Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
299/20.6GAVGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Nº do Documento: RP20220511299/20.6GAVGS.P1
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os crimes que estão numa relação de especialidade (como um “minus”) com o crime de violência doméstica, não haveria obstáculo, na perspetiva das exigências do princípio acusatório e das garantias de defesa do arguido, à eventual condenação da arguida pela prática desses crimes.
II - Há que analisar, porém, se estão reunidos os pressupostos processuais relativos a tais crimes. No que aos crimes de injúrias diz respeito, o procedimento criminal depende de acusação particular (ver artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal). Tendo o arguido sido acusado pela prática de crime de violência doméstica (nesta se incluindo a prática de crimes de injúrias), foi deduzida acusação pública e não poderia, certamente, ter sido deduzida acusação particular. Não pode, porém, e por esse motivo, ser dispensado o referido pressuposto processual. Deve entender-se que esse pressuposto processual se verifica se o ofendido se constituir assistente e acompanhar a acusação pública (pela prática de um crime público onde se integra o crime de injúrias). Esse acompanhamento equivale, substancialmente e para este efeito, à dedução de acusação particular (ver, neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 21 de março de 2022, proc. nº 704/20.1GAVNF.G1, relatado por Paulo Serafim, e o acórdão desta Relação de 13 de janeiro de 2021, proc. n.º 799/18.8GBVNF.P1, relatado pelo também agora relator, ambos in www.dgsi.pt).
III - Uma vez que o ofendido não se constituiu assistente e não acompanhou a acusação pública, não pode a arguida e recorrente ser condenada pela prática dos referidos crimes de injúrias, por falta de legitimidade do Ministério Público para, desacompanhado, deduzir acusa
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 299/20.6GAVGS.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – AA veio interpor recurso da douta sentença do Juízo Local de Competência Genérica de Vagos do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que a condenou, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, b), n.º 2, a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na pena de vinte e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; a pagar ao demandante BB a quantia de 1.750,00€, acrescida de juros à taxa legal, a título de indemnização de danos não patrimoniais relativos à prática desse crime; pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos e a pagar a esse demandante a quantia de 915,00€, a título de indemnização de danos patrimoniais relativos à prática deste crime.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«I - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos em que condenou a recorrente pela prática dos crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º do CP, e de dano, p. e p. pelo art. 212 do CP.
II - O Tribunal a quo valorou os depoimentos do ofendido e das testemunhas CC, DD e EE, entendendo tais depoimentos como coerentes e merecedores da credibilidade do tribunal.
III Mas o certo é que tais depoimentos, apesar de um modo geral serem coincidentes entre si, quando questionados determinados pormenores as versões começam a divergir entre elas.
IV A acrescer a esse facto, os próprios depoimentos, quer do ofendido, quer da testemunha CC, quando analisadas as declarações prestadas em sede de inquérito e aquelas prestadas em sede de julgamento, verificamos versões opostas e diferentes sobre os mesmos factos e ocorrências.
V- Por este motivo é nosso entendimento que o Tribunal a quo não podia, como fez, valorar tais depoimentos e afirmar que os mesmos são coerentes porque tal não corresponde à verdade.
VI Basta ver as declarações desde o início do processo para perceber que a versão dos mesmos factos foi alterando com o passar do tempo.
VII Não se entende também como não pôde o Tribunal a quo valorar o depoimento da Recorrente quando é o único depoimento completamente coerente desde o início do processo, ainda em sede de inquérito, até ao final.
VIII Aliás, o próprio ofendido, ainda em sede de inquérito, corroborou parte da tese da Recorrente quando confessou ter agredido o filho menor da Recorrente, o que levou ao término do relacionamento de ambos.
IX Por estes motivos, somos a crer que o Tribunal a quo deu como provados factos que, no nosso entendimento, não deviam ser dados como provados, designadamente os factos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 10º, 11º 12º, 13º, 22º, 24º e 26º.
X - Violando, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º do CPP.
XI Princípio que, conforme saliente Figueiredo Dias in "Direito Processual...", p. 139, está associado ao "...dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efetivos).
XII - Neste mesmo sentido, Henriques Eiras, in "Processo Penal Elementar", Quid Iuris, 2003, 4ª edição, p. 102, refere que este princípio "...não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação. O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objetivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objetivável".
XIII - Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no art.º 355º nº 1 do CPP. Com efeito, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas na audiência.
XIV A acrescer, o Tribunal a quo desconsiderou por completo o depoimento da testemunha FF, que presenciou, parcialmente, alguns dos factos.
XIII - Tal depoimento revelou-se isento, imparcial e, acima de tudo, coerente.
XIV O Tribunal a quo deu como não provados os factos XV, XVI e XIX, o que erroneamente fez.
XV - Desta forma, o Tribunal a quo ao dar tal facto como não provado, apesar de existir prova em sentido diverso, violou, ainda, o disposto no art. 127º do CPP
XVI - Sem prescindir do supra exposto, constatamos, claramente, que a recorrente não praticou o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º do CP.
XVII – Com esta incriminação, a nossa lei procura tutelar o bem jurídico saúde. constituindo um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica, mental e moral, orientada para o desenvolvimento harmonioso da personalidade. (Neste sentido, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Org. Figueiredo Dias, Parte Especial, Tomo I, 2012, anot. ao art.º 152º)
XVIII - Também Nuno Brandão aponta a saúde como o bem jurídico protegido, constituindo "objeto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica". Quanto ao conceito de maus-tratos e à identificação de comportamentos suscetíveis de o enquadrar esclarece que "devem estar em causa actos que pelo seu carácter violento sejam, por si ou quando conjugados com outros, a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima, sendo ainda necessária a avaliação da "situação ambiente" e da imagem global do facto para se decidir do preenchimento legal do tipo". (Neste sentido, Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº 12, Set-Dez 2010, pp 9-24)
XVIX - Este parece ser também o entendimento do Dr. Plácido Conde Fernandes ao escrever que "não se razão para alterar o entendimento, sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos». Enquanto nos maus tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.
XX - O crime de violência doméstica requer a prática de atos, isolados ou reiterados, que possam de modo relevante colocar em risco a saúde da ofendida, tornando-o vítima de um comportamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do espaço de intimidade da vida comum. - Cf. Ac. Tribunal da Relação de Guimarães - processo 353/11.5GDGMR.G1, datado de 21-10-2013, disponível em www.dgsi.pt
XXI - E a verdade é que, no caso sub judice, os factos provados e as circunstâncias em que foram praticados não são reveladores de qualquer especial gravidade ou crueldade por parte do recorrente, sendo certo que não foi sequer provado que este tivesse especial ascendente sobre a ofendida
XXII – Não há factos dados como provados que, “apreciados à luz da vida em comum” inculquem a verificação de maus tratos infligidos à vítima pelo arguido, que este tenha agido com humilhação, desprezo, ou especial desconsideração pela ofendida, afinal factos que revelem uma intensidade, ao nível do desvalor, da ação e do resultado, que sejam suficientes para lesar o bem jurídico protegido, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
XXIII - A verdade é que nem toda a ofensa inserida no meio da vida familiar e doméstica representa imediatamente maus tratos, pois estes pressupõem a ofensa da integridade física ou psíquica de modo especialmente desvalioso e por isso particularmente censurável. Decisivo é atentar no caracter violento do acto ou na sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma. - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 864/13.8PCMTS.P1, datado de 02/12/2015, disponível em www.dgsi.pt,
XXIV - O acima mencionado Acórdão refere ainda que "não podem ser valorados os factos genéricos e vagos sem indicação do tempo, local e modo de cometimentos dos factos. Desde há muito o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que devem os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos, porquanto, o que impede, não só, o eficaz exercício do direito de defesa, como também, o exercício do contraditório ínsito naquele."
XXV - Com efeito, para que se verifique o referido crime, é necessário que o sujeito passivo se encontre, para com o agente, numa relação de "subordinação existencial", Taipa de Carvalho in "Comentário Conimbricense...", p. 333. Ou seja, a vítima tem que se encontrar numa posição de inferioridade e/ou dependência em relação ao agente. Acontece que, da prova dada como provada não resulta que o ofendido tenha uma posição de subordinação existencial para com a recorrente.
XXVI - Não restam assim dúvidas que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado.
XXVII – Relativamente ao crime de dano, importa mencionar que o procedimento criminal depende da apresentação da necessária queixa por parte do ofendido, como resulta do art. 212º, nº 4 do CP.
XXVIII - O certo é que nos presentes autos não se verifica em momento algum que o ofendido tenha apresentado queixa pelo crime de dano, motivo pelo qual o Ministério Público não tinha competência para prosseguir com o procedimento criminal, o que resulta na nulidade da acusação no que diz respeito ao Crime de Dano.
XXIX - Para além disso, analisemos o artigo 212º nº 4 do CP que nos diz “- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.” e o artigo 207º do CP diz-nos
“Acusação particular
1 - No caso do artigo 203.º e do n.º 1 do artigo 205.º, o procedimento criminal depende de acusação particular se:
a) O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges; ou”
XXX - Ora, mais do que necessidade de queixa, seria necessário inclusive acusação particular, porquanto o ofendido e a Recorrente viviam em condições análogas às dos cônjuges, o que não se verificou.
XXXI - O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, com o processo nº 120/11.6GCVFR.P1, refere isso mesmo, que “Sendo o arguido, na altura da consumação do crime de dano p. e p. no art. 212º, 1, do CP, cônjuge da vítima, apesar de estar dela separado de facto, o procedimento criminal depende de acusação particular (art. 212º, 1 e 3 conjugado com o art. 207º, al. a), do CP, na versão então vigente, hoje correspondente ao art. 207º, 1, al. a), do CP)”.
XXXII - O mesmo acórdão refere que “Não tendo a vítima deduzido a respectiva acusação particular, nos termos dos arts. 48º e 50º do CPP, o Ministério Público não tem legitimidade para promover o processo penal, deduzindo acusação pública pelo referido crime de dano, pelo que o tribunal não devia, nem podia ter conhecido dessa parte da acusação pública.
XXXIII – Assim sendo, dada a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação pública pelo crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP, o tribunal da 1ª instância não devia, nem podia ter conhecido dessa parte da acusação pública (sendo certo que, nem genericamente, apesar de não fazer caso julgado formal, o tribunal se pronunciou sobre a legitimidade dos sujeitos processuais, sequer quando foi proferido o despacho que designou dia para julgamento).
XXXIV - Por isso, é manifesto que não pode subsistir a condenação relativa ao referido crime de dano, o que se repercute igualmente na condenação relativa ao pedido cível, uma vez que nesta ação penal a arguida não pode ser condenado a pagar à ofendida aquele valor de € 915,00 atinente aos mencionados danos patrimoniais.
XXXV - Impõe-se, assim, revogar a sentença quanto à condenação pelo dito crime de dano p. e p. no art. 212º, nº 1, do CP, bem como reduzir a indemnização que foi condenada a pagar ao demandante cível, naquele valor de € 915,00 relativo aos mencionados danos patrimoniais.
XXXVI - Nos termos do supra alegado, e não tendo a recorrente praticado os crimes em que foi condenada, deve a mesmo ser absolvida das penas principais e das penas acessórias em que foi condenada, bem como do pedido de indemnização civil em que foi condenado.»

O Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo a arguida e recorrente ser absolvida da prática do crime de violência doméstica por que foi condenada.
Mesmo que tal não se entenda:
- saber se a factualidade provada não integra a prática do crime de violência doméstica por que a arguida e recorrente foi condenada;
- saber se a arguida e recorrente não poderá ser condenada pela prática do crime de dano por que vinha acusada (e. consequentemente, no pedido de indemnização civil relativo a tal crime), por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
III. Fundamentação de facto
A. Factos Provados
Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação e do pedido de indemnização civil
1. BB e AA, mantiveram, entre si, uma relação amorosa no período compreendido entre Setembro de 2015 e o ano de 2017, relação essa que voltou a ser reatada em 2018, tendo a separação ocorrido em Agosto de 2020.
2. Na pendência da relação, ofendido a arguida partilharam cama e mesa, como se de marido e mulher se tratassem, habitando ambos na residência da arguida, sita na Estrada Nacional n.º ..., n.º ..., 1º Direito – B, em ..., concelho de Vagos.
3. Durante o período de relacionamento entre ambos, a arguida visualizava os registos do telemóvel do ofendido e exigia-lhe esclarecimentos sobre o seu dia-a-dia,
4. (…), deixando o ofendido triste e ansioso.
5. Por mais que uma ocasião e em número não concretamente apurado de vezes, a arguida, dirigindo-se ao ofendido, em elevado tom, apelidava-o de “porco”, “nojento”, “filho da puta”, “conas” e “cabrão”,
6. (…), ficando o ofendido triste e afectado na sua honra, consideração e auto-estima.
7. Por mais que uma ocasião e em número não concretamente apurado de vezes, a arguida desferiu murros e pontapés no ofendido, bem como bofetadas no rosto e empurrões no corpo.
8. Em virtude do referido em 7., o ofendido sofreu dores e lesões físicas de gravidade e extensão não concretamente apuradas.
9. Após terem estado presentes nas marchas populares de Vagos, onde desfilou a filha do ofendido, de nome GG, e já na residência de ambos, a arguida afirmou, em tom elevado, que o arguido esteve a olhar para a ex-companheira durante as marchas,
10. (…), desferindo-lhe um número não concretamente apurado de murros, bofetadas no rosto e pontapés no corpo,
11. (…), causando-lhe dores e lesões físicas de extensão e gravidade não concretamente determinadas.
12. Aquando das Festas ..., em 2019, em virtude de o ofendido ali ter abraçado uma amiga, a arguida desferiu murros e bofetadas no rosto do ofendido,
13. (…) causando-lhe dores e lesões de extensão e gravidade não concretamente determinadas.
14. O ofendido convidou CC e respectiva companheira para passarem o dia na casa daquele e da arguida,
15. (…) tendo esta, no decurso do jantar e após o ofendido ter falado na “patroa”, apelidado BB de “cabrão”, “porco” e “filho da puta”.
16. Em consequência do referido em 14. e 15., o ofendido ficou envergonhado, tendo CC e companheira dali saído.
17. No dia 20 de Agosto de 2020, quando a arguida e o ofendido se encontravam no interior da residência de ambos, a arguida desferiu um número não concretamente apurado de bofetadas e unhadas no rosto e pescoço do ofendido.
18. Em consequência do referido em 17., o ofendido sofreu dores, bem como:
a. Escoriação superficial longitudinal na região malar esquerda (face), com 2 (dois) centímetros de comprimento.
b. Escoriações superficiais (duas), paralelas entre si, distando cerca de 1 (um) centímetro, na face esquerda do pescoço, medicando cada uma 4 (quatro) centímetros de cumprimento,
19. (…) lesões que demandaram oito dias para atingir a cura, sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
20. No dia 22 de Agosto de 2020, quando o ofendido regressou a casa, a arguida não permitiu que o mesmo ali entrasse, exigindo-lhe que entregasse as chaves da residência,
21. (…) não tendo, desde essa data, o ofendido ali mais residido.
22. Nas mesmas circunstâncias de tempo referidas em 20., a arguida, pegando no computador portátil do ofendido, no valor 915,00€ (novecentos e quinze euros), arremessou-o ao chão, por mais que uma vez, partindo-o.
23. Posteriormente, a arguida contactou o ofendido, para que este recolhesse os seus pertences.
24. Ao longo do relacionamento com a arguida – e em virtude do atrás descrito – o ofendido viveu, angustiado, entristecido, humilhado e afectado na sua auto-estima, receando, a qualquer momento, novas e mais graves investidas por parte da arguida.
25. Com a sua conduta, nos termos descritos, a arguida quis, como conseguiu, molestar reiteradamente o corpo e a saúde física e psíquica do ofendido, atentando repetidamente contra a sua integridade física, bom nome, paz e sossego, humilhando-o e diminuindo-o na sua auto-estima, bem sabendo que o mesmo era seu companheiro.
26. Por sua vez, ao arremessar, por mais que uma vez, o computador do ofendido contra o chão, a arguida quis, como conseguiu, partir o computador em causa, bem sabendo que assim agindo lhe retirava toda a utilidade, sabendo, também, que tal bem não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
27. A arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente, não ignorando que toda a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Mais se provou que:
28. A arguida não tem antecedentes criminais.
29. Após o fim da coabitação não ocorreram mais episódios iguais ou semelhantes aos descritos na factualidade que antecede.

Das condições sócio-económicas da arguida:
a) A arguida tem 32 (trinta e dois) anos e é solteira.
b) A arguida trabalha na empresa “P..., Lda.”, auferindo o rendimento mensal de 675,00€ (seiscentos e setenta e cinco euros).
c) Reside com o filho de 9 (nove) anos, em casa arrendada, pagando a título de renda o montante mensal de 255,00€ (duzentos e cinquenta e cinco euros).
d) A arguida tem registado em seu favor o veículo automóvel de marca Opel, modelo ..., do ano de 1995, com matrícula ..-..-FG.
e) A arguida não tem bens imóveis registados em seu favor.
f) AA paga a quantia mensal aproximada de 100,00€ (cem euros) em despesas de medicação, bem como o montante de 65,00€ (sessenta e cinco euros) pelo ATL do seu filho (este último suportado, em 50%, pelo pai da criança).
g) A arguida tem o 12º ano de escolaridade, curso profissional de assistente administrativa e formação em auxiliar de saúde.

B. Factos não provados
Com expressa exclusão dos factos conclusivos, da prova produzida não resultou provado que:
i. O primeiro período de relacionamento amoroso entre ofendido e arguida terminou no final do mês de Agosto.
ii. O segundo período de relacionamento amoroso entre ofendido e arguida se iniciou no dia 25 (vinte e cinco) de Dezembro.
iii. O referido em 9. ocorreu a 27 de Junho de 2017, tendo ali desfilado a ex-companheira do ofendido.
iv. O evento mencionado em 12. ocorreu no mês de Junho.
v. O referido em 12. decorreu na residência do ofendido e da arguida.
vi. No seguimento do referido em 12., a arguida desferiu pontapés no corpo do ofendido.
vii. O referido em 13. a 15. ocorreu no verão de 2018.
viii. O indicado em 17. ocorreu pelas 16h00.
ix. As lesões referidas em 18., determinaram a afectação da capacidade de trabalho geral do ofendido.
x. Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 20., o ofendido entregou as chaves à arguida.
xi. A arguida não devolveu nem permitiu que o ofendido recolhesse os seguintes bens, que lhe pertenciam:
a. Um telemóvel, marca Apple, modelo ..., no valor de 739,00€ (setecentos e trinta e nove euros).
b. Um televisor marca TCL, modelo ..., Smart TV, Android 4k, no valor de 705,80€ (setecentos e cinco euros e oitenta cêntimos).
c. Um aquecedor, de características e valor não apurados.
d. Um forno, de características e valor não apurados
xii. A arguida fez seus os bens referidos em xi.
xiii. Ao não devolver os referidos telemóvel, televisor, aquecedor e forno ao ofendido, visou a arguida integrá-los no seu património, como efectivamente fez, não ignorando que tais bens não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
xiv. Em virtude da conduta da arguida, o ofendido ficou revoltado, com dificuldades em dormir e descansar, desmotivado, perdendo a vontade de viver.
xv. A arguida padece de Fibromialgia, pelo menos, desde Setembro de 2019.
xvi. Em janeiro de 2020 a arguida iniciou tratamentos para a Fibromialgia.
xvii. Em 20 de Agosto de 2020, encontrando-se ambos na sua residência, o ofendido agarrou a arguida pelo braço, com o intuito de a forçar à prática de relações sexuais.
xviii. O ofendido, no dia 21 de Agosto de 2020, ausentou-se de casa durante a parte da manhã, tendo regressado por volta das 23h30.
xix. A arguida devolveu o computador pessoal ao ofendido.
xx. A arguida pagou, ao ofendido e em prestações, o preço respeitante ao telemóvel referido em xi.
xxi. O preço referente ao televisor mencionado em xi. foi pago, pelo ofendido e pela arguida, em partes iguais.
xxii. O aquecedor e o forno referidos em xii. foram devolvidos ao ofendido.

C. Fundamentação da Matéria de Facto
Cumpre, em obediência ao disposto no artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal e proceder ao seu exame crítico.
No que concerne à prova documental constante dos autos, valorou, desde logo, o tribunal o conteúdo do auto de violência doméstica (fls 6), por meio do qual foi possível efectuar o enquadramento espácio-temporal dos factos ocorridos em 22-08-2020.
Por sua vez, do conteúdo dos assentos de nascimento do demandante civil/ofendido e da arguida (fls 36 e ss) extraíram-se alguns elementos respeitantes à identificação e filiação daqueles.
Devidamente consideradas foram, igualmente, a 2ª via de factura n.º ..., (fls 104 e 141), referente à aquisição de um telemóvel, marca Iphone, modelo ..., e de uma capa Protect QILIVE, a cópia de requisição de produto n.º ... (fls 107 e 143) acompanhado das condições gerais de compra e venda e contratação, referente a uma televisão, marca TLC (acrescido de seguro) e, ainda, a factura ... (fls 111 e 145), no montante total de 1.027,88€ (mil e vinte e sete euros e oitenta e oito cêntimos).
Por sua vez, a informação constante de fls 112 e 146 (W…), e as fotos de fls. 170 e seguintes não foram objecto de qualquer valoração no que diz respeito ao apuramento da factualidade em apreciação. Na verdade, enquanto que a informação referida em fls 112 é absolutamente desprovida de conteúdo útil, das fotos mencionadas não é possível estabelecer qualquer nexo de ligação com os factos em discussão, nem sequer aferir se o sujeito nelas retratado é, efectivamente, o ofendido.
No mesmo sentido, também o documento constante de fls 265, referente a uma alegada declaração médica atestando que a arguida padece de fibromialgia não foi objecto de valoração, dado que o mesmo não se encontra subscrito por qualquer médico ou técnico especializado.
Quanto à prova pericial, foi valorado o relatório da perícia de avaliação do dano corporal, elaborado pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Baixo Vouga (fls 45 e ss) do qual foi possível extrair a natureza e características das lesões apresentadas pelo ofendido à data, a sua relação com os factos sob apreciação e respectivas consequências.
No que concerne à prova constituída durante a audiência de julgamento é, desde logo, de notar que a arguida, em sede de declarações, nos termos do 343º, n.º 2 do Código de Processo Penal, apresentou uma versão completamente oposta à constante da acusação pública, colocando-se, a si, na posição de vítima e o ofendido na posição do agressor. Não obstante, o conteúdo das suas declarações e as incoerências dele emergentes colocaram em causa, no essencial, a credibilidade das mesmas.
É, na verdade, impossível considerar como verdadeira uma versão dos factos em que a arguida se coloca à margem de qualquer tentativa de controlo sobre o ofendido, quando é a própria arguida que assume ter tido acesso, por mais que uma vez, por sua iniciativa e sem consentimento do ofendido, ao conteúdo das mensagens por este recebidas no seu telemóvel.
Este comportamento – associado, usualmente, a sentimentos de ciúme – é, de acordo com as regras da experiência comum, incompatível com a postura de serenidade e calma que a arguida pretendeu fazer passar sobre si própria, em relação ao ofendido.
No mesmo sentido, também a afirmação de que o ofendido, por mais que uma vez, investiu sobre a arguida, com vista à consumação de actos de natureza sexual não consentidos, não mereceu a credibilidade do tribunal, atentas as incongruências detectadas.
Na realidade, é incompatível com tais alegações o comportamento da arguida quando foi abordada pelas autoridades em 22-08-2020, negando-lhes a entrada na sua residência, no preciso momento em que lhe era concedida a oportunidade de, sozinha e sem a presença do suposto agressor, denunciar hipotéticos actos de violência perpetrados sobre si. Ainda que afirmando que não o fez por vergonha de ser vista com escoriações no corpo, tal não é suficiente para conferir credibilidade às suas declarações, já que eram precisamente as alegadas escoriações que lhe permitiriam sustentar a sua versão e, como tal, obter das autoridades o necessário e imediato apoio.
Ademais, diga-se, que caso tal versão correspondesse à realidade, seria absolutamente incompreensível que o ofendido, correndo o risco de lhe ver imputadas condutas típicas de agressão física ou sexual, ainda assim tomasse a iniciativa de chamar a Guarda Nacional Republicana ao local, submetendo-se a uma possível denúncia pela prática de factos ilícitos.
A apreciação global das declarações da arguida permite, assim, concluir que as mesmas assentaram numa narrativa por esta fabricada, no essencial sem correspondência com a realidade e com o estrito propósito de lançar sobre o tribunal a sombra da dúvida, procurando, por meio da referida narrativa, afectar a credibilidade, quer do ofendido, quer de testemunhas cuja pertinência para o apuramento da verdade a arguida tinha pleno conhecimento, atenta a sua intervenção nos factos sob apreciação (concretamente, CC).
Por tudo o exposto, concluiu o tribunal que as declarações da arguida são desprovidas de credibilidade, em nada contribuindo para a descoberta da verdade material.
