Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
803/14.9JABRG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: PERDA DE OBJECTOS A FAVOR DO ESTADO
RESTITUIÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
SENTENÇA
Nº do Documento: RP20170308803/14.9JABRG.P2
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º11/2017, FLS.131-136)
Área Temática: .
Sumário: Transitada em julgado a sentença e nela não se tendo decidido o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos nos autos, de detenção licita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º2 CPP, não sendo possível determinar, por despacho posterior à sentença, o perdimento de tais objectos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 803/14.9JABRG.P2

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 803/14.9JABRG - a correr termos na Secção Criminal (J1), da Instância Local de Felgueiras, Comarca do Porto Este - por sentença proferida em 29.01.2016, transitada em julgado [após a prolação de Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto que negou provimento ao recurso interposto pelo arguido], o arguido foi condenado, além do mais, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, nºs 1, alínea b), 2, 4 e 5 do Código Penal, na pena (principal) de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante sujeição a regras de conduta, e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida C…. Mais foi determinado a remessa do boletins à D.S.I.C., após trânsito [cfr. fls. 357 a 382 e 491 a 529].
2. Na mencionada sentença de 29.01.2016, o Tribunal de primeira instância nada disse, não se pronunciou por qualquer forma, sobre o destino dos bens apreendidos nos autos [e, por conseguinte, este tema não foi objecto do recurso interposto pelo arguido e o Tribunal da Relação do Porto, em 15.06.2016, nesse conspecto, também não emitiu pronúncia].
3. Por requerimento de fls. 410 e 411 (renovado a 539), invocando deles necessitar para trabalhar e não se justificar a manutenção da sua apreensão, veio o arguido requer nos termos do artº 186 nº 1 do C.P.P. a restituição dos objectos apreendidos e melhor identificados nos autos (a saber: um computador portátil, acompanhado do respectivo carregador e mala de acondicionamento; um telemóvel; e 2 pen drive).
E por requerimento de fls. 540, alegando ser vigilante, ter um filho menor a quem paga pensão alimentícia e precisar de trabalhar, veio requerer a não transcrição da respectiva sentença no certificado de registo criminal.

4. Na sequência de promoção do Ministério Público no sentido do indeferimento dos dois requerimentos, o Sr. Juiz a quo, no dia 21.11.2016 proferiu o seguinte despacho (transcrição):
“A fls. 410 e ss., veio o arguido B…, requerer a restituição dos objectos ali melhor identificados e apreendidos, nos termos do art. 186°, nº1 do C.P.P., uma vez que não só tais objectos não foram declarados perdidos a favor do estado, como necessita dos mesmos para trabalhar.
O Ministério Público, a fls. 415, veio reafirmar o vertido em sede de alegações, ou seja, a declaração de perda dos mesmos a favor do estado, e por entender que os mesmos serviram para a prática de um facto ilícito típico, nos termos do art. 109°, nº 3 do C.P., uma vez que o envio das SMS foi feito através do aparelho de telemóvel apreendido nos autos e no interior do PC e das "pens" estão os filmes de carácter sexual do arguido e da assistente, que o mesmo através das SMS, ameaçava publicar na internet, contra a vontade da assistente. Assim, renovou a promoção de perda dos referidos objectos a favor do Estado.
Após o Trânsito em julgado da sentença, cumpre Apreciar e Decidir:
O art. 109° do Código Penal, estipula que:
"I - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
3 - Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos anteriores pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio."
Ora, o teor da sentença proferida nos presentes autos, a qual transitou em julgado, dúvidas não restam e na esteira da Promoção que antecede, que os referidos objectos devem ser declarados perdidos a favor do Estado, uma vez que o envio das SMS foi feito através do aparelho de telemóvel apreendido nos autos e no interior do PC e das "pens" estão os filmes de carácter sexual do arguido e da assistente, que o mesmo através das SSM, ameaçava publicar na internet, contra a vontade da assistente; pelo que, e atento o exposto, o teor da Douta Promoção que antecede e o vertido no citado artigo, e o constante da sentença declaro perdido a favor do Estado, os referidos objectos apreendidos nos presentes autos e constantes do auto de apreensão de fls. 276; tudo nos termos dos citados preceitos legais.
