de rodagem», sejam causais em relação ao acidente em causa. Causal é apenas a forma desatenta como circulava o arguido. Que o veículo estivesse estacionado no local destinado à paragem de um autocarro não é, para esse efeito, relevante; o acidente ocorreria mesmo que esse local não fosse destinado à paragem do autocarro. E ocorreria devido apenas à desatenção do arguido.
Também não se vislumbra que o comportamento da vítima quando se situava junto à porta do seu veículo aí estacionado, para nele entra ao sair, configure alguma temeridade ou negligência. Esse comportamento, por si só, não era perigoso. Perigosa era a forma como o arguido conduzia.
Não podemos, pois, de qualquer modo, concluir, como pretende o arguido e recorrente, que a vítima concorreu com a sua culpa para a ocorrência do acidente.
Deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido quanto a este aspeto.

IV 2. –
Alega o arguido, por outro lado, que a pena em que foi condenado é excessivamente severa, face aos critérios legais. Invoca, para tal, apenas a circunstância de a vítima ter concorrido, com a sua culpa, para a ocorrência do acidente.
Ora, como vimos, não pode dizer-se que a vítima tenha concorrido, com a sua culpa, para a ocorrência do acidente.
Tendo em conta as molduras penais dos crimes em causa e os critérios decorrente dos artigos 40º, 71º e 77º do Código Penal, a fixação das penas em que o arguido foi condenado não são merecedoras de reparo por serem excessivamente severas. Como afirma o Ministério Público no seu douto parecer, se alguma crítica lhes poderia ser dirigida é a de serem excessivamente benévolas, não excessivamente severas.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido também quanto a este aspeto

IV 3. –
Alega o demandado Fundo de Garantia Automóvel que o arguido, também demandado, deve ser com ele solidariamente condenado no pagamento das indemnizações a que só ele foi condenado na sentença recorrida.
Na verdade, do artigo 62º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, resulta que se verifica que o pedido de indemnização em causa deve ser interposto contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável pelo acidente, que se verifica, pois, um litisconsórcio necessário passivo, e, portanto, que ambos são solidariamente responsáveis pelo pagamento da eventual indemnização. O Fundo de Garantia Automóvel garante o pagamento dessa indemnização, mas não se torna único responsável por tal pagamento. Se pagar, cabe-lhe direito de regresso, nos termos do artigo 54º do mesmo diploma.
Deve, assim, ser concedido provimento parcial ao recurso da decisão sobre o pedido de indemnização civil interposto pelo demandado Fundo de Garantia Automóvel quanto a este aspeto.

IV 4. –
Alegam o arguido, também demandado, e o demandado Fundo de Garantia Automóvel que os valores das indemnizações fixadas devem ser reduzidos, em consonância com os critérios decorrentes da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio. O valor correspondente ao dano da privação do direito à vida, atendendo a tais critérios e à idade da vítima (67 anos) deverá fixar-se em quarenta mil euros.
Alega também o arguido que esses valores devem ser reduzidos porque a vítima concorreu para o acidente e porque não se provou que esta tivesse sofrido danos morais antes de falecer.
Quanto à não consonância dos valores das indemnizações fixadas com os critérios decorrentes da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio, há que considerar o seguinte.
Como resulta claramente do preâmbulo dessa Portaria, os critérios desta decorrentes não servem para «a fixação definitiva de valores indemnizatórios», mas para «o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda que a autoridade de supervisão possa avaliar, com grande objectividade, a razoabilidade das propostas apresentadas». Não estamos, pois, perante critérios que vinculem os tribunais, nem mesmo perante valores fixos ou definitivos, mas perante valores mínimos em ordem à aferição da razoabilidade das propostas apresentadas por companhias de seguros.
E, de qualquer modo, sempre critérios fixados por Portaria teriam de ceder perante as normas legais do Código Civil que remetem, sem mais, para juízos de equidade (artigos 496º, nº 3, e 566º, nº 3).
Podem ver-se, neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 10 de março de 2014, proc nº 2140/10.9TBLLG.P1, relatado por Soares de Oliveira; e de 9 de dezembro de 2014, proc nº 1494/12.7TBSTS.P1, relatado por José Igreja Matos; ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Assim, e nesta linha, nem mesmo a relevância da idade como factor de distinção dos valores da indemnização pela perda do direito à vida, que decorre dessa Portaria, pode considerar-se vinculativa para os tribunais.
Atendendo aos critérios geralmente seguidos pela jurisprudência (ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de fevereiro de 2013, processo nº 269/09.5GBPNF.P1.S1, relatado por Raul Borges, onde se alude a um grande número de outros acórdãos; desta Relação de 12 de maio de 2014, proc. nº 95/08.9TBAMM.P1, relatado por Carlos Gil; desta Relação de 17 de dezembro de 2014, por nós subscrito; todos in www, dgsi.pt, além do acima referido acórdão desta Relação de 10 de março de 2014), deve considerar-se adequado o valor, fixado na douta sentença recorrida, de sessenta mil euros como compensação pela perda do direito à vida da vítima.
Quanto à redução dos valores das indemnizações fixadas por a vítima ter concorrido com a sua culpa para a ocorrência do acidente, vimos já que essa concorrência não se verifica, pelo que não poderá ser esse o fundamento para a redução desses valores. Deve, pois, ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e demandado quanto a este aspeto.
Já quanto aos danos morais sofridos pela vítima antes de falecer, afigura-se-nos que assiste razão ao arguido e demandado. Não se tendo provado que a vítima se tenha apercebido da iminência do acidente e da iminência da morte, nem que ela tenha sofrido dores nesse momento, não pode dizer-se que tenha sofrido danos indemnizáveis. Não nos parece que o seja o simples facto de nessa altura ela ter ficado privada de consciência, sendo certo que este facto não se traduz em dores ou sofrimentos, físicos ou psíquicos.
Neste último aspeto, deverá ser concedido provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e demandado.

Uma vez que é concedido provimento parcial a cada um dos recursos interpostos pelo arguido e demandado e pelo demandado Fundo de Garantia Automóvel, não há lugar a custas (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial aos recursos interpostos pelo arguido e demandado e pelo demandado Fundo de Garantia Automóvel, condenado estes demandados, solidariamente, no pagamento das quantias aí referidas, relativas aos pedidos de indemnização civil formulados, sendo reduzida para sessenta mil euros (60.000€) a quantia correspondente aos danos sofridos pela vítima, a cujo pagamento são solidariamente condenados esses demandados; mantendo-se, no restante, a douta sentença recorrida.

Notifique.

Porto, 11/02/2015
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo