Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
403/15.6GAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
RATIFICAÇÃO
MANDATÁRIO SEM PODERES
Nº do Documento: RP20170927403/15.6GAPFR.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS, FLS.343-345)
Área Temática: .
Sumário: A ratificação da queixa apresentada por pessoa sem poderes especiais, que não seja mandatário judicial, não está sujeita ao prazo de apresentação da queixa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 403/15.6GAPFR.P1.

Comarca de Porto Este – Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira.
Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

Nos presentes autos, foi exarado o seguinte despacho:

Autue como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
O Tribunal é competente.
Questão prévia:
Vem o Ministério Público requerer o julgamento do arguido B…, em processo comum e, perante Tribunal Singular, porquanto lhe imputa factos susceptíveis de, integrarem a prática, em autoria material de um crime de furto p. e p. pelo art. 203º, nº1 do Código Penal.
O crime de furto tem natureza semi-pública, logo depende de queixa (cfr. artigo 203º, nº3 do Código Penal).
Analisando os autos, constata-se que a queixa foi apresentada em 12/05/2015 e, por factos ocorridos a 11/12/2014 e, subscrita por C…, director da D…, S.A. (cfr. fls. 3).
O referido C… não estava munido de poderes especais para apresentar tal queixa e, como exige o art. 49º, nº3 do Código de Processo Penal, daí que a 05/10/2015 a D…, S.A., tenha vindo ratificar a queixa apresentada e, supra referida (cfr. fls. 16 a 35).
Urge, antes de mais, saber se, a ratificação operada pode produzir os seus efeitos jurídicos, ou não.
Em nosso entendimento a ratificação da queixa tem que ocorrer no prazo para a apresentação da queixa, ou seja, no prazo de seis meses, sob pena de ser encontrado um “expediente” para alargar um prazo legal (art. 115º, nº1 do Código Penal), não podendo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este assim, ser apresentada depois de esgotado aquele prazo, atribuindo à ratificação intempestiva, efeitos retroactivos.
O Supremo Tribunal de Justiça quanto ao prazo de exercício do direito de queixa, fixou jurisprudência no sentido de “o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa, nos termos do artigo 115º nº 1, do Código Penal, termina às 24 horas do dia que corresponda, no sexto mês seguinte, ao dia em que o titular desse direito tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores; mas, se nesse último mês não existir dia correspondente, o prazo finda às 24 horas do último dia desse mês” – Acórdão nº4/2012, publicado in DR 98, Série I, de 21/05/2012.
Entendimento contrário – ratificação depois de esgotado este prazo – contende com os direitos do próprio arguido já que "permitiria o alargamento ad aeternum do prazo que a lei fixou para o exercício do direito de queixa, causando uma situação de absoluta incerteza para o arguido, insustentável num Estado de Direito, numa matéria em que a lei pretendeu, precisamente, o inverso, ao estabelecer o prazo que considerou adequado de caducidade daquele direito" – neste sentido, cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23/04/2015, proc. 1390/11.5TALLE.E1, disponível in www.dgsi.pt.
Não se desconhece que o acórdão nº 1/97, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, veio fixar que apresentada queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo, mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal de 1982. Todavia e, como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., UCP, p. 151, cujo entendimento partilhamos, a doutrina do referido acórdão não foi acolhida pelo legislador, na revisão de 1998, pelo que, caducou.
Ora, assim, entendemos que, o prazo para o exercício do direito de queixa é um prazo de caducidade para efeitos do respectivo cálculo, subordinado à regra de contagem de prazos do art.º 279º do Código Civil, sendo por isso oficiosamente apreciado pelo Juiz ou pelo Ministério Público em qualquer fase do processo, e não lhe são aplicáveis as regras de contagem dos prazos processuais a que aludem os actuais artigos 138º, 139º e 144º, todos do Código de Processo Civil (vide, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.1999, in CJ, XXIV, 4, 239, Tribunal da Relação de Lisboa de 22.01.2003, in CJ, XXVIII, 1, 127 e Figueiredo Dias, 1993:674).
Deste modo, carece o Ministério Público de legitimidade para promover o procedimento criminal relativamente aos factos relacionados com a alegada subtracção de energia.
Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 203º, nº1 e 3, 115º, nº1, ambos do Código Penal, 49º, nº1, e 311º, nº1 estes do Código de Processo Penal, declaro a ilegitimidade do Ministério Público para promover o presente procedimento criminal contra o arguido B… relativamente ao crime de furto de que é acusado, atenta a inexistência de queixa válida atempadamente ratificada por D…, S.A. e, em consequência, julgo extinto o procedimento criminal que se fazia valer contra o arguido.
Recorreu deste despacho o MP, pugnando pela sua revogação, por perfilhar a tese do AFJ, considerando-a não caducada; e, em síntese, por inexistir preceito legal expresso que imponha que ratificação da queixa tenha que ser efectuada no prazo desta.
Não se registou Resposta.
O Exmo PGA junto deste Tribunal da Relação perfilhou entendimento de concordância com o teor da Resposta, citando como suporte o acórdão deste TRP, de 12.10.2016.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º,n.º2 do CPP, não ocorrendo Resposta.
Colhidos os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação:
A questão, como bem salienta o Exmo PGA, mostra-se perfeitamente decidida no recente Acórdão deste TRP, de 12. 10. 2016, relatado pelo Des. Dr. Castela Rio, no sentido da bondade da tese do recurso e que aliás incidiu sobre idêntica decisão recorrida.
A ratificação operada após o prazo previsto no art.º 115.º,n.º1 do CP não deixou de ser válida. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/97 do STJ: o dispositivo legal só fixa um prazo para a dedução da queixa.
A representação sem poderes está regulamentada também na lei: art.º 268.º do CC.O n.º2 desta norma concede ao destinatário da queixa dois poderes: o de a revogar ou rejeitar. Como o MP não fez uma coisa nem outra, ficou com plena legitimidade para promover o processo penal.
O art.º 49.º,n.º3 do CPP estatui sobre matéria bem diversa: confere legitimidade para apresentar queixa, além do titular do respectivo direito, ao mandatário judicial e ao mandatário munido de poderes judiciais. O texto resultou da Reforma operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto e foi discutido na 3. º Sessão da C.Ref. CPP, destinando-se a esclarecer que a exigência de que o mandatário esteja munido de poderes especiais se não aplica ao mandatário judicial.
Aqueles princípios e boa doutrina há muito que vêm sendo muito maioritariamente seguidos pelo STJ. Veja-se o cado do acordão de 27.2.1991, publicado no site da dgsi, relatado pelo Des. Dr. Vaz dos Santos, nos seguintes termos:

I - O conceito de "poderes especiais" (cfr. artigo 49, n. 3 do Código de Processo Penal), no âmbito do processo criminal, impõe que o titular do direito confira ao mandatário poderes para, em seu nome, apresentar queixa contra terceiros que, na medida do possível, deverá individualizar.
Não obedece a esses requisitos a procuração que se limita a conferir poderes gerais forenses e os especiais para confessar, desistir ou transigir em qualquer processo.
II - Se a procuração confere poderes insuficientes ao mandatário para apresentar queixa, deve a autoridade judiciária desencadear o mecanismo previsto no artigo 40, n. 2 do Código de Processo Civil ( "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal ) e se o mandante supre a falta e ratifica o processado no prazo consignado, a queixa deve considerar-se válida desde a data da apresentação, mesmo que o vício só tenha sido notado quando já havia caducado o direito de queixa.
III - Não se tendo adoptado esse procedimento, é prematuro concluir-se pela ilegitimidade do Ministério Público ou pela extinção do direito de queixa.
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - artigo 111, n. 1 do Código Penal - sendo que o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores - artigo 112, n. 1 do mesmo diploma legal.
(…).
2.4 - Em processo civil, para os casos de falta de procuração, sua insuficiência ou irregularidade, o artigo 40 do Código de Processo Civil preceitua que, em qualquer altura, esses vícios poderão ser arguidos pela parte contrária e suscitados oficiosamente pelo tribunal, devendo o juiz marcar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado; se findo o prazo a situação não tiver sido regularizada, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário.
Através da ratificação, que pode acontecer em qualquer altura, dentro do prazo fixado (e por isso mesmo depois do decurso do prazo de caducidade do direito de propôr determinada acção), o titular do direito, nos casos de representação sem poderes, aceita ou confirma a queixa oportunamente apresentada, exteriorizando assim a sua vontade de prosseguir com o exercício da acção penal.
A ratificação é uma forma de legitimação superveniente, em que o acto ratificado passa a ser válido retroactivamente, desaparecendo o motivo da nulidade (cf. artigo 268, n. 3 do Código Civil, que expressamente acentua que a ratificação tem eficácia retroactiva).
Antes da ratificação, a queixa já existe, mas só depois daquela passa a adquirir eficácia plena, que tem de se considerar existente "ab initio", por o acto ratificativo produzir efeitos retroactivos; isto é, tudo se passa como se a queixa já fosse plenamente eficaz desde o momento da sua apresentação.
Seguindo a linha argumentativa desenvolvida no acórdão desta Relação de 11/07/90, que merece a nossa concordância, digo 11/07/90, recurso n. 24104, segunda secção, que merece a nossa concordância, se o juiz se aperceber de que uma queixa foi apresentada, dentro do prazo de caducidade, por quem não estava munido de poderes especiais para o efeito, deverá desencadear a fixação do prazo previsto no n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil e aguardar a reacção do titular do direito: se este suprir a falta e ratificar o processado, então a queixa deverá ser considerada plenamente eficaz desde que foi apresentada, e assim é juridicamente correcta a afirmação de que existe queixa anterior ao transcurso do prazo de caducidade; de contrário, isto é, se a falta ficar por suprir e o processado não for ratificado, a queixa deixou de ter valor, ficando sem efeito, e, decorrido o prazo de caducidade, haverá que declarar a extinção do direito de queixa.
Estes princípios são aplicáveis em processo penal, "ex vi" do artigo 4 do Código de Processo Penal.
Com efeito, não regulamentando este diploma as questões resultantes da falta de procuração e a sua inexistência ou irregularidade, defronta-se-nos uma lacuna a integrar de acordo com a norma do n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, que se harmoniza com o processo penal.
2.5 - No caso "sub judice", a queixa foi apresentada antes de decorrido o prazo de caducidade, por mandatário sem poderes especiais.
Perante a insuficiência da procuração, competiria à autoridade judiciária desencadear o mecanismo previsto no n. 2 do artigo 40 do Código de Processo Civil, marcando-se prazo por o suprimento da falta e a ratificação do processado.
Não se tendo adoptado esse procedimento é prematuro concluir-se pela ilegitimidade do Ministério Público ou pela extinção do direito de queixa.
Impõe-se, pois, fixar o prazo dentro do qual o ofendido poderá vir suprir a falta e ratificar o processado.
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que não considere falta de legitimidade do MP para promover o processo penal pelo motivo indicado.
Sem tributação.

Porto, 27 de Setembro de 2017.
Borges Martins
Ernesto Nascimento