Já o ofendido/demandante civil apresentou um depoimento detalhado, circunstanciado, espontâneo e coerente, relatando, com naturalidade e consistência, os termos por que se pautou a sua relação com a arguida. Descreveu, com pormenor, a sucessão de eventos que se encontram subjacentes ao presente processo, relacionando-os entre si e fazendo o respectivo enquadramento, explanando a actuação da arguida, os motivos e o conteúdo das altercações ocorridas entre ambos e quais as suas consequências.
Merecedora de destaque é, ainda, a sinceridade com o que o ofendido se propôs a esclarecer o tribunal, principalmente no que toca àquilo que o mantinha ligado à relação amorosa com a arguida e que levou ao reatamento da mesma, após um primeiro período de separação.
O detalhe e consistência do depoimento do ofendido contribuíram para a sua credibilidade global, tendo o mesmo ocupado um lugar de relevo naquilo que foi a formação da convicção do tribunal quanto à factualidade em apreciação.
Por sua vez, a testemunha CC apresentou uma versão consistente e circunstanciada sobre os factos que percepcionou directamente, descrevendo, com detalhe, os termos da sua relação com o ofendido e com a arguida, bem como os episódios que presenciou, quer quanto à conduta da arguida, quer quanto à reacção do ofendido perante a mesma.
A espontaneidade do depoimento de CC e a circunstância de o mesmo se encontrar sustentado por outros elementos de prova (como é o caso do auto de notícia e o depoimento de outras testemunhas), concorreram para que o mesmo haja merecido a credibilidade do tribunal.
Enquanto mãe do ofendido, a testemunha DD apresentou uma versão emocionada e necessariamente parcial, com um detalhe e conteúdo que se afigurou excessivo perante aquilo que foram os factos directamente percepcionados por si (o que demonstra que parte do seu depoimento assentou no que lhe terá sido dito pelo ofendido).
Não obstante, a testemunha, com espontaneidade, incluiu no seu depoimento alguns pormenores que, sendo laterais aos episódios em apreciação, corroboraram a versão do ofendido, contribuindo para aquele que foi o juízo de credibilidade acima descrito.
Quanto a EE, companheira de CC, apresentou um depoimento essencialmente assente no que presenciou de forma directa e pessoal, tendo a sua versão sido, no global, coincidente os depoimentos do ofendido e de CC.
Ainda que pouco preciso em termos de enquadramento temporal, o depoimento da testemunha apresentou-se espontâneo e sustentado noutros elementos de prova, pelo que se assomou relevante para a compreensão dos factos em apreciação.
Enquanto prima da arguida, a testemunha HH apresentou uma versão comprometida, com um enquadramento temporal desajustado em relação aos factos em discussão e reveladora de um absoluto desconhecimento directo sobre os mesmos.
Do depoimento da testemunha resultou, assim, que o que foi por si explanado assentou essencialmente no que a arguida lhe disse, replicando uma versão que, como foi já dilucidado, não mereceu a credibilidade do tribunal.
À semelhança do que sucedeu com HH, também FF procurou carrear para o processo uma versão parcial, incongruente e, essencialmente, conclusiva, assente, quase integralmente, no que lhe foi transmitido pela arguida (facto, aliás, expressamente confirmado pela testemunha).
Por outro lado, o que a testemunha presenciou directamente (evento de 22-08-2020 e um episódio ocorrido entre o ofendido e o filho da arguida, absolutamente descontextualizado e, como tal, inapto a que dele seja retirado qualquer conclusão) ou consolida a versão das testemunhas da acusação ou, então, não assume qualquer relevância para o que se encontra, aqui, em apreciação.
Por fim, II, enquanto pai da arguida, depôs de modo emocionado e, até, exaltado - atenta a circunstância em que a filha se encontra - demonstrando desconhecer em absoluto os factos em apreciação, limitando-se a relatar episódios paralelos, que pouco (ou nada) se relacionam com os que aqui merecem a nossa atenção, pelo que em nada contribuiu para o apuramento dos mesmos.
Já quanto aos factos atinentes à condição sócio-económica da arguida e dos respectivos antecedentes criminais, teve o tribunal, em consideração as declarações da arguida, em conjugação com o relatório social presente a fls 187, a informação das bases de dados do Instituto de Segurança Social, da Conservatória de Registo Automóvel e da Conservatória de Registo Predial de Vagos (fls 245 e seguintes), bem como o certificado de registo criminal actualizado da arguida (fls 272).
Em suma, dir-se-á que a convicção do tribunal quanto aos factos atinentes ao relacionamento existente entre ofendido e arguida assentou, essencialmente, no conteúdo do depoimento por aquele prestado e corroborado quer pela prova pericial constante dos autos, quer pelos depoimentos de CC, DD e EE.
A apreciação conjugada dos referidos elementos e a inaptidão da demais prova produzida para infirmar o juízo de credibilidade acima descrito (em particular, a versão apresentada pela arguida) levaram a que, no essencial, os factos constantes da acusação pública e referentes ao modo como a arguida actuava sobre o ofendido fossem integrados no elenco de factos provados.
Por sua vez, no que concerne aos bens referidos no ponto 15 da acusação pública e 16º do pedido de indemnização civil, a convicção do tribunal teve por base a insuficiência da prova produzida, bem como as dúvidas resultantes da apreciação conjugada dos elementos probatórios. Vejamos em que termos.
Quanto ao telemóvel ..., a arguida afirmou que o mesmo foi adquirido para seu uso, o que foi confirmado pelo ofendido. Quanto aos motivos que determinaram que a compra fosse feita em nome do ofendido, as referidas versões foram, igualmente coincidentes. Por outro lado, da 2ª via da factura respeitante à aquisição do dito equipamento, resulta a compra não só do telemóvel identificado, mas também de uma capa de protecção, tendo o valor do Iphone sido liquidado por BB e o valor da capa sido pago por AA, o que consolida as versões apresentadas.
Da análise dos referidos elementos não resultou, assim, demonstrado que o telemóvel fosse, efectivamente, do ofendido, pelo que impossível se tornou incluir o facto correspectivo no leque de factos provados.
