Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
545/19.9PBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA PIRES
Descritores: ANIMAIS CANINOS
ANIMAIS PERIGOSOS
OFENSAS CORPORAIS
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
OFENSAS GRAVES
NORMA ESPECIAL PENAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
QUEIXA
Nº do Documento: RP20230215545/19.9PBMAI.P1
Data do Acordão: 02/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, COM OS INERENTES REFLEXOS AO NÍVEL DOS PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – Decorre do preâmbulo do Decreto-Lei nº 315/2009, que, pela experiência adquirida com a aplicação da legislação anterior, conclui-se que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime.
II – Até à entrada em vigor daquele diploma, as lesões nos bens jurídicos através de condutas provocadas pela intervenção de animais eram integradas, no plano jurídico-criminal, exclusivamente em normas do Código Penal, mas com tal diploma surgiram outras normas penais, colocando-se a questão de como relacionar tais normas incriminadoras com as do Código Penal.
III – O legislador não pretendeu qualquer descriminalização de condutas, antes teve o intuito de reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos protegidos, tudo face à disseminação de pessoas com animais de companhia que, designadamente, os passeiam na via pública.
IV – Assim sendo, será possível extrair com bastante clareza o entendimento do legislador no sentido de que, se a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, não se pode, sob pena de contradição e ausência de justificação perante a demanda da sociedade civil, seguir o caminho da descriminalização.
V – O que resulta do diploma em questão é que o legislador procurou vincar a preocupação com crimes desta natureza e consolidar o regime que decorria da aplicação do Código Penal, ao abrigo do qual as condutas de ofensas à integridade física causadas por animais eram integradas, estabelecendo garantias acrescidas de combate à criminalidade envolvendo animais.
VI – Ainda que não haja queixa para desencadear o necessário procedimento criminal, o legislador entendeu que há uma necessidade de intervenção da autoridade pública no âmbito contraordenacional, isto porque não se tem conseguido dissuadir os comportamentos menos cuidadosos dos detentores de animais, colocando em risco a saúde e a vida de outras pessoas e de outros animais.
VII – Quanto a ofensa à integridade física simples por negligência, pelo facto de o legislador considerar que carece de menor tutela, continuou, em termos criminais, a colocar nas mãos do ofendido tal disponibilidade, mas assegurando, a nível subsidiário uma tutela contraordenacional, por entender dever haver alguma consequência legal para tal ocorrência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 545/19.9PBMAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 2


Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório

No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 545/19.9PBMAI, correu termos pelo Juízo Local Criminal da Maia foi proferida sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, com o seguinte dispositivo:

«Em face do exposto, decidimos:
1. Absolver o arguido AA da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, n.º 1 por que vinha acusado.
2. Absolver da instância a Companhia de Seguros “A..., S.A.”.
3. Sem custas crime pelas mesmas não serem devidas.(…)»

Inconformado com a decisão absolutória, dela interpôs recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
D – CONCLUSÕES:
I – Da subsunção jurídica como crime:
1.º No âmbito dos presentes autos, o arguido AA foi absolvido pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, por se ter considerado que os factos dados como provados integram a prática da contraordenação, prevista no artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
2.º No que concerne à matéria de facto, o Ministério Público nada tem a impugnar considerando que o Tribunal a quo fez uma correta apreciação da prova com a devida fundamentação.
3.º Todavia, o Ministério Público não concorda com a subsunção jurídica feita pelo Tribunal recorrido, que até tem relativo apoio jurisprudencial.
4.º A argumentação defendida na sentença sindicada e na jurisprudência que a sustenta encontra-se viciado por uma premissa falsa: a relação de especialidade entre o artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e o artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro.
5.º A relação entre as normas elencadas no artigo 4.º desta peça recursiva não é de especialidade mas subsidiariedade (neste caso expressa), atendendo ao teor do artigo 36.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro onde é referido expressamente que quando o mesmo facto é punível a título contraordenacional e penal, o agente só é punido pelo crime, sem prejuízo da sanção acessória da contraordenação.
6.º No caso sub judice onde os factos preenchem duas normas simultaneamente, só haverá punição a título contraordenacional, se não tiver sido apresentada queixa pelo ofendido, já que o crime previsto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal tem natureza procedimental semi-pública, de acordo com o seu número 4.º.
7.º Tal conclusão retira-se através do recurso ao elemento gramatical, ou seja, à letra da lei (de resto o ponto de partida para da interpretação).
8.º Ao contrário do que diz a sentença que a “qualificação de uma conduta não pode ficar dependente de um tal exercício, sob pena de nos confrontarmos com duas situações semelhantes, a terem tratamento diferenciado pelo exercício de queixa (crime) ou por esse direito não ter sido exercido (contraordenação)” respondemos que é mesmo assim já que foi essa a intenção do legislador.
9.º Mas o nosso raciocínio também é defensável em termos interpretativos com recurso ao elemento lógico, por ora circunscrito ao elemento sistemático, concretamente ao contexto da lei e aos lugares paralelos.
10.º Quanto à análise do elemento sistemático cumpre referir que todos os crimes previstos no diploma avulso têm natureza pública não existindo qualquer crime nesse diploma que tenha natureza semi-pública. Por outro dado, os crimes que podem ter como origem o ataque de animais e que sempre tiveram natureza pública não foram contemplados neste diploma extravagante (o homicídio doloso e o homicídio negligente).
11.º Quanto aos lugares paralelos, chamamos a atenção da violação do artigo 18.º, do Código da Estrada, situação que não é enquadrável no artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mas servirá como fonte para o preenchimento do conceito de negligência previsto no artigo 15.º do Código Penal, que conduzirá ao preenchimento do artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, no caso de o ofendido apresentar queixa pois, em caso diverso, o facto apenas será punível a título de contraordenação, nos termos do artigo 18.º, n.º 4 do Código da Estrada, o que assim não será caso a queixa exista, por força do disposto no artigo 134.º, n.º 1, do último diploma codificado. Ou seja, estamos perante outra situação em que o arguido só é punível pela prática de crime se o ofendido apresentar queixa.
12.º Mas a tese defendida neste recurso é possível ser defendida através do recurso, novamente, ao elemento lógico, concretamente quanto ao elemento racional ou teleológico, pretendendo-se analisar a razão de ser lei (“ratio legis”) e as circunstâncias que motivaram ou da conjuntura que motivou a elaboração do diploma legislativo (“ocasio legis”).
13.º No que à ocasio legis diz respeito, o legislador foi muito claro no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro ao referir que pela “experiência adquirida (…) conclui-se (…) que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime”.
14.º Parece evidente que o que o legislador pretendeu foi agravar a punibilidade e, em caso nenhum desagravá-la.
15.º Quanto à ratio legis defendemos que o legislador decidiu assegurar a punibilidade, embora com critérios de proporcionalidade, independentemente da vontade do ofendido.
16.º Assim, os casos de ofensas dolosas com animais passaram a ter natureza pública, assim como ocorre nas ofensas negligentes graves.
17.º Nada se alterou quanto ao homicídio doloso e negligente, pois já tinham natureza pública, ficando a sua tutela coberta em termos gerais pelo Código Penal.
18.º Quanto a ofensa à integridade física simples por negligência, pelo facto de o legislador considerar que carece de menor tutela, continuou, em termos criminais, a colocar nas mãos do ofendido tal disponibilidade, mas assegurando, a nível subsidiário uma tutela contraordenacional, por entender dever haver alguma consequência legal para tal ocorrência.
19.º Pelas várias razões expendidas entendemos que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação ao considerar que a contraordenação do artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro, impede a subsunção dos factos dados como provados ao artigo 148.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
20.º Acrescentamos, ainda, que uma interpretação dos dois elencados preceitos no sentido dado pela sentença, conduz a uma inconstitucionalidade orgânica, que expressamente se invoca, nos termos dos artigos 198.º, n.º 1, alínea b), 165.º, n.º 1, alínea c) e d), da Constituição da República Portuguesa, por violação do sentido e alcance dado pela Lei de Autorização Legislativa n.º 82/2009, de 21 de Agosto (emanada pela Assembleia da República que apenas conferiu ao Governo autorização para definir ilícitos criminais correspondentes à promoção ou participação com animais em lutas entre estes, definir ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física de pessoa causada por animal, por dolo do seu detentor, definir ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física grave de pessoa causada por animal, por violação de deveres de cuidado pelo seu detentor).
21.º Assim, pelos argumentos aduzidos entendemos que o raciocínio elaborado pelo Tribunal a quo não deve proceder devendo o Tribunal ad quem, ao invés, considerar que os factos são subsumíveis ao artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal e, consequentemente, condenar o arguido por tal crime.

II – Da escolha e determinação da pena:
22.º O crime imputado ao arguido é punível com pena de prisão até 1 (um) ano ou com pena de multa até 120 dias (artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal).
23.º Nos casos em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma pena privativa e de uma pena não privativa da liberdade, deverá o Tribunal dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção, o que sucede in casu.
24.º Relativamente à determinação da medida e concretamente no que à prevenção geral diz respeito, importa assegurar a confiança que a comunidade sente na tutela da sua segurança e integridade física. A liberdade do cidadão de poder circular na via pública em segurança e sem receio de ser atacado por animais domésticos impõe aos donos de animais domésticos que assegurem, de forma adequada, a vigilância e contenção destes.
25.º Em relação aos factores concretos da medida da pena relativos à execução do facto, importa dizer que a negligência se verificou a dois níveis, não só quanto a falta de açaimo, mas também, quanto à não utilização de trela o que aumenta o grau de ilicitude existente.
26. Acresce, ainda, as consequências decorrentes dessa negligência, por um lado um período de 18 (dezoito) dias de doença, todos eles com incapacidade para o trabalho geral e profissional, e por outro a existência de consequências permanentes, concretamente cicatrizes, ainda que pouco notórias.
27.º No que toca à culpa, deporá a favor do arguido o facto de não se ter provado se as infracções fontes da negligência foram praticadas com dolo, ou também com negligência, o que na dúvida ter-se-á que considerar que foram também negligentes, o que faz a culpa assumir um grau mais ténue.
28.º Quanto às necessidades de prevenção especial, conclui-se que as mesmas não terão grau elevado, em virtude, desde logo pelo facto de o arguido não ter condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.
29.º Assim, entende-se que a pena de multa mostra-se apta a realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição,
30.º Fixada em 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), de acordo com as condições económicas do arguido (reformado, não auferir qualquer pensão ou subsídio, de viver com a progenitora, que o sustenta e ter, apenas, o primeiro ano de escolaridade), perfazendo um total de €350,00 (trezentos e cinquenta euros).
31.º No que concerne à sanção acessória (atendendo ao disposto no artigo 36.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 15/2009, de 29 de Outubro) e apesar de não ser automática entendemos, em face da factualidade apurada, onde se realça as consequências ocorridas, dever ser aplicada a sanção acessória de privação do direito de detenção de cães perigosos ou potencialmente perigosos, nos termos do artigo 30.º-A, n.º 1, alínea b), pelo período máximo de 2 (dois) anos.

Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em conformidade, ser proferido douto acórdão que revogue a sentença sindicada, por deficiente interpretação e aplicação dos artigos 38.º, n.º 1, alínea r), e 36.º, n.º 3, ambos do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, 1.º e 2.º, da Lei n.º Lei 82/2009, de 21 de Agosto, 198.º, n.º 1, alínea b) e 165.º, n.º 1, alíneas c) e d), ambos da Constituição da República Portuguesa, e por não aplicação do artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal,:
a) Julgue inconstitucional a interpretação feita pelo Tribunal a quo, no sentido de considerar que o artigo 38.º, n.º 1, alínea r, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, afasta a punibilidade dos factos dados como provados, ao abrigo do artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 198.º, n.º 1, alínea b) e 165.º, n.º 1, alíneas c) e d), ambos da Constituição da República Portuguesa; e
b) Condene o arguido, nos termos propostos.
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O arguido não apresentou resposta.
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A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta[1], neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos invocados no recurso, pronunciou-se no sentido da respetiva procedência devendo o arguido ser condenado em conformidade.
Salientou, quanto ao mérito do recurso, o seguinte (excerto que aqui transcrevemos, pela sua particular relevância):
«(…) Entende-se que existe razão ao Recorrente ao considerar que a conduta praticada pelo arguido - violação do dever de cuidado e vigilância relativamente ao seu canídeo que não usava açaime na via pública e que já anteriormente havia mordido e causado lesões físicas a outra pessoa, tendo atingido fisicamente a dona de outro canídeo e causando-lhe as lesões descritas nos factos provados, - preenche os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física simples negligente, previsto no artigo 148.º do Código Penal.
Sendo tal conduta simultaneamente punida a titulo de contraordenação, ao abrigo do disposto no artigo 38.º, n.º1 r) do D/L 315/2009, deverá prevalecer o crime, conforme dispõe o artigo 36.º n.º3, do citado diploma, desde que obviamente tenha sido exercido o direito de queixa por parte do titular do bem jurídico que o legislador pretendeu proteger com a incriminação.
É manifesto que o legislador quis criar, conforme é explicado não só na Lei de autorização legislativa, quer no preambulo do D/L 315/2009, uma protecção acrescida relativamente à detenção de animais de companhia, com as características definidas no artigo 3.º do D/L 315/2009 de 29-10, não ficando impunes os comportamentos negligentes, que embora não tenham provocado consequências consideradas graves, ainda assim colocaram em causa a segurança de outras pessoas e em concreto a sua integridade física.
Este entendimento do legislador não é novo, nem ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, é controverso, estando presente em todas as actividades humanas que pela sua natureza envolvam riscos não totalmente controláveis pelo homem e que por isso necessitam de mecanismos mais apertados de vigilância e de persuasão, como é o caso também da condução de todos os veículos a motor na via pública, como bem refere o magistrado do Ministério Público em 1ª instância, estabelecendo-se também no Código da Estrada a regra da prevalência da conduta criminal quando a infracção possa constituir crime e contraordenação, contendo o tipo legal criminal a totalidade do desvalor da acção.
No caso de concurso entre crime contraordenação o critério utilizado para o concurso de infracções é o da natureza da infração e a sua maior gravidade, salvaguardando-se, no entanto, a possibilidade de não havendo condenação pelo crime poder ainda o arguido ser punido pela contraordenação, o que demonstra mais uma vez a intenção clara do legislador de que aquela conduta não fique impune.
Assim, se considerou, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10- 2-2020 e publicado na integra em www.dgsi.pt, aí se dizendo, nomeadamente, que «Ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artigo 148.º n.º1 do Código Penal, excluindo a contraordenação, prevista no artigo 38.º n.º1 al. r), por subsidiariedade (ex vi artigo 36.º n.º3)..».
Mais ainda se refere «Assim, somos levados a concordar com Plácido Conde Fernandes, ob. cit pág. 318, segundo o qual o concurso de normas deve ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar a proteção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal (nem podia por apenas versar sobre uma ínfima parte das ofensas, as que são cometidas com meio perigoso, e dentro destas apenas aquelas em que foi usado um animal). E, acrescentamos nós, a não ser assim colocar-se-ia a questão da inconstitucionalidade orgânica do referido diploma, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1 al. c) da CRP, cfr. Lei de Autorização Legislativa nº 82/2009, de 21.08.
Desta forma, assiste razão ao Recorrente, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física Simples Negligente, previsto e punido no artigo 148.º, n.º1, do Código Penal, com a eventual ponderação da aplicação da sanção acessória previstas no artigo D/L 315/2009 de 29-10.»
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido colhidos os vistos, após o que o processo foi à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Podemos, assim, equacionar como questão colocada à apreciação deste tribunal:
- Saber se os factos que constam do despacho de acusação e da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida são, nesta situação concreta, efectivamente subsumíveis ao tipo legal previsto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal ou se, pelo contrário, apenas integram a prática de uma contraordenação, prevista pelo artigo 38.º, n.º 1, alíneas d) e r), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, por força de se ter operado uma descriminalização.
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
II.1. FACTOS PROVADOS
Realizada a audiência de julgamento, dela resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de Julho de 2019, cerca da 15h15, na Rua ..., em ..., Maia, o arguido passeava o seu cão de companhia, registado sob o n.º ..., com o nome “M...”, de raça indefinida, sem trela nem açaime.
2. Na mesma ocasião de tempo e lugar, a ofendida BB passeava, segurando-o com trela, um cão de companhia de raça Pinscher, de nome “Hulk”, pertencente à sua irmã CC.
3. Ao chegar ao edifício com o número de polícia ... daquela rua, o cão do arguido, ao cruzar-se com o cão passeado pela ofendida BB, abocanhou-o pelo tronco, sacudiu-o, atirou-o ao ar e, já após este se encontrar caído no chão, mordeu-o por diversas vezes.
4. Nesse momento, porque a ofendida agarrou o cão que passeava numa tentativa de o proteger dos ataques do cão do arguido, este mordeu-a na parte anterior do braço direito junto ao cotovelo, na mão esquerda, na zona dorsal do lado direito e na coxa direita.
5. Na sequência da conduta do canídeo, a ofendida sofreu, de imediato, ferida penetrante na fossa cubital direita e dores nas zonas do corpo atingidas.
6. Como consequência direta e necessária da conduta do cão do arguido, BB sofreu ainda as seguintes sequelas, que lhe determinaram 18 dias para a consolidação médico-legal, com afetação ligeira da capacidade para o trabalho geral e com afetação da capacidade para o trabalho profissional de 18 dias:
- no tórax, área hiperpigmentada acastanhada de aspeto cicatricial na metade lateral da região escapular esquerda, com 5,5cm por 4cm de maiores dimensões;
- no membro superior direito, dores ligeiras associadas a esforços; e cicatriz linear, levemente irregular, na face anterior do cotovelo, com 1,5cm de comprimento, com periferia levemente acastanhada;
- no membro superior esquerdo, escoriação com crosta hemática, na região anterior da falange distal com diminuição referida da sensibilidade, com 0,3cm que consolidou em cicatriz linear, levemente irregular, de comprimento infracentimétrico, no dorso do punho;
- no membro inferior direito, equimose arroxeada localizada no terço proximal da região medial da coxa, com 2cm de diâmetro e escoriação com crosta hemática ténue localizada no terço proximal da região medial da coxa, com 8cm de comprimento.
7. O cão do arguido já havia, no ano de 2016, mordido o braço direito de CC, irmã da ofendida BB, assim como já havia mordido a mãe destas, em data não concretamente apurada, pelo que o arguido sabia o concreto perigo que o seu cão representava para a integridade física de terceiros e que sobre si recaía um especial dever de vigilância, que implicava a utilização dos meios de contenção adequados no seu cão, designadamente de açaime e de trela.
8. Mesmo representando como possíveis as agressões que o canídeo podia dirigir à ofendida ou a terceiros, o arguido confiou que tal não sucederia, e permitiu que o seu cão circulasse na via pública sem os referidos meios de contenção, omitindo o cuidado e as devidas precauções que lhe eram exigíveis e de que era capaz.
9. O arguido dispunha de vontade livre e de plena capacidade para avaliar o desvalor da sua conduta e se autodeterminar de acordo com essa avaliação e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELA DEMANDANTE CC (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
10. O cão Pinscher atacado era propriedade da lesada.
11. A demandante não se encontrava em casa e por isso a assistente passeava o Pinscher da demandante.
12. A demandante tinha pelo seu Pinsher um carinho e um amor indizíveis, como se de um filho se tratasse.
13. A demandante não tem filhos e o Pinscher representava esse papel na vida da demandante. 14. Vivia com a demandante, era mais que o seu animal de companhia, pernoitava frequentemente com ela na mesma cama, a demandante cuidava dele, levava-o ao veterinário, alimentava-o, passeava-o, dava-lhe banho, brincava com ele, cuidava dele quando estava doente, sendo como o filho que a demandante não tinha.
15. Com a morte do seu cão, a demandante padeceu de uma angústia tremenda, tristeza, desolação.
16. Em consequência do crime praticado, sentiu a assistente uma forte e insuportável dor.
17. Um sofrimento atroz que a acompanhou numa longa e penosa recuperação que a traumatizou psicologicamente.
18. A demandante quando recebeu a notícia do falecimento do seu “filho”, entrou em completo pânico e desespero, além de ter sido invadida por um fortíssimo sentimento de impotência pois nada podia fazer para salvar o seu “filho”.
19. Durante muito tempo isolou-se no seu lar, evitando sempre que lhe era possível contacto com o mundo exterior, pois temia que o cão do arguido repetisse os mesmos factos, pois esta já não era a primeira vez que o mesmo cão atacava membros da sua família.
20. De facto, o cão do arguido já a havia mordido anteriormente, bem como à sua mãe.
21. Viveu num estado de medo e em constante sobressalto aquando das necessárias deslocações que teve que fazer.
22. Aliás, ainda hoje teme ser vítima de novo ataque não se encontrando psicologicamente recuperada.
23. Em consequência do incidente, passou a sofrer de insónias, falta de apetite, depressão, passando a carecer de assistência médica especializada, do foro psiquiátrico.
24. São inúmeras as noites em que não consegue adormecer, tendo de recorrer frequentemente a sedativos e calmantes.
25. Alguns dos seus hábitos de convívio e divertimento foram alterados, deixando de passear a pé pelos locais onde o fazia anteriormente.
26. Viveu momentos de profunda dor e desespero que foram causa necessária e suficiente para que ainda hoje não se encontre psicologicamente recuperada.
27. Ainda hoje quando fala no seu Pinscher não consegue conter as lágrimas.
28. Sofre com a lembrança do ocorrido, o que lhe causa diversos transtornos, nomeadamente angústia e depressão.
29. Lembrança esta que fez com que a assistente ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
30. A assistente era uma pessoa alegre, dinâmica, cheia de saúde e de vida e em virtude da conduta do arguido transformou-se numa pessoa mais apática, introvertida, receosa e insegura.
31. Todas estas circunstâncias criaram em si uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 32. A demandante havia adquirido o Pinscher pelo valor de €500,00.
33. O arguido transferiu a sua responsabilidade para a demandada “B..., S.A”, através do contrato de seguro com a apólice ..., tendo esta seguradora atribuído ao sinistro o n.º ... e a ocorrência n.º ....

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELA DEMANDANTE BB (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
34. A assistente viveu momentos de profunda aflição e desespero, chegando mesmo a acreditar que o cão do arguido iria por termo à sua vida e à do Pinscher que passeava.
35. A morte do Pinscher que passeava ocorreu de facto.
36. Como consequência directa e necessária da conduta do cão do arguido, a assistente sofreu lesões, que lhe determinaram 18 dias para a consolidação médico-legal.
37. A assistente sofreu dores fortíssimas e violentas, angústia, tristeza, humilhação, clausura hospitalar.
38. Em consequência do crime praticado sentiu a assistente uma forte e insuportável dor.
39. Um sofrimento atroz que a acompanhou numa longa e penosa recuperação que inevitavelmente a traumatizou psicologicamente.
40. A ofendida, pessoa respeitável na comunidade onde está inserida, em virtude do que lhe aconteceu, sentiu forte humilhação e vexame.
41. Durante muito tempo isolou-se na segurança do seu lar, evitando sempre que lhe era possível contacto com o mundo exterior pois temia que o cão do arguido repetisse os mesmos factos, pois esta já não era a primeira vez que o mesmo cão atacava membros da sua família.
42. O mesmo cão do arguido já havia mordido a sua mãe e irmã anteriormente.
43. Viveu num estado de medo e em constante sobressalto aquando das necessárias deslocações que teve que fazer.
44. Ainda hoje teme ser vítima de novo ataque, não se encontrando psicologicamente recuperada.
45. Em consequência do incidente, a assistente passou a sofrer de insónias, falta de apetite, depressão, passando a carecer de assistência médica especializada, do foro psiquiátrico.
46. São inúmeras as noites em que não consegue adormecer tendo de recorrer frequentemente a sedativos e calmantes.
47. Alguns dos seus hábitos de convívio e divertimento foram alterados, deixando de passear a pé pelos locais onde o fazia anteriormente.
48. Viveu momentos de profunda dor e desespero que foram causa necessária e suficiente para que ainda hoje não se encontre psicologicamente recuperada.
49. Sentiu-se com um sentimento de impotência perante o ataque que ambos sofreram.
50. Sofre com a lembrança do ocorrido, o que lhe causa diversos transtornos, nomeadamente angústia e depressão.
51. Lembrança esta que fez com que a assistente ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
52. A assistente era uma pessoa alegre, dinâmica, cheia de saúde e de vida e em virtude da conduta do arguido, transformou-se numa pessoa mais introvertida, receosa e insegura.
53. Todas estas circunstâncias criaram em si uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 54. A assistente no âmbito da sua actividade profissional tem de estabelecer contactos com clientes, dar aulas em ginásios, expressar-se oralmente, de forma enérgica, pelo que sofreu diariamente, e durante vários meses, com as limitações das sequelas que a acompanharam.
55. A assistente, à data do acidente, encontrava-se empregada, desempenhando as funções de instrutora de fitness, dando aulas de grupo e personal training.
56. Tinha um horário de 8 horas diárias, auferindo €1500,00 mensais.
57. A assistente esteve ausente da sua entidade patronal, por baixa e devido à actuação do arguido, entre os dias 20 de Julho e 8 de Agosto de 2019, ou seja, por um período de 18 dias.
58. A assistente teve ainda um prejuízo de €29,95 correspondente ao valor da camisa que vestia no dia do ataque e que ficou rasgada e inutilizada.
59. O arguido transferiu a sua responsabilidade para a demandada “B..., S.A”, através do contrato de seguro com a apólice ..., tendo esta seguradora atribuído ao sinistro o n.º ... e a ocorrência n.º ....

DA CONTESTAÇÃO DA “A..., S.A.” (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
60. A invocada apólice n.º ... titula um Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil – Detentores de Cães.
61. O contrato de seguro ora em apreço, iniciou a sua vigência no dia 31.01.2018 e foi celebrado entre o demandado AA e a contestante.
62. Nos termos da Lei e do contratado entre o arguido AA e a contestante, a mencionada cobertura de responsabilidade civil detentores de cães, prevista nesta apólice, possuía um capital máximo de €50 000,00 e uma franquia correspondente a 10% do valor do sinistro, com um mínimo de €50,00 e um máximo de €1250,00.
63. Os factos em apreço nos presentes autos foram participados à contestante, tendo dado origem a um processo de sinistro, no âmbito do qual, depois de devidamente analisados os factos que deram causa à reclamação apresentada pela demandante, levaram à conclusão de que está excluída a cobertura dos danos sofridos pela demandante BB.
64. O contrato de seguro foi celebrado entre o arguido e a contestante, tendo aquele indicado, como objeto seguro, o animal canino de raça indefinida, de sexo masculino e de nome “M...”.
65. O arguido, na qualidade de tomador do seguro, jamais indicou à demandada que o animal em apreço constituía um animal perigoso, nos termos da Lei, fosse aquando da apresentação da proposta de seguro que deu origem ao contrato, fosse posteriormente.
66. O tomador do seguro não procedeu à alteração desta apólice, dela fazendo constar que se tratava de um animal considerado perigoso, nos termos da legislação aplicável, nem mesmo depois de o canídeo aqui em questão ter mordido o seu irmão.
67. No dia 29.03.2018, pelas 17h00, DD encontrava-se no seu local de trabalho, sito na Rua ..., ..., Maia, na companhia do seu irmão, o aqui arguido e do canídeo denominado M....
68. Quando, a dado momento, o DD se aproximou do quadro elétrico do seu local de trabalho, onde habitualmente se encontrava a comida destinada ao canídeo M..., propriedade do arguido, o referido animal, sem que nada o fizesse prever, atacou-o e mordeu-o por três vezes no braço esquerdo.
69. Em face deste ataque perpetrado pelo Martim, o irmão do arguido teve que se deslocar à Clínica Médica ..., Lda., onde recebeu os tratamentos médicos de que carecia, tendo ali realizado esta e mais três consultas médicas em momento posterior.
70. Sucede que nem mesmo depois de o M... ter mordido o seu irmão, o aqui arguido procedeu ao pedido de licença de detenção de animal perigoso, nem tão pouco a qualquer alteração à apólice identificada supra.
71. Acresce que veio agora ao conhecimento da demandada que o referido M... mordeu também a progenitora da assistente, bem como a sua irmã, tratando-se de um cão perigoso.
72. No dia e hora em que ocorreu o ataque em apreço nos presentes autos, o M... circulava pela via pública sem açaimo funcional, que não lhe permitisse comer nem morder, nem se encontrava devidamente seguro e preso com uma trela curta, até 1 metro de comprimento.
73. O animal em apreço era um canídeo de raça indefinida, nascido no dia 20 de Julho de 2015, pelo que, à data de 19 de Julho de 2019, estava prestes a completar 4 anos de idade.
74. A essa data, o M... era um macho adulto e plenamente desenvolvido, pesava não menos de 40 Kg e possuía mais de 50 cm de altura.
75. À indicada data, o M... era um cão robusto, de caracter independente, dotado de uma mandíbula proporcional ao seu peso e altura, possante e capaz de causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, o que, de resto, causou.
76. O referido canídeo foi cadastrado pelo respectivo proprietário na Junta de Freguesia ..., sempre com a categoria de animal de companhia e não como animal perigoso.

77. O ARGUIDO:
a) encontra-se reformado, não auferindo qualquer pensão ou subsídio;
b) vive com a progenitora, que o sustenta;
c) tem o 1º ano de escolaridade e
d) não tem antecedentes criminais conhecidos.
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II.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
a) nas circunstâncias descritas em 7., os factos tenham ocorrido 2 de Maio;
b) a ofendida CC é lojista em shopping e no âmbito da sua actividade profissional tem de estabelecer contactos directos com clientes, expressar-se oralmente, de forma simpática e afável com os clientes, pelo que sofreu diariamente, e durante vários meses, com as dificuldades e limitações das sequelas que a acompanham.
c) nas circunstâncias descritas em 35. a morte da própria assistente não ocorreu por um mero acaso;
d) nas circunstâncias descritas em 49., o Pinscher que passeava e por quem tinha um amor enorme morreu nos seus braços;
e) nas circunstâncias descritas em 56., a ofendida auferisse €20,00/hora, ou seja, auferia €160,00 dia;
f) tratava-se, à data, de um verdadeiro cão de guarda, sendo utilizado para esse efeito.
**
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O TRIBUNAL RECORRIDO FUNDAMENTOU A ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO QUANTO AO CRIME IMPUTADO NOS SEGUINTES TERMOS:

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III.1. O CRIME
Vinha o arguido[2] acusada da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148º, n.º 1 do C. Penal. Decorre do disposto naquele artigo que comete o crime em apreciação, “Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (…)”.
Protege-se, deste modo, a integridade física da pessoa humana, como corolário da consagração constitucional à inviolabilidade da integridade física e moral das pessoas (artigo 25º, n.º 1 da Constituição).
O crime de que ora curamos fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho (Cfr. Paula Ribeiro Faria, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 205).
A ofensa corporal tem que ser entendida com sentido médico-legal, como significando lesão corporal. À luz do Código Penal de 1982, bem como à luz do Código Penal revisto, ofensa corporal é a perturbação ilícita da integridade corporal e da saúde de outrem mas, em boa verdade e em rigor, as ditas ofensas corporais são ofensas pessoais porquanto elas podem ser de nível somático, de nível psíquico que altere o funcionamento perfeito de uma pessoa. Ou, dito de outro modo, lesão corporal é, em medicina legal, uma alteração anatómica ou psicológica, uma perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas. Saúde é uma expressão que deve ser entendida como um complexo de bem-estar físico, mental e social - cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal de 82, vol. 2, pág. 95.
Inexistindo qualquer referência nos autos a que o arguido tenha instigado o seu canídeo a atacar a ofendida, afastada fica uma actuação de natureza dolosa, pelo que o único ilícito criminal que lhe pode ser imputado é o crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo nº 1 do artigo 148º do C. Penal.
Tratando-se de um crime de resultado, “o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo”, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 10º do C. Penal, sendo certo que no caso não é “outra a intenção da lei”, pois à norma interessam tanto as actividades que produzem o resultado que visa evitar, como as omissões que permitem a sua produção.
Sendo inquestionável que a ofensa à integridade física da ofendida não resultou de uma acção do arguido[3], mas sim do comportamento de um animal de raça canina de que aquele é proprietário, o nexo de imputação do resultado típico ao arguido só pode ocorrer por omissão.
E, para que a comissão de um resultado por omissão seja punível, é necessário que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado (cfr. nº 2 daquele artigo 10º).
Assim, a imputação objectiva da conduta omissiva ao agente supõe a violação de um dever que especificamente sobre ele impende, derivando essa posição de garante e a inerente obrigação de evitar o resultado de uma relação fáctica de proximidade – digamos existencial – entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger, ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável.
Os cães vêm sendo utilizados pelo homem desde tempos imemoriais como animais de companhia e auxiliares de determinadas tarefas, sendo inegáveis os benefícios que se colhem do seu convívio. No entanto, tratando-se de animais irracionais, podem ter reacções susceptíveis de pôr em perigo a integridade física e até a vida dos seres humanos. Daí que a detenção dos mesmos por parte dos seus donos deva obedecer a determinadas regras destinadas a minimizar os perigos de eventuais ataques que possam protagonizar. Ciente desta realidade, feita presente com especial acuidade nos tempos mais recentes devido à proliferação de episódios com consequências funestas que mereceram ampla divulgação nos meios de comunicação social, o legislador preocupou-se em estabelecer normas destinadas a regulamentar a detenção de animais de companhia.
Embora as primeiras restrições se encontrem já no DL nº 317/85 de 2/8 (nomeadamente a proibição, estabelecida no nº 1 do artigo 12º, de presença “na via ou em quaisquer outros lugares públicos de cães sem açaime funcional, excepto quando conduzidos à trela ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios ou em provas e treinos”), à época o objectivo da lei restringia-se à implementação de medidas sanitárias destinadas a manter o país indemne de doenças de animais transmissíveis ao homem (zoonoses). Este diploma foi, entretanto, revogado pelo artigo 9º do DL nº 91/2001 de 23/3 (cujo art. 6º continuou a prever e punir, no seu nº 5, como contraordenação “a falta de açaime ou trela, no caso dos cães”) que, por sua vez, veio a ser revogado pelo artigo 19º do DL nº 314/2003 de 17/12 (que manteve, no nº 2 do artigo 7º e em idênticos termos, a proibição estabelecida no nº 1 do artigo 12º do DL nº 317/85, continuando a puni-la como contraordenação na al. a) do nº 1 do artigo 14º).
Só com a entrada em vigor do DL nº 276/2001 de 17/10, que se destinou a complementar as normas da Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia com vista à sua aplicação no território nacional, foi instituído o dever especial de cuidado do detentor de animais abrangidos por tal diploma (entre eles, obviamente, os cães, espécie que se enquadra na definição de “animal de companhia” contida na al. a) do art. 2º e em relação à qual também vêm estabelecidas condições particulares para a sua manutenção no art. 27º, ambos preceitos daquele diploma).
Assim, o art. 6º do referido DL estabeleceu que “incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou integridade física de outras pessoas”, dever esse cuja violação foi prevista e punida como contraordenação na al. a) do nº 3 do art. 68º.
Este diploma, logo no seu art. 2º, fornece diversas definições para efeitos do que nele se dispõe, destacando-se aqui a de “animal de companhia” (qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente, no seu lar, para seu entretenimento e companhia), “animal potencialmente perigoso (qualquer animal que, devido à sua especificidade fisiológica, tipologia racial, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais e danos a bens) e “detentor” (qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais). E, no seu capítulo VIII, contêm-se diversas normas específicas para a detenção e alojamento de animais selvagens ou de animais potencialmente perigosos.
O art. 1º do DL nº 315/2003 de 17/12 veio introduzir algumas alterações a este diploma, entre as quais uma alteração na redacção do art. 6º acima transcrito, de modo a alargar o dever nele previsto à salvaguarda da vida e integridade física de outros animais (“Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais”), mantendo o sancionamento como contraordenação da violação do dito dever “que crie perigo para a vida ou integridade física de outrem”.
A detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, veio, entretanto, a ser objecto de regulamentação autónoma com a entrada em vigor do DL nº 312/2003.
Mais uma vez se enunciam, no nº 2 do seu art. 2º, diversas definições legais para efeitos desse diploma, interessando-nos aqui as de “animal perigoso” (qualquer animal que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa; tenha ferido gravemente ou morto um outro animal fora da propriedade do detentor; tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um carácter e comportamento agressivos; ou tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica), “animal potencialmente perigoso” (qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em portaria do Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas.
Entretanto, o DL n.º 312/2003, de 17.12 foi expressamente revogado pelo artigo 44º do DL n.º 315/2009, diploma que no seu Preâmbulo dá conta de “Que a convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos, leva a que se legisle no sentido de que a estes animais sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível a ocorrência de situações de perigo não desejáveis.
Para além disso estabelecem-se algumas obrigações para os detentores de animais de companhia perigosos ou potencialmente perigosos, entre os quais se destacam a obrigatoriedade da existência de um seguro de responsabilidade civil, bem como de requisitos de idoneidade que possam garantir o cumprimento das normas de bem estar dos animais e de segurança de pessoas e bens.”
Este diploma mantendo no artº 11º um conteúdo idêntico ao que constava do artº 6º ao dispor “O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado ao dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas ou animais.”
Note-se que não se discute que o comportamento imputado ao arguido na acusação é havido como conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar o seu animal de raça canina, adequado à produção do resultado, que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física (simples) da ofendida, em sintonia com o art. 10.º, n.º 2, do CP e decorrente do dever especial de vigilância do detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso.
Este DL prevê expressamente a punibilidade das ofensas à integridade física negligentes, ao dispor no artigo 33º que “quem, por não observar os deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que a um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa, causando-lhe ofensas graves à integridade física, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Todavia, quando em causa esteja uma ofensa à integridade física que não seja considerada grave, prescreve a al. r), do n.º 1 do artigo 38º daquele preceito legal que “Constitui contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE): “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.”
Como assim, a questão a dilucidar reconduz-se, pois, à interpretação das normas em apreço, consistindo em determinar o seu conteúdo e o seu pensamento, não esquecendo que, nos termos do artigo 9.º do Código Civil, não deve cingir-se à letra da lei, que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência e que na fixação do sentido e alcance da lei se presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Não se justificando, aqui, um desenvolvimento acerca da temática dos elementos que regem a interpretação, a mesma pode sintetizar-se, como é doutrinária e jurisprudencialmente aceite, ao método que, partindo da interpretação literal (gramatical, linguística, verbal), se completa na interpretação lógica, deduzida de elementos racionais, sistemáticos e históricos, sendo ambas partes conexas de uma só e indivisível actividade (v. “Interpretação e Aplicação das Leis”, de Francesco Ferrara, traduzido por Manuel de Andrade, Colecção Cultura Jurídica, 2.º edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor Coimbra, 1963).
Ora, os crimes previstos na referida Secção II do Capítulo V do DL n.º 315/2009 estão tipificados nos artigos 32º e 33º deste respectivamente como “Ofensas à integridade física dolosas” e “Ofensas à integridade física negligentes” e, neste último caso (único que agora interessa), só atribuível a quem, por não observar deveres de cuidado e vigilância, cause a outra pessoa ofensas graves à integridade física.
Todavia, partindo dos factos que se apuraram, facilmente se constata não poder considerar-se grave, a ofensa à integridade física causada no corpo da ofendida, se nos ativermos também no que a este respeito dispõe o artigo 144º do C. Penal, ao elencar e prevenir as situações que devem ter-se por ofensas graves.
Por seu lado, o comportamento imputado ao arguido mostra-se contemplado expressamente, naquele artigo 38.º, n.º 1, alínea r), do DL n.º 315/2009, incluído na mencionada Secção III desse Capítulo, definido como negligente e, objectivamente, com resultado que exclui ofensas tipificadas como graves, sendo punido como contraordenação.
Da comparação do referido nesses artigos 33º e 38º, ressalta inequivocamente, em termos literais, que a distinção entre crime e contraordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves.
Por seu lado, a prevista aplicação subsidiária das normas constantes do Código Penal, consagrada naquele artigo 34º, não permite concluir que exista lacuna de previsão do comportamento imputado na acusação que tenha de ser preenchida através desse preceito, na medida em que essa conduta resulta enquadrável no citado artigo 38.º.
Analisando, por seu turno, o preâmbulo do DL n.º 315/2009, destaca-se que “Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos legais conclui-se, no entanto, que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime, reportando-se ao anterior Dec. Lei n.º 312/2003, de 17.12, entretanto alterado pelo Dec. Lei n.º 49/2007, de 31.08, a cuja revogação procedeu (seu art. 44.º, n.º 1, alínea a)), o que, realçando o propósito legislativo de criminalizar comportamentos antes apenas tipificados como contraordenação, não distinguiu quanto à caracterização das ofensas decorrentes.
Se assim é, essa ausência de distinção, porém, poderá ter-se ficado a dever à circunstância de, no anterior DL n.º 312/2003, não existir, ao nível da tipificação das contraordenações aí previstas, referência ao resultado da acção do agente infractor, tendo-se quedado pela definição dos comportamentos omissivos dos deveres impostos.
Deste modo, haverá que, para tanto, não conferir relevo a esse preâmbulo, já que, além de não constituir, em si mesmo, elemento proeminente de interpretação, não poderá conduzir a interpretação que contenda com as disposições do diploma.
Por seu lado, afigura-se compreensível que o legislador tenha operado distinções em razão do desvalor do resultado dos comportamentos, tal como acontece no domínio penal em sede de crimes contra a integridade física e, mesmo, no âmbito dos crimes por negligência.
Aliás, se alguma incongruência fosse vista perante o teor desse preâmbulo, não deixaria de ser meramente aparente, na medida em que neste, por natureza, não caberia uma explicitação pormenorizada dos elementos típicos da punibilidade.
A aplicação subsidiária daquele artigo 34º, não obstante a sua vertente generalizante, não poderá contrariar o que noutros preceitos, de carácter especial, se dispõe no DL n.º 315/2009, o que remete para a interpretação do concurso de normas que se verifica entre esse artigo 34º e o citado artigo 38.º, n.º 1, alínea r).
Na verdade, ainda que tendo ambas aptidão para serem aplicadas aos factos narrados na acusação, a norma especial (desse artigo 38.º, n.º 1, alínea r)) tem de prevalecer sobre a norma comum (desse artigo 34.º), dado que contém elementos especializantes, isto é, independentemente de que a última seja uma norma de aplicação subsidiária e, assim, destinada apenas a colmatar lacunas do diploma, todos ou alguns dos seus elementos constitutivos são reduzidos na sua amplitude por uma caracterização específica.
A não ser assim, haveria uma duplicação da punição do mesmo facto, em violação do princípio “ne bis in idem”, dado que, no caso, não se trata de que a mesma infracção constitua crime e contraordenação, em que o agente seria punido apenas pelo crime (art. 36.º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 315/2009), mas sim de erigir à categoria de crime comportamento que expressamente é tipificado como contraordenação.
Todos os elementos interpretativos confluem, pois, para que os factos narrados na acusação não constituam crime, mas sim contraordenação.
Aliás, estranho seria que, a uma norma de aplicação subsidiária, fosse conferida a dignidade de tipificar um crime, em detrimento das garantias da legalidade, da tipicidade e da intervenção mínima que ao direito penal são reservadas.
Não ignoramos porém a posição contrária defendida por CONDE FERNANDES, em “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, considerando que há concurso aparente entre o crime e as contraordenações previstas no DL nº 315/2009 de 29.10, “cuja violação constitua elemento do crime que são necessariamente consumidas pela incriminação porque não é permitida a dupla valoração; mas já não, sendo o concurso efectivo, face àquelas normas de cuidado e detenção e circulação de animal autónomas, embora com conexão objectiva ou subjectiva, que não se integram na mesma unidade de acção.”
E escreve ainda o mesmo autor que a “ofensa à integridade física negligentes (e animal), é punida pelo artº 33º, é lex specialis face ao artigo 148º nº3, do Código Penal, cuja principal diferença que traz é a natureza procedimental pública da infracção.”
Para este autor a contraordenação prevista na alínea r) do artigo 33º, não representa alguma descriminalização, antes se sancionando aqui a ofensa à integridade física simples, sem que tenha sido exercido o direito de queixa.
E continua defendendo que o concurso de normas deve ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar a protecção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal (nem podia por apenas versar sobre uma ínfima parte das ofensas, as que são cometidas com meio perigoso, e dentro destas apenas aquelas em que foi usado um animal); visa, tendencialmente, a implementação de um regime especial para as ofensas graves provocadas por animal a que deu azo uma conduta negligente; manteve-se a graduação punitiva; inovou-se quanto à natureza procedimental pública da promoção penal.
A ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, excluindo a contraordenação, prevista no artigo 38.º, n.º 1, al. r) do DL n.º 315/2009, por subsidiariedade (ex vi artigo 36.º, n.º 3).
Não tendo havido queixa, a ofensa à integridade física por negligência é sancionada pela contraordenação, prevista e punida pelo artigo 38.º, n.º 1, al. r), subsidiária face ao artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal.
A contraordenação inova, por prever o dano ao invés do mero perigo de lesão (como sucedia anteriormente), visando evitar que estas condutas fiquem descobertas de proteção porque o ofendido optou por abdicar do procedimento criminal.
Diz o mesmo autor que “A única alternativa a este entendimento, absurda por colidir frontalmente com a enunciada ratio legis e a mens legislatoris, seria a descriminalização das ofensas simples negligentes, nestes casos em que um animal é a fonte do perigo, mediante degradação sancionatória para aquela contraordenação”.
Não podemos, todavia, professar tal entendimento, pois que, segundo cremos, faz depender a incriminação a título penal ou contraordenacional de um sujeito, do exercício ou não do direito de queixa. A qualificação de uma conduta não pode ficar dependente de um tal exercício, sob pena de nos confrontarmos com duas situações semelhantes, a terem tratamento diferenciado pelo exercício de queixa (crime) ou por esse direito não ter sido exercido (contraordenação).
Por isso que, em consonância com o supra expendido, tendo seguido muito de perto o que a este propósito foi defendido no Acórdão da RE de 5.06.2012, relatado pelo Sr. Desembargador Carlos Berguete Coelho, disponível em www.dgsi.pt, afigura-se-nos que a conduta do arguido não pode ser criminalmente punida, mas tão só contra-ordenacionalmente, considerando ademais, que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A este propósito veja-se ainda o recente Acórdão da RP de 24.09.2020, n.º do processo 96/18.6GAVCD-A.P1, relator Desembargador Horácio Correia Pinto, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “O CP disciplina a ofensa à integridade física por negligência nos termos do artº 148 nº 1 – quem, por negligência, ofender o corpo ou saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um (1) ano ou com pena de multa até 120 dias. Por sua vez o D/L nº 315/2009 de 29/10 aprovou o regime jurídico da detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia. No seu preâmbulo o legislador é claro ao dizer: pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos (D/L nº 312/2003 de 17 de Dezembro e D/L nº 313/2003 de 17 de Dezembro) legais conclui-se, no entanto, que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime.
Este diploma foi elaborado no uso de autorização legislativa concedida pela Lei nº 82/2009 de 21 de Agosto, enquanto a norma prevista no artº 148 nº 1 do CP tem agora uma nova redacção, por força da revisão da versão originária do código, elaborada pelo D/L nº 48/95 de 15 de Março.
Apesar da subsistência do normativo previsto no CP (artº 148 nº 1), cuja abrangência compreende um sem número de condutas negligentes simples, o legislador, no artº 33 do D/L 315/2009 de 29/10, decidiu também disciplinar especialmente esta matéria como crime – ofensa à integridade física negligentes – quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa causando-lhes ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 (dois) anos ou com pena de multa até 240 dias.
O legislador deste diploma cria um crime de ofensas negligentes graves à integridade física, por falta de dever de cuidado ou vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos, com a mesma moldura abstracta que o crime de ofensa à integridade física grave previsto no artº 148 nº 3 do CP.
O procedimento criminal depende sempre de queixa – ofensas simples ou graves. Nesta comparação o novo diploma estabelece dois requisitos: a ausência de um dever de cuidado e vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos e que a lesão causada configure ofensa grave à integridade física.
A regra do artº 34 deste D/L (aplicação subsidiária) é tabelar e figura em quase todos os diplomas: em tudo o que não esteja expressamente previsto na presente secção são aplicáveis as normas constantes do CP, remissão transversal quer para a sua parte geral, quer para a sua parte especial.
Acontece que, está quase tudo expressamente previsto neste diploma sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos, incluindo a recriação de um tipo legal próprio com uma moldura penal abstracta em tudo idêntica à do CP – as ofensas negligentes graves, produzidas por animais … são punidas com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Este diploma (315/2009) reitera no artº 36 nº 3, o disposto no artº 20 do RG das contra-ordenações e coimas (D/L nº 244/95 de 14 de Setembro) – quando a mesma infracção constitua crime e contraordenação, o agente é punido apenas pelo crime, podendo-lhe ser aplicadas as sanções acessórias previstas para a infracção criminal ou para a infracção contraordenacional (concurso de infracções).
O legislador reafirma princípios observados para qualquer concurso aparente ou normativo: consumpção imperfeita. Esta situação só ocorre quando o facto típico é o mesmo, ou seja, quando o bem jurídico tutelado pelas normas em concurso é idêntico. O presente diploma é demasiado parcimonioso para que subsistam dúvidas e trata claramente determinadas condutas (ausência de dever de cuidado) como crime ou contraordenação.
Por isso no seu artº 38 nº 1, alª r) prescreve, sem margem para dúvidas: a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas corporais à integridade física que não sejam consideradas graves, constitui contraordenação punível com coima de 750,00€ a 5.000,00€ (pessoa singular).
O presente diploma entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010.
A norma do artº 148 nº 1 do CP foi elaborada com a publicação do CP e posteriormente revista, reportando-se a um vasto leque de situações omissivas, pelo que não tem sentido aventar qualquer descriminalização (voltaremos a esta matéria) já que o legislador, com o novo diploma, pretendeu autonomizar a ausência de dever de cuidado sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos.
Este diploma funciona como lei especial, distinguindo muito bem o que é crime do que é contraordenação, tudo depende do resultado, do tipo de lesão sobre o bem jurídico em discussão: integridade física.
Julgar que o disposto no artº 34 do citado diploma remete para o CP (aplicação subsidiária), no sentido de disciplinar esta matéria com recurso ao artº 148 nº 1 do CP, é ir longe de mais, dizer o que legislador não quis, caso contrário não criava um tipo legal como o previsto no artº 33 (ofensas à integridade física negligentes), por contraposição ao do artº 32 (ofensas à integridade física dolosas).
Aliás, se o artº 148 nº 1 do CP estivesse sempre de reserva para situações como esta e similares, nunca uma relação jurídica, por falta de vigilância com produção de ofensas não graves, integraria o normativo da contraordenação.
De facto não tem sentido remeter condutas desta natureza (especiais) para o regime comum, uma vez que o legislador especial quis disciplinar esta matéria e para isso criou tipologias concretas e diferenciadas – artºs 32, 33 e 38 nº 1, alª r), todos do D/L nº 315/2009 de 29/10.
A ideia de que a classificação como crime ou contraordenação possa ficar à mercê de um critério formal – exercício do direito de queixa – é inconsistente e contraria todo o diploma especial – D/L 315/2009 de 29/10.
A prevalência sobre o regime comum (artº 148 nº 1 do CP) deve ser encarada naturalmente, onde a vontade do legislador é expressa e inequívoca. O âmbito de aplicação das normas – regime geral e especial - é diverso, em alguns casos distinto.
O D/L 315/2009 de 29/10 cobre todas as relações jurídico- penais desta natureza: dolosas (artº 32), negligentes (artº 33) e contraordenacionais (artº 38 nº 1, alª r), funcionando como um regime completo (autossuficiente) para regular a detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
Estas normas são especiais e disciplinam matéria muito concreta, cujo objecto acima definimos.
As normas crime em confronto: artº 148 nº1 do CP e artº 33 do D/L 315/2009 de 29/10 têm por objecto relações jurídicas diferentes. O artº 148 nº1 do CP compreende um indeterminado número de condutas negligentes (omissões) que possam ofender o corpo ou a saúde. Inclui violação de um dever objectivo de cuidado generalizado, concretamente a diligência necessária para evitar a realização deste tipo legal de crime.
Em ambos os artigos previstos CP e D/L, estamos perante um tipo de ilícito negligente. O crime de omissão imprópria descreve aquelas duas tipologias, onde a violação do dever objectivo de cuidado derivou de o garante não ter representado a sua posição, mais concretamente, não se ter apercebido correctamente da situação típica. Apesar de tudo, a amplitude das tipologias é bem diferente: no artº 148 nº1 do CP estamos perante a não observância geral de um dever de cuidado, enquanto no artº 33 do D/L nº 315/2009 de 29/10 o recorte tipológico descreve um dever de vigilância sobre animais, perigosos ou potencialmente perigosos, que produziram lesões, ofensas graves à integridade física.
O tipo de culpa negligente é idêntico, manifestado num descuido ou leviandade face ao dever jurídico-penal mas, a sua concretização – descrição fáctica dos elementos do tipo – é distinta.
Não podemos deixar de expressar três aspectos que consideramos importantes em abono da tese proposta.
Em primeiro lugar a criação de um diploma especial para disciplinar estas concretas matérias resultado de condutas omissivas – dever de vigilância sobre animais perigosos ou potencialmente perigosos.
Em segundo lugar, resultado da elaboração desta lei especial, o princípio da aplicação da lei mais favorável, com as consequentes hipóteses de descriminalização.
Por último o recurso ao direito de mera ordenação social, com a criação de contra-ordenações, com propósito de satisfazer três ordens diferentes de objectivos: retirar do direito penal um largo número de infracções de nula ou duvidosa relevância ético-social, remetendo-as para o quadro do direito administrativo; a necessidade que essas infracções não fossem ameaçadas com penas criminais, mas com advertências sociais, sanções ordenativas ou coimas … e por último, a necessidade de revestir o processamento destas infracções, de especificidades que permitissem a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e controlo das respectivas actividades. Neste sentido J. Figueiredo Dias – Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, fls 158.
A opção do legislador ao criar um diploma especial foi retirar estas matérias do quadro de aplicação do artº 148 do CP, como também teve em vista, ao criar uma contraordenação, afirmar uma distinção material, optando por sancionar a conduta apenas com uma coima.
O princípio da subsidiariedade do direito penal vai até onde pode ir, porque é inegável a ampla autonomia do direito de mera ordenação social em categorias como: âmbito de vigência da lei contraordenacional; responsabilização de pessoas colectivas; culpa; erro e autoria. Obra citada, fls 164.
Em jeito de conclusão dizer ainda que a descriminalização e violação do princípio ne bis in idem merecem interpretação no quadro da lei especial. Efectivamente o artº 148 do CP não é descriminalizado porque a previsão da norma é muito ampla e vai para além do dever de vigilância de animais … O mesmo se diga quanto ao princípio ne bis in idem, já que claramente não está em causa. Os arguidos não vão ser julgados mais de que uma vez pelo mesmo crime porque a isso se opõe a lei especial que trata esta matéria como contraordenação, o que vale dizer que não há concurso aparente (consumpção) e no limite sempre funcionaria o disposto no artº 29 nº 5 da CRP… Julgamos que esta é a melhor interpretação teleológica das normas em confronto, o que de resto é reforçado por interpretações históricas e literais dos preceitos concorrentes. Por tudo, previsão da contraordenação (artº 38 nº 1, alª r do D/L 315/2009) é bem diferente. Refere-se à inobservância de deveres de cuidado e vigilância sobre animais … quando causam ofensas não graves à integridade física.
Posto isto, sabemos que os arguidos tinham o dever de vigiar o cão de modo a evitar eventuais lesões em terceiros, criando um risco não permitido. A produção do resultado deveu-se a falta de cuidado dos arguidos, que não evitaram, como podiam e deviam, a presença do animal na via pública, não adoptando os cuidados que lhes eram exigíveis para que o mesmo não fugisse do interior da sua residência, admitindo como possível que o animal nessas condições pudesse ofender a integridade física de alguma pessoa, como veio a suceder.
Resulta do despacho de pronúncia, suportado no exame medico-forense que o ofendido sofreu no crânio duas escoriações arredondadas … e as indicadas lesões demandaram oito dias para a consolidação médico-legal. Do evento resultaram para o ofendido, em termos de consequências permanentes, duas cicatrizes: uma na região peri-mamilar esquerda e outra ao nível da linha axilar anterior esquerda, que não desfiguram gravemente o ofendido nem interferirem com a sua capacidade formativa/geral.
A ausência de vigilância determinou o resultado: ofensa à integridade física, porém, considerada como lesão não grave.
Esta conduta integra o disposto no artº 38 nº 1, alª r) do D/L 315/2009 de 29/10.
Apesar desta conclusão vale a pena fazer um bosquejo sobre a marcha do processo e ver como a jurisprudência vem tratando esta matéria, não esquecendo o contributo da doutrina em termos de sucessão e interpretação de leis, com dominância do princípio da especialidade.
O tribunal, em momentos distintos, proferiu decisões diversas: em sede de inquérito o MP entendeu que os factos indiciados integram apenas a prática de uma contraordenação, o que levou ao arquivamento dos autos por ausência de responsabilidade criminal. Não obstante ordenou-se a extracção de certidões para serem enviadas à autoridade administrativa (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária) para implementar o processo contraordenacional. O assistente requereu abertura de instrução por considerar que a prova indiciária constitui substrato bastante para ser proferida pronúncia-crime dos arguidos B… e C…. Nos termos do despacho recorrido o tribunal pronunciou os citados arguidos, deduzindo uma verdadeira acusação, onde lhes imputou a responsabilidade pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência – artº 148 nº 1 e 15 alª a), ambos, do CPP.
De facto, há um amplo apoio interpretativo e jurisprudencial para que esta conduta seja integrada no crime de ofensas à integridade física por negligência.
A ofensa à integridade física por negligência causada por um cão potencialmente perigoso, por descuido do seu proprietário, de onde não resultaram lesões graves, em que tenha existido queixa do ofendido, vem sendo punida pelo crime previsto pelo artº 148 nº 1 do CP, ficando excluída a punição da conduta a título de contraordenação, prevista no artº 38 nº 1, alª r) do D/L nº 315/209 de 29/10 – Processo nº 114/17.8AVRM.G1 do TRG – 10/02/2020 – Relator: Desembargador Armando Azevedo.
O mesmo se pode dizer do Acórdão da RP, com data de 10/10/2007, no processo nº 0743233, que trata precisamente de um cão pastor alemão protagonista de agressão a outra pessoa com produção de ferimentos. Aqui, seguindo-se o mesmo raciocínio, perante omissão imprópria, a falta de cuidado é manifesta, pois os donos tinham que admitir a possibilidade de o animal causar danos indesejados, nomeadamente ferimentos nas pessoas. Estando em causa ofensas corporais simples, e não graves, causadas pelo cão do arguido, que não teve cuidado em o vigiar, como lhe competia, e tendo o assistente apresentado queixa, existe crime de ofensas corporais simples por negligência.
Apesar de esta ser a corrente jurisprudencial dominante, há alguns acórdãos que perfilham a integração da conduta como contraordenação – Acórdão do TRE, de 05/06/2012, no processo nº 193/10.9GACTX. in www.dgsi.pt, bem como o Acórdão do TRL, de 11/07/2018, no processo 73/16.4PHLRS-3, Relatora Adelina Barradas de Oliveira. – a não observância de deveres de cuidado ou vigilância, que der azo a que um animal ofenda o corpo ou saúde de outra pessoa, causando-lhe ofensas à integridade física, que não sejam consideradas graves, integra a conduta prevista no artº 38 alª r) do D/L 315/2009 de 29/10. Em nossa opinião, alguma doutrina e jurisprudência controversas encaminham-se para admitir um concurso de normas (concurso aparente ou normativo), sem que expressamente derroguem a norma prevista no artº 148/1 do CP. Desde que apresentada queixa, estabelece-se uma situação de concurso aparente entre o crime e a contraordenação, devendo o arguido ser punido a título de crime, esgotando-se o desvalor da contraordenação. O artº 36/3 do mesmo diploma é claro, pois quando o agente é punido simultaneamente a título de crime e contraordenação, prevalece o crime, podendo ser aplicadas sanções acessórias previstas para a violação destas normas. No presente caso a conduta é punida a título de crime e contraordenação porém como houve queixa deverá ser sempre punida como crime.
Nesta senda vai também o Acórdão do TRP, de 10/05/2017, no processo nº 124/4.GBOAZ.P1, in www.dgsi.pt – constitui crime de ofensa corporal simples por negligência p. e p. pelo artº 148 nº 1 do CP as ofensas causadas por um cão de raça Rotweiler, cujo detentor não teve o cuidado de vigiar, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, pois caso não tivesse procedido desta forma estaríamos perante uma simples contraordenação, prevista pelo artº 38, nº 1, alª r) do D/L 325/2009, o que bem se compreende. Estamos perante um crime de omissão imprópria. O resultado típico imputa-se ao arguido por não ter sabido evitar a sua produção, como se o tivesse produzido por acção, pois não era imprevisível o resultado, exigindo-se uma actuação diferente, com a diligência necessária para evitar a produção deste facto. A ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo artº 148/1 do CP, excluindo a contraordenação, prevista no artº 38/1, alª r), por subsidiariedade, ex vi artº 36/3, ambos do D/L nº 315/209 de 29/10.
No presente caso o que está em causa é uma ofensa simples à integridade física, considerada como não grave, causada por um cão potencialmente perigoso, consequência de descuido do dono. O caso mereceu queixa-crime mas esta circunstância não determina a qualificação da conduta. Este é apenas um critério formal (externo) inconsistente, perante o recorte das diferentes tipologias de crime e do tratamento autónomo destas matérias como contraordenação, desde que integrem o disposto no artº 38 nº 1, alª r) do D/L 315/2009 de 29/10. Em jeito de conclusão podemos dizer que o artº 20 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas e o artº 36 nº 3 do D/L nº 315/2009 de 29/09 preveem a hipótese de o mesmo facto constituir crime e contraordenação (concurso aparente), com a solução de que o agente será sempre punido a título de crime.
A sucessão de leis no tempo pode ajudar à compreensão deste pretenso concurso. O CP disciplinou a ofensa (simples) à integridade física por negligência de forma generalista, como falta de dever de cuidado, segundo o critério do artº 15 do CP. Aqui cabem inúmeras condutas omissivas, o que nos leva a falar de tipos abertos ou tipos omissivos impróprios, de que ao tipos negligentes são um bom exemplo – J. Figueiredo Dias – Direito Penal (Tomo I) Parte Geral – Coimbra Editora - fls 290. Já o diploma 315/2009 de 29/10 teve propósito claro de criar um regime jurídico quanto à detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
Esta matéria – tipo de ilícito nos crimes de omissão – precisa o dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio. O fundamento material geral residirá em que a comunidade tem de poder confiar em quem exerce um poder de disposição sobre um âmbito de domínio ou sobre lugar determinado, que se encontram acessíveis a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar de estados ou situações perigosas. Exemplo: os donos de animais perigosos … devem fiscalizá-los … Seguramente este caso de relações jurídicas tipificadas tem como pressuposto o dever de vigilância e o consequente dever de actuação no sentido de eliminação ou minimização do perigo – J. Figueiredo Dias, Obra Citada, fls 946/947. Doutrina consequente (dever de garante no controlo das fontes de perigo) com Jescheck/Weigend – Tratado de Derecho Penal – Parte General – Editora Comares – fls 675 (§ 59, 4, alª b). Veja-se ainda (dever de vigilância de coisas perigosas e do próprio âmbito de domínio) Claus Roxin – Derecho Penal – Parte Especial – Editora Thomson Reuters - Tomo II, §32, nº 108, fls 885.
O que nos parece óbvio é afirmar que o legislador quis criar um diploma específico para disciplinar estas matérias, legislando o regime jurídico previsto no citado D/L 315/2009. Criou dois tipos distintos: um doloso e outo negligente, diferenciados de qualquer outro tipo omissivo impróprio previsto no CP. Por outo lado as teses do concurso, com prevalência para o crime, esvaziam de sentido a contraordenação prevista no artº 38 nº 1, al r) do citado D/L, regime que nunca seria aplicado, ao arrepio da vontade do legislador.
O critério formal/externo, centrado no exercício de queixa, como elemento diferenciador, para sancionar a conduta como crime, é no mínimo atrevido, por controverso.
Se tivermos queixa podemos ter crime, caso contrário, a autoridade administrativa tratará a matéria como contravenção. O que define estas condutas como ofensas à integridade física dolosas; ofensas à integridade física negligentes e contraordenação são os distintos elementos materiais do tipo, muito bem vincados nas normas previstas nos artºs 32, 33 e 38 nº1 alª r) todos do D/L 315/2009 de 29/10.
Não sufragamos o despacho recorrido pelas razões acima invocadas. O arquivamento dos autos é a decisão mais consentânea com a legislação vigente, sem prejuízo da comunicação dos factos à autoridade administrativa, tudo como melhor descreve o despacho elaborado em inquérito pelo MP (…).
No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão da RL de 11.07.2018., n.º processo 73/16.4PHLRS., relatora Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira, in www.dgsi.pt. Impõe-se, destarte, a absolvição do arguido pelo crime por que vinha acusado pois que com o Decreto Lei nº 315/2009 de 29 de Outubro, a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves, passou a ser punida como contraordenação nos termos do artigo 38º nº1 alínea r), sendo certo que a morte de um animal por outro é sequer aqui chamado à colação, por não ser possível equacionar a prática de um eventual crime de dano por negligência, não punível criminalmente.

Uma última nota apenas para sublinhar que sendo da competência do Director Geral de Alimentação e Veterinária a punição das contra-ordenações, ordenar-se-á a remessa dos presentes autos para os fins tidos por convenientes àquela Direcção- Geral. – FIM DA TRANSCRIÇÃO
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Apreciando os fundamentos do recurso.
A tarefa que se impõe passa por determinar se a conduta descrita e imputada ao arguido e dada como provada, coincide com a descrição jurídico- penal legalmente prevista, de modo a que o arguido possa ser responsabilizado pela sua infracção a título de ilícito penal.
Subjacente a tudo isto teremos que indagar se foi ou não vontade do legislador descriminalizar as ofensas à integridade físicas simples, por negligência, quando infligidas por animais de companhia, neste caso por um canídeo.

O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previstos e punidos pelo artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal.
Prevê e estatui o aludido artigo 148.°, n.° 1, do Código Penal, que: «Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»
Ora, conforme decorre dos factos provados, o que se verificou foi que, por falta de cuidado do arguido, que lhe era exigível e possível, o cão sua propriedade – enquanto passeava na via pública sem trela nem açaime - atacou a ofendida BB causando-lhe as lesões melhor descritas nos factos provados (que não cabem na definição de ofensas corporais graves).

Vejamos as regras referentes a animais, sem esquecer que a pergunta subjacente a toda a situação – já acima o referimos - é a de saber se o Legislador pretendeu ou não descriminalizar as ofensas à integridade física simples por negligência quando causadas por animais.

O Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, estabeleceu as regras de protecção dos animais de companhia e, concomitantemente, previu o regime para a posse daqueles que, pelas suas características fisiológicas ou comportamentais, viessem a ser enquadrados como animais potencialmente perigosos.
Conforme se assinalou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro, os casos de ataques de animais, nomeadamente cães, a pessoas, causando-lhes ofensas à integridade física graves, quando não mesmo a morte, vieram alertar para a urgente necessidade de rever o Decreto-Lei n.º 276/2000 e de regulamentar, em normativo específico, a detenção de animais de companhia perigosos e potencialmente perigosos, com estabelecimento de regras claras e precisas para a sua detenção, criação e reprodução.
Foi assim que o Decreto-Lei n.º 312/2003 estabeleceu o regime jurídico de detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos como animais de companhia, que veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, presentemente em vigor (alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04/07, Lei n.º 110/2015, de 26/08, DL n.º 82/2019, de 27/06 e DL n.º 9/2021, de 29/01).

Diz-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 315/2009:
«Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos (referindo-se à legislação anterior) legais conclui-se, no entanto, que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime.
A convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos leva a que se legisle no sentido de que a estes animais sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível, a ocorrência de situações de perigo não desejáveis.
Para além disso, é necessário estabelecer obrigações acrescidas para os detentores de animais de companhia perigosos ou potencialmente perigosos, entre as quais se destacam a exigência de que reprodução ou criação de quaisquer cães potencialmente perigosos das raças fixadas em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas se faça de forma controlada, em locais devidamente autorizados para o efeito, com requisitos especiais quer no alojamento dos animais quer no registo dos seus nascimentos e transacções.»[4] - o itálico e a frase entre parêntesis são nossos.

O artigo 3.º contém as definições de animal de companhia, animal perigoso e animal potencialmente perigoso, definindo como potencialmente perigoso qualquer animal que devido às caraterísticas da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência da mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente, os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas por portaria. Houve preocupação do legislador, em abranger não só as “raças puras”, que pelas suas caraterísticas representam um maior perigo para os humanos, como também os cruzamentos com outras raças, mas em que se tenha obtido uma tipologia semelhante às raças puras.
Tal portaria, foi publicada em 2004 – Portaria n.º 422/2004 de 24 de abril –tendo-se declarado como raças potencialmente perigosas, as seguintes: I) Cão de fila brasileiro; II) Dogue argentino; III) Pit bull terrier; IV) Rottweiller; V) Staffordshire terrier americano; VI) Staffordshire bull terrier; VII) Tosa inu.

Dispõe o artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 315/2009:
«1- Constituem contraordenações puníveis com coima de (euro) 750 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60.000, no caso de pessoa coletiva:
(…)

r)- A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.»

Por sua vez, estabelece o artigo 33.º, sob epígrafe - Ofensas à integridade física negligentes: «Quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»

Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, as lesões nos bens jurídicos através de condutas provocadas pela intervenção de animais eram integradas, no plano jurídico-criminal, exclusivamente em normas do Código Penal.
Com o referido diploma, surgiram outras normas penais, como o transcrito artigo 33.º e os artigos 31.º, 32.º e 33.-A, colocando-se a questão de como relacionar tais normas incriminadoras com as do Código Penal, mais concretamente, no que agora nos importa, o artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 315/2009 com o artigo 148.º do Código Penal.
Com efeito, o artigo 148.º do Código Penal prevê a punição da ofensa negligente, com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, para as ofensas simples (n.º 1), e até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de ofensas graves (n.º 2).
Já o mencionado artigo 33.º prevê a ofensa grave com pena idêntica à prevista no n.º 3 do artigo 148.º do Código Penal, sem, contudo, prever a possibilidade de dispensa de pena nem a dedução de queixa como necessário impulso do procedimento criminal - (o que, do nosso ponto de vista, auxilia na orientação a seguir; segundo a qual o legislador não pretendeu qualquer descriminalização de condutas teve, sim, o intuito de reforçar a resposta punitiva existente, visando alcançar uma maior confiança da comunidade na proteção dos bens jurídicos protegidos. Tudo face à disseminação de pessoas com animais de companhia que, designadamente, os passeiam na via pública).

Da proposta de Lei n.º 224/X11, que está na origem da autorização legislativa contida na Lei n.º 82/2009, de 21 de Agosto, foi clara a motivação do legislador em “garantir que as sanções aplicáveis aos detentores de animais que causem lesões físicas a pessoas são um meio eficazmente dissuasor à sua prática”, pretendendo-se “criminalizar expressa e claramente as ofensas à integridade física humana causadas por animal, quer a título doloso, quer a título negligente por parte do seu detentor”.

Certo é que a jurisprudência, antes da vigência do regime do Decreto-Lei n.º 315/2009, já integrava no crime de ofensas à integridade física por negligência tipificado no Código Penal condutas em que o instrumento da ofensa havia sido um animal – questão que, tanto quanto julgamos saber, sempre foi incontroversa, doutrinal e jurisprudencialmente (ver ac. TRL de 11/04/2007, processo n.º 8059/200-3; TRP de 27/06/2007, no processo n.º 0712060; TRP de 10/10/2007, processo n.º 0743233, em www.dgsi.pt como outros que venham a ser citados sem diferente indicação).[5]
Sendo assim, tendo em vista que o legislador pretendeu aumentar a protecção jurídica contra as agressões de animais, não se compreenderia que, por via do citado artigo 33.º, tivesse sido descriminalizada a ofensa à integridade física por negligência, provocada por animal, no caso de não ser produzida ofensa grave, transformando-se em contraordenação o que antes constituía crime.
Porém, a essa conclusão – de que existe descriminalização – chegou alguma jurisprudência, sustentando que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009 passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo artigo 38.º, n.º1, al. r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime p. e p. pelo artigo 148.º, n.º1 do Código Penal.[6]
No acórdão da Relação de Évora de 05/07/2012, diz-se, referindo-se ao Decreto-Lei n.º 315/2009, que «da comparação do referido nesses arts. 33.º e 38.º, ressalta inequivocamente, em termos literais, que a distinção entre crime e contraordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves».
Conclui-se no referido acórdão que, existindo norma especial que abrange os casos em que da violação do dever de cuidado resultam ofensas simples, não há lugar à aplicação do artigo 148.º do Código Penal por remissão do art.º 34.º do DL 315/2009. O facto de o legislador ter especificamente colocado como crime as condutas negligentes causadoras de ofensas graves para a integridade física e, no mesmo diploma, ter integrado as mesmas condutas, mas cujos resultados se reconduzem a lesões de menor gravidade numa contraordenação, quer significar, segundo o entendimento propugnado no citado aresto, que o legislador expressamente se pronunciou sobre tal matéria e entendeu que as ofensas simples criadas pela intervenção de um animal e sem que tenham sido tomadas as devidas diligências de cuidado integram conduta meramente contraordenacional.

Esta, também, a posição do tribunal recorrido,[7] da qual discordamos pelas razões que passamos a enunciar.

Apesar do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 315/2009 afirmar que aprova “o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia”, entendemos que, no âmbito dos ilícitos criminais aí previstos, com excepção dos tipos que o artigo 33.º-A contempla, nos quais a previsão normativa refere, de forma expressa, que o animal em causa terá de ser perigoso ou potencialmente perigoso, todos os demais (artigos 31.º, 32.º, 33.º) e a contraordenação do artigo 38.º n.º 1, alínea r), têm aplicação geral a todos os animais de companhia.
Conforme se alcança do artigo 2.º da Lei n.º 82/2009 de 21 agosto «A autorização legislativa concedida pelo artigo anterior tem como sentido a criminalização das seguintes condutas:
a) Lutas entre animais, sendo punível a tentativa;
b) Ofensas à integridade física causadas por animal, por dolo do seu detentor, sendo a pena agravada se do facto resultarem ofensas graves à integridade física e sendo punível a tentativa;
c) Ofensas à integridade física graves causadas por animal, por negligência do seu detentor.» - o negrito é nosso.

Daqui se extrai que a própria autorização legislativa, pese embora a sua epígrafe, refere-se a ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física de pessoa causada por animal, por dolo do seu detentor e a ilícitos criminais correspondentes a ofensa à integridade física grave de pessoa causada por animal, por violação de deveres de cuidado pelo seu detentor.

Temos como acertada a posição sustentada por Conde Fernandes quando afirma (Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, 1.ª Edição, Univ. Católica, 2010, pág. 295), em comentário ao artigo 32.º, que a “motivação da incriminação não pressupõe (…) que o animal se inclua numa das raças de cães classificadas como potencialmente perigosas, pois a norma presume que, no decurso da agressão, a perigosidade seja revelada ou potenciada (…) o que tem apoio no texto legal, no preâmbulo do diploma e na discussão parlamentar”.
O mesmo autor, em comentário ao artigo 33.º, reitera que, não obstante a inserção sistemática, não se exige que o animal seja ou se tenha revelado, declarado ou presumido, previamente, “perigoso ou potencialmente perigoso”, designadamente por pertencer a uma raça de cães classificada legalmente como tal (pág. 309).

Como já dissemos, parece-nos mais acertada a orientação segundo a qual, o legislador pretendeu, através do diploma em apreço, aumentar a protecção jurídica relativamente às ofensas à integridade física causadas por animais; por contraposição à orientação que defende que se operou uma descriminalização no caso das ofensas corporais simples negligentes.
O preâmbulo do diploma, refere – já acima o enunciámos - que “a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime”.
Julgamos daqui poder extrair com bastante clareza, o entendimento do legislador no sentido de que se “a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção” não se pode - sob pena de contradição e ausência de justificação perante a demanda da sociedade civil - seguir o caminho da descriminalização.
Seria totalmente desadequado que tendo evidenciado tal entendimento no aludido preâmbulo (patente também na nossa sociedade civil), que o legislador viesse, afinal, a descriminalizar condutas de ofensas corporais negligentes causadas por animais de companhia – assim consideradas há muito pela doutrina e pela jurisprudência - transformando-as em ilícitos meramente contraordenacionais.
Temos, pois, que compatibilizar todas estas normas, tendo sempre em vista a harmonia do sistema jurídico penal, a letra da lei e o pensamento legislativo, na base do princípio de que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º do Código Civil).
O que resulta do diploma em questão é que o legislador procurou vincar a preocupação com crimes desta natureza e consolidar o regime que decorria da aplicação do Código Penal, ao abrigo do qual as condutas de ofensas à integridade física causadas por animais eram integradas, estabelecendo garantias acrescidas de combate à criminalidade envolvendo animais.

Que garantias acrescidas são essas, no âmbito que, em concreto, nos interessa?
Diz o citado Decreto/Lei que quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa, causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Este crime tem natureza pública, contrariamente ao que sucede com o crime geral de ofensa à integridade física por negligência, que está dependente de queixa.
Por sua vez, constitui contraordenação punível com coima a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.
Assim sendo, existem três situações possíveis.
A ofensa simples à integridade física por negligência, sem queixa, é sancionada como contraordenação, permitindo assim punir essa conduta mesmo quando o ofendido opte por abdicar do procedimento criminal (modo de continuar a dissuadir os comportamentos menos cuidadosos dos detentores de animais de companhia).
A ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida como crime, nos termos gerais, com a consequente exclusão da contraordenação.
Já a ofensa grave à integridade física por negligência é punida como crime especial, quando os danos tenham sido causados por animal potencialmente perigoso, tratando-se de um crime público, que não está dependente de queixa.
Ainda de modo inovador em relação ao Código Penal (artigo 143.º, n.º1), o artigo 32.º consagrou a punibilidade da tentativa.

Isto porque a norma contraordenacional do artigo 38.º, n.º 1, al. r), pretendeu, a nosso ver, evitar que as condutas danosas «fiquem descobertas de protecção apenas porque o ofendido optou por abdicar do procedimento criminal», nos casos de ofensas negligentes não graves (Conde Fernandes, ob. cit., pág. 318).
Por outras palavras: pelo artigo 38.º, n.º 1, al. r), o legislador quis sancionar como contraordenação o acto de não observância dos deveres de cuidado relativamente a um animal que provoque ofensas na saúde e no corpo de outra pessoa em que as lesões não sejam graves.
Nesses casos, ainda que não haja queixa para desencadear o necessário procedimento criminal, o legislador entendeu que há uma necessidade de intervenção da autoridade pública no âmbito contraordenacional – isto porque não se tem conseguido dissuadir os comportamentos menos cuidadosos dos detentores de animais, colocando em risco a saúde e a vida de outras pessoas e de outros animais.
Seguindo a posição de Conde Fernandes (também perfilhada nos acórdãos da Relação do Porto, de 10/05/2017, processo 124/13.4GBOAZ.P1, e da Relação de Guimarães, de 10/02/2020, processo 114/17.8GAVRM.G1)[8], entendemos não se configurar qualquer descriminalização de condutas que já se integravam na tipicidade do crime de ofensa à integridade física simples, por negligência, devendo o concurso de normas ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar e não diminuir a protecção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal.

Tal como defende o Ministério Público/Recorrente, na sua motivação de recurso, a não ser assim, colocar-se-ia a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 315/2009, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1 al. c) da CRP [9], tendo em vista a Lei de Autorização Legislativa n.º 82/2009, de 21/08.[10]

No caso vertente, o que está em causa é uma ofensa simples à integridade física por negligência causada por um cão potencialmente perigoso (já havia ofendido fisicamente três pessoas anteriormente; tendo a aludida perigosidade se revelado novamente nas circunstâncias concretas deste caso), por descuido do arguido, seu proprietário, com queixa da ofendida BB, - o facto é punido pelo artigo 148.º, n.º1, do Código Penal, excluindo a contraordenação prevista no artigo 38.º n.º1 al. r) do DL nº 315/209, de 29/10, preenchidos que estão os elementos típicos, objectivos e subjectivos, daquele crime.
Isto porque estabelece o artigo 148.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal:
«1-Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
(…)
4-O procedimento criminal depende de queixa.»

Por seu turno a definição legal de negligência, para efeitos criminais, é fornecida pelo artigo 15.º do Código Penal:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)- Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)- Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»

Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354), o tipo de ilícito do facto negligente “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente indesejada.”
Para além disso “torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente.
Quando o tipo de ilícito negligente se encontra preenchido pela conduta, “tem então sentido indagar se mandato geral de cuidado e previsão podia também ter sido cumprido pelo agente concreto”, indagação que ultrapassa o nível do tipo de ilícito e situa-se no tipo de culpa do facto negligente.
Os crimes negligentes pressupõem, assim, a verificação, quanto ao tipo de ilícito, de:
1)- uma acção ou omissão da acção devida;
2)- uma violação do dever objectivo de cuidado (o dever de cuidado é limitado pelo princípio da confiança: ninguém terá, em princípio, de responder por faltas de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os deveres que lhes incumbem);
3)- o resultado típico nos crimes negligentes de resultado (por ex., ofensa à integridade física ou morte);
4)- previsibilidade objectiva do resultado, incluindo o processo causal [um resultado será objectivamente previsível se for previsível para um homem sensato e prudente, colocado na situação do agente no momento da acção, de acordo com a experiência geral (juízo de adequação)];
5)- imputação objectiva desse resultado à acção do sujeito.

Por sua vez, quanto ao tipo de culpa, os crimes negligentes exigem a verificação da censurabilidade da acção objectivamente violadora do dever de cuidado, sendo necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado e prever o resultado típico e o processo causal, nos crimes de resultado (a previsibilidade individual está excluída na negligência inconsciente; na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime)
A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa.

Não se discute que o comportamento imputado ao arguido na acusação e dado como provado constitui conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar – no sentido de não o passear na via pública sem ser, pelo menos, com uma trela com a possibilidade de o trazer perto de si - o seu animal de raça canina, adequado à produção do resultado que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física (simples) (em sintonia com o artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal) e decorrente do dever especial de vigilância do detentor de animal (perigosos ou potencialmente perigoso), em geral, pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, que estabelece como dever especial de vigilância: «O detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso fica obrigado ao dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais.»
Dever que é concretizado, além do mais, no seu artigo 13.º, n.º 1: «Os animais abrangidos pelo presente decreto-lei não podem circular sozinhos na via pública, em lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, devendo sempre ser conduzidos por detentor.»
Este “conduzidos” é, sem dúvida, entendido como utilizando uma trela que permita segurar o animal junto ao detentor com toda a firmeza.
Qualquer animal pode ser considerado uma "causa de perigo" pela sua irracionalidade e pelo facto de não ser completamente dominado pela vontade humana. Logo, esse dever especial de cuidado já existia em relação a qualquer animal de companhia, incumbindo ao detentor do animal, nos termos do artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 276/2001, «o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.»
Manifestamente, sobre o arguido, como proprietário e detentor do animal (o canídeo M...), recaia a obrigação jurídica de controlar aquela fonte de perigo sobre a qual tinha a disponibilidade fáctica de forma a evitar a lesão de bens alheios. E esse controlo seria feito através do uso de açaime e de trela curta (1 metro).

Sendo tal conduta simultaneamente punida a titulo de contraordenação, ao abrigo do disposto no artigo 38.º, n.º1 r) do D/L 315/2009, deverá prevalecer o crime, conforme dispõe o artigo 36.º n.º3[11], do citado diploma, desde que obviamente tenha sido exercido - como foi no caso concreto - o direito de queixa por parte do titular do bem jurídico que o legislador pretendeu proteger com a incriminação (Quanto a aplicação de sanção acessória pronunciar-nos-emos mais à frente).

É manifesto - essa é a nossa posição - que o legislador quis criar, conforme é explicado não só na Lei de Autorização Legislativa, quer no preâmbulo do D/L 315/2009, uma protecção acrescida relativamente à detenção de animais de companhia, com as características definidas no artigo 3.º do D/L 315/2009 de 29-10, não ficando impunes os comportamentos negligentes, que embora não tenham provocado consequências consideradas graves, ainda assim colocaram em causa a segurança de outras pessoas e em concreto a sua integridade física.

Este entendimento do legislador não é novo, nem ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, é controverso, estando presente em actividades humanas que pela sua natureza envolvam riscos não totalmente controláveis pelo ser humano e que, por isso, necessitam de mecanismos mais apertados de vigilância e de persuasão, como é o caso também da condução de todos os veículos a motor na via pública, como bem refere o Magistrado do Ministério Público em 1ª instância, estabelecendo-se também no Código da Estrada a regra da prevalência da conduta criminal quando a infracção possa constituir crime e contraordenação, contendo o tipo legal criminal a totalidade do desvalor da acção.
No caso de concurso entre crime e contraordenação o critério utilizado para o concurso de infracções é o da natureza da infração e a sua maior gravidade, salvaguardando-se, no entanto, a possibilidade de não havendo condenação pelo crime poder ainda o arguido ser punido pela contraordenação, o que demonstra mais uma vez a intenção clara do legislador de que aquela conduta não fique impune.

Em resumo:
Ao contrário do que diz a sentença recorrida - relativamente ao exercício do direito de queixa - que a “qualificação de uma conduta não pode ficar dependente de um tal exercício, sob pena de nos confrontarmos com duas situações semelhantes, a terem tratamento diferenciado pelo exercício de queixa (crime) ou por esse direito não ter sido exercido (contraordenação)” - concluímos que foi exactamente essa a intenção do legislador.
O que também é defensável em termos interpretativos com recurso ao elemento lógico, por ora circunscrito ao elemento sistemático, concretamente ao contexto da lei e aos lugares paralelos.
Quanto à análise do elemento sistemático cumpre referir que todos os crimes previstos no diploma avulso têm natureza pública não existindo qualquer crime nesse diploma que tenha natureza semi-pública. Por outro dado, os crimes que podem ter como origem o ataque de animais e que sempre tiveram natureza pública não foram contemplados neste diploma extravagante (v.g o homicídio doloso e o homicídio negligente).
Quanto aos lugares paralelos, chamamos à colação a violação do artigo 18.º, do Código da Estrada, situação que não é enquadrável no artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mas servirá como fonte para o preenchimento do conceito de negligência previsto no artigo 15.º do Código Penal, que conduzirá ao preenchimento do artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, no caso de o ofendido – vítima de uma colisão na traseira do seu veículo, sofrer, designadamente, ofensas nas costas e no pescoço - apresentar queixa pois, em caso diverso, o facto apenas será punível a título de contraordenação, nos termos do artigo 18.º, n.º 4 do Código da Estrada, o que assim não será caso a queixa exista, por força do disposto no artigo 134.º, n.º 1, do último diploma codificado. Ou seja, estamos perante outra situação em que o arguido só é punível pela prática de crime se o ofendido apresentar queixa.

Mas a nossa posição também é defendida através do recurso, novamente, ao elemento lógico, concretamente quanto ao elemento racional ou teleológico, pretendendo-se analisar a razão de ser lei (“ratio legis”) e as circunstâncias que motivaram ou da conjuntura que motivou a elaboração do diploma legislativo (“ocasio legis”).
No que à ocasio legis diz respeito (já acima o escalpelizámos), o legislador foi muito claro no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro ao referir que pela “experiência adquirida (…) conclui-se (…) que a punição como contraordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime”.
É evidente que o que o legislador pretendeu foi agravar a punibilidade e, em caso nenhum desagravá-la.
Quanto à ratio legis defendemos, porque nos parece claro, que o legislador decidiu assegurar a punibilidade, embora com critérios de proporcionalidade, independentemente da vontade do ofendido.
Assim, os casos de ofensas dolosas com animais passaram a ter natureza pública, como ocorre nas ofensas negligentes graves.
Salienta-se, em abono da nossa posição, que nada se alterou quanto ao homicídio doloso e negligente, pois já tinham natureza pública, ficando a sua tutela coberta em termos gerais pelo Código Penal.
Quanto a ofensa à integridade física simples por negligência, pelo facto de o legislador considerar que carece de menor tutela, continuou, em termos criminais, a colocar nas mãos do ofendido tal disponibilidade, mas assegurando, a nível subsidiário uma tutela contraordenacional, por entender dever haver alguma consequência legal para tal ocorrência.

No caso concreto está provado:
1. No dia 19 de Julho de 2019, cerca da 15h15, na Rua ..., em ..., Maia, o arguido passeava o seu cão de companhia, registado sob o n.º ..., com o nome “M...”, de raça indefinida, sem trela nem açaime.
2. Na mesma ocasião de tempo e lugar, a ofendida BB passeava, segurando-o com trela, um cão de companhia de raça Pinscher, de nome “Hulk”, pertencente à sua irmã CC.
3. Ao chegar ao edifício com o número de polícia ... daquela rua, o cão do arguido, ao cruzar-se com o cão passeado pela ofendida BB, abocanhou-o pelo tronco, sacudiu-o, atirou-o ao ar e, já após este se encontrar caído no chão, mordeu-o por diversas vezes.
4. Nesse momento, porque a ofendida agarrou o cão que passeava numa tentativa de o proteger dos ataques do cão do arguido, este mordeu-a na parte anterior do braço direito junto ao cotovelo, na mão esquerda, na zona dorsal do lado direito e na coxa direita.
5. Na sequência da conduta do canídeo, a ofendida sofreu, de imediato, ferida penetrante na fossa cubital direita e dores nas zonas do corpo atingidas.
6. Como consequência direta e necessária da conduta do cão do arguido, BB sofreu ainda as seguintes sequelas, que lhe determinaram 18 dias para a consolidação médico-legal, com afetação ligeira da capacidade para o trabalho geral e com afetação da capacidade para o trabalho profissional de 18 dias:
- no tórax, área hiperpigmentada acastanhada de aspeto cicatricial na metade lateral da região escapular esquerda, com 5,5cm por 4cm de maiores dimensões;
- no membro superior direito, dores ligeiras associadas a esforços; e cicatriz linear, levemente irregular, na face anterior do cotovelo, com 1,5cm de comprimento, com periferia levemente acastanhada;
- no membro superior esquerdo, escoriação com crosta hemática, na região anterior da falange distal com diminuição referida da sensibilidade, com 0,3cm que consolidou em cicatriz linear, levemente irregular, de comprimento infracentimétrico, no dorso do punho;
- no membro inferior direito, equimose arroxeada localizada no terço proximal da região medial da coxa, com 2cm de diâmetro e escoriação com crosta hemática ténue localizada no terço proximal da região medial da coxa, com 8cm de comprimento.
7. O cão do arguido já havia, no ano de 2016, mordido o braço direito de CC, irmã da ofendida BB, assim como já havia mordido a mãe destas, em data não concretamente apurada, pelo que o arguido sabia o concreto perigo que o seu cão representava para a integridade física de terceiros e que sobre si recaía um especial dever de vigilância, que implicava a utilização dos meios de contenção adequados no seu cão, designadamente de açaime e de trela.
8. Mesmo representando como possíveis as agressões que o canídeo podia dirigir à ofendida ou a terceiros, o arguido confiou que tal não sucederia, e permitiu que o seu cão circulasse na via pública sem os referidos meios de contenção, omitindo o cuidado e as devidas precauções que lhe eram exigíveis e de que era capaz.
9. O arguido dispunha de vontade livre e de plena capacidade para avaliar o desvalor da sua conduta e se autodeterminar de acordo com essa avaliação e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Os factos provados subsumem-se à tipicidade fáctica prevista no artigo 148.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A sentença recorrida, ao proceder à sua análise, assinala que:
«Inexistindo qualquer referência nos autos a que o arguido tenha instigado o seu canídeo a atacar a ofendida, afastada fica uma actuação de natureza dolosa, pelo que o único ilícito criminal que lhe pode ser imputado é o crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo nº 1 do artigo 148º do C. Penal.
Tratando-se de um crime de resultado, “o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo”, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 10º do C. Penal, sendo certo que no caso não é “outra a intenção da lei”, pois à norma interessam tanto as actividades que produzem o resultado que visa evitar, como as omissões que permitem a sua produção.
Sendo inquestionável que a ofensa à integridade física da ofendida não resultou de uma acção do arguido[12], mas sim do comportamento de um animal de raça canina de que aquele é proprietário, o nexo de imputação do resultado típico ao arguido só pode ocorrer por omissão.
E, para que a comissão de um resultado por omissão seja punível, é necessário que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado (cfr. nº 2 daquele artigo 10º).
Assim, a imputação objectiva da conduta omissiva ao agente supõe a violação de um dever que especificamente sobre ele impende, derivando essa posição de garante e a inerente obrigação de evitar o resultado de uma relação fáctica de proximidade – digamos existencial – entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger, ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável. »
O que se verificou foi que, por falta de cuidado do arguido, que lhe era exigível e possível, o cão sua propriedade atacou a ofendida causando-lhe as lesões melhor descritas nos factos provados” – não temos dúvidas quanto à prática pelo arguido do crime que lhe foi imputado, o que determina a revogação da sentença absolutória.
A conclusão é a de que o arguido incorreu na prática do crime por que vinha acusado; devendo a sentença da Primeira Instância ser revogada em conformidade.
Ou seja, com a atuação descrita nos factos provados, cometeu o arguido, em autoria material, na forma consumada um crime de ofensa à integridade física por negligência, punida pelo artigo 148.º, n.º1, do Código Penal, em concurso aparente com a contraordenação punida pelo artigo 38.º n.º 1 al. d) e r)[13], por referência aos artigos 11.º, 13.º, n.º2 todos do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29.10.
*
Aqui chegados, cumpre determinar a medida da pena.
O S.T.J. fixou a seguinte jurisprudência, no AFJ n.º4/2016 (Diário da República, 1.ª série, N.º 36, de 22 de Fevereiro de 2016):
«Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»
Esclarece o S.T.J. não ter qualquer sentido que, após o reexame da matéria de facto e ficando assente a culpabilidade do arguido que vinha absolvido da 1.ª instância, a Relação profira uma decisão condenatória incompleta, por omissão da consequência jurídica, e “reenvie” o processo para o tribunal a quo, a fim de aí ser determinada a espécie e medida da sanção.
No nosso sistema processual, à deliberação sobre a questão da culpabilidade segue-se a deliberação sobre a determinação da sanção – espécie e medida da sanção a aplicar -, nos termos dos artigos 368.º e 369.º do C.P.P.
O tribunal começa por deliberar e votar a questão da culpabilidade - artigo 368.º- e, resultando que ao arguido deve ser aplicada uma pena ou medida de segurança, “o presidente lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social” - artigo 369.º, n.º 1-, sendo, quando necessária a produção de prova suplementar exclusivamente para a determinação da espécie e medida da sanção a aplicar, reaberta a audiência, nos termos do artigo 371.º - artigo 369.º, n.º 2, primeiro segmento.
Diz o S.T.J. que, por regra, a Relação não se confrontará com uma insuficiente base de facto impossível de suprir, no caso de alteração de uma decisão de absolutória para condenatória, a implicar a impossibilidade de determinação da sanção e que, na hipótese de uma insuficiente base de facto, não está a Relação impedida de obter os elementos necessários à determinação da sanção por via da realização de uma audiência, nos termos do artigo 371.º, do C.P.P.
A verdade, porém, é que no caso de o tribunal de 1.ª instância não passar à questão da determinação da espécie e medida da pena podem faltar, efectivamente, elementos necessários à determinação da sanção.
Não é esse o caso: entendemos que a sentença recorrida contém os elementos necessários, não se colocando a questão da necessidade de realização de outras diligências com vista permitir a prolação de decisão condenatória.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
O Juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
Nos termos do disposto no artigo 70.º do Código Penal, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
De seguida, importará determinar a concreta medida da pena por que se optou, dentro dos limites definidos na lei, tendo em consideração para o efeito, a culpa do agente e as exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este (artigo 71.º do Código Penal).
Determinando-se uma concreta pena principal, haverá que verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.

