Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2525/13.9T2AVR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PARTILHA POR DIVÓRCIO
ALIENAÇÃO DO PATRIMÓNIO DO DEVEDOR EM FAVOR DO EX-CÔNJUGE
Nº do Documento: RP201511242525/13.9T2AVR-B.P1
Data do Acordão: 11/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A insolvência de uma pessoa singular deve sempre ser qualificada como culposa quando se identifica qualquer acto praticado pelo próprio devedor que seja subsumível a uma das als. do nº 2 do art. 186º do CIRE.
II– É subsumível à al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE a actuação de um devedor que aliena o seu património pessoal em favor do seu ex-cônjuge, numa partilha por divórcio, sem benefícios proporcionais ou contrapartidas, esvaziando-o de tal forma que, quando chamado a responder por tais obrigações, nada tem que propicie a sua satisfação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2525/13.9T2AVR-B.P1
Comarca de Aveiro – Tribunal de Aveiro
Inst. Central - 1ª Sec.Comércio - J3
REL. N.º 286
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Tomé Ramião
Vitor Amaral
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

Por apenso ao processo em que B… foi declarada insolvente, o credor C…, SA, veio deduzir o incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno, entendendo dever ser a mesma qualificada como culposa, por incumprimento do dever de apresentação à insolvência e por dissipação de património.
Declarado aberto o incidente, a Administradora da Insolvência e o Ministério Público pronunciaram-se no mesmo sentido.
Citada, a interessada deduziu oposição, contestando quer a omissão do dever de apresentação à insolvência, quer a intenção de ocultar/dissipar património afecto à satisfação dos interesses dos seus credores e, concretamente, da credora Requerente do incidente. Concluiu que a sua insolvência deve ser qualificada como fortuita.
Saneados os autos, e fixados o objecto do litígio e os temas de prova, foi realizado julgamento. Subsequentemente, foi produzida sentença onde foi fixada a matéria de facto provada e se conclui dever ser qualificada como culposa a insolvência em questão.
É dessa decisão que a insolvente vem interpor recurso, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à respectiva qualificação.
Formulou, nesse acto, as seguintes conclusões:
1º O presente recurso vem interposto interposto da sentença proferida no Incidente de Qualificação da Insolvência (CIRE), supra melhor identificado, que decidiu qualificar a insolvência da Requerida B… como culposa, decretando a inibição desta para o exercício do comércio, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela própria e condenando-a a restituir os bens, bem como a indemnizar os credores.
2º Salvo o devido respeito, a decisão recorrida assenta em erros de julgamento, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à aplicação do Direito aos factos e, dai, justificar-se o presente recurso.
3º A sentença em recurso dá como provados os factos que enumera como itens 1 a 26.
4º A sentença em recurso omite factos de crucial relevância que resultaram demonstrados na audiência de julgamento, os quais deveriam ter sido dados como provados, face à prova documental e testemunhal produzida nos autos e à concatenação com a demais matéria tida como provada, concretamente, os itens 3. a 5. do que considera factos não provados.
5º Os referidos itens 3 a 5 devem ser acrescentados na enumeração dos factos provados, seguindo a ordem sequencial respectiva, com os nºs 27, 28 e 29.
6º Os referidos itens 3 a 5 resultam provados da conjugação dos depoimentos das testemunhas D…, E… e F…, os quais corroboram e esclarecem as declarações prestadas pela Recorrente.
7º Os depoimentos das testemunhas D… e E…, proferidos com isenção, objectividade e conhecimento directo (e que o Tribunal considerou como credíveis para fazer prova de alguns dos factos que julgou provados) confirmam que a doação do imóvel, efectuada em 23/03/2009, teve como fundamento a ruptura entre os ex-cônjuges, e não qualquer combinação entre os mesmos para dissipar património.
8º Os referidos depoimentos confirmam, igualmente, que a ruptura verificada originou uma exigência do ex-marido para concordar com o divórcio por mútuo consentimento traduzida na doação aos filhos da propriedade do referido imóvel.
9º O processo de partilha de bens subsequente ao divórcio da Recorrente e do ex-marido foi um processo demorado e difícil, por força da relação tensa existente, prolongando-se por mais de três anos, tendo tido o seu início com a escritura de doação, celebrada em 23/03/2009, e o seu termo com a escritura de partilha, celebrada em 30/04/2012.
10º Este prazo de mais de três anos em que o património do ex-casal esteve parcialmente partilhado (dado que a fracção autónoma G e as acções da G… apenas foram partilhadas em 2012) demonstra que não existiu qualquer intenção de sonegação ou dissipação de património.
11º Durante este mesmo período (mais de três anos – 2009/2012), o referido património permaneceu intocado, não sendo alvo de qualquer procedimento judicial ou outro por qualquer eventual credor.
12º O item 4 dos factos não provados está em contradição com o item 16 dos factos provados, o qual refere que a Recorrente continua a residir com os filhos na moradia referida em 10, contradição esta de carácter insanável e que não pode deixar de ser apreciada.
13º A matéria dada como provada devem ser aditados os ítens 3. a 5. dos factos não provados, os quais devem ser remunerados de 27 a 29, respectivamente:
“27. A doação do imóvel referida em 10 teve como fundamento o desentendimento entre os cônjuges após o divórcio, a dificuldade de venda dos bens imóveis e a inexistência de acordo quanto aos valores a atribuir aos bens para efeito de partilha e subsequentes tornas.
28. E teve ainda por fundamento o facto de a guarda dos menores (com 9 e 13 anos) ter sido atribuída à mãe, requerida, tendo o pai ficado a residir em Estarreja, localidade onde sempre exerceu a sua actividade profissional.
29. Foi uma exigência do ex-marido da Requerida para assinar o divórcio que o imóvel referido em 10, moradia, construída a pensar nos filhos, ficasse para estes.”
14º Em face do aditamento aos factos provados e da reponderação que tal aditamento determina, toma-se forçoso concluir pela necessidade de alterar a decisão proferida acerca da matéria de facto, no que concerne ao comportamento da Recorrente e respectivos efeitos ao nível patrimonial.
15º A decisão proferida acerca da matéria de facto deve considerar que a partilha de bens subsequente a divórcio terminada em 30/04/2012 não teve qualquer intenção de subtrair património, tendo sido uma decorrência normal do processo moroso e complexo subjacente.
16º A reformulação da decisão deve considerar, ainda, que o património restante, constituído pela fracção autónoma G e pelas acções da G… tinha um valor não só patrimonial evidente, mas também um valor pessoal para a Recorrente (que sempre acreditou na viabilidade da empresa que tinha fundado 24 anos antes), o que implica não poder atribuir-se-lhe uma conduta ilícita de sonegação patrimonial.
17º Face à reapreciação da prova produzida, verifica-se que não houve qualquer intenção da Recorrente de subtrair património, não existindo, consequentemente, qualquer conduta ilícita que possa determinar a classificação da presente insolvência como culposa, nos termos do disposto no art. 186°/2 do CIRE, devendo considerar-se a insolvência da Recorrente como fortuita.
18º A insolvência da Recorrente não pode, igualmente, considerar-se culposa, uma vez que existe uma íntima conexão entre a situação fínanceira da G… (em que a Recorrente assumiu dívidas a titulo pessoal - empréstimos, avais e outros) e a situação financeira que originou a insolvência da Recorrente, sendo que a insolvência da G… foi considerada fortuita, pelo que a insolvência da Recorrente, atenta a íntima ligação factual existente, não pode deixar de ser considerada também fortuita.
19º A decisão proferida deve ser substituída por outra que considere fortuita a insolvência da Recorrente, dando-se sem efeito a inibição decretada para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por três anos; dando-se, igualmente sem efeito a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e a condenação de restituição de bens ou direitos já recebidos; dando-se, também sem efeito a obrigação da Recorrente de indemnizar os seus credores no montante da totalidade dos créditos satisfeitos até ao limite do seu património.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado suprimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida e substituindo-a por outra que considere a insolvência da Recorrente como fortuita, nos termos e com as legais consequências, assim se fazendo inteira e sã Justiça.”
O MºPº ofereceu resposta ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Também o credor C… juntou resposta ao recurso, onde salientou a indiferença, para a solução, da comprovação da matéria apontada pela apelante, já que nela não fundou o tribunal recorrido a decisão sobre a qualificação da insolvência. Terminou concluindo também pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos do incidente e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
Assim, as questões a resolver, extraídas de tais conclusões, são as referentes à admissibilidade e eventual procedência do recurso da decisão sobre a matéria de facto e, em função da matéria que acabar por ter-se como provada, a de verificar se se identificam, no processo económico e financeiro que culminou na insolvência de B…, os elementos que o tribunal recorrido entendeu como justificativos da qualificação deste resultado como culposo.
A solução destas questões importa que se considerem os seguintes elementos, dados por provados na sentença recorrida:
1. Por sentença proferida nestes autos em 13/12/2013 e transitada em julgado em 06/01/2014, foi declarada insolvente B…, NIF ……….
2. Os presentes autos resultam de conversão do PER requerido pela agora insolvente em 08/08/2013, que correu termos nesta Secção de Comércio sob n.º 1690/13.0T2AVR, encerrado sem apresentação de plano de revitalização.
3. Em 07/06/2013 o aqui credor C…, SA, havia requerido a insolvência da devedora, dando origem aos autos n.º 1260/13.2T2AVR, entretanto declarados suspensos em virtude do PER referido em 2.
4. Na contestação que deduziu à insolvência referida em 3, em 15/07/2013, a Requerida defendia a sua solvabilidade.
5. A aqui Requerida foi administradora da sociedade G…, SA, que em 04/05/2012 se apresentou à insolvência, declarada por sentença proferida em 14/05/2012, no âmbito dos autos sob n.º 930/12.7T2AVR desta secção de Comércio.
6. A deliberação social de apresentação da sociedade G…, SA à insolvência data de 24/04/2012.
7. A insolvente tem um passivo de €2.916.524,60 (dois milhões, novecentos e dezasseis mil, quinhentos e vinte e quatro euros e sessenta cêntimos), que tem origem em avais e garantias pessoais prestadas a fornecedores e instituições de crédito que contrataram com a sociedade de que era accionista e administradora, a G…, SA.
8. O crédito da aqui Requerente, reconhecido no valor de €2.089.551,66 resulta de aval prestado pela Requerida na livrança subscrita pela empresa G…, SA, para garantia de cumprimento das obrigações assumidas por esta, que veio a ser preenchida em 20/09/2012.
9. Os incumprimentos da G…, SA à C…, SA iniciaram em meados do ano de 2009.
10. Em 31/10/2008 foi decretado o divórcio da Requerida e do coavalista da livrança referida em 8, H… (cfr. doc. de fls. 46 a 49 - cópia de certidão).
11. Por escritura outorgada em 23/03/2009 a Requerida e H… doaram a favor dos filhos, I… e J…, ambos menores, o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Murtosa sob n.º 1132/19910923, inscrito na matriz sob art.º 3059, correspondente a uma moradia unifamiliar destinada a habitação, com cave, rés-do-chão e sótão, com o valor patrimonial de €153.310,00, com reserva de usufruto a favor de ambos, factos inscritos através da AP. 5855 de 2009/04/03 (cfr. doc. de fls. 50 a 54).
12. Por escritura de partilha, subsequente a divórcio, celebrada em 30/04/2012, a Requerida e o ex-marido procederam à partilha dos bens do casal, tendo sido adjudicado ao ex-cônjuge marido a fracção autónoma designada pela letra G do prédio inscrito na matriz sob artigo 3683, descrito na Conservatória de Registo Predial de Aveiro sob n.º 396, com o valor patrimonial de €174.787,30 (cento e setenta e quatro mil, setecentos e oitenta e sete euros e trinta cêntimos), levando a mais o valor de €52,294,60 (cfr. doc. de fls. 56 a 60).
13. Ao ex-cônjuge mulher, aqui Requerida, foram adjudicadas 70.198 (setenta mil, cento e noventa e oito) acções ao portador, no valor nominal de um euro cada, na sociedade anónima “G…, SA”, pessoa colectiva n.º ………, levando a menos o valor de €52,294,60 (cfr. doc. de fls. 56 a 60).