Notifique.
*
A fls. 540, o arguido veio requerer a não transcrição da sentença no Certificado de Registo Criminal, para efeitos profissionais, nos termos e com os fundamentos ali melhor referidos.
O M.P., conforme resulta da Promoção de fls. 543, e tendo em conta o tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado - violência doméstica - e a pena aplicada, foi do entendimento de que o requerido carecia de fundamento legal, nos termos do disposto no art. 130 da Lei na 37/2015, pelo que promoveu o indeferimento do requerido.
Cumpre Apreciar e Decidir.
Dispõe o art. 13º da Lei na 37/2015 de 05.05, e sob a epígrafe Artigo 13.º - Decisões de não transcrição, o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152. no artigo 152. O A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.os 5 e 6 do artigo 10. o
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão.
Atento o teor da sentença proferida nos presentes autos, o crime pelo qual o arguido foi condenado, ou seja de violência doméstica, e ainda a pena aplicada ao mesmo, só se pode concluir que, além de tal não ser legalmente admissível tal não transcrição, ainda que assim não o fosse, neste caso concreto, e atento o teor da sentença proferida nos autos, não se encontra afastado o perigo de prática de novos ilícitos criminais por parte do arguido pelo que se indefere a requerida não transcrição, nos termos do art.13° da referida Lei.
Comunique à D.S.I.C.
(…)”
5. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 558 a 563), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“A) A Restituição dos objetos apreendidos
1) A questão suscitada no presente recurso é saber se os objectos devem ou não ser declarados perdidos a favor do Estado.
2) O arguido entende, salvo o devido respeito, que o despacho ora posto em crise não tem qualquer fundamento legal, constituindo até uma violação do caso julgado O Despacho de que ora se recorre, viola formal e materialmente, a lei (Ac. Rel. Porto de 30-6-2004, pr. 04 13638, rel Fernando Monterroso, Ac. Rei. Porto de 17-5-2006, reI. Joaquim Gomes, Ac. Rel. Guimarães de 21-10-2.013, rel. António Condesso).
3) O teor do despacho de que ora se recorre, põe em causa a segurança jurídica, pois o arguido conformou-se e criou a expectativa de que, materialmente, a decisão foi a de lhe devolver os bens apreendidos, aliás ter-se entendimento diverso não faz qualquer sentido.
4) Os factos dados como provados não são suficientes para declarar como perdidos a favor do estado os objectos constantes do auto de apreensão.
5) Ao decidir nesta conformidade o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.° 109° do Código Penal, razão pela qual se impõe a revogação do Douto despacho, devendo, em consequência, ser ordenada a imediata devolução do computador Portátil marca INSYS, modelo M74T, com o numero de série NKM746TC00G9100070, de cor preto, acompanhado pelo respetivo carregador e mala de acondicionamento de cor preta.

B) A Não Transcrição da sentença no certificado de Registo Criminal
1) 0 arguido entende, salvo o devido respeito, que o despacho ora posto em crise é desproporcionai e se atendesse-mos aos argumentos plasmados pelo tribunal ‘a quo” tal consubstanciaria que a Transcrição da sentença no certificado de Registo Criminal teria uma natureza de PENA CAUTELAR.
2) a não transcrição para o certificado de registo criminal foi apenas requerida para fins de emprego.
3) O arguido fora condenado pelo crime de violência doméstica, ora o crime de violência doméstica caracteriza-se essencialmente pelo facto de entre os sujeitos passivos e autor existirem ou ter existido laços de intimidade, de família ou análogos, ou seja o crime de violência doméstica desenrola-se entre agentes específicos, tendo uma natureza especifica.
4) Ora não se compreende que um arguido que exerce a profissão de Vigilante, para a qual se encontra legalmente creditados que jamais cometeu delitos no âmbito da sua profissão se veja coartado de exerce-la e prover o seu sustento e da sua família pondo em causa a sua sobrevivência e dignidade enquanto ser humano.
5) o entendimento do tribunal “a quo” não poderá singrar enquanto posição juridicamente aceite no caso em concreto e face a todo o circunstancialismo invocado num estado de direito e democrático assente em princípios de base humanista e tendo como princípio orientador da justiça penal a ressocialização do indivíduo , pois coarctando “ab initio” a possibilidade ao arguido de exercer a profissão (para a qual está habilitado e se encontra a exercer) por mera interpretação formalista das normas jurídico-processuais consubstanciará uma punição ultra crime.
TERMOS EM QUE, e sobretudo pelo que mais douta e superiormente será suprido, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso e revogado o despacho recorrido e ordenando que o mesmo seja substituído por outro que determine a entrega dos objectos apreendidos ao recorrente e outro que ordene A Não Transcrição da sentença no certificado de Registo criminal do arguido.”

6. O recurso foi admitido por despacho de fls. 565.
7. A magistrada do Ministério Público junto da primeira instância (a fls. 575 a 580) respondeu ao recurso, concluindo no sentido de que “não assiste razão ao condenado/recorrente, não merecendo os doutos despachos recorridos qualquer reparo, pelo que deverá ser negado provimento ao presente recurso”.
8. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apôr o seu “Visto” (cfr. fls. 590).
9. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:
- Saber se após a prolação da sentença transitada em julgado (que foi totalmente omissa quanto ao destino a dar aos objectos apreendidos) podem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os bens apreendidos nos autos;
- Se estão verificados os requisitos para a não transcrição da sentença no certificado de registo criminal do arguido.
2. Apreciando
Definidas as questões a tratar e tendo aqui por presente o teor do despacho recorrido (já supra transcrito no antecedente relatório), passemos a analisar as questões suscitadas.
1ª Questão: - Saber se após a prolação da sentença transitada em julgado (que foi totalmente omissa quanto ao destino a dar aos objectos apreendidos) podem ainda ser declarados perdidos a favor do Estado os bens apreendidos nos autos.
Por várias vezes esta questão foi apreciada pelos Tribunais da Relação em diversos arestos que concluíram no sentido de que os objectos apreendidos, cujo destino não tenha sido definido na sentença já transitada em julgado, devem ser restituídos a quem de direito, a menos que a sua detenção por particulares seja proibida (cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos desta Relação do Porto de 30.06.2004 (Proc 0413638, rel. Fernando Monterroso); de 17-05-2006 (Proc. 0610514, rel. Joaquim Gomes) e de 20.01.2014 (Proc. 549/11.0JAPRT-A.P1, rel. Artur Oliveira); os Acórdãos da Relação de Évora de 16.04.2013 (Proc. 28/11.5GBORQ.E1, rel. Sénio Alves) e de 12-04-2016 (Proc. 1072/11.8 GTABF-B.E1, rel. Maria Filomena Soares); e os Acórdãos da Relação de Guimarães 12-01-2009 (Proc. 2200/08.2, rel Filipe Melo), de 28-9-2009 (Proc. 2143/05.5TBBCL, rel. Ana Paramés), de 17.01.2011 (Proc. 1168/03.0PBGMR, rel. Maria Isabel Cerqueira) e de 21.10.2013 (Proc. 316/09.0JABRG-F.G1, rel. António Condesso) - todos acessíveis in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães de 07.02.2011 (proferido no Proc 741/02.8TDPRTR-S.G1, rel Luisa Arantes, desconhecendo-se da sua publicação).
Aderindo ao entendimento sufragado em tais acórdãos, e por nos revermos com a explanação exposta no, também já mencionado, acórdão da Relação de Évora de 16.04.2013, que tem enquadramento no nosso caso, passamos a reproduzir o que a dado nele se escreveu:
“Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se:
“a) Omissa na sentença condenatória a declaração de perdimento de bens apreendidos, é possível decidi-lo em despacho posterior?
b) Perante resposta afirmativa, justificava-se, no caso, a declaração de perdimento de tais objectos a favor do Estado?
No que à primeira questão diz respeito:
Estatui-se no artº 374º, nº 3, al. c) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”.
De outro lado, manda o nº 2 do artº 186º do CPP que “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
Foi precisamente com invocação deste último normativo que o recorrente peticionou a restituição dos objectos apreendidos, posto que não declarados perdidos na sentença condenatória (entretanto transitada em julgado).
Ora, num ponto todos estaremos seguramente de acordo: o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos é a sentença. É isso que claramente resulta dos dois dispositivos acabados de citar. E é isso que igualmente decorre do evoluir normal do processo: é na sentença, após fixação da matéria assente, que se há-de decidir se determinado objecto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas – artº 109º, nº 1 do Cod. Penal.
Ora, não tendo sido ordenado o perdimento a favor do Estado de determinados bens apreendidos no tal momento correcto que é a sentença, é possível fazê-lo em momento posterior, por simples despacho?
Há que distinguir:
Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no artº 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe.
Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.
Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.
Sejamos claros:
Um arguido condenado numa pena de 40 dias de multa à razão diária de €5,50 (como sucedeu in casu) poderá não ter real interesse em recorrer da sentença. Ponderadas as hipóteses de sucesso de um eventual recurso e os custos inerentes a essa fase processual, a prudência aconselhará alguma contenção processual e uma resignação que, contudo, não significará necessariamente aceitação. Dito de outro modo: embora não concordando com a decisão, o arguido poderá considerar que “sai mais barato” pagar a multa em que foi condenado do que suportar os custos inerentes ao recurso e a um eventual decaimento no mesmo.
Ora, deixando assim transitar em julgado a sentença condenatória, se mais tarde for confrontado com uma declaração de perdimento de objectos com valor eventualmente superior ao próprio montante da multa em cujo pagamento foi condenado o seu direito ao recurso só formalmente lhe estará assegurado. Poderá efectivamente recorrer da decisão que declarou o perdimento (como sucedeu neste processo); porém, os pressupostos de que dependia a declaração de perdimento já se mostram fixados numa decisão anterior, transitada em julgado, contra a qual não pode agora reagir. Dito de outro modo: o prejuízo – o verdadeiro prejuízo – para o arguido surge numa decisão complementar da sentença proferida; mas a forma de contra a mesma reagir implicaria a impugnação da matéria de facto fixada numa sentença já transitada.
Posto que os objectos apreendidos sejam de detenção lícita por particulares (como sucede no caso em apreço), a omissão de pronúncia quanto ao destino a dar-lhes em sentença transitada em julgado determina, nos termos do artº 186º, nº 2 do CPP a sua restituição “a quem de direito”, isto é, aos seus proprietários.
Se o MºPº entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira.
Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no artº 186º, nº 2 do CPP, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos.
(…)”
E a alusão, feita no despacho recorrido, às alegações orais feitas pelo Ministério Público que se encontram gravadas no sentido da perda dos objectos apreendidos, até traz à evidência que se o Ministério Público discordasse do omitido na sentença quanto ao destino dos objectos apreendidos nos autos deveria ter interposto recurso dessa mesma sentença. Como não o fez: sibi imputet!
Em suma, transitada em julgado a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos nos autos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art. 186°, nº 2 do CPP, não sendo possível determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objectos.
Impõe-se, pois, revogar a primeira parte do despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que determine a entrega ao arguido dos bens que lhe foram apreendidos, em conformidade com o que estabelece o artigo 186º nº 2 do CPP.
Merece, assim, provimento o recurso, no que a este conspecto respeita.

2ª Questão: Saber se estão verificados os requisitos para a não transcrição da sentença no certificado de registo criminal do arguido.
Desde já adiantando a nossa posição, a resposta não pode deixar de ser negativa.
Vejamos.
Dispõe o artigo 13.º da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio (que tem por epígrafe “Decisões de não transcrição”):
1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão”

De tal normativo decorre que o tribunal pode determinar a não transcrição da sentença condenatória nos certificados de registo criminal a que se refere desde que se verifiquem cumulativamente dois requisitos de ordem formal e um requisito de ordem material.
