Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
275/22.4TXPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CANCELAMENTO PROVISÓRIO DO REGISTO CRIMINAL
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP20221012275/22.4TXPRT-A.P1
Data do Acordão: 10/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: O instituto do cancelamento provisório do registo criminal não é aplicável a pessoas coletivas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº275/22.4TXPRT-A.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I – “A... Unipessoal, Ldª” veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 13 do Juízo de Execução das Penas do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que rejeitou o requerimento por ela apresentado de cancelamento provisório do registo de uma sua condenação criminal.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«Vem o presente recurso interposto de sentença proferida pelo Douto Tribunal de Execução de Penas do Porto no qual decidiu:
A – Julgo o pedido de cancelamento provisório deduzido pela requerente manifestamente infundado e rejeito o mesmo, nos termos do disposto no artº 148º, a) do CEP, determinando o arquivamento do processo.
B – Condeno a requerente no pagamento da taxa de justiça de 2 UCs, nos termos do art. 153.º do CEP, art.t 8º, nº 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
C – Notifique a requerente e o Ministério Público – art. 232.º/1CEP. D.N.”
II. Não se conforma a Recorrente com a decisão proferida, pretendendo com o presente recorrer da matéria de direito na mesma vertida.
III. O dispositivo da sentença de que se recorre julga manifestamente infundado o pedido deduzido pela Recorrente, sendo certo que toda a argumentação deduzida pelo Tribunal se refere à inadmissibilidade legal de aplicação do instituto do cancelamento provisório de registo criminal a pessoas coletivas – com a qual também não se concorda.
IV. A inadmissibilidade legal não se confunde com falta de fundamento do pedido, pelo que quanto a este particular deixa também a Recorrente a sua nota.
V. Para fundamentar a decisão proferida, o tribunal a quo refere que as disposições legais previstas no art.12º e art.10º n.º 5 e 6 da Lei 37/2015, de 5 de Maio se referem estritamente a pessoas singulares.
VI. E que os pressupostos cumulativos referidos no artigo 12º da Lei 37/2015, de 5 de Maio não são passíveis de aferir-se quanto às pessoas coletivas, nomeadamente que o interessado – no caso, a pessoa coletiva – se tenha “comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado”, atenta a natureza da própria pessoa coletiva, o que inviabiliza a concessão do cancelamento provisório do registo criminal a pessoas coletivas.
VII. A questão que emerge dos presentes autos requer análise complexa e integrada, conciliando a letra da lei e a intenção do legislador, com os demais princípios presentes no ordenamento jurídico, basilares do nosso sistema jurídico.
VIII. Discordamos do entendimento perfilhado pelo Douto Tribunal Recorrido uma vez que o art. 12º da LIC não estabelece qualquer distinção entre pessoas singulares e coletivas e quanto à remissão do referido artigo para os n.ºs 5 e 6 do art.10º da referida lei, remete para os fins previstos nesses preceitos, não se retirando a exclusão das pessoas coletivas desta remissão.
IX. Quanto à questão atinente à impossibilidade de aferir dos pressupostos de aplicação do instituto de cancelamento provisório do registo criminal no caso das pessoas coletivas, em concreto aferir do comportamento e readaptação do condenado, defendemos que tal leitura terá de ser feita conjugada com o artigo 229º da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro.
X. Também o artigo 229º da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro não faz qualquer distinção entre pessoas singulares ou pessoas coletivas, referindo que o cancelamento pode ser requerido “para fins de emprego, público ou privado, de exercício de profissão ou actividade cujo exercício dependa de título público, de autorização ou homologação da autoridade pública”, n.º 1 do referido preceito, e que tem legitimidade para requerer o cancelamento o representante legal, n.º 2 do referido preceito.
XI. Ora, o cancelamento provisório do registo criminal possuem inquestionável relevância para as sociedades, em particular em sede de procedimento para contratação pública – referido no texto legal que supra se transcreve e motivo e razão para a Recorrer se socorrer do presente instituto.
XII. Quanto a isto, as regras de participação em concurso público o Código dos Contratos Públicos estipula no Capítulo IV, e em particular no artigo 55º, n.º 1, alínea h) que:
1 - Não podem ser candidatos, concorrentes ou integrar qualquer agrupamento, as entidades que:
(…)
b) Tenham sido condenadas por sentença transitada em julgado por qualquer crime que afete a sua honorabilidade profissional, no caso de pessoas singulares, ou, no caso de pessoas coletivas, quando tenham sido condenados por aqueles crimes a pessoa coletiva ou os titulares dos seus órgãos sociais de administração, direção ou gerência, e estes se encontrem em efetividade de funções, em qualquer dos casos sem que entretanto tenha ocorrido a respetiva reabilitação;
(…).
XIII. Por sua vez, o artigo 55º-A do Código dos Contratos Públicos estipula no n.º 2:
2 - O candidato ou concorrente que se encontre numa das situações referidas nas alíneas b), c), g), h) ou l) do n.º 1 do artigo anterior pode demonstrar que as medidas por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua idoneidade para a execução do contrato e a não afetação dos interesses que justificam aqueles impedimentos, não obstante a existência abstrata de causa de exclusão, nomeadamente através de:
a) Demonstração de que ressarciu ou tomou medidas para ressarcir eventuais danos causados pela infração penal ou falta grave;
b) Esclarecimento integral dos factos e circunstâncias por meio de colaboração ativa com as autoridades competentes;
c) Adoção de medidas técnicas, organizativas e de pessoal suficientemente concretas e adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves.”.
(negrito nosso).
XIV. Resulta assim que é possível a demonstração por parte da pessoa coletiva, ainda que de diversa forma face às pessoas singulares, a sua readaptação e que pode inclusive identificar-se mediante a adoção de medidas técnicas, organizativas e de pessoal suficientemente concretas e adequadas para evitar outras infrações penais ou faltas graves.
XV. Quanto a isto parece-nos de relevo o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa aos 08/09/2021:
O que permite concluir que uma pessoa colectiva pode demonstrar a sua idoneidade para exercer a actividade contratual para a qual pretende ser contratada mesmo tendo sido condenada em pena criminal no âmbito de um processo-crime.
O que permite, por sua vez, concluir que o disposto no artº 12º al. b) da LIC pode ser aplicada a pessoas colectivas, soçobrando o argumento aduzido pelo Tribunal a quo para rejeitar in limine a possibilidade da recorrente requerer o cancelamento provisório do seu registo criminal.
Aliás, se assim não fosse, nunca se poderia prever a condenação de pessoas colectivas no âmbito criminal uma vez que, em termos práticos, quem comete o crime são as pessoas físicas singulares que representam a sociedade e nunca a sociedade em si que não tem existência física para executar crimes[5].” (negrito nosso)
- disponível para consulta em:
(http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/592c0a93620fbe808025875f0033c164?OpenDocument)
XVI. Finalizando, não podemos deixar de aludir que a restrição ao recurso do instituto do cancelamento provisório do registo criminal por parte das pessoas coletivas é violador do princípio da igualdade, consagrado constitucionalmente, e que em conjugação com o artigo 12º, n.º 2 da CRP procede a uma equiparação destas (pese embora não absoluta) com as pessoas singulares.
XVII. Tratar por isto de forma diferente pessoas singulares e coletivas sem que se demonstre que tal se prende com a incompatibilidade face à natureza da pessoa coletiva afronta diretamente o princípio consagrado.
XVIII. Cremos assim ser de aplicar a o instituto do cancelamento provisório do registo criminal à Recorrente, pessoa coletiva, o que deve ser ordenado.
XIX. Ao decidir de forma diversa na sentença proferida, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos: art.10º, n.º 5 e 6 e art.12º da Lei 37/2015 de 5 de Maio; art.229º da Lei 115/2009 de 12/10; e artigos 12º, n.º 2 e 13º da Constituição da República Portuguesa.»


O Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância apresentou respostas à motivação do recurso, pugnando pelo não provimento do mesmo.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso (como é orientação uniforme da jurisprudência, são estas conclusões que delimitam o objeto do recurso) a de saber se deverá, ou não, ser rejeitado o requerimento do cancelamento do registo de uma condenação criminal da recorrente.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«A... Unipessoal, Ldª, veio interpor o presente processo de cancelamento provisório do registo criminal (art. 229.º-ssCEP), com os fundamentos que se colhem a fl. 2-ss.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido.
Cumprido o contraditório legal, a requerente pronunciou-se nos termos que constam de fls. 30 a 31.
Cumpre decidir
Presentemente, o cancelamento provisório está regulado na disposição legal base contida no art. 12.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio[1], a qual circunscreve o instituto em questão aos casos dos n.º 5 e n.º 6 do art. 10.º da mesma Lei, disposições que se referem estritamente a pessoas singulares e para os fins aí previstos.
Ou seja, o legislador estabeleceu que a excepcionalidade do cancelamento provisório, em contraponto com o cancelamento definitivo (que opera pelo simples decurso do tempo e, como tal, sob a égide de requisitos objectivos), somente se reportava a pessoas singulares, desde logo pela intrínseca natureza subjectiva que a apreciação determina à face dos pressupostos e requisitos legais para tanto exigíveis.
Deste modo, tem necessariamente de se concluir que o especial instituto requerido não é susceptível de extensão às pessoas colectivas, posto que os certificados de registo criminal a estas respeitantes estão sujeitos à disciplina especial do art. 10.º nº 7 da Lei 37/2015, de 5/05.
E bem se compreende que assim seja.
São várias as razões que a tal entendimento conduzem.
Vejamos.
A Lei visa através do instituto de cancelamento do registo criminal, quer definitivo quer provisório, facilitar a integração social do condenado, num equilíbrio com as finalidades do registo criminal constantes do art. 2.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio, que se relacionam com finalidades de prevenção da delinquência, na vertente de defesa da sociedade em relação a alguns tipos de criminalidade.
O legislador elegeu dois índices de readaptação: o simples decurso do tempo sem superveniência de cometimento de novos crimes, que funciona de forma automática (legal), ou a comprovação, mediante indagação prévia e individualizada, da readaptação do condenado (reabilitação judicial, actualmente denominada cancelamento provisório).
Contudo, salvo melhor opinião, este segundo critério (reabilitação judicial, actualmente denominada cancelamento provisório) só é válido para as pessoas singulares e não já para as pessoas colectivas.
Acompanhemos a evolução do elemento histórico deste instituto, o qual, cremos, nos poderá auxiliar a demonstrar o acerto daquela conclusão.
Até à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 4 de Setembro a responsabilidade criminal estava exclusivamente reservada às pessoas singulares, não sendo as pessoas colectivas susceptiveis de ser responsabilizadas criminalmente.
A citada lei, embora mantendo aquele princípio geral, veio alargar o âmbito da responsabilidade criminal estendendo-o às pessoas colectivas, embora a título excepcional (reservado aos crimes de catálogo previstos no artº 11, nº 2 do CP ou aos casos em que exista norma especial que a preveja).
Esse objectivo ficou demonstrado, desde logo, na epigrafe do art. 11.ºCP, a qual passou de “carácter pessoal da responsabilidade” para “responsabilidade das pessoas singulares e colectivas”.
Surgem, consequentemente, as normas dos art.s 90.º-A a 90.º-M do CP, onde se estabelecem as consequências jurídicas e responsabilidade inerente às pessoas colectivas face à prática dos crimes de catálogo.
Em termos de identificação criminal vigorava então a Lei 57/98, de 18 de Agosto, a qual tinha um objecto restrito a pessoas singulares (art. 1.º/1) : “relativamente a portugueses e a estrangeiros residentes em Portugal neles julgados”.
Perante tal disparidade, o art. 8.º da Lei 59/2007 de 4 de Setembro fixou um regime transitório no que se refere ao “Registo criminal de pessoas colectivas e equiparadas” nos seguintes termos:
Enquanto não for revisto o regime jurídico da identificação criminal, é aplicável à identificação criminal das pessoas colectivas e entidades equiparadas o disposto na Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto e nos Decretos-Leis nº 381/98, de 27 de Novembro, e 62/99, de 2 de Março, com as adaptações necessárias.
Esse regime transitório cessa com a alteração introduzida pela Lei 114/2009 de 22 de Setembro, a qual procede à terceira alteração à Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, adaptando o regime de identificação criminal à responsabilidade penal das pessoas colectivas.
Esta adaptação ocorre no específico cumprimento do que está dito na Exposição de Motivos à Proposta de Lei 272/X/4.º, a qual vem a dar corpo à Lei 114/2009 de 22 de Setembro, onde expressamente se pode ler que: “Considerando o alargamento das situações de responsabilidade criminal das pessoas colectivas, resultante da revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, impõe-se adaptar o regime regulador do registo criminal por forma a que este possa espelhar adequadamente a situação criminal das pessoas colectivas e equiparadas. A disposição introduzida no artigo 8.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro destinava-se a vigorar transitoriamente, enquanto não fosse revisto o regime jurídico da identificação criminal. Assim, a presente proposta de lei tem por finalidade adaptar o regime do registo criminal às novas regras de responsabilização criminal das pessoas colectivas e equiparadas.
Ou seja, da ausência de regime legal de identificação criminal das pessoas colectivas (por ausência de responsabilidade criminal destas) passou-se à consagração de um regime legal por adaptação (artº 8º da Lei 59/2007, de 4 de Setembro) e deste para a criação de um regime legal de identificação criminal das pessoas colectivas expresso e efectivo (instituído através das alterações introduzidas pela Lei 114/2009 de 22 de Setembro à Lei 57/98, de 18 de Agosto).
Vejamos então as concretas adaptações introduzidas pela Lei 114/2009 de 22 de Setembro.
A primeira resultou, desde logo, no alargamento expresso do objecto (art. 1.º/1) da Lei 57/98, de18 de Agosto, às pessoas colectivas ou entidades equiparadas que tenham em Portugal a sua sede, administração efectiva ou representação permanente”.
Outra das alterações foi a criação de uma nova alínea no art. 5.ºda Lei 57/98, de 18/8 relativa ao âmbito das decisões sujeitas a registo (art. 5.º, nº1, d)) relativa à reabilitação das pessoas colectivas. Todavia, note-se que a reabilitação ali em causa não se confunde com o conceito ora em análise (cancelamento provisório do registo) mas antes respeita às situações previstas nos art.s 90.º-J, nº 3 e 90.º-L, nº 3 do CP.
A Lei 114/2009 de 22 de Setembro, aditou ainda o n.º 3 ao art. 11.º da Lei 57/98 de18 de Agosto relativo aos “Certificados requeridos para fins de emprego ou de exercício de actividade,” com o seguinte teor: (…) “requeridos por pessoa colectiva ou equiparada para o exercício de certa actividade contêm a transcrição integral do registo criminal, excepto se a lei permitir transcrição mais restrita do conteúdo” e no art. 12.º, nº1, quanto aos “Certificados requeridos para outros fins” passou a constar que “os certificados requeridos por particulares, quer sejam pessoas singulares ou pessoas colectivas ou equiparadas, para fins não previstos no artigo anterior contêm a transcrição integral do registo criminal, excepto se a lei permitir transcrição mais restrita do seu conteúdo.
Por sua vez o artº 16º, nº 1 da Lei 57/98, de 18/08, na versão introduzida pela Lei 114/2009, de 22/09 passou a ter a seguinte redacção:
“ 1 - Estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos artigos 11.º e 12.º, sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 11.º, pode o tribunal de execução das penas determinar, decorridos dois anos sobre a extinção da pena principal ou da medida de segurança, o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar.”
Assim, não há dúvida de que, na vigência das alterações introduzidas pela Lei 114/2009, de 22/09 à Lei 57/98, de 18/08 o legislador, não limitando nem excluindo as pessoas colectivas e inclusivamente referindo-se no artº 16º, nº 1 às situações excepcionais dos nº 2 e 3 do art. 11.º., consagrou a aplicação do instituto do cancelamento provisório às pessoas colectivas.
Foi este o regime que esteve vigente até à entrada em vigor da Lei 37/2015, de 5 de Maio, que o revogou.
Relativamente à Lei 37/2015, de 5 de Maio, e para o que aqui nos interessa, pode ler-se na Proposta de Lei n.º 274/XII que:
3. No que respeita à emissão de certificados para fins profissionais, regulada no artigo 10.º da presente lei, estabelece-se um regime que apenas prevê duas possibilidades de emissão de certificados: emissão para profissões ou atividades sem qualquer exigência legal nesta matéria, cujo conteúdo se restringe a decisões de interdição ou proibição de exercício de atividades; emissão para profissões ou atividades com exigências legais de ausência de antecedentes criminais ou de prévia avaliação de idoneidade, cujo conteúdo será integral.
Desta forma, ajusta-se o regime legal à atual tendência legislativa no sentido de as situações em que é legalmente exigida ausência de antecedentes criminais não consagrarem taxativamente uma proibição de acesso a profissões ou atividades por mero efeito automático da existência de condenação por certo tipo de crime, antes impondo a ponderação casuística dos antecedentes criminais que existam, eventualmente caracterizados na lei como indicadores da falta de idoneidade para o acesso à profissão ou atividade em causa.
Aqui chegados, cumpre dizer que o “ajuste do regime legal” visado veio a ser consagrado no art. 12.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio, sob a epigrafe “Cancelamento provisório”, limitado aos certificados emitidos nos termos do art. 5.º e 6 do art. 10.º, casos estes em que o Tribunal, verificados requisitos formais e preenchidos pressupostos materiais pode determinar o cancelamento provisório total ou parcial.
E, quanto ao conteúdo dos certificados de registo criminal relativos às pessoas singulares, rege o art. 10.º, nº 5 da Lei 37/2015, de 5 de Maio que:
Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas: a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício; b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo; c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
Por seu lado, diz-nos o nº 6 do artº 10º:
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.
Vemos assim que na vigência da Lei 37/2005, de 5 de Maio, da letra da lei, resulta que o cancelamento provisório a que se reporta o seu art. 12.º, ao tão só remeter para as situações previstas no n.ºs 5 e 6 do seu art. 10.º apenas se reporta a pessoas singulares ou seja só às pessoas singulares se aplica.
Excluída fica, assim a aplicação do cancelamento provisório às pessoas colectivas, no regime legal que a Lei 37/2015, de 5 de Maio veio consagrar, numa total alteração ao quanto antes resultava do regime legal expressamente criado pela Lei 114/2009, de 22 de Setembro.
Mas, se dúvidas ainda existissem sobre o diferente tratamento que o legislador impôs sobre esta matéria, cremos que as mesmas ficam dissipadas, se atentarmos na introdução do nº 7 do art. 10.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio - exclusivamente reportado às pessoas colectivas - ,com o seguinte teor:
Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas colectivas ou entidades equiparadas contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes.”
Note-se que esta norma não tem lugar paralelo na antecedente legislação (art. 11.º da Lei 57/98, de18 de Agosto, na redacção da Lei 114/2009, de 22setembro).
De facto, como já supra se viu, a técnica legislativa da Lei 57/98, de18 de Agosto separava nos art.s 11.º e 12.º aquilo que hoje está contido nos n.ºs 5 e 6 do art. 10.º, sendo que nesses art.s 11.º e 12.º se continham excepções que permitiam a aplicação do instituto do cancelamento provisório às pessoas colectivas.
Contudo as diferenças introduzidas pela Lei 37/2015, de 5 de Maio, são substanciais e não de mera aparência, sendo que indubitavelmente o legislador pretendeu e a lei consagrou uma solução diferenciada.
Desde logo, atente-se no facto de o teor do n.º 3 do art. 11.º da Lei 57/98, de18 de Agosto, na redacção da Lei 114/2009, de 22 de Setembro, ser substancialmente dferente do actual n.º 7 do art. 10.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio, pois enquanto no primeiro se dizia que “Os certificados requeridos por pessoa colectiva ou equiparada para o exercício de certa actividade contêm a transcrição integral do registo criminal, excepto se a lei permitir transcrição mais restrita do conteúdo”. (sublinhado nosso), no segundo diz-se: “Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas coletivas ou entidades equiparadas contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes.”. (sublinhado nosso).
Ou seja, na lei revogada dizia-se que, nos certificados requeridos por pessoa colectiva ou equiparada, quando a finalidade do CRC fosse para o exercício de certa actividade este continha transcrição integral, mas exceptuavam-se os casos em que a lei permitisse transcrição mais restrita do conteúdo, sendo que um dos casos seria pela via do art. 16.º, nº 1.
O mesmo sucedia com o art. 12.º, nº1, onde se dizia que quanto aos “certificados requeridos por…pessoas colectivas…para fins não previstos no artigo anterior contêm a transcrição integral do registo criminal, excepto se a lei permitir transcrição mais restrita do seu conteúdo.
Já no regime legal vigente, os Certificados de registo criminal requeridos por pessoas colectivas, seja qual for a finalidade dos mesmos, são de transcrição integral, no dizer da norma “contêm todas as decisões…vigentes”., inexistindo qualquer previsão de restrição de conteúdo ao contrário do regime revogado, o que invalida a aplicação do art. 12.º
Ou seja, não se aplicam às pessoas colectivas as regras de limitação de conteúdo referidas no n.º 5 – o “devem conter apenas”, e no nº 6, o “contêm todas as decisões…com excepção”, pois quanto àquelas a regra é a do n.º 7, a qual prevê um conteúdo de emissão pleno[2]. O mesmo é dizer que não abrangendo (porque não o pode fazer face ao concreto texto da lei) a remissão do art. 12.º, nº 1 a situação do n.º 7, única no art. 10.º relativa às pessoas colectivas, o instituto do cancelamento provisório não se aplica às pessoas colectivas.
É a esta conclusão que se chega porquanto e de facto, da tão detalhada e específica regulamentação própria não se vê que outra solução possa ser encontrada no quadro do regime em vigor, em consonância com os princípios gerais da hermenêutica interpretativa.
O primeiro deles o que tem por base o texto da lei (elemento gramatical). “O texto da lei é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei”[3].
Outra das regras básicas da actividade interpretativa diz-nos que as leis se interpretam umas às outras, consabido que elas se acham todas mais ou menos relacionadas entre si, pelo que é necessário interpretá-las de modo a que umas se harmonizem com as outras e reciprocamente se completem, excluindo-se as interpretações que levem a aplicar a lei de forma que fique em contradição com os conceitos formulados noutras leis[4].
Neste âmbito, cumpre referir que o artº 229º do CEP é uma norma de cariz processual relativamente às normas materiais previstas no art. 12.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio e art. 10.º da Lei 37/2015, de 5 de Maio.
Por outro lado, não se pode deixar de ter em conta que sendo concedido o cancelamento provisório, a mera condenação do beneficiário em novo crime não repristina automaticamente o averbamento dos crimes anteriores objecto do cancelamento provisório.
Todavia, o artº 233º do CEP prevê a revogação do cancelamento provisório.
A revogação opera automaticamente “ nº 1 - …se o interessado incorrer em nova condenação por crime doloso e se se verificarem os pressupostos da pena relativamente indeterminada (PRI) ou da reincidência.”
Como se vê, o cancelamento provisório exige para a sua revogação a verificação daqueles pressupostos cumulativos, sendo que os pressupostos relativos à pena relativamente indeterminada e à reincidência não são aplicáveis às pessoas colectivas.
O mesmo é dizer que a norma do art. 233.ºCEP nunca é de aplicar a pessoas colectivas.
Ora, esta situação consubstanciaria um inaceitável “privilégio” relativamente às pessoas singulares, porquanto a admitir-se o cancelamento provisório relativamente às pessoas colectivas seria sempre para estas o equivalente a um cancelamento definitivo por insusceptível de revogação.
Dai, com todo o respeito, a nossa discordância face à argumentação constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/12/2020, in www.dgsi.pt, citado pela requerente.
Mas também se chega à solução por nos defendida por via do elemento histórico, ou seja, em face da evolução histórica contida na sucessão de leis supra analisada e no teor da lei vigente.
Há, ainda assim, que perceber se se poderia chegar a solução diferente, por mais justa e desde que legalmente admissível, sendo que recente jurisprudência – mesmo que em moldes e com diferentes soluções, se vem debruçando sobre a questão.
Referiremos, inicialmente, aquela que sufraga a tese que supra defendemos.
Sobre esta matéria, ainda que em visando um instituto paralelo – o da não transcrição – debruçou-se o TRGuimarães[5] dizendo-nos, em sumário que “As pessoas colectivas não podem requerer, nem o tribunal determinar a não transcrição da condenação no registo criminal, para efeitos meramente civis.”
No mesmo sentido e nos mesmos moldes paralelos de instituto – o da não transcrição – debruçou-se o TRLisboa[6] dizendo-nos, em sumário que “A possibilidade de não transcrição em relação a condenações sofridas por pessoas singulares, para efeitos civis, estriba-se numa finalidade específica, que se reconduz a evitar, em casos de condenações menos graves, a desinserção social e a estigmatização do agente, não o prejudicando, nomeadamente em termos laborais ou de acesso ao emprego. Esse fundamento não se verifica relativamente a pessoas coletivas e, como tal, a diversa solução jurídica legal não acarreta a violação dos sobreditos princípios. Não viola, igualmente, o disposto no artº 30 da CRP uma vez que a Lei permite quer a reabilitação – mesmo em relação a condenações sofridas por pessoas coletivas – quer a eliminação de anteriores condenações, pelo decurso de determinado lapso temporal. Na verdade, logo pela letra da lei ou pelo elemento literal conclui-se claramente que as pessoas coletivas não podem requerer, nem os Tribunais decidir quanto a elas, a não transcrição no registo para efeitos meramente civis. O legislador assim o entendeu para segurança das relações comerciais económicas e garantia de diminuição das exigências de prevenção geral exigindo uma maior visibilidade das suas actividades.”.
Efectivamente, o regime vigente manteve a possibilidade de reabilitação das pessoas colectivas para os efeitos previstos no artº 90ºJ, nº 3 e 90ºL, nº 3,ambos do CP, opção que deliberadamente não fez, pelas razões apontadas, quanto ao cancelamento provisório do registo .
Mais recentemente, já sobre a concreta questão de aplicação do instituto do cancelamento provisório às pessoas colectivas, debruçou-se o TRPorto[7] dizendo-nos, em sumário, que “I - O mecanismo do “cancelamento provisório”, apenas se destina aos certificados requeridos nos termos dos nºs 5 e 6 do art. 10º que, sem sombra de dúvidas, se referem expressamente a pessoas singulares. II - Se o legislador pretendesse estender essa possibilidade às pessoas coletivas, certamente o teria feito, acrescentando ao referido nº 7 do citado art. 10º idêntica disposição à do seu nº 6. III - Os próprios requisitos cumulativos do cancelamento provisório previstos no art. 12º não se coadunam com a natureza das pessoas coletivas, designadamente o previsto na sua al. b) que pressupõe a formulação de um juízo de readaptação (…) incidente sobre um comportamento subjetivo, o qual se apresenta como insuscetível de transposição para aquelas entidades.
Reflectindo sobre esta jurisprudência e o quanto a mesma – de forma já bem sustentada na sua fundamentação – nos proporciona em moldes de argumentação para a presente decisão, resta dizer que se crê que efectivamente o legislador optou por consagrar uma lei que não prevê a aplicação do instituto do cancelamento provisório da pessoa colectiva. E fê-lo quer pela própria natureza da pessoa colectiva, pois só é susceptível de ser readaptado quem possa ter vontade própria e já não quem atue através do ânimo gerado por terceiro, quer porque não existem meios de prova susceptíveis de, por qualquer modo, percepcionar esse eventual quadro de “ readaptação” o qual não se satisfaz apenas com a eventual inexistência de novas condenações. É que o cancelamento exige uma readaptação no pós extinção da pena, a aferir pelo comportamento encetado, sendo que esse agir é humano e não enquadrável no âmago dum ente colectivo de per si.
Na verdade, não obstante serem dotadas de personalidade jurídica, as pessoas colectivas, como se intui com facilidade, não encerram em si a personalidade humana inerente ao instituto do cancelamento, o qual, para ser decretado, pressupõe a formulação de um juízo de readaptação [art. 12.º-b) da Lei 37/2015, de 5 de Maio], fundado num comportamento subjectivo que se apresenta como insusceptível de transposição para as pessoas colectivas.
Concluindo, para o quadro de readaptação, exige a lei uma apreciação impossível de ser feita quanto a pessoa colectiva, pois não se pode formular um juízo - que é requisito para o cancelamento peticionado – de a requerente se ter comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptada.
Não se desconhece a existência de jurisprudência em sentido contrário ao que defendemos. Todavia, cremos que os argumentos utilizados para sustentar essas posições, face a tudo quanto ficou dito, já se mostram analisados.
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas:
A – Julgo o pedido de cancelamento provisório deduzido pela requerente manifestamente infundado e rejeito o mesmo, nos termos do disposto no artº 148º, a) do CEP, determinando o arquivamento do processo.
B – Condeno a requerente no pagamento da taxa de justiça de 2 UCs, nos termos do art. 153.º do CEP, art.t 8º, nº 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
C – Notifique a requerente e o Ministério Público – art. 232.º/1CEP.
D.N.»

IV –
Cumpre decidir.
A questão em apreço é a de saber se o instituto do cancelamento provisório do registo criminal é, ou não, aplicável a pessoas coletivas. Confrontam-se, a este respeito, duas teses, uma perfilhada no despacho recorrido, outra invocada na motivação do recurso. Ambas com algum apoio jurisprudencial. Os argumentos aqui esgrimidos são os seguintes.
Alega o despacho recorrido que a disposição onde vem regulado este instituto, o artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, circunscreve-o aos casos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º da mesma Lei, disposições que se referem estritamente a pessoas singulares e para os fins aí previstos (relativos ao exercício de profissões). O legislador estabeleceu que a excecionalidade do cancelamento provisório, em contraponto com o cancelamento definitivo (que opera pelo simples decurso do tempo e, como tal, sob a égide de requisitos objetivos), se reporta apenas a pessoas singulares, pela intrínseca natureza subjetiva que a apreciação determina à face dos pressupostos e requisitos legais para tanto exigíveis.
Na verdade, as pessoas coletivas não encerram em si a personalidade humana inerente ao instituto do cancelamento, o qual, para ser decretado, pressupõe a formulação de um juízo de readaptação (artigo 12.º, b) da referida Lei n.º 37/2015,), fundado num comportamento subjetivo, não transponível ara as pessoas coletivas. Em relação a estas, não é possível formular um juízo - que é requisito para o cancelamento provisório – de a requerente se ter comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptada.
Esse artigo 12.º reporta-se aos certificados previstos nos nºs 5 e 6 do artigo 10.º da mesma Lei, nele expressamente mencionados, que são inequivocamente relativos apenas a pessoas singulares, e não aos certificados previstos no n.º 7 desse mesmo artigo 10.º, que consagra um regime especial (também quanto ao conteúdo dos mesmos) relativo apenas a pessoas coletivas.
Esta restrição do instituto do cancelamento provisório do registo às pessoas singulares não vigorava no regime anterior ao atualmente vigente. Na vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 114/2009, de 22/ de setembro à Lei n.º 57/98, de 18 de agosto, o legislador, não limitando nem excluindo as pessoas coletivas e referindo-se no artigo 16.º, nº 1 às situações excecionais dos nº 2 e 3 do artigo 11.º., consagrou a aplicação do instituto do cancelamento provisório às pessoas coletivas. Esse regime vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, que o revogou.
Decisivo para a questão em apreço será apenas o teor do referido artigo 12.º, que define os requisitos substantivos do cancelamento provisório do registo, não o teor do artigo 229.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, invocado pela recorrente, pois esta é uma norma de natureza processual.
Haverá que considerar, por outro lado, que o artigo 233.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade prevê a revogação do cancelamento provisório em caso de reincidência, instituto que não se aplica a pessoas coletivas. Esta situação configuraria um inaceitável “privilégio” relativamente às pessoas singulares, porque o cancelamento provisório relativo às pessoas coletivas para estas equivaleria sempre a um cancelamento definitivo, insuscetível de revogação.
Invoca o despacho recorrido dois acórdãos (o da Relação de Guimarães de 6 de dezembro de 2017, proc. n.º 2139/10.9TARG-A.G1, relatado por Pedro Miguel Lopes, e o da Relação de Lisboa de 22 de setembro de 2021, proc. n.º 495/18.0DLSB-A.L3, relatado por Adelina Barradas de Oliveira, ambos acessíveis in www.dgsi.pt) que consideram o instituto paralelo da não transcrição da condenação no registo criminal inaplicável às pessoas coletivas, por a estas não se aplicar a finalidade específica desse instituto, que é o de evitar, quanto ao condenado, a estigmatização, desinserção social e maiores dificuldades de obtenção de emprego. Essa diferença de tratamento será objetivamente justificada e, por isso, não contrária ao princípio constitucional da igualdade.
Invoca também o despacho recorrido um acórdão desta Relação (de 22 de setembro de 2021, proc. n.º 270/21.0TXPRT-A.P1, relatado por Paulo Costa, também acessível in www.dgsi.pt), este relativo ao cancelamento provisório do registo, que perfilha esta tese.
Considera, por seu turno, a recorrente que o instituto de cancelamento provisório do registo criminal é aplicável às pessoas coletivas.
Alega a recorrente que a interpretação do conceito de readaptação a que se reporta o aludido artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, deve ter em conta o teor do artigo 229.º da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro (Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade). Este artigo não faz qualquer distinção entre pessoas singulares ou pessoas coletivas, referindo que o cancelamento pode ser requerido “para fins de emprego, público ou privado, de exercício de profissão ou atividade cujo exercício dependa de título público, de autorização ou homologação da autoridade pública”.
Alega, então, o recorrente que o cancelamento provisório do registo criminal possui inquestionável relevância para as sociedades, em particular em sede de procedimento para contratação pública (veja-se o artigo 55.º, n.º 1, h), do Código dos Contratos Públicos).
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 55º-A desse Código estipula que o candidato ou concorrente que tenha sido criminalmente condenado pode demonstrar que medidas (nomeadamente as aí especificadas) por si tomadas são suficientes para demonstrar a sua idoneidade para a execução do contrato e a não afetação dos interesses que justificam o impedimento resultante da condenação. Considera a recorrente que esta disposição dá relevo a uma forma de readaptação que, sendo diferente da que é própria das pessoas singulares, a esta pode ser equiparada.
Invoca o recorrente dois acórdãos da Relação de Lisboa (o de 10 de dezembro de 2020, proc. n.º 139/17.3IDLSB-A.P1, relatado por Calheiros da Gama, e o de 8 de setembro de 2021, proc. n.º 1975/20.9TXLSB-A.L1-3, relatado por Florbela Sebastião e Silva, também acessíveis in www.dgsi.pt), que perfilham a sua tese e os argumentos que invoca.
Alega também o recorrente que a restrição da aplicação às pessoas singulares do instituto do cancelamento provisório do registo criminal viola o princípio da igualdade, consagrado constitucionalmente, o qual, em conjugação com o artigo 12.,º, n.º 2 da Constituição conduz a uma equiparação destas (pese embora não absoluta) com as pessoas singulares.
Vejamos.
Os elementos literal e histórico de interpretação da norma em questão (o artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio) apontam claramente no sentido perfilhado pelo despacho recorrido, isto é, da não aplicação às pessoas coletivas do instituto do cancelamento provisório do registo criminal.
O conceito de “readaptação” como requisito desse cancelamento e a remissão apenas para preceitos relativos a certificados de pessoas singulares leva-nos a afirmar que a letra do preceito não contempla as pessoas coletivas como possíveis beneficiárias do cancelamento provisório do registo criminal.
Esse artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, sobrepõe-se ao artigo 229.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, invocado pela recorrente, não só por lhe ser posterior como porque é ele que define os requisitos substantivos do cancelamento provisório do registo.
Poderia dizer-se que à letra da lei deve sobrepor-se o seu espírito, a sua ratio, que o legislador não disse tudo o que queria e, por isso, se impõe uma interpretação extensiva desse artigo 12.º. No entanto, se atendermos à história do preceito, não poderemos concluir que tenha sido outra a intenção do legislador histórico. A um regime anterior que não excluía as pessoas coletivas do cancelamento provisório do registo sucedeu-se outro que, numa interpretação literal das normas em questão, as exclui. Parece claro que se fosse outra a intenção do legislador histórico, ela teria definido de outra forma os requisitos do cancelamento provisório e não teria limitado a remissão do aludido artigo 12.º apenas para preceitos relativos a certificados de pessoas singulares, excluindo o preceito que é relativo a certificados de pessoas coletivas.
Também poderia dizer-se que o elemento histórico de interpretação deverá ceder diante do elemento racional de interpretação, a ratio da norma na sua objetividade, para além da intenção do legislador histórico, designadamente porque o princípio constitucional da igualdade imporá a equiparação das pessoas coletivas às pessoas singulares para este efeito.
No entanto, podemos dizer que o diferente tratamento das pessoas singulares e pessoas coletivas para este efeito não fere o princípio constitucional da igualdade. Há razões objetivas (bem expostas no despacho recorrido) que justificam essa desigualdade de tratamento. Trata-se de tratar de forma desigual o que é desigual, não de tratar de forma desigual o que é igual.
É certo que outra, e igualmente legítima, poderia set a opção do legislador. Este poderia equiparar o tratamento de pessoas singulares e coletivas para este efeito, baseando-se nas razões invocadas pelo recorrente e nos acórdãos por ele invocados. Mas não nos cabe, nesta sede, substituir-nos ao legislador, cabe-nos respeitar a sua opção, que se situa na margem de liberdade de opção política permitida pela Constituição.
É de salientar que, se é certo que nalguns aspetos do regime do registo criminal, o legislador não equiparou o tratamento das pessoas singulares e das pessoas coletivas (como este que nos ocupa, do cancelamento provisório do registo, ou o da não inscrição de condenações no registo), tendo em conta a especificidade de umas e outras, ele não deixou de optar por tal equiparação noutros aspetos (como o cancelamento definitivo do registo). Por outro lado, há que considerar a possibilidade de reabilitação da pessoa coletiva, no que se refere a alguma das penas em que tenha sido condenada, prevista nos artigos 90.º-J, n.º 3, e 90.º-L, n.º 3, do Código Penal, o que as beneficia de acordo com a sua especificidade e a especificidade dessas penas. Trata-se, também neste aspeto, de tratar (agora em sentido que poderá considerar-se mais favorável) de forma desigual o que é desigual, porque específico das pessoas coletivas.
O despacho recorrido não é, pois, merecedor de reparo.
Deverá, então, ser negado provimento ao recurso.

A recorrente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 153.º, n.º 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).


V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Condenam a recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique.

Porto, 12 de outubro de 2022
(processado em computador e revisto pelo signatário)

Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio
______________________
[1] Norma que sucedeu ao art. 16.º-L57/98-18 agosto, alterada pela L114/2009-22 setembro.
[2] Sobre o conceito de conteúdo de emissão, cfr. Noções de Registo Criminal, Almedina, Maio 2001, Maria do Céu Malhado, a fls. 364-ss, &606-ss, em especial 611.
[3] Cfr. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 182
[4] Cfr. Guilherme Moreira, in Instituições de Direito Civil Português, I, p. 45
[5] Cfr. NUIPC 2137/10.9TABRG-A.G1, Ac. de 6 fevereiro 2017, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Miguel Lopes, acessível em www.dgsi.pt
[6] cfr NUIPC 493/18.0IDLSB-A.L1-3, Ac. de 13 janeiro 2021, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira, acessível em www.dgsi.pt
[7] Cfr. PUR 270/21.0TXPRT-A.P1, Ac. de 22 setembro 2021, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Paulo Costa, acessível em www.dgsi.pt