Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
983/21.7PBAVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DE COACÇÃO
MEDIDA DE PROTECÇÃO
MEIOS ELECTRÓNICOS
CONTROLO À DISTÂNCIA
REGIME ESPECIAL
PRAZO MÁXIMO DE DURAÇÃO
EXTINÇÃO DA MEDIDA
Nº do Documento: RP20221116983/21.7PBAVR-A.P1
Data do Acordão: 11/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A lei nº112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, prevê, no nº 5 do seu artigo 35º um regime especial no tocante à revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância.
II – Porém, embora se trate inequivocamente de uma lei especial, a remissão ali contida é omissa relativamente aos prazos de extinção das sobreditas medidas, pelo que deverão aplicar-se aqui, subsidiariamente, as disposições gerais previstas no Código de Processo Penal.
III – Assim sendo, quanto à matéria concreta da duração das medidas de coação aplicadas no âmbito dos crimes de violência domésticas, aplicar-se-ão as regras gerais estabelecidas no Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 983/21.7PBAVR-A.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho proferido em 01/07/2022, em que, no que ora importa, se decidiu declarar extintas as medidas de coação aplicadas ao arguido AA de proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida e de proibição de permanecer e/ou de se aproximar da residência, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 214º, 215º, nº 1, al. a) e nº 2, por referência ao artigo 1º, al. f), aplicável por força do artigo 218º, nº 2, todos do Código de Processo Penal, dele veio o Ministério Público interpor recurso da mesma nos termos constantes dos autos, aqui tidos como especificados, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):

1. O arguido AA foi detido, constituído arguido nessa sequência e sujeito a 1° interrogatório judicial a 4-11-2021, aplicando-se, no final dessa diligência, em sintonia total com a promoção do Ministério Público, para o que aqui interessa, entre outras, a proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida e a proibição de permanecer e/ou de se aproximar do residência, estabelecendo-se o raio de exclusão mínimo que vier a ser estabelecido pela DGRSP, medidas fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância em conformidade com o disposto no art.° 35.° da Lei 112 de 2009, prescindindo-se do consentimento do arguido e das vítimas por se entender que esta é a única forma de conceder às vítimas uma proteção efetiva.

2. Por requerimento junto aos autos a 27 de junho de 2022, veio o arguido requerer a extinção das medidas de coação pelo decurso do prazo, sendo que o MP se opôs à declaração de extinção das medidas de coação de afastamento supra indicadas entendendo, em extrema síntese, que a Lei 112/2009, no seu artigo 35º, n.° 5 configurava lei especial, pelo que os prazos previstos para extinção de medidas de coação previstas no CPP não se aplicavam às medidas de coação de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância, remetendo esse artigo apenas para as regras previstas nos artigos 55.° a 57.° do Código Penal e nos artigos 212.° e 282.° do Código de Processo Penal.

3. O Tribunal assim não considerou, entendendo que, quanto à matéria concreta da duração das medidas de coação aplicadas no âmbito dos crimes de violência doméstica, aplicar-se-ão as regras gerais estabelecidas no CPP, declarando extintas as medidas de coação aplicadas ao arguido de proibição de contactar a vítima e de proibição de permanecer e/ou de se aproximar da residência, considerando que a medida de coação de apresentação periódica se mantinha vigente.

4. A questão colocada então neste recurso é simples:
O artigo 35°, n.° 5 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, ao estabelecer que “À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.° a 57.° do Código Penal e nos artigos 212.° e 282.° do Código de Processo Penal.” consagra ou não um regime especial de prazo de medida de coação e, nesse âmbito, estas medidas de coação estão sujeitas aos prazos previstos no 215° n.° 2 aplicáveis por força do artigo 218°, n.° 2 do CPP?

5. Conforme melhor se fundamenta nas alegações deste recurso, a interpretação da lei obedece a princípios legais – desde logo o artigo 9º do Código Civil - e o sistema jurídico terá de ter uma determinada coerência e unidade de sentido.

6. A Lei 112/2009 de 16/09 tem como finalidade essencial, em resumo, consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua proteção célere e eficaz, sendo que, nos termos dos artigos 52° e 53° da Convenção de Istambul, as medidas de interdição urgentes adotadas nos termos do presente artigo deverão dar prioridade à segurança das vítimas ou das pessoas em risco e as medidas cautelares ou de proteção devem ser emitidas por um determinado período de tempo ou até serem alteradas ou revogadas, devendo estas normas servir de guião interpretativo.