Os dois primeiros, relacionam-se com a natureza da condenação e com os antecedentes criminais do arguido: a pena aplicada tem de ser não privativa da liberdade ou, sendo de prisão, terá de se fixar até 1 ano; por outro lado, o arguido não pode ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza.
O requisito material, traduz-se em não decorrer das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos crimes.
Ora, no que diz respeito aos requisitos de ordem formal nenhum entrave existia à não transcrição da sentença no certificado de registo criminal.
Com efeito, a seguir-se, com as necessárias adaptações, o acórdão do STJ nº 13/2016 (publicado no DR SÉRIE I, de 07.10.2016) fixador de jurisprudência no sentido de que «A condenação em pena de prisão suspensa na sua execução integra o conceito de pena não privativa da liberdade referido no n.º 1 do art. 17.º da Lei 57/98, de 18-08, com a redacção dada pela Lei 114/2009, de 22-09», no caso dos autos, a pena aplicada ao arguido cumpre o primeiro dos requisitos (requisito de ordem formal) uma vez que foi aplicada uma pena não privativa da liberdade.
Por outro lado, muito embora o arguido já tivesse sido alvo de uma anterior condenação (em pena de multa) por crime de detenção de arma proibida, resulta do CRC do arguido junto aos autos que o mesmo não sofreu condenação anterior por crime da mesma natureza daquele por que nestes autos veio a ser condenado.
Entrave existe, quanto ao requisito material.
Do já supra citado normativo resulta que a não transcrição da condenação no registo é admissível "sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes”.
É certo que o Tribunal acreditou que a censura do facto e ameaça da pena de prisão de 3 anos, ainda que condicionada ao cumprimento de deveres e a regras de conduta é suficiente para o afastar da prática de futuros crimes, suspendendo-lhe a execução da pena. Todavia este voto de confiança está sujeito a demonstração por parte do arguido durante o período de suspensão, sendo por isso temerário determinar a não transcrição do registo da pena com base na mera confiança, sem provas nem evidências claras de que não praticará novos ilícitos.
E como é referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 17.03.2014 (Proc 1185/11.6TAVCT-D.G1, rel. Tomé Branco, in www.dgsi.pt) «O juízo de prognose favorável feito a propósito da aplicação da suspensão da execução da pena, não é coincidente com o requisito de “ … das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes”, exigido (…) para a não transcrição da sentença nos certificados do registo criminal». No mesmo sentido, vejam-se entre outros, os Acórdãos desta Relação do Porto de 05.04.2006 (Proc. 0516875, rel Jorge França) e de 06.05.2015 (Proc. 43/12.1GCOVR-A.P1, rel Lígia Figueiredo), ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
Para além disso, não obstante as razões aduzidas pelo recorrente nas suas conclusões, sempre a sua pretensão seria de rejeitar quer em face do quantum da pena (não estamos propriamente a falar de uma pena de reduzida dimensão, apesar de ter sido suspensa na sua execução) quer, sobretudo, da natureza do crime em causa.
O crime pelo qual o arguido foi condenado é demasiado grave e muito reprovável socialmente [em termos genéricos, muito embora no âmbito de uma particular relação interpessoal, trata-se da violação da dignidade da pessoa humana], sendo por isso inaceitável que alguém, condenado por este crime, em pena de prisão de 3 anos (ainda que suspensa), veja a condenação “apagada” do registo criminal, sem que existam nos autos elementos objectivos e inequívocos que permitam concluir, de que não praticará novos crimes.
Em conclusão, por falta da verificação de um dos requisitos cumulativos (ao caso do requisito de ordem material), não merece provimento o recurso no que a este conspecto respeita, pelo que é de manter inalterada a decisão recorrida na parte em que indeferiu a não transcrição da sentença no certificado de registo criminal do arguido/recorrente.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido:
a) Revogar a primeira parte do despacho recorrido e ordenar que o mesmo seja substituído por outro que determine a entrega dos bens apreendidos ao recorrente, em conformidade com o que estabelece o artigo 186º nº 2 do CPP.
b) Manter o demais decidido no despacho recorrido.
c) Sem custas (artigo 513º nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal).
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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Porto, 8 de Março de 2016
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério