Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
139/14.5TBSTS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
RENÚNCIA
USUFRUTO
QUALIFICAÇÃO
ACTO GRATUITO
IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RP20170712139/14.5TBSTS-B.P1
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 656, FLS.565-574)
Área Temática: .
Sumário: I - A renúncia ao usufruto de forma pura e simples, declarando tratar-se de um ato gratuito, sem que se prove que se destina a obter a liberação de um crédito reveste a natureza de renúncia abdicativa.
II - O ato em causa por ter sido celebrado pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência é suscetível de resolução em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, nos termos do art. 121º/1 b) CIRE. Tal ato presume-se prejudicial para a massa insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-ImpgResol-139/14.5tbSTS-B.P1
Comarca do Porto
Inst Central Stº Tirso-1ª Sç Com-J3
Proc.139/14.5tbSTS-B
Recorrente: B…
Recorrido: Administrador da Insolvência
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
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I. Relatório
Nos presentes autos de impugnação da resolução da renúncia ao usufruto, que corre os seus termos por apenso ao processo de insolvência de B…, em que figura como:
- AUTORA: B…, viúva, residente na Rua …, nº …., freguesia de …; e
- RÉU: A Massa Insolvente de B…, representada pelo Administrador Judicial Dr. C…, com domicilio profissional sito na Rua …, nº …, sala …, …. - … Matosinhos, pede a Autora a revogação da resolução em benefício da massa insolvente notificada pelo Administrador da Insolvência relativa à renúncia ao usufruto, outorgada por escritura pública no dia 04 de julho de 2013, no Cartório Notarial D…, em Matosinhos.
Alegou para o efeito e em síntese, que a resolução operada pelo Sr. Administrador da Insolvência por referência ao ato de “renúncia do usufruto” aludido e documentado nos autos padece de nulidade por falta de fundamentação, pois que aquela comunicação de resolução foi realizada sem alegação de factos concretos, tendo o administrador se limitado a fazer uma remissão para as normas legais que entendeu pertinentes, não justificando ou esclarecendo os motivos pelos quais estariam reunidos os pressupostos do art.º 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE. Por estas mesmas razões, terá sido colocado em causa o princípio da igualdade das partes e o direito ao contraditório, por o destinatário daquela resolução não ter sido colocado em condições de perceber a declaração em causa e de a, subsequentemente, impugnar.
Mais alegou que o ato em causa protagonizado pela insolvente não pode ser havido como negócio gratuito, tendo tal menção inserta no momento da escritura se ficado a dever a razões de índole fiscal, tratando-se de um ato abdicativo e não de um ato de transmissão, ao que acresce o facto de se tratar de um ato unilateral e irrevogável, o que faz com que não possa sobre ele sobrevir resolução a favor da massa, com os efeitos daí advenientes.
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Notificado o Administrador da Insolvência veio contestar.
Alegou, em síntese, que a comunicação da resolução está suficientemente concretizada com os factos que para ela importam, e fundamentada, não enfermando de qualquer nulidade, e que, por outro lado, a declaração vertida pela insolvente na escritura de renúncia ao usufruto foi claramente pré-intencionada a gerar os consequentes prejuízos para os credores, tanto mais que a autora mantém-se a habitar e a usar um dos imóveis sobre o qual incidia o aludido usufruto.
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Em sede de saneador proferiu-se sentença, com a decisão que se transcreve:
“ Pelo exposto e nos termos das disposições legais supra referidas, decido julgar improcedente a presente demanda e, em consequência, declarar não impugnada/revogada a resolução em benefício da massa insolvente notificada pelo administrador da insolvência referente à renúncia do usufruto outorgada por escritura pública no dia 04.07.2013.
Custas da ação pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário – art. 527º do Código de Processo Civil.
Valor: o indicado na petição inicial”.
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A insolvente veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a insolvente formulou as seguintes conclusões:
I. Cumpria ao Tribunal “a quo” oficiosamente, pronunciar-se previamente sobre a caducidade da comunicação operada pelo administrador senhor administrador, após o prazo previsto pelo artigo 123º do CIRE, não o tendo feito, a sentença enferma de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, d) do CPC.
II. Acresce que, o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação dos factos e subsunção ao direito, porquanto, a renúncia ao usufruto é liberatória, pois, conforme decorre do direito positivo, desonera o renunciante de encargos com impostos e demais encargos com a administração ordinária dos bens imóveis.
III. A renúncia liberatória não consubstancia portanto qualquer dos atos indicados taxativamente no artigo 121º do CIRE.
IV. Sucede que, apenas os atos indicados no artigo 121º do CIRE são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos e só estes gozam da presunção inilidível prevista pelo artigo 120º, n.º 3, do CIRE.
V. A renúncia ao usufruto não está portanto sujeita a resolução incondicional, e consequentemente, não se presume prejudicial a massa, admitindo prova em contrário.
VI. De acordo com os factos que ficaram provados não ficou provado que o ato em causa poderia diminuir, frustrar, dificultar, por em perigo ou retardar a satisfação dos credores da insolvência, pelo que a impugnação da resolução deve ser considerada por procedente.
VII. Muito pelo contrário, do Código Civil decorre que do usufruto nascem obrigações onerosas para o usufrutuário, pelo que dúvidas não há que a renúncia o libera do pagamento de encargos correntes e impostos.
VIII. Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese se poderia admitir, o Tribunal “a quo” não poderia decidir em despacho saneador como decidiu pois não havendo presunção inilidível, sempre se dirá que é admissível prova em contrário.
Termina por pedir a revogação da decisão do Tribunal “a quo” e a sua substituição por acórdão que declare a impugnação apresentada pela ora recorrente procedente por provada, e nesses termos seja mantida a renúncia ao usufruto.
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O Administrador da Insolvência veio apresentar resposta ao recurso, na qual formulou as seguintes conclusões:
a) É por demais evidente que não se verifica qualquer caducidade no direito de resolução provindo do recorrido;
b) A decisão sobre recurso, pela sua fundamentação e parte decisória, não merece qualquer censura pelo que deve ser mantida, consequente à total improcedência do recurso deduzido pela Recorrente.
Termina por pedir que se julgue improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC;
- qualificação da renúncia ao usufruto como ato de natureza liberatória ou abdicativa.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1) Por requerimento de 17.01.2014, veio a devedora B…, apresentar-se à insolvência, tendo esta sido declarada por sentença judicial aos 22.01.2014, na qual se veio a nomear como administrador da insolvência o Sr. Dr. C…;
2) B…, por si e em representação da sua filha menor E…, por um lado, e F…, por outro, declararam, por escritura pública intitulada “Partilha e Doações”, datada de 12.03.2012, que no dia dezanove de Maio de 2000, na freguesia de …, Porto, faleceu G…, sem deixar testamento, nem qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe por seus únicos e universais herdeiros, a sua mulher primeira outorgante, e os seus dois filhos E… e F…, e que são eles os interessados na partilha dos bens do dissolvido casal, a qual levam a efeito nos seguintes termos:
verba um – prédio urbano de dois pavimentos, com a superfície coberta de cento e oitenta metros quadrados, com logradouro com a área de quinhentos e quarenta metros quadrados, sito na freguesia de …, concelho de Santo Tirso, descrito na Conservatória sob o número 814/…;
verba dois – fração autónoma designada pelas letras AR correspondente a loja na cave, para comércio ou exercício de profissões liberais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o número novecentos e quarenta e cinco/…, Santo Tirso, tais bens a partilhar importam no valor de trezentos e quinze mil euros, sendo que a B… é adjudicado o usufruto dos dois aludidos imóveis, no valor de cento e cinquenta e sete mil e quinhentos euros, sendo que aos demais outorgantes, seus filhos, é adjudicado, a cada um, metade indivisa da raiz ou nua propriedade dos apontados prédios, no valor de, respetivamente, setenta e oito mil setecentos e cinquenta euros, tudo como flui do teor do documento de fls. 32 a 38, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
3) B…, por escritura pública intitulada “Renúncia de usufruto”, datada de 04 de Julho de 2013, declarou renunciar, a título gratuito, ao usufruto dos dois imóveis identificados na alínea que antecede, mais tendo declarado que, sobre os mencionados imóveis se encontra registada uma penhora a favor do Banco H…, S.A., tudo como flui do teor da certidão de fls. 49 a 52, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
4) Por comunicação realizada aos 23.06.2014, endereçada à insolvente B…, e por esta rececionada em 25.06.2014, o administrador da insolvência nomeado nos autos, declarou a resolução do negócio jurídico realizado por aquele consistente na “renúncia do usufruto” outorgado no dia 4 de Julho de 2013, alegando que teve conhecimento dos concretos termos em que teve lugar aquela apontada renúncia, e que, sendo inquestionável a circunstância de tal renúncia ter sido efetivada a título gratuito, apelou e remeteu para o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea b) e 123.º, ambos do CIRE, já que são resolúveis em benefício da massa insolvente os atos celebrados a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, tudo conforme teor de fls. 55 e 56, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos efeitos;
5) No âmbito do relatório elaborado pelo administrador da insolvência ao abrigo do disposto no art.º 155.º do CIRE, junto aos autos principais, veio aquele a informar que o rendimento disponível da insolvente é composto por uma retribuição ilíquida na quantia mensal de €290,00, e uma pensão de sobrevivência no valor de €166,91, tendo ali sido proposto que os credores votassem em assembleia pela liquidação do ativo que se viesse a apurar pertencer à insolvente, o que veio a ser efetivamente deliberado (cfr. fls. 266-268 dos autos principais);
6) Até ao momento não foi junto qualquer apenso de apreensão de bens, nem foi dado início à liquidação do ativo;
7) No âmbito do apenso de reclamação de créditos, foram já reconhecidos créditos no montante global de €141.444,61;
8) A autora, aquando da presente petição de impugnação da resolução, alegou que aquando da outorga da escritura de renúncia que realizou, renunciou ao seu direito sem dar o respetivo conhecimento aos proprietários da raiz, que ignoravam tal ato até terem sido notificados para pagamento do imposto devido (cfr. art.os 12.º e 13.º da petição deste apenso).
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3. O direito
Na aplicação do regime jurídico do processo de insolvência que consta do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anexo ao DL 53/2004 de 18 de março, serão consideradas as alterações introduzidas neste diploma[2], incluindo, para efeitos processuais as alterações introduzidas pelo DL 79/2017 de 30 de junho, que entrou em vigor no dia 01 de julho de 2017 (art. 8º).
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- Nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC -
Nas conclusões de recurso, sob o ponto I, suscita a apelante a nulidade da sentença porque o juiz do tribunal “a quo”, oficiosamente, não se pronunciou sobre a caducidade da comunicação operada pelo senhor administrador, após o prazo previsto pelo artigo 123º do CIRE.
A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art. 615º/1 d) CPC.
A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento“ – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Considera a apelante que cumpria ao juiz do tribunal “a quo” conhecer oficiosamente do prazo de caducidade previsto no art. 123º CIRE que fixa o prazo para o administrador da insolvência proceder à resolução da renúncia ao usufruto.
O art. 123º CIRE sob a epígrafe “Forma de Resolução e Prescrição do direito” prevê:
“1.A resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorrido dois anos sobre a data da declaração de insolvência.
2[…]”
A doutrina não tem adotado uma posição uniforme quanto à natureza do prazo em causa.
Para JOÃO LABAREDA E CARVALHO FERNANDES indevidamente o preceito atribuiu a natureza de prazo de prescrição, porque consideram que estamos na “presença de um caso de caducidade do direito potestativo à resolução”[3].
GRAVATO DE MORAIS entende, contudo, tratar-se de prazo de prescrição, partindo do elemento literal da norma e considerando a natureza e efeitos dos institutos em presença – prescrição e caducidade.
Refere, o citado AUTOR: “ […] por via de tal instituto[prescrição] não há lugar à extinção da pretensão, mas apenas a possibilidade de o beneficiário da mesma se poder opor ao exercício do direito prescrito. Ao invés, a caducidade acarreta a cessação do direito e a impossibilidade de o fazer valer em juízo, sendo, em regra, de conhecimento oficioso pelo tribunal“[4].
Defende, ainda, que é admissível que os direitos potestativos possam ficar sujeitos a prazo de prescrição, remetendo para a previsão do art. 298º/2 CC. Considera, também, que atribuir a natureza de prazo prescricional aproxima-se do regime resolutivo geral, ao qual se aplica o prazo de prescrição ordinário.
Conclui que atenta a natureza do processo em causa, que visa proteger os credores da massa insolvente, a qualificação como direito sujeito a prescrição trás vantagens porque impede o conhecimento oficioso pelo tribunal; pode haver lugar à suspensão ou interrupção do prazo e beneficia da inércia daquele que tem legitimidade para invocar a figura.
A jurisprudência tem vindo a considerar que se trata de um prazo de caducidade, acolhendo os argumentos de JOÃO LABAREDA E CARVALHO FERNANDES e bem assim, de MENEZES LEITÃO[5], como disso dão conta, entre outros, os Ac. Rel. Porto 12 de abril de 2011, Proc.707/07.1TBPRD-D.P1 e Ac. Rel. Porto 12 de maio de 2014, Proc. 3324/10.5TBSTS-F.P1, ambos em www.dgsi.pt.
Seguindo esta interpretação a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (art. 333º/1 CC).
O exercício da resolução em benefício da massa insolvente não constitui matéria excluída da disponibilidade das partes pelo que não constitui matéria de conhecimento oficioso e não sendo suscitada a exceção na petição, não omitiu o juiz do tribunal “a quo” o conhecimento de questão oficiosa. Por outro lado, precludiu o direito de o fazer nesta sede, quando constituindo matéria de exceção recaía sobre a apelante o ónus de alegar os factos suscetíveis de o demonstrar (art. 342º/2 CC conjugado com o art. 343º/1 CC, por se tratar de ação de simples apreciação negativa).
Contudo, mesmo que se admitisse estarmos na presença de exceção de conhecimento oficioso, sempre seria de considerar que o exercício do direito de resolução foi tempestivamente exercido, na medida em que o prazo se conta a partir do conhecimento do ato pelo administrador[6].
A carta a comunicar a resolução foi expedida em 23 de junho de 2014, no dia em que o administrador da insolvência tomou conhecimento da renúncia ao usufruto (como consta da carta expedida), no prazo de seis meses a contar da data do conhecimento e dentro do prazo de dois anos a contar da data em que foi proferida a sentença de insolvência, a qual se reporta a 22 de janeiro de 2014.
Conclui-se, assim, que a sentença não padece do vício apontado e os fundamentos alegados não preenchem a invocada nulidade, ou caso assim não se entenda, considera-se improcedente a exceção.
Improcedem as conclusões de recurso sob o ponto I.
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- Qualificação da renúncia ao usufruto como ato de natureza liberatória ou abdicativa -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos II a VIII, insurge-se a apelante contra a qualificação da renúncia ao usufruto e consequências daí decorrentes em sede de impugnação da resolução.
No caso dos autos, estamos perante a resolução extrajudicial de um ato de renúncia ao usufruto, outorgado por escritura pública em 04 de julho de 2013, que foi efetuada pelo respetivo Administrador da Insolvência, por carta registada com aviso de receção, dirigida para o efeito à autora-apelante, destinatária da resolução e insolvente.
Os art.ºs 120.º a 126.º do CIRE consagram um conjunto de procedimentos que visam salvaguardar as ações anteriores praticadas pelo devedor e que se prefigurem ou contenham indicações de haverem sido efetivadas ou levadas a efeito com vista a prejudicar o pagamento (igualitário) dos credores, como é o caso da resolução em benefício da massa insolvente.
A resolução em benefício da massa insolvente, promovida pelo Administrador da Insolvência visa tutelar “interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os dos que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os dos que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de atos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência. A finalidade é, pois, a da reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos dos credores”[7].
Decorre dos art.ºs 120.º a 126.º do CIRE que a resolução em benefício da massa insolvente comporta duas modalidades:
a) a resolução condicional prevista no art.º 120.º do CIRE; e
b) a resolução incondicional prevista no art.º 121.º do mesmo diploma.
De acordo com o art.º 120.º/1 do CIRE o Administrador da Insolvência pode resolver em benefício da massa insolvente “os atos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência”, assim como os atos a que aludem as alíneas do n.º 1 do art.º 121.º do mesmo diploma legal, podendo tal resolução ser feita judicialmente, por via de ação ou de exceção, ou extrajudicialmente, mediante carta registada com aviso de receção[8].
Nos termos art.º 121.º/2 do CIRE “consideram-se prejudiciais á massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência”.
Por seu turno o n.º3 do citado preceito consagra uma presunção legal, juris et jure, sem admissão de prova contrária, desde que referente a atos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
No art.º 121.º prevê-se a resolução incondicional em benefício da massa insolvente, dos atos aí indicados nas alíneas a) a i) do n.º 1, sem dependência de quaisquer outros requisitos.
Importa referir, designadamente, os atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência – alínea b) -, e os atos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte – alínea h). Nestes casos de resolução incondicional, a prejudicialidade à massa insolvente é presumida juris et de jure (art.º 120.º, n.º 3), não carecendo a resolução da demonstração da má-fé do terceiro interveniente no ato objeto de resolução (art.º 120.º, n.º 4).
Fora do âmbito de previsão do art.º 121.º, n.º 1, ou seja, nos casos de resolução condicional, terá de ser demonstrada a prejudicialidade à massa insolvente (art.º 120.º, n.º 2) e, bem assim, a má fé do terceiro, sendo essa má fé presumida juris tantum, quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data (art.º 120.º, n.º 4).
Nos termos do art.º 123.º, n.º 1, a resolução pode ser efetuada pelo administrador da insolvência, por carta registada com aviso de receção, nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.
A resolução pode ser impugnada pela outra parte no ato resolvido ou por terceiro afetado pela resolução, a quem incumbe o ónus de intentar a ação correspondente, que corre por dependência do processo de insolvência (art.º 125.º). A ação de impugnação deve ser proposta no prazo de 3 meses (a contar da receção da carta registada prevista no art.º 123.º, n.º 1, mesmo que o impugnante não seja o destinatário da carta), sob pena de caducidade, beneficiando do carácter de urgência previsto no art.º 9.º do CIRE.
Perante este quadro legal considerou-se na sentença recorrida que a resolução levada a cabo pelo administrador não padece de qualquer vício e concluiu-se, como se passa a transcrever: “o administrador identifica o ato sobre o qual pretende exercer o correspondente direito potestativo de natureza extintiva – “renúncia do usufruto” –, identifica a data da respetiva celebração – 4 de Julho de 2013 -, e consigna que, no seu entender, tal ato tem que ser visto como de “natureza gratuita”, atendendo à forma como foi efetivada, mais tendo declarado ter tomado conhecimento dos concretos termos em que teve lugar aquela apontada renúncia, assim fazendo uma remissão implícita para a competente escritura de outorga de tal ato, e enunciando concretamente tratar-se de caso subsumível ao disposto no art.º 121.º, n.º 1, alínea b), do CIRE”.
Este segmento da decisão não foi impugnado no recurso.
A apelante insurge-se apenas contra o facto de se considerar que a renúncia ao usufruto reveste natureza abdicativa, ou seja, contra os motivos e a subsunção fáctica e jurídica para operar a resolução que fundamentaram a decisão recorrida.
Entende a apelante que a renúncia ao usufruto reveste natureza liberatória porque desonera o renunciante de encargos com impostos e demais encargos com a administração ordinária dos bens imóveis e por isso, o ato praticado não se enquadra na previsão do art. 121º CIRE.
A questão que se coloca consiste em qualificar o ato de renúncia ao usufruto e se o mesmo se enquadra na previsão do art. 121º/1/b) CIRE.
O usufruto extingue-se por renúncia, como determina o art. 1476º/1 e) CC.
A doutrina distingue a renúncia liberatória e a renúncia abdicativa[9].
A renúncia ao usufruto pode revestir uma das duas modalidades.