7. As medidas de coação urgentes previstas no artigo 31° da Lei 112/2009 configuram medidas especiais e adicionais que visam robustecer a proteção das vítimas, prevendo o n.° 5 do artigo 35.° dessa lei que “À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam--se as regras previstas nos artigos 55.° a 57.° do Código Penal e nos artigos 212.° e 282.° do Código de Processo Penal.”.

8. Esta norma é especial e exclui a aplicação do n° 2 do artigo 218° do CPP às medidas de coação de afastamento em contexto da prática de crime de violência doméstica, pelo que, afastada a possibilidade de lhe ser aplicada o prazo de duração máxima da prisão preventiva, as medidas de coação de afastamento extinguem-se apenas nos casos previstos no artigo 214° do CPP, a não ser que sejam expressamente revogadas por despacho judicial e nas hipóteses previstas taxativamente no artigo 212° do CPP, tendo como limite máximo de duração os prazos e nas circunstâncias previstas do artigo 282° do CPP.

9. A remissão do n.° 5 do artigo 35° da Lei 112/2009 para o artigo 282° do CPP, referente à suspensão provisória do processo que pode ir até aos 5 anos, significa que as medidas de coação de afastamento se poderão manter vigentes durante todo o período de suspensão provisória.

10. Adotando o entendimento do despacho colocado em crise, nunca essas medidas de coação poderiam estender-se a inquéritos nos quais se aplicou a suspensão provisória do processo - o que cremos não fazer sentido – não se podendo confundir injunções dependentes da voluntariedade do arguido e a força legal de uma medida de coação judicialmente imposta.
11. Caso o legislador entendesse que aquela medida de coação se extinguiria com a suspensão provisória tê-lo-ia dito expressamente - e não o refere em qualquer norma do CPP – sendo ainda certo que, se assim fosse, esvaziaria completamente de sentido prático a remissão expressa do artigo 35°, n.° 5 da Lei 112/2009 para o artigo 282° do CPP.

12. Desconsiderar este plus de proteção a que nos temos vindo a referir significa admitir involuntariamente a incompreensão do fenómeno da violência doméstica e das melhores formas de, adequada e eficazmente, proteger as suas vítimas.

13. O entendimento assumido pelo MP é aquele que permite dotar de eficácia e efeito útil os objetivos de proteção eficaz das vítimas de violência doméstica, configurando a Lei 112/2009 lei especial, que afasta intencionalmente o regime regra dos prazos de extinção das medidas de coação previstos no CPP.

14. A proteção das vítimas não pode ficar subordinada a contingências alheias, como seja a impossibilidade de agenda para julgamento ou o seu prolongamento no tempo ou atrasos de uma diligência essencial, sendo que o entendimento vertido no despacho judicial leva a que se dê maior prevalência aos direitos do arguido, quando deve justamente recair sobre este o ónus das consequências das suas ações.

15. O entendimento do despacho recorrido gera inquietudes difïceis de gerir e compreender na prática, na medida em que permite que se mantenha uma medida de coação tendencialmente inócua para efeitos de proteção da vítima – a apresentação periódica – deixando cair as medidas de coação que, precisamente, maior robusta e efetiva proteção davam à vítima.

16. A constatação deste resultado prático subverte os princípios e objetivos legais, consagrando um estado de coisas factual que não pode, de maneira alguma, ter sido querido pelo legislador, pela lei e pelos princípios base que esta colocou em prática.

17. Face ao exposto, o MP entende que se mantêm válidas e aplicáveis as medidas de afastamento e proibição de contactos previstas nas disposições conjugadas dos artigos 31°, n.° 1, alíneas c) e d) e 35° da Lei 112/2009 e fiscalizadas por vigilância eletrónica.

18. O entendimento pugnado pelo MP neste recurso é tendencialmente unânime nas secções especializadas de violência doméstica nos DIAP e SEIVD bem assim na esmagadora maioria dos Juízos de Instrução Criminal e Juízos Criminais.

19. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8-7-2015 cuja decisão é evidenciada nas alegações de recurso, também conclui no mesmo sentido, decidindo que por via da norma especial do artigo 35°, n.° 5 da lei 112/2009 encontra-se excluída a aplicação do n° 2 do artigo 218°, do CPP que prevê as remissões para o artigo 200°, do CPP e quanto a prazos, os estabelecidos nos artigos 215° e 216° desse mesmo diploma legal.

20. O despacho judicial, ao não entender assim, violou o disposto nos artigos 3°, alíneas b), e), h) e i) e 35° n° 5 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, devendo ser revogado e substituído por outro que decida que as medidas de coação de afastamento aplicadas ao arguido não se mostram extintas e a elas não se aplicam os prazos previstos no artigo 215° do CPP, devendo, consequentemente, o arguido ser notificado para, de imediato, se afastar da residência da vítima, notificando-se a DGRSP para instalação imediata e urgente dos equipamentos de vigilância eletrónica.

O recurso foi regularmente admitido.

Não houve resposta.

Neste tribunal, o Ex.mo PGA apôs um visto nos autos.

No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido.
II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

No que aqui importa reter, o despacho recorrido é do teor seguinte (transcrição):

No âmbito dos presentes autos foram aplicadas ao arguido AA as medidas de coação de proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida; de proibição de permanecer e/ou de se aproximar da residência, estabelecendo-se o raio de exclusão que vier a ser estabelecido pela DGRSP; de obrigação de se apresentar diariamente no OPC competente da sua área de residência e de obrigação de se submeter a tratamento à sua adição ao álcool, com o consentimento do arguido, tudo conforme os artigos 191.º a 194.º, 196.º, 198.º, 200.º, n.º 1, al. a), b) e f) e 204.º, al. c) do Código de Processo Penal, com fiscalização por meio técnico de controlo à distancia, nos termos do artigo 35.º, da Lei 112/2009, de 16 de setembro.
O arguido por requerimento de fls. 301 e 302, veio requerer a revogação das medidas de coação aplicadas de proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida e de proibição de permanecer e/ou de se aproximar da residência, previstas no artigo 200.º, ao abrigo do disposto nos artigos 215.º, n.º 1, al. a) e 216.º à contrario, aplicáveis ex vi do artigo 218.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e artigo 212.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma, porquanto os prazos de duração daquelas medidas de coação aplicadas ao arguido se mostram excedidos.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não assistir razão ao arguido, porquanto considerando o crime em causa nos presentes autos – violência doméstica – aplica-se a Lei 112/2009, de 16 de setembro, legislação especial que estabelece o regime especial aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistências das suas vitimas, a qual no seu artigo 35.º, n.º 5 ao não remeter para o artigo 218.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que fixa os prazos máximos para as medidas de coação previstas no artigo 200.º, está expressamente a excluir a sua aplicação ao crimes de violência doméstica.

Apreciando.

O arguido AA está indiciado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a) e d) e n.º 2, al. a) e n.º 4 a 6, do Código Penal, razão pela qual, em sede de 1.º interrogatório detido, ocorrido em 04.11.2021, lhe foram aplicadas as medidas de coação acima referidas – cfr. fls 145 a 157.
A Lei 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime especial aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistências das suas vítimas, o qual assume no nosso ordenamento jurídico natureza especial em relação ao Código de Processo Penal.
Neste passo, dispõe o artigo 3.º, do Código de Processo Penal que “As disposições legais deste Código são subsidiariamente aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal regulados em lei especial.”.
Quer isto significar que, se a lei especial for omissa em determinada matéria, aplicam-se as disposições gerais previstas no Código de Processo Penal.
Transportando o que vem de ser dito, para a questão em análise, não se poderá concordar com a posição vertida na promoção do Ministério Público, porquanto a Lei 112/2009, de 16 de setembro, não estabelece qualquer norma quanto à duração das medidas de coação, sejam elas medidas de coação urgentes aplicadas ao abrigo do disposto no seu artigo 31.º ou não, com ou sem fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 35.º.
E, nessa medida quanto à matéria concreta da duração das medidas de coação aplicadas no âmbito dos crimes de violência domésticas, aplicar-se-ão as regras gerais estabelecidas no Código de Processo Penal.
Neste sentido, cumpre dar nota que, caso fosse intenção do legislador estabelecer um regime especial, distinto do previsto no Código de Processo Penal, tê-lo-ia consagrado expressamente nesse diploma, o que não sucedeu.
Dito isto, perscrutemos, então, se se mostram excedidos os prazos das medidas de coação tal como alegado pelo arguido.
O crime de que vem indiciado o arguido constitui um dos crimes catalogados como criminalidade violenta – cfr. artigo 1.º, al. j), do Código de Processo Penal.
De acordo com o disposto no artigo 218.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, relativa aos prazos de duração máxima de outras medidas de coação que não a prisão preventiva “À medida de coação prevista no artigo 200.º é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 215.º e 216.º.”.
Neste conspecto, nos termos da al. a), n.º. 1, do artigo 215.º, a medida de coação extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação, prazo este que se tratando de criminalidade violenta, como sucede in casu, é elevado a seis meses.
Ora, as medidas de coação cuja revogação se pretende tiveram início a 04.11.2021, tendo na presente data – 01.07.2022 - já decorrido o prazo máximo de seis meses legalmente estabelecido.
Pelo exposto, declaro extintas as medidas de coação aplicadas ao arguido de proibição de contactar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, por si ou por interposta pessoa ou utilizando meios eletrónicos de comunicação com a ofendida e de proibição de permanecer e/ou de se aproximar da residência, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 214.º, 215.º, n.º 1, al.) e n.º 2, por referência ao artigo 1.º, al. f), aplicável por força do artigo 218.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, mantendo-se as demais.
*
b) apreciação do mérito:

Começaremos por recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, e apenas relativamente às sentenças/acórdãos, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2], devendo sublinhar-se que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede claramente no caso vertente.
*
Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente, importa saber apenas se o artigo 35°, n° 5 da Lei nº 112/2009, de 16/09 consagra ou não um regime especial de prazo de medida de coação e, nesse âmbito, se estas medidas de coação estão ou não sujeitas aos prazos previstos no 215° n° 2, aplicáveis “ex vi” artigo 218°, n° 2, ambos os preceitos do Código de Processo Penal.

Vejamos, pois.

O Ministério Público, ora recorrente, entende que o nº 5 da do artigo 35° da Lei nº 112/2009, de 16/09, é uma norma especial e exclui a aplicação do n° 2 do artigo 218° do Código de Processo Penal, pelo que, afastada a possibilidade de lhe ser aplicada o prazo de duração máxima da prisão preventiva, as medidas de coação de afastamento extinguem-se apenas nos casos previstos no artigo 214° do CPP, a não ser que sejam expressamente revogadas por despacho judicial e nas hipóteses previstas taxativamente no artigo 212°, tendo como limite máximo de duração os prazos e nas circunstâncias previstas do artigo 282º, todos do Código de Processo Penal, pelas razões que explana, argumentação essa que vem vertida nas correspondentes conclusões supra transcritas[3] e que, por economia, aqui se considera renovada, concluindo por tudo isso que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 3°, alíneas b), e), h) e i) e 35° n° 5, ambos da Lei nº 112/2009, de 16/09, devendo ser revogado e substituído por outro que decida que as medidas de coação de afastamento aplicadas ao arguido não se mostram extintas e a elas não se aplicam os prazos previstos no artigo 215° do CPP, devendo, consequentemente, o arguido ser notificado para, de imediato, se afastar da residência da vítima, notificando-se a DGRSP para instalação imediata e urgente dos equipamentos de vigilância eletrónica.

O Ex.mo PGA veio anotar no que entendia que o recurso interposto se encontra sustentado de facto e de direito, merecendo apreciação deste tribunal, apondo o competente visto.

Apreciando.

Como não podia deixar de ser, cremos que o ponto de partida desta discussão há--de radicar na letra da lei, pois que, como é sabido, e decorre do preceituado no artigo 9º do Código Civil, não poderá sustentar-se interpretação que não tenha um mínimo de assento na lei, ou, nas palavras de Ferrara, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais”[4].
No tocante ao texto legal, teremos de atentar na lei nº112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, a qual prevê, no nº 5 do seu artigo 35º que “À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 212.º e 282.º do Código de Processo Penal”.
Porém, embora se trate inequivocamente de uma lei especial, o que se constata é que este normativo, que cuida expressamente da matéria atinente à revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento aqui em apreço, e afora a remissão para aqueles dois preceitos do Código Penal, já que aqui em nada interferentes, remete depois para aqueles dois normativos do Código de Processo Penal, sendo que o artigo 282º trata apenas da matéria atinente à suspensão provisória do processo, logo, sem contender com a questão que ora nos ocupa, e o artigo 212º regula apenas em matéria de revogação e substituição das medidas, de coacção, logicamente, mas já nada prevê relativamente à extinção de tais medidas, pelo que a alusão naquele nº 5 do sobredito artigo 35º também à extinção só poderá reportar-se a extinção prevista no artigo 57º do Código Penal, o único que tal prevê, constituindo aquela falta de previsão o cerne da questão aqui em apreço.
Daqui decorre, quanto a nós linearmente, o acerto do decidido, quando ali se afirma que (transcrição):