De igual modo, também a titularidade da televisão TLC não resultou apurada. Ainda que o ofendido tenha afirmado que foi ele quem assumiu o custo de aquisição do referido equipamento, a circunstância de a arguida ter alegado que a compra foi suportada por ambos, na mesma proporção, aliado à inexistência de qualquer comprovativo de pagamento (o documento constante dos autos, sendo um pedido de requisição de produto, nem sequer permite concluir que houve, efectivamente, qualquer pagamento) afigurou-se suficiente para que o tribunal ficasse com dúvidas sobre se do acervo patrimonial do ofendido faz, ou não, parte a televisão identificada na acusação particular.
Quanto ao forno e aquecedor também invocados, a parca prova produzida sobre os mesmos não permitiu retirar quaisquer conclusões.
Ao invés do que sucede com os demais equipamentos, dúvidas inexistem para o tribunal quanto aos factos atinentes ao computador portátil do ofendido. Na verdade, sendo arguida e ofendido coincidentes quanto ao facto de, efectivamente, este último ser titular de um computador portátil, as versões apenas divergem quanto ao destino dado ao mesmo.
Não obstante, atento o juízo de credibilidade efectuado relativamente a cada uma das versões, necessariamente foram, no essencial, incluídos no conjunto de factos provados os respeitantes ao referido equipamento.
Quanto ao valor comercial do referido equipamento, tomou o tribunal por base a coincidência entre as declarações do ofendido e o conteúdo da factura ... (para a qual, aquele remeteu), tendo, também, o alegado a esse respeito sido integrado no leque de factos provados.
Relativamente à condição clínica da arguida, ainda que quer esta, quer o ofendido, hajam afirmando a existência de um diagnóstico de fibromialgia, a inexistência de documentação clínica (certificada) de suporte impossibilita que os factos correspondentes possam ser dados como provados.
Impõe-se não olvidar que o diagnóstico de fibromialgia carece de apreciação técnica especializada, não podendo o tribunal firmar a sua convicção com base em declarações/depoimentos sem suporte documental técnico, nem, muito menos, em supostos relatórios clínicos sem evidência de subscrição médica.
Mas ainda que a arguida padeça de Fibromialgia, tal diagnóstico não obstou a que a arguida praticasse, efectivamente e no essencial, os factos submetidos a apreciação judicial.
Note-se que nenhuma prova – cabal – foi produzida, no sentido de estarmos perante um diagnóstico incapacitante, no que à arguida (e aos correspectivos actos da vida corrente) diz respeito e à impossibilidade de esta fazer a sua vida quotidiana normal.
Diga-se, aliás, que a Fibromialgia não é, necessariamente, uma doença incapacitante, caracterizando-se, antes, por uma diversidade de sintomas, em diferentes graus de gravidade e oscilando entre estados mais e menos favoráveis, que, no geral, permitem a prossecução de uma vida diária normal (v. a este propósito, Maria de Fátima Urzal Conde Cid Novaes, Qualidade de Vida dos Doentes com Fibromialgia, tese de mestrado, 2014, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt.; e Filipa Neves Ribeiro, Fibromialgia: o corpo, a mente e o estigma, tese de mestrado, 2016, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt.).
No que respeita aos elementos subjectivos e do foro interno da agente, recorreu o tribunal, igualmente, à análise combinada dos meios de prova já referidos, aliado às regras de experiência comum. Resultando – como resultaram – provados os factos atinentes à conduta da arguida, não restam quaisquer dúvidas – de acordo com as regras da experiência comum – que AA tinha pleno conhecimento da intensidade das expressões por si proferidas e da forma como as mesmas se poderiam reflectir na esfera jurídica do ofendido.
A natureza, número e características das investidas de carácter físico sobre o ofendido, permitem, também, concluir que a arguida tinha absoluta noção sobre qual o seu impacto na saúde física e mental do ofendido.
De igual forma, o modo como a arguida arremessou o computador portátil, aliado ao contexto em que tal ocorreu, permitem extrair que aquela não só tinha noção de que tal equipamento pertencia ao ofendido, como pretendeu, efectivamente, inutilizá-lo.
Resultou, assim, evidente que a arguida tinha pleno conhecimento do carácter antijurídico da sua conduta, a qual é reveladora da natureza livre e consciente de tais comportamentos.
Por fim, quanto aos factos não provados, os mesmos são o resultado da ausência de prova que permita efectuar um juízo inverso relativamente aos mesmos, bem como da insuficiência da prova produzida no que a tais factos diz respeito.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a arguida e recorrente alegar que a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo ela ser absolvida da prática do crime de violência doméstica por que foi condenada. Alega que os depoimentos do arguido e das testemunhas CC DD e EE, em que se baseou a sentença recorrida, não merecem credibilidade, por serem incoerentes, sendo, pelo contrário, os seus próprios depoimentos coerentes e sem alterações desde o início do inquérito até ao final do julgamento. Alega também que a sentença recorrida não considerou, como devia ter considerado, o depoimento da testemunha FF, que se revelou credível e imparcial. Alega também que deveria ter sido considerado provado que ela sofre de fibromialgia, pois isso afirmaram as testemunhas, e até o ofendido. Alega, ainda, que foi violado o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por terem sido considerados provados factos que não resultam da prova produzida em julgamento.
Vejamos.
Estamos perante a impugnação da decisão sobre a prova, nos termos do artigo 412.º, n. 3, do Código de Processo Penal.
A respeito dessa impugnação, há que referir, em primeiro lugar, que a recorrente não satisfaz cabalmente a exigência decorrente do n.º 4 desse artigo 412.º.
De qualquer modo, também deve dizer-se o seguinte:
Como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 024324, relatado por. Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Ora, toda a argumentação da recorrente se foca na maior, ou menor, credibilidade e coerência dos seus depoimentos em confronto com os do ofendido, assim como dos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE em confronto com o depoimento da testemunha FF. Aferir dessa maior ou menor credibilidade é algo que depende essencialmente de fatores ligados à imediação, de que nesta sede estamos privados. Nem as alegadas contradições dos mencionados depoimentos (que podem ter a sua explicação e não são necessariamente motivo de descredibilização) permitem prescindir desses fatores
Quanto à prova de que a arguida e recorrente sofre de fibromialgia, não merece reparo que a sentença recorrida tenha considerado que tal facto (de resto, irrelevante na perspetiva da prova dos factos a ela imputados, pelas razões também expostas nessa sentença), devesse ser provado por documento subscrito por médico.
Quanto à invocada pela arguida e recorrente, suposta violação do disposto no artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por terem sido considerados provados factos que não resultam da prova produzida em julgamento, não indica ela a que factos se refere, nem tal se vislumbra.
Assim, deve ser negado provimento ao recurso quanto a estes aspetos.