A renúncia liberatória constitui uma consequência que decorre do fundamento das obrigações propter rem[10]. Traduz-se num ato de abdicação em favor do credor.
Como observa HENRIQUE MESQUITA, o titular do direito e devedor em “ vez de realizar a prestação a que está vinculado põe à disposição do credor o próprio direito real de cujo estatuto a obrigação emerge”[11].
Constitui pressuposto da renúncia liberatória o titular do direito real estar vinculado ao cumprimento de uma obrigação propter rem.
A renúncia liberatória é um ato dirigido ao credor de uma obrigação propter rem e visa libertar o renunciante da responsabilidade debitória em que está constituído. Consiste, assim, num negócio oneroso que se efetua por declaração recetícia[12].
A renúncia pura e simples ou abdicativa constitui como refere HENRIQUE MESQUITA “um ato discricionário, traduzindo o exercício de uma faculdade que a lei não sujeita a qualquer condição”[13].
O direito é livremente renunciável pelo seu titular mesmo que o respetivo estatuto não o sujeite a qualquer obrigação propter rem.
Constitui um ato sem destinatário através do qual o respetivo titular só pretende desvincular-se de um direito real de que é titular. Trata-se de um negócio gratuito e efetiva-se através de declaração unilateral não recetícia[14].
Contudo, como observa HENRIQUE MESQUITA: ”nos casos em a renúncia a um direito real limitado redunda necessariamente em benefício do credor da obrigação propter rem, a distinção entre renúncia abdicativa e renúncia liberatória torna-se praticamente destituída de interesse”[15].
Cita a título de exemplo o caso em que “o usufrutuário de determinado prédio está vinculado a uma obrigação propter rem que tem como credor o proprietário da raiz, a renúncia pura e simples ao direito de usufruto e a renúncia liberatória produzem efeito idêntico: a obrigação extingue-se e o credor vê o seu direito de nua propriedade convertido em propriedade plena”[16].
Numa outra hipótese, coloca como credor o condomínio estando em causa despesas com reparações ordinárias em partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal. Nessas circunstâncias o usufrutuário pode eximir-se do cumprimento da obrigação renunciando ao direito de usufruto (renúncia abdicativa) ou renunciando a favor dos demais condóminos que são os credores da obrigação (renuncia liberatória).
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça podemos encontrar exemplos de renúncia ao usufruto, com natureza liberatória, em que o ato surge descrito como “renúncia remunerada e orientada para determinado fim contém todos os elementos integrantes de um ato oneroso, de transmissão, ainda que atípico, subsumível à forma ampla a que a lei chamou de trespasse do direito” - nos Ac. STJ 29 de outubro 2002, Proc. 02A2143 ( www.dgsi.pt ).
No Ac. STJ 19 de outubro de 2004, Proc. 04A2288 (www.dgsi.pt) considera-se que: ”[…] o negócio, porém, deixa de ser unilateral e gratuito se se estipularem contrapartidas à renúncia: integrado, então, pela renúncia propriamente dita e por uma outra qualquer prestação que é, segundo a vontade das partes, o seu correspetivo, o negócio transforma-se, por esse facto, num negócio oneroso”.
Aplicando o exposto ao caso concreto somos levados a considerar que a renúncia ao usufruto reveste a natureza de renúncia abdicativa, tal como se decidiu na sentença recorrida, através da qual se operou a extinção do direito de usufruto. Traduziu-se numa mera declaração de renúncia, ato ao qual foi atribuída natureza gratuita, praticado de forma livre pela insolvente e sem qualquer destinatário.
Argumenta a apelante que a renúncia ao usufruto é liberatória, pois, conforme decorre do direito positivo, desonera o renunciante de encargos com impostos e demais encargos com a administração ordinária dos bens imóveis.
Efetivamente, assim é, quando está em causa o regime do art. 1472º/3 e 1473º CC, onde se prevê que o usufrutuário pode eximir-se das reparações ou despesas a que é obrigado, renunciando ao usufruto. Trata-se de renúncia liberatória.