14. Na mesma escritura referida em 11. os outorgantes declararam que o valor das tornas a que segunda outorgante, a qui Requerida, tinha direito destinaram-se ao pagamento de um empréstimo concedido com dinheiro próprio do primeiro outorgante, no mesmo valor, utilizado pela segunda em despesas da sua actividade comercial, tendo a segunda dado quitação do valor de tornas e o primeiro reconheceu-se pago do mencionado empréstimo (cfr. doc. de fls. 56 a 60).
15. Com data de 7 de Novembro de 2012 a aqui Requerida e ex-marido declararam renunciar ao usufruto sobre a moradia doada aos filhos, referido em 10, sem que tal facto tenha sido registado (doc. fls 50 a 54 e de fls. 240 a 242).
16. A Requerida continua a residir, com os filhos, na moradia referida em 10, cujo empréstimo bancário, garantido por hipoteca, se encontra a ser pago.
17. Foi instaurada execução fiscal por divida de IRS referente ao exercício de 2004, contra a Requerida, no valor de €44.056,36 (quarenta e quatro mil e cinquenta e seis euros e trinta e seis cêntimos), a título de mais-valias (cfr. doc. de fls. 244 a 253).
18. Divida fiscal relativamente à qual a Requerida deduziu impugnação, prestando caução para suspender a execução, mediante o oferecimento à penhora da fracção autónoma designada pela letra “G” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na freguesia …, em Aveiro, descrito na Conservatória de Registo Predial de Aveiro sob n.º 396, e inscrito na matriz sob artigo 3.683 (cfr. doc. de fls. 244 a 253).
19. Em 2009 o valor patrimonial das instalações da G…, SA correspondia a €866.040,00 (oitocentos e sessenta e seis mil e quarenta euros), encontrando-se em divida a quantia de €373.934,00 (trezentos e setenta e três mil, novecentos e trinta e quatro euros).
20. O valor da frota automóvel da G…, SA, reportado ao ano de 2009 era de €1.289,327,00 (um milhão, duzentos e oitenta e nove mil, trezentos e vinte e sete euros), a que era dedutível o valor de €364.219,00 (trezentos e sessenta e quatro mil, duzentos e dezanove euros) de depreciações.
21. Em 2009 a G…, SA apresentou um resultado líquido positivo de €95.486,00 (noventa e cinco mil, quatrocentos e oitenta e seis euros).
22. Sobre o prédio descrito em 10 incidem duas hipotecas voluntárias a favor do Banco K…, SA, respectivamente inscritas através das Ap. 9 de 2004/12/20, pelo capital de e150.000,00 e montante máximo assegurado de €187.041,00, e Ap. 10 de 2004/12/20, pelo capital de €100.000,00 e montante máximo assegurado de €124.655,00.
23. O divórcio da Requerida teve como fundamento a violação do dever de fidelidade do marido da Requerida, que manteve durante algum tempo uma relação extra-conjugal com uma funcionária da sociedade G…, SA, empresa administrada pela Requerida.
24. A livrança referida em 8 encontra-se avalizada pelo ex-marido da Requerida, H….
25. Sobre o prédio referido em 11. incide penhora a favor da Fazenda Nacional inscrita através da Ap. 3825 de 2010/09/13, sendo a quantia exequenda de €39.440,61.
26. O prédio referido em 11. foi vendido a L…, SA, encontrando-se o registo de aquisição inscrito através da Ap. 8 de 2012/08/02 e, novamente vendido a M…, encontrando-se o registo de aquisição inscrito através da Ap. 802 de 2013/07/15 (cópia de certidão de fls. 280 ss).
Factos não Provados:
1. Em 2009 a G…, SA empregava um total de 33 pessoas; tinha uma facturação anual na ordem dos três milhões de euros e um total de responsabilidades de leasing de aproximadamente €903.000,00 (novecentos e três mil euros), sendo €530.000,00 relativos a viaturas e €370.000,00 relativos a leasing imobiliário.
2. Em 2009 a G…, SA não tinha quaisquer acções judiciais de qualquer tipo por incumprimento.
3. A doação do imóvel referida em 10 teve como fundamento o desentendimento entre os cônjuges após o divórcio, a dificuldade de venda de bens imóveis e a inexistência de acordo quanto aos valores a atribuir aos bens para efeito de partilha e subsequentes tornas.
4. E teve ainda por fundamento o facto de a guarda dos menores (com 9 e 13 anos) ter sido atribuída à mãe, Requerida, tendo o pai ficado a residir em Estarreja, localidade onde sempre exerceu a sua actividade profissional.
5. Foi uma exigência do ex-marido da Requerida para assinar o divórcio que o imóvel referido em 10, moradia construída a pensar nos filhos, ficasse para estes.*
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto impõe a observância de especiais ónus processuais, designadamente quanto à concretização dos factos indevidamente avaliados, à indicação do sentido da decisão pretendida sobre eles e dos meios de prova tendentes à alteração do juízo recorrido. É o que dispõe o nº 1 do art. 640º do CPC, nas suas 3 alíneas.
No caso em apreço, o apelante satisfez tal ónus em relação à matéria que o tribunal a quo qualificou como não provada, em termos que quer ver revertidos: os factos assim descritos sob os pontos 3º, 4º e 5º.
No respeitante aos “concretos meios probatórios” que justificam a diferente decisão, a apelante indica segmentos dos depoimentos de D…, F… e E… e as declarações da própria requerida, além de apontar a contradição entre a decisão de comprovação da matéria constante do ponto 16 dos factos provados e a decisão negativa sobre o referido ponto 4.
Podem, pois, considerar-se preenchidos os requisitos processuais da impugnação recursiva da matéria de facto, cumprindo apreciar o recurso nessa parte.
A este propósito, não deixa de ser pertinente a alegação do apelado C…, quanto à circunstância de a factualidade em questão (factos não provados sob os nºs 3 a 5, referentes à motivação do negócio de doação da moradia habitada pela família, pela requerida e marido, aos filhos do casal) não ter constituído fundamento para a decisão do tribunal sobre a qualificação da insolvência de B…. Com efeito, a sentença recorrida excluiu expressamente esse negócio das razões pelas quais concluiu pela culpa da requerida na sua insolvência. Assim, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto nessa parte quase aparece desprovida do pressuposto processual de interesse em agir.
No entanto, para prevenir uma solução que seria marcadamente formal e em atenção à circunstância de a apelante incluir esse negócio no despoletar da própria dinâmica da partilha por dissolução do casamento, partilha esta cujos termos foram premissa da decisão recorrida, não deixará de se apreciar esta questão.

A apelante não contesta a qualificação enquanto tal de toda a factualidade provada. Apenas defende a sua complementação com os factos descritos na conclusão 13ª do seu recurso, que entende deverem ser tidos por provados, contrariamente ao decidido em primeira instância.
A esse propósito, começa-se por analisar um dos argumentos que usa: refere, em suma, que, a ter-se por provado o facto descrito como tal sob o item 16º (A Requerida continua a residir, com os filhos, na moradia referida em 10, cujo empréstimo bancário, garantido por hipoteca, se encontra a ser pago), será contraditório não se dar por provado que a doação da moradia “teve ainda por fundamento o facto de a guarda dos menores (com 9 e 13 anos) ter sido atribuída à mãe, requerida, tendo o pai ficado a residir em Estarreja, localidade onde sempre exerceu a sua actividade profissional.”
Entendemos, porém, que não existe a apontada contradição: o que está em causa no facto dado por não provado é a motivação do negócio de doação da moradia, ao passo que no facto descrito sob o item 16º se dá notícia de uma mera situação de facto, desassociada de qualquer referência às respectivas causas. Não será, pois, à luz deste fundamento que se justifica qualquer alteração na decisão recorrida.
Mas a apelante refere ainda que aquele mesmo conjunto de factos, ou melhor dizendo aquele facto justificado em três diferentes ordens de razões, se deve ter por provado em função dos depoimentos das testemunhas e declarações de parte que indicou.
O que está em causa no segmento do recurso sob apreciação é, na verdade um único facto: a motivação da requerida para a outorga do negócio de doação da moradia da família, por ela e pelo ex-marido, aos filhos do casal. Essa motivação fundar-se-ia em três ordens de razões: o desentendimento entre os ex-cônjuges, a dificuldade de venda de bens imóveis e a inexistência de acordo quanto a valores; a circunstância de os menores ficarem a residir com a mãe; a vontade incontornável do pai dos menores de que a moradia ficasse para estes.
A natureza imaterial do facto em questão, traduzido na vontade psicológica da insolvente subjacente à vontade declarada para a celebração desse negócio, é um factor que tende a dificultar a sua demonstração. Na impossibilidade de esta demonstração ocorrer directamente, há-de operar-se através da revelação de sinais exteriores que claramente a facultem, por serem aptos a fazer intuir a existência daquele outro facto interior, psicológico. Tais sinais podem ser a própria exteriorização daquela vontade, de forma oral ou escrita, dirigida a outrem, podem ser constituídos por actos do sujeito ou até por factos alheios por ele determinados, mas que inequivocamente pressuponham e permitam reconhecer aquela intenção. É, portanto, esse género de sinais que teremos de procurar nos meios de prova indicados.
Analisado o depoimento de D… (a partir da transcrição junta pela apelante), verifica-se um desconhecimento sobre tal matéria. Afirmou claramente desconhecer os pormenores referentes à partilha dos bens, conhecendo apenas a circunstância de os ex-cônjuges terem passado a fazer uma vida separada.
Isso já não é assim nos depoimentos de F…, amigo da família e de E… sobrinho da requerente. Ambos prestaram um depoimento que, inicialmente, pareceu escorreito e pleno de conhecimento sobre a dinâmica da partilha, designadamente no tocante ao destino da casa da … (a moradia em questão) e razões da sua doação. Porém, quando sujeitos a contra-interrogatório, todas essas certezas e razões de ciência invocadas perderam intensidade. Na verdade, o depoimento de F… não compreende mais do que afirmações genéricas sobre a questão, acabando por permitir perceber que, de concreto e em profundidade, nada sabe. Veja-se, por exemplo, a convicção que acaba por enunciar segundo a qual a moradia lhe “ficou afecta [à insolvente] pela partilha, embora seja propriedade dos filhos” Já quanto a E…, ele acaba por revelar que o seu conhecimento lhe provém apenas do que ouvia falar lá por casa, pela sua mãe que é irmão da insolvente, (min 9’32’’), revelando-se, afinal, impreciso, pouco rigoroso e pouco credível, pelo menos quanto à matéria de que nos ocupamos.
Perante a fragilidade destes meios de prova, não será nas declarações da própria requerida que se pode sustentar a convicção do tribunal sobre uma tese que é, ab initio a sua, e em relação à qual o mínimo que se esperava era que a reproduzisse, quando chamada a prestar tais declarações. Estas não incluíram nenhum elemento que as dotasse de especial credibilidade. Não é, pois, nas declarações da própria, que se encontra sustento para a tese que defendeu.
Mas a isto acresce um outro elemento fáctico que não só não permite sustentar a tese da apelante, como até a desabona. Segundo tal tese, e tal como referiam as testemunhas F… e E…, após o divórcio da requerida, a doação da casa aos filhos teria sido exigência do ex-marido, pai dos menores, pois ela fora construída a pensar neles e sempre fora intenção do casal que a casa ficasse para eles. Porém, depois de a doação ter ocorrido, com reserva de usufruto a favor de ambos os doadores, em 2009, estes vieram a renunciar a esse usufruto, em 7/11/2012, depois de a moradia ter sido vendida a uma imobiliária, em Agosto de 2012. Estava assim a moradia livre de tal ónus, quando veio a ser (re)adquirida pelo próprio pai dos menores, em 15/7/2013. Assim se culminou uma sequência de actos que em tudo se afastou daquele anunciado objectivo, isto é, que a moradia construída a pensar nos filhos ficasse para estes. Na realidade, a moradia acabou foi por ingressar na propriedade exclusiva do ex-marido da requerente, desaparecendo, na proporção devida, do património desta mas não permanecendo na propriedade dos filhos do casal, como, na tese da apelante, havia sido objectivo de ambos. Como acreditar, então, nesse objectivo e na vocação do negócio de doação para o servir? Não pode, assim, aceitar-se tal tese.
Por todo o exposto, nenhum fundamento se encontra para alterar o decidido pelo tribunal a quo, sobre a matéria de facto. Manter-se-á, pois, essa decisão nos seus precisos termos, improcedendo nessa parte a pretensão da apelante.
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Em qualquer caso, como se referiu anteriormente e o apelado C… assinalou em sede própria, a sentença recorrida desvalorizara, como premissa da sua conclusão, a ocorrência dessa doação, por esta ter tido lugar mais de três anos antes da insolvência da requerida. Fundou nos próprios termos da partilha subsequente ao divórcio da insolvente o preenchimento dos pressupostos da al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, e a subsequente conclusão pela qualificação da insolvência em causa como culposa.
Mesmo admitindo que se desse por alterada a decisão recorrida sobre a matéria de facto, tal como pretendido pela apelante, e se estabelecesse uma relação de complementaridade entre o negócio da doação da moradia e o conteúdo da partilha por divórcio ulteriormente celebrada entre a requerida e seu ex-marido, nem por isso se alteraria o desequilíbrio que desta sobreveio para os intervenientes e que o tribunal valorou, subsumindo-o à norma referida. Com efeito, tal negócio, mesmo a ter-se por processado nos termos e com o sentido defendido pela requerida (o que não se concede e só se admite neste exercício especulativo) não alteraria a economia do acordo de partilha que se apurou e que o tribunal avaliou. Assim, não poderia deixar de ser levado em conta o facto de o único bem imóvel que existia (uma fracção autónoma num prédio descrito em Aveiro) ter sido adjudicado ao ex marido da requerida, ao passo que para esta ficaram as acções representativas do capital de uma empresa que – sem prejuízo do valor afectivo que pudesse representar para a requerida, sua administradora – estava destinada à insolvência, conforme deliberação da administração de 24/4/2012, cumprida a 4/5/2012 e com sentença de 14/5/2012. De resto, tudo se precipitou nessas semanas, pois que a partilha que estaria a ser demorada pelas negociações entre os ex-cônjuges (como afirma a apelante), acabou por se concretizar em 30/4/2012. Mas desta, para a requerida, ora insolvente, nada se aproveitou, pois que mesmo as tornas que lhe caberiam foram deixadas em pagamento de um ou mais empréstimos que o ex-marido lhe fizera, mas que nestes autos não se mostram caracterizados, justificados ou titulados.
A este propósito, restará afirmar que a alegação que a insolvente desenvolve no seu recurso de apelação, sobre o valor dos activos da G…, cujas acções lhe couberam nessa partilha, de forma alguma se mostra sustentada na decisão sobre a matéria de facto que, a esse respeito, não vem impugnada.
Por outro lado, e porquanto a apelante o invoca, sempre cumprirá rejeitar a sua asserção de que, por a insolvência da G… ter sido qualificada como fortuita, também o deveria ser a insolvência da ora recorrente, que foi sua administradora, atenta a conexão entre ambas as situações. Com efeito, a qualificação da insolvência da ora apelante resultou da demonstração de pressupostos subsumíveis à al d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, consubstanciados pela forma como a mesma ficou desprovida de património, que dispôs a favor de outrem através da partilha subsequente ao seu divórcio, com o que prejudicou a satisfação dos créditos por que era responsável, em qualquer grau. Ora a esta conclusão do tribunal a quo não só é alheia, como só pode ser indiferente o elenco das causas que motivaram a insolvência da G… e a sua aparente irrelevância para a respectiva qualificação como culposa.
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Perante a factualidade adquirida, não vem propriamente impugnada a solução decretada pelo tribunal a quo. A apelante só a critica por entender que, em virtude da relevância de outros factos, nenhuma conduta sua poderia relevar em termos que justificassem essa sentença.
Porém, a decisão recorrida, quer no seu segmento de fixação da matéria de facto, quer na operação subsequente de qualificação jurídica dos factos apurados, não merece qualquer crítica.
Dispõe o art. 185º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
Por sua vez, o art. 186º estabelece:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No caso, sendo a insolvente uma pessoa singular, encontrava-se excluído o dever da sua apresentação à insolvência, nos termos do nº 2 do art. 18º do CIRE.
Assim, a nada aproveitam as regras deste nº 3.
Essa circunstância, isto é, ser a insolvente uma pessoa singular, não prejudica, no entanto, que a sua insolvência deva ser qualificada como culposa, sendo caso disso, atento o disposto no nº 4 do citado art. 186º. Para o efeito, servirão de premissa as previsões do nº 2 desta mesma norma, desde que a tal se não oponha a diversidade das situações.
Nestes termos, segundo o ali previsto, factos há que fazem surgir um tal juízo de culpa. Aliás, da verificação de qualquer dos factos inscritos nesse nº 2 desta norma, a lei faz presumir, de forma inilidível (iures et de iure) quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Esse é, como unanimemente se lhe reconhece, o sentido conferido à norma pela expressão “sempre” que a integra (neste sentido Luís Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2012, em anotação ao preceito; e por exemplo, Ac. do TRP, de 4/6/2012, proc. nº 3063/10.7TBVFR-B.P1, in www.dgsi.pt).
Entre esses factos, e por entender relevarem para o caso em análise, destacou o tribunal a quo ter a devedora, ora insolvente, “d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;”.
A previsão constante desta al. d), num caso de insolvência de pessoa singular, dirige-se a situações em que o devedor dispõe do seu património de forma a obter uma vantagem pessoal ou para terceiros concomitantemente com o prejuízo dos credores que nele tinham um meio tendente à satisfação dos seus créditos.
No caso, foi o que aconteceu com o negócio de partilha outorgado em 30/4/2012. Através do actos descrito supra, verifica-se que a devedora fez transferir para terceiro (o marido de quem se divorciara) o único bem que lhe pertencia, pelo menos em meação, trocando-o pela declarada satisfação de um crédito que não se conhece que existisse e pelas acções de uma empresa claramente insolvente, como foi sentenciado dias depois, obviando a que qualquer bem ou dinheiro permanecesse no seu património e pudesse vir a responder por obrigações suas, nomeadamente as que assumira enquanto garante dessa empresa
Neste cenário, em plena concordância com o tribunal a quo, não temos dúvida em subsumir a actuação da insolvente ao disposto na al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. O benefício que resultou para o ex-marido da insolvente dos termos da partilha celebrada com esta foi um correspondente prejuízo para os credores, que se viram privados do referido património para, através dele, satisfazerem os seus créditos.
Acresce que tal partilha foi praticada dentro do triénio anterior à insolvência da devedora, relevando por preenchimento do pressuposto cronológico constante do nº 1 do art. 186º do CIRE.
O preenchimento de todos os pressupostos considerados torna inelutável a qualificação da presente insolvência como culposa, tal como ajuizou o tribunal recorrido.
No tocante aos efeitos prescritos pelo tribunal a quo para a qualificação do insolvente como culposa, nada vem requerido pela apelante. Assim, nada há mais a decidir.
Restará, nestes termos, confirmar a respectiva decisão, na improcedência do presente recurso.
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Em conclusão, (art. 663º, nº 7 do CPC):
1 - A insolvência de uma pessoa singular deve sempre ser qualificada como culposa quando se identifica qualquer acto praticado pelo próprio devedor que seja subsumível a uma das als. do nº 2 do art. 186º do CIRE.
2 – É subsumível à al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE a actuação de um devedor que aliena o seu património pessoal em favor do seu ex-cônjuge, numa partilha por divórcio, sem benefícios proporcionais ou contrapartidas, esvaziando-o de tal forma que, quando chamado a responder por tais obrigações, nada tem que propicie a sua satisfação.

3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando integralmente a douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Porto, 24/11/2015
Rui Moreira
Tomé Ramião
Vitor Amaral