IV 2. –
Vem a arguida e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática do crime de violência doméstica por que ela foi condenada, pois a sua conduta não é reveladora de especial gravidade ou crueldade, nem de uma “submissão existencial” a que o ofendido estivesse sujeito, e essa conduta não provocou lesões da saúde deste de modo incompatível com a dignidade humana. Alega também que a sentença recorrida considerou, indevidamente, factos genéricos e vagos, sem indicação de tempo, local e modo de cometimento do crime.
Vejamos.
Há que considerar, antes de mais, o seguinte.
É entendimento uniforme da jurisprudência que as imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram poderão inviabilizar um efetivo direito de defesa, devendo, por isso, ser consideradas não escritas (ver, por exemplo, os acórdãos deste Relação de 17 de junho de 2105, proc. n.º 845/13.1GBAMT. P1, relatado por Alves Duarte, e de 30 de setembro de 2015, proc. n.º 775/13.7GDGDM.P1, relatado por Maria Luísa Arantes, ambos in www.dgsi.pt). É certo que, pelas naturais dificuldades de situar no tempo condutas passadas e recorrentes, alguma imprecisão a esse respeito poderá ser admissível (ver, por exemplo, o acórdão desta Relação de 16 de março de 2022, processo n.º 613/20.4PDVNG.P1, relatado por Nuno Pires Salpico, in www.dgsi.pt), mas essa imprecisão não pode chegar ao ponto de tornar impossível qualquer defesa.
E é isso que se verifica no caso em apreço quanto ao que se descreve nos pontos 3 («Durante o período de relacionamento entre ambos, a arguida visualizava os registos do telemóvel do ofendido e exigia-lhe esclarecimentos sobre o seu dia-a-dia») 5 («Por mais que uma ocasião e em número não concretamente apurado de vezes, a arguida, dirigindo-se ao ofendido, em elevado tom, apelidava-o de “porco”, “nojento”, “filho da puta”, “conas” e “cabrão”), 7 («Por mais que uma ocasião e em número não concretamente apurado de vezes, a arguida desferiu murros e pontapés no ofendido, bem como bofetadas no rosto e empurrões no corpo») e 8 («Em virtude do referido em 7., o ofendido sofreu dores e lesões físicas de gravidade e extensão não concretamente apuradas») do elenco dos factos provados constante da sentença recorrida. Estamos perante uma absoluta imprecisão quanto ao tempo e outras circunstâncias que contribuam para delimitar minimamente o objeto do processo e desse modo permitir uma cabal defesa quanto à imputação destes factos.
Considerando não escritos estes factos genéricos, restam-nos, para eventual integração no crime de violência doméstica imputado à arguida e recorrente, os factos descritos, estes de forma suficientemente precisa, nos pontos 12, 13 e 15 a 19 do elenco dos factos provados constante da sentença recorrida.
Vejamos, então.
Estatui o artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal:
«1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, coação ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime.
Esse traço distintivo dependerá da perspetiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço. É à luz dessa perspetiva que deverá ser preenchido o conceito de “maus tratos” a que alude o citado artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), Novembro de 2010, p. 49).
A atual definição do tipo de crime de violência doméstica, superando a controvérsia gerada no âmbito da redação anterior do Código Penal, não supõe necessariamente uma prática reiterada. Pode um ato isolado, pela sua particular intensidade e gravidade, integrar, por si só, a prática desse crime.
Ora, os factos a que nos deveremos ater para eventual integração na prática do crime de violência doméstica ora em apreço (no que ao elemento objetivo diz respeito, os descritos nos pontos 12, 13 e 15 a 19 do elenco dos factos provados) não configuram uma prática reiterada e também não se revestem, por si, de particular gravidade e intensidade. Não se revestem de uma intensidade e gravidade capazes de afetar a dignidade pessoal da vítima, a sua saúde física ou psíquica ou o livre desenvolvimento da sua personalidade. Não pode dizer-se que as consequências resultantes dessa conduta sejam, por si só, relevantes nessa perspetiva.
Estamos, antes, perante crimes de injúrias. p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, e de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º1, do mesmo Código. Tais crimes estão numa relação de especialidade (como um “minus”) com o crime de violência doméstica, pelo que não haveria obstáculo, na perspetiva das exigências do princípio acusatório e das garantias de defesa do arguido, à eventual condenação da arguida pela prática desses crimes.
Há que analisar, porém, se estão reunidos os pressupostos processuais relativos a tais crimes.
No que aos crimes de injúrias diz respeito, o procedimento criminal depende de acusação particular (ver artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal). Tendo o arguido sido acusado pela prática de crime de violência doméstica (nesta se incluindo a prática de crimes de injúrias), foi deduzida acusação pública e não poderia, certamente, ter sido deduzida acusação particular. Não pode, porém, e por esse motivo, ser dispensado o referido pressuposto processual. Deve entender-se que esse pressuposto processual se verifica se o ofendido se constituir assistente e acompanhar a acusação pública (pela prática de um crime público onde se integra o crime de injúrias). Esse acompanhamento equivale, substancialmente e para este efeito, à dedução de acusação particular (ver, neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 21 de março de 2022, proc. nº 704/20.1GAVNF.G1, relatado por Paulo Serafim, e o acórdão desta Relação de 13 de janeiro de 2021, proc. n.º 799/18.8GBVNF.P1, relatado pelo também agora relator, ambos in www.dgsi.pt).
Uma vez que o ofendido não se constituiu assistente e não acompanhou a acusação pública, não pode a arguida e recorrente ser condenada pela prática dos referidos crimes de injúrias, por falta de legitimidade do Ministério Público para, desacompanhado, deduzir acusação pela prática desses crimes
No que diz respeito aos crimes de ofensas à integridade física simples, o procedimento criminal depende de queixa (artigo 143.º, n.º 2, do Código Penal). Esta deverá ser exercida, sob pena de extinção do direito respetivo, no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e de quem foram os seus autores (artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal).
No que se refere aos factos descritos nos pontos 12, 13 e 15 do elenco dos factos provados constante da sentença recorrida, não foi deduzida queixa nesse prazo, pelo que ao Ministério Público falece legitimidade para deduzir acusação pela prática do crime de ofensa à integridade física em questão.
Já o mesmo não sucede quanto aos factos descritos nos pontos 16 a 19 (estes relativos ao elemento objetivo) e 25 (este relativo ao elemento subjetivo e no que tange a esses factos objetivos). Do auto de notícia que deu origem ao presente processo, datado de 24 de agosto de 2020, consta (ver fls. 7) que o ofendido deseja procedimento criminal quanto aos factos aí relatados (ainda de forma genérica, mas posteriormente mais especificados)
No que a estes factos diz respeito, estamos perante um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143., n.º 1, do Código Penal e por tal crime deverá a arguida e recorrente ser condenada.
Haverá que determinar, então, a pena a que, pela prática desse crime. a arguida e recorrente deverá ser condenada. E haverá que apurar também a eventual indemnização a que esta deva ser condenada também pela prática desse crime. É o que veremos de seguida.

IV 3. –
O crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até três anos ou multa (esta a fixar entre dez e trezentos e sessenta dias, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do mesmo Código).
Na escolha da pena da pena a aplicar à arguida, e determinação da respetiva medida, à luz do que dispõe, os artigos 40º. 70.º e 71.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, há que considerar a (não muito acentuada) gravidade das lesões provocadas, os laços de convivência marital, a motivação da atuação (pouco relevante como atenuante, enquanto muito desproporcionada reação a uma suposta expressão ofensiva), e a ausência de antecedentes criminais.
Entende-se, assim, adequado fixar a pena a aplicar à arguida e recorrente, pela prática deste crime, em cento e vinte dias de multa.
Na taxa diária correspondente a tal multa, à luz do que dispõe o n.º 2, do artigo 47.º do Código Penal, há que considerar a situação económica e financeira da arguida e os seus encargos pessoais. Deve tal taxa ser fixada em seis euros e cinquenta cêntimos.
A conduta da arguida fá-la incorrer em responsabilidade civil, sendo indemnizáveis os danos não patrimoniais que dessa conduta derivaram para o ofendido e demandante civil (artigos 129.º do Código Penal, 483.º, n.º 1, 496.º, n.º 1, 562.º e 563.º do Código Civil). Na fixação do montante desses danos, há que considerar a não acentuada gravidade dos mesmos. Entende-se adequado fixar tal montante em quatrocentos euros.
Nesta medida, deverá ser reduzido o montante da indemnização relativa a danos não patrimoniais a cujo pagamento foi condenada a arguido e demandada.

IV 4. –
Vem a arguida e recorrente alegar que não poderá ser condenada pela prática do crime de dano por que vinha acusada (e. consequentemente, no pedido de indemnização civil relativo a tal crime), por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar. Alega que o procedimento criminal relativo a tal crime depende, nos termos do artigo 212.º, n.º 3, do Código Penal, de queixa, a qual nunca foi apresentada, e, por ela e o ofendido viverem em condições análogas às dos cônjuges nos termos das disposições conjugadas dos artigos 212.º, n.º 4, e 207.º, n.º 1, a), do mesmo Código, depende também de acusação particular, que nunca foi deduzida.
Vejamos.
Do auto de notícia que deu origem ao presente processo, datado de 24 de agosto de 2020, consta (ver fls. 7) que o ofendido deseja procedimento criminal quanto aos factos aí relatados (ainda de forma genérica, mas posteriormente mais especificados) e entre eles conta-se a destruição do computador em apreço.
Das disposições conjugadas dos artigos 207.º, n.º 1, a), e 212.º, n.º 4, do Código Penal resulta que o procedimento criminal relativo ao crime de dano depende de acusação se o agente for cônjuge, ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao segundo grau da vítima ou com ela conviver em condições análogas às dos cônjuges.
Ao contrário do que alega o Ministério Público na resposta à motivação do recurso, não deixa de ser aplicável este preceito por o objeto do dano ser bem próprio do ofendido.
Invoca a arguida e recorrente a circunstância de ela e o ofendido viverem em condições análogas às dos cônjuges no momento da prática do dano.
Não é assim, porém.
Como resulta da redação dos pontos 20, 21 e 22 do elenco dos factos provados constante da sentença recorrida, a prática do dano ocorre no dia em que a arguida recusou ao ofendido a entrada na casa onde ambos até então viviam e a partir dessa altura nunca mais este aí voltou. Impõe-se, por isso, reconhecer que no momento da prática do dano já tinha cessado a convivência marital entre o ofendido e a arguida. Aliás, já da acusação constava que a destruição do computador em apreço ocorreu após a separação entre a arguida e o ofendido.
Por isso, não se verifica a previsão das referidas disposições conjugadas dos artigos 207.º, n.º 1, a), e 212.º, n.º 4, do Código Penal. Estamos perante um crime de natureza semi-pública, e não perante um crime de natureza particular.
Ao Ministério Público não falece legitimidade para deduzir acusação pela prática do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal.
Deverá ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto, mantendo-se a condenação da arguida e recorrente pela prática do crime de dano por que foi condenada e a sua condenação no pagamento da indemnização relativos ao dano patrimonial decorrente dessa prática.

IV.5 –
Há que proceder ao cumulo jurídico entre a pena de multa em que a arguida e recorrente foi condenada pela prática do crime de dano p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal (cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos), e a pena de multa em que ela vai agora condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, nº 1, do mesmo Código (também cento e vinte dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos).
À luz do que dispõe o artigo 77.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, considerando que se trata da prática de dois crimes numa mesma e única ocasião, entende-se adequado fixar tal pena em cento e oitenta dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, concedendo provimento parcial ao recurso, em:
- absolver a arguida e recorrente da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, b), n.º 2, a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, por que foi condenada;
- condenar a arguida e recorrente pela prática, em 20 de agosto de 2020, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cento e vinte (120) dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos (6,50€), o que perfaz a multa global de setecentos e oitenta euros (780€), a que correspondem oitenta (80) dias de prisão subsidiária;
- reduzir para quatrocentos euros (400€), acrescidos dos juros legais, o montante da indemnização relativa a danos não patrimoniais a cujo pagamento foi a arguida condenada;
-manter a condenação da arguida pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, e no pagamento da indemnização do dano patrimonial decorrente da prática desse crime;
- operando o cúmulo jurídico das penas relativas aos referidos crimes de dano e de ofensa à integridade física simples, condenar a arguida e recorrente em cento e oitenta (180) dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos (6,50€), o que perfaz a multa global de mil, cento e setenta euros (1170€), a que correspondem cento e vinte dias (120) dias de prisão subsidiária.

Notifique.

Porto, 11/5/2022
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Francisco Marcolino