Na presente situação e como decorre dos factos apurados, que não foram impugnados pela apelante, constata-se que a insolvente renunciou de forma pura e simples ao usufruto, declarando tratar-se de um ato gratuito. A renúncia não tinha como causa a liberação de um crédito decorrente do estatuto do direito, como seja, os encargos com a administração ordinária dos bens, porque não se apurou a existência de créditos com tal natureza.
De igual forma, não resulta dos factos provados que a insolvente renunciou ao usufruto a favor do Estado para garantir o pagamento de dívidas fiscais.
Não é o estatuto abstrato do direito de usufruto que permite traçar a natureza do ato de renúncia ao direito, mas apenas o concreto circunstancialismo em que o mesmo é exercido.
Desta forma é forçoso concluir que o ato em causa por ter sido celebrado pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência é suscetível de resolução em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, nos termos do art. 121º/1 b) CIRE. Tal ato presume-se prejudicial para a massa insolvente.
Por fim, argumenta a apelante que de acordo com os factos que ficaram provados não ficou provado que o ato em causa poderia diminuir, frustrar, dificultar, por em perigo ou retardar a satisfação dos credores da insolvência.
A possibilidade de proceder à resolução dos atos gratuitos, como o presente, “funda-se na sua prejudicialidade, inerente à sua categoria de liberalidade: diminuem o património de quem os pratica e, como tal, diminuem a satisfação dos credores”[17].
Desta forma, a mera prova do ato é por si suficiente para determinar a resolução a favor da massa insolvente, como se prevê no art. 121º/1 CIRE – sem dependência de quaisquer outros requisitos.
Gozam de presunção inilidível prevista pelo artigo 120º, n.º 3, do CIRE e por isso, não admite prova em contrário, nem carece que se prove que o ato pode diminuir, frustrar, dificultar, por em perigo ou retardar a satisfação dos credores da insolvência.
Acresce referir que o processo continha todos os elementos de facto para a decisão em sede de saneador, sendo certo que não indica a apelante os factos relevantes e controvertidos a considerar e que não foram atendidos, pelo que não se justifica a anulação da sentença, com tal fundamento.
Conclui-se, que não merece censura a sentença quando considerou que estavam reunidos os pressupostos para ser decretada a resolução do ato: “Renúncia ao Usufruto”, celebrada pela escritura pública de 04 de julho de 2013.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos I a VIII.
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Nos termos do art. 527ºCPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.
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Custas a cargo da apelante.
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Porto, 12 de Julho de 2017
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(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
[2] DL 200/2004 de 18 de agosto, DL 76-A/2006 de 29 de março, DL 282/2007 de 07 de agosto, DL 116/2008 de 04 de julho, DL 185/2009 de 12 de agosto e Lei 16/2012 de 20 de abril.
[3] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Atualizada de acordo com as Leis nº 16/2012 e 66-B/2012 e o Código de Processo Civil de 2013, Quid Juris, Sociedade Editora, Lisboa 2013,pag. 536
[4] FERNANDO DE GRAVATO MORAIS Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, pag. 161
[5] LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito da Insolvência 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pag. 223
[6] Cfr. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, ob. cit., pag. 536
[7] FERNANDO DE GRAVATO MORAIS Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Coimbra, Almedina, 2008, pag. 47.
[8] Cfr. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pag. 523 a 534.
[9] Cfr. LUIS A. CARVALHO FERNANDES Lições de Direitos Reais, 6ª edição (atualizada e revista), Quid Juris, Lisboa, 2009, pag. 259 a 261 e MANUEL HENRIQUE MESQUITA Obrigações Reais e Ónus Reais, Coleção Teses, Almedina, Coimbra, 1990, pag. 382-383
[10] Obrigação que decorre do estatuto de um direito real – Cfr. MANUEL HENRIQUE MESQUITA Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 265-266
[11] MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 382
[12] Cfr. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 382-383
[13] MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit.,pag. 383
[14] Cfr. MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 382-383 no
mesmo sentido LUÍS A. CARVALHO FERNANDES Lições de Direitos Reais, ob. cit., pag. 260
[15] MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 384
[16] MANUEL HENRIQUE MESQUITA, Obrigações Reais e Ónus Reais, ob. cit., pag. 384
[17] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, ob. cit., pag. 531