“A Lei 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime especial aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistências das suas vítimas, o qual assume no nosso ordenamento jurídico natureza especial em relação ao Código de Processo Penal.
Neste passo, dispõe o artigo 3.º, do Código de Processo Penal que “As disposições legais deste Código são subsidiariamente aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos processos de natureza penal regulados em lei especial.”.
Quer isto significar que, se a lei especial for omissa em determinada matéria, aplicam-se as disposições gerais previstas no Código de Processo Penal.
Transportando o que vem de ser dito, para a questão em análise, não se poderá concordar com a posição vertida na promoção do Ministério Público, porquanto a Lei 112/2009, de 16 de setembro, não estabelece qualquer norma quanto à duração das medidas de coação, sejam elas medidas de coação urgentes aplicadas ao abrigo do disposto no seu artigo 31.º ou não, com ou sem fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 35.º.
E, nessa medida quanto à matéria concreta da duração das medidas de coação aplicadas no âmbito dos crimes de violência domésticas, aplicar-se-ão as regras gerais estabelecidas no Código de Processo Penal.
Neste sentido, cumpre dar nota que, caso fosse intenção do legislador estabelecer um regime especial, distinto do previsto no Código de Processo Penal, tê-lo-ia consagrado expressamente nesse diploma, o que não sucedeu”.

Permitimo-nos aderir e subscrever esta fundamentação, já que também entendemos que existe aqui uma clara omissão relativamente aos prazos de extinção das medidas em questão, devendo, pois, inferir-se que, se o legislador remeteu apenas para parte do regime constante do Código de Processo Penal, e partindo do princípio de que “…o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, conforme decorre do nº 3 do artigo 9º do Código Civil que nesta matéria impera, tal significa que o mesmo, deliberadamente, deixou de fora o tratamento da matéria atinente aos prazos para a extinção das medidas de coacção.
E aqui impõe-se anotar apenas que, e sem prejuízo da valia e notável esforço argumentativo aduzido pelo Ministério Público, aqui recorrente, discorda-se do raciocínio ali encetado quando se afirma que a remissão do supra mencionado n° 5 do artigo 35°para o artigo 282° do Código de Processo Penal, referente à suspensão provisória do processo que pode ir até aos 5 anos, significa que as medidas de coação de afastamento poderão manter-se vigentes durante todo o período de suspensão provisória, pelo que, adoptando o entendimento do despacho colocado em crise, nunca essas medidas de coação poderiam estender-se a inquéritos nos quais se aplicou a suspensão provisória do processo, o que entendia não fazer sentido, não podendo confundir-se injunções dependentes da voluntariedade do arguido e a força legal de uma medida de coação judicialmente imposta, além de que, caso o legislador entendesse que aquela medida de coação se extinguiria com a suspensão provisória, tê-lo-ia dito expressamente, e não o refere em qualquer norma do Código de Processo Penal, sendo ainda certo que, se assim fosse, esvaziaria completamente de sentido prático a sobredita remissão expressa para o artigo 282°, pois que, e ao contrário do que alega, não existe aqui qualquer incoerência relativamente ao prazo de duração da suspensão provisória do processo, uma vez que uma tal suspensão poderá englobar uma tal medida de afastamento e fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, por um período que pode ir até aos cinco anos, desde que o arguido voluntariamente aceite uma tal injunção, além doutras, se for o caso, pois que tal constitui um dos pressupostos para que possa ser decretada a suspensão, altura em que, obviamente, cessa uma tal medida de coação se ainda vigorasse nessa altura, e se é certo que a injunção não é confundível a medida de coação judicialmente imposta condição, atenta a sua diferente natureza, não se entende a razão pela qual a mesma poderá ter menos eficácia em sede de protecção da vítima do que a medida de coacção, já que ambas têm a mesma força legal, mormente no tocante ao seu eventual não cumprimento, ainda que consequências que poderão ser diversas.
Termos em que, e uma vez que não está aqui em causa a questão do prazo já decorrido à data da prolação do despacho recorrido, resta a sua confirmação, com o inerente naufrágio do recurso.
*
Sem tributação, atenta a legal isenção prevista no nº 1 do artigo 522º do Código de Processo Penal.
*
III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes nesta Relação acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, em consequência do que, e naquilo que aqui vinha questionado, decidem confirmar o despacho recorrido.

Sem tributação.

Notifique.
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Porto, 16/11/2022[1].
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
_________________
[1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95.
[3] As quais foram transcritas precisamente porque reproduzem o que consta da motivação ou argumentação recursiva e, por isso, e até por razões de economia, permite-nos não a repetir neste lugar.
[4] Citação da Obra do Professor da Universidade de Pisa Francesco Ferrara, intitulada “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzida pelo Professor Manuel de Andrade e inserida na obra deste último denominada “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Edição, Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139, obras que temos como singularmente referencial nesta matéria.
[5] Texto escrito, composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).