No caso em apreço, em que está prevista pena de prisão ou multa, entendemos dever dar preferência à multa.
O procedimento de determinação da multa integra dois momentos autónomos: o da fixação dos dias de multa, dentro dos limites legais e em função dos critérios gerais de determinação da pena; o da fixação da sua razão diária, em função da situação económico-financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, tendo em vista o preceituado no artigo 47.º, n.º2, do mesmo diploma.
No que toca ao primeiro momento, estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização.
Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 227 e segs.).
Volvendo ao caso concreto em apreciação, tendo em vista a matéria de facto provada, relevando particularmente, por um lado, as lesões sofridas pela ofendida e, por outro, a ausência de antecedentes criminais do arguido, sopesando as circunstâncias face ao binómio da culpa e da prevenção, entendemos fixar a pena de multa em 90 dias.
O montante da multa é o resultado da conjugação dos dias de multa com a sua razão diária.
A dignificação da multa, seja como pena principal, seja como pena de substituição, constituindo um claro propósito político-criminal, exige que a mesma tenha efectivo conteúdo sancionatório, sem o que não poderá realizar as finalidades que lhe competem de protecção de bens jurídicos e de prevenção especial. Para esse efeito, importa que o montante da multa seja fixado de forma a ser sentido como pena, constituindo, por isso, um sacrifício real para o condenado.
Porém, sobre a condição económica do arguido sabemos, apenas que
a) encontra-se reformado, não auferindo qualquer pensão ou subsídio;
b) vive com a progenitora, que o sustenta;
c) tem o 1º ano de escolaridade e
Daí entendermos que é de fixar a taxa diária no limite mínimo legal, fixando-se, por conseguinte, em 5,00€.
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PONDERAÇÃO DA APLICAÇÃO DA SANÇÃO ACESSÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 30º-A D/L 315/2009 DE 29-10.
Preceitua o art. 30-A (redacção introduzida pela Lei 46/2013 de 4 de Julho) – sob a epígrafe PENAS E SANÇÕES ACESSÓRIAS - que:
«1 - Consoante a gravidade do ilícito e a culpa do agente, podem ser aplicadas, cumulativamente com a pena ou com a coima, as seguintes penas ou sanções acessórias:
a) Perda a favor do Estado de objetos e animais pertencentes ao agente, incluindo as ninhadas resultantes da reprodução dos animais a que se refere o n.º 3 do artigo 19.º;
b) Privação do direito de detenção de cães perigosos ou potencialmente perigosos, pelo período máximo de 10 anos;
c) Privação do direito de participar em feiras, mercados, exposições ou concursos;
d) Encerramento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença de autoridade administrativa;
e) Suspensão de permissões administrativas, incluindo autorizações, licenças e alvarás.
2 - As penas e sanções referidas nas alíneas c), d) e) do número anterior têm a duração máxima de três anos contados a partir da decisão condenatória definitiva.»
Acontece que, sob pena de violação do Princípio do Acusatório, não constando da acusação pública pedido em conformidade, não pode o arguido ser condenado em qualquer sanção acessória.
O que se decide.
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DOS PEDIDOS CÍVEIS
Relativamente a estes factos criminalmente puníveis e em estreita ligação com eles, a lesada CC deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e a Companhia de Seguros “B..., S.A.”, peticionando o pagamento da quantia global de €15 500,00 (quinze mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com o comportamento do arguido (cfr. fls. 222-225).

Também a Assistente BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e a Companhia de Seguros “B..., S.A.”, peticionando o pagamento da quantia global de €12 909,95 (doze mil, novecentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com o comportamento do arguido (cfr. fls. 225 v.º-229).
O arguido ofereceu o merecimento dos autos.
A demandada “A..., S.A.” apresentou contestação, onde declina a sua responsabilidade pelo pagamento de qualquer quantia a título indemnizatório, alegando para tanto e em síntese que:
- o arguido, jamais indicou à demandada que o animal em apreço constituía um animal perigoso, nos termos da lei, fosse aquando da apresentação da proposta de seguro que deu origem ao contrato, fosse posteriormente;
- o arguido não procedeu à alteração desta apólice, dela fazendo constar que se tratava de um animal considerado perigoso, nos termos da legislação aplicável, nem mesmo depois de o canídeo aqui em questão ter mordido com violência o seu irmão;
-ademais, apurou a demandada que no dia em que ocorreu o ataque, o “M...” circulava pela via pública sem açaimo funcional que não lhe permitisse comer nem morder, nem se mostrava devidamente seguro e preso com uma trela curta, até 1 metro de comprimento;
- uma vez que os danos em apreço, alegadamente sofridos pela demandante BB, decorreram da circunstância do canídeo “M...” circular na via pública sem quaisquer meios de contenção adequados à sua espécie e raça, nomeadamente sem açaimo funcional que não permitisse comer nem morder, nem com trela curta, até 1 metro de comprimento, fixa à coleira, a cobertura de tais danos está legal e contratualmente excluída pela apólice de seguro aqui em apreço;
- ademais, o contrato de seguro em causa não garante a cobertura de danos decorrentes de perdas indirectas de qualquer natureza, nas quais se incluem os prejuízos por lucros cessantes e paralisações de actividade;
- relativamente aos danos peticionados pela lesada CC, também não estão cobertos pela apólice de seguro em causa, tanto mais que resulta das Condições Gerais da Apólice que não ficam garantidos, em caso algum, os danos causados a outros animais da mesma espécie, por cães perigosos e cães potencialmente perigosos (cfr. fls. 113-125).

Em sede de factualidade provada, além daqueles que acima ficaram transcritos relativamente à instância crime, no que à instância cível diz respeito resultaram provados os seguintes factos:

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELA DEMANDANTE CC (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
10. O cão Pinscher atacado era propriedade da lesada.
11. A demandante não se encontrava em casa e por isso a assistente passeava o Pinscher da demandante.
12. A demandante tinha pelo seu Pinsher um carinho e um amor indizíveis, como se de um filho se tratasse.
13. A demandante não tem filhos e o Pinscher representava esse papel na vida da demandante.
14. Vivia com a demandante, era mais que o seu animal de companhia, pernoitava frequentemente com ela na mesma cama, a demandante cuidava dele, levava-o ao veterinário, alimentava-o, passeava-o, dava-lhe banho, brincava com ele, cuidava dele quando estava doente, sendo como o filho que a demandante não tinha.
15. Com a morte do seu cão, a demandante padeceu de uma angústia tremenda, tristeza, desolação.
16. Em consequência do crime praticado, sentiu a assistente uma forte e insuportável dor.
17. Um sofrimento atroz que a acompanhou numa longa e penosa recuperação que a traumatizou psicologicamente.
18. A demandante quando recebeu a notícia do falecimento do seu “filho”, entrou em completo pânico e desespero, além de ter sido invadida por um fortíssimo sentimento de impotência pois nada podia fazer para salvar o seu “filho”.
19. Durante muito tempo isolou-se no seu lar, evitando sempre que lhe era possível contacto com o mundo exterior, pois temia que o cão do arguido repetisse os mesmos factos, pois esta já não era a primeira vez que o mesmo cão atacava membros da sua família.
20. De facto, o cão do arguido já a havia mordido anteriormente, bem como à sua mãe.
21. Viveu num estado de medo e em constante sobressalto aquando das necessárias deslocações que teve que fazer.
22. Aliás, ainda hoje teme ser vítima de novo ataque não se encontrando psicologicamente recuperada.
23. Em consequência do incidente, passou a sofrer de insónias, falta de apetite, depressão, passando a carecer de assistência médica especializada, do foro psiquiátrico.
24. São inúmeras as noites em que não consegue adormecer, tendo de recorrer frequentemente a sedativos e calmantes.
25. Alguns dos seus hábitos de convívio e divertimento foram alterados, deixando de passear a pé pelos locais onde o fazia anteriormente.
26. Viveu momentos de profunda dor e desespero que foram causa necessária e suficiente para que ainda hoje não se encontre psicologicamente recuperada.
27. Ainda hoje quando fala no seu Pinscher não consegue conter as lágrimas.
28. Sofre com a lembrança do ocorrido, o que lhe causa diversos transtornos, nomeadamente angústia e depressão.
29. Lembrança esta que fez com que a assistente ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
30. A assistente era uma pessoa alegre, dinâmica, cheia de saúde e de vida e em virtude da conduta do arguido transformou-se numa pessoa mais apática, introvertida, receosa e insegura.
31. Todas estas circunstâncias criaram em si uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 32. A demandante havia adquirido o Pinscher pelo valor de €500,00.
33. O arguido transferiu a sua responsabilidade para a demandada “B..., S.A”, através do contrato de seguro com a apólice ..., tendo esta seguradora atribuído ao sinistro o n.º ... e a ocorrência n.º ....

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELA DEMANDANTE BB (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
34. A assistente viveu momentos de profunda aflição e desespero, chegando mesmo a acreditar que o cão do arguido iria por termo à sua vida e à do Pinscher que passeava.
35. A morte do Pinscher que passeava ocorreu de facto.
36. Como consequência directa e necessária da conduta do cão do arguido, a assistente sofreu lesões, que lhe determinaram 18 dias para a consolidação médico-legal.
37. A assistente sofreu dores fortíssimas e violentas, angústia, tristeza, humilhação, clausura hospitalar.
38. Em consequência do crime praticado sentiu a assistente uma forte e insuportável dor.
39. Um sofrimento atroz que a acompanhou numa longa e penosa recuperação que inevitavelmente a traumatizou psicologicamente.
40. A ofendida, pessoa respeitável na comunidade onde está inserida, em virtude do que lhe aconteceu, sentiu forte humilhação e vexame.
41. Durante muito tempo isolou-se na segurança do seu lar, evitando sempre que lhe era possível contacto com o mundo exterior pois temia que o cão do arguido repetisse os mesmos factos, pois esta já não era a primeira vez que o mesmo cão atacava membros da sua família.
42. O mesmo cão do arguido já havia mordido a sua mãe e irmã anteriormente.
43. Viveu num estado de medo e em constante sobressalto aquando das necessárias deslocações que teve que fazer.
44. Ainda hoje teme ser vítima de novo ataque, não se encontrando psicologicamente recuperada.
45. Em consequência do incidente, a assistente passou a sofrer de insónias, falta de apetite, depressão, passando a carecer de assistência médica especializada, do foro psiquiátrico.
46. São inúmeras as noites em que não consegue adormecer tendo de recorrer frequentemente a sedativos e calmantes.
47. Alguns dos seus hábitos de convívio e divertimento foram alterados, deixando de passear a pé pelos locais onde o fazia anteriormente.
48. Viveu momentos de profunda dor e desespero que foram causa necessária e suficiente para que ainda hoje não se encontre psicologicamente recuperada.
49. Sentiu-se com um sentimento de impotência perante o ataque que ambos sofreram.
50. Sofre com a lembrança do ocorrido, o que lhe causa diversos transtornos, nomeadamente angústia e depressão.
51. Lembrança esta que fez com que a assistente ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
52. A assistente era uma pessoa alegre, dinâmica, cheia de saúde e de vida e em virtude da conduta do arguido, transformou-se numa pessoa mais introvertida, receosa e insegura.
53. Todas estas circunstâncias criaram em si uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 54. A assistente no âmbito da sua actividade profissional tem de estabelecer contactos com clientes, dar aulas em ginásios, expressar-se oralmente, de forma enérgica, pelo que sofreu diariamente, e durante vários meses, com as limitações das sequelas que a acompanharam.
55. A assistente, à data do acidente, encontrava-se empregada, desempenhando as funções de instrutora de fitness, dando aulas de grupo e personal training.
56. Tinha um horário de 8 horas diárias, auferindo €1500,00 mensais.
57. A assistente esteve ausente da sua entidade patronal, por baixa e devido à actuação do arguido, entre os dias 20 de Julho e 8 de Agosto de 2019, ou seja, por um período de 18 dias.
58. A assistente teve ainda um prejuízo de €29,95 correspondente ao valor da camisa que vestia no dia do ataque e que ficou rasgada e inutilizada.
59. O arguido transferiu a sua responsabilidade para a demandada “B..., S.A”, através do contrato de seguro com a apólice ..., tendo esta seguradora atribuído ao sinistro o n.º ... e a ocorrência n.º ....

DA CONTESTAÇÃO DA “A..., S.A.” (sem factos conclusivos ou conceitos de direito):
60. A invocada apólice n.º ... titula um Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil – Detentores de Cães.
61. O contrato de seguro ora em apreço, iniciou a sua vigência no dia 31.01.2018 e foi celebrado entre o demandado AA e a contestante.
62. Nos termos da Lei e do contratado entre o arguido AA e a contestante, a mencionada cobertura de responsabilidade civil detentores de cães, prevista nesta apólice, possuía um capital máximo de €50 000,00 e uma franquia correspondente a 10% do valor do sinistro, com um mínimo de €50,00 e um máximo de €1250,00.
63. Os factos em apreço nos presentes autos foram participados à contestante, tendo dado origem a um processo de sinistro, no âmbito do qual, depois de devidamente analisados os factos que deram causa à reclamação apresentada pela demandante, levaram à conclusão de que está excluída a cobertura dos danos sofridos pela demandante BB.
64. O contrato de seguro foi celebrado entre o arguido e a contestante, tendo aquele indicado, como objeto seguro, o animal canino de raça indefinida, de sexo masculino e de nome “M...”.
65. O arguido, na qualidade de tomador do seguro, jamais indicou à demandada que o animal em apreço constituía um animal perigoso, nos termos da Lei, fosse aquando da apresentação da proposta de seguro que deu origem ao contrato, fosse posteriormente.
66. O tomador do seguro não procedeu à alteração desta apólice, dela fazendo constar que se tratava de um animal considerado perigoso, nos termos da legislação aplicável, nem mesmo depois de o canídeo aqui em questão ter mordido o seu irmão.
67. No dia 29.03.2018, pelas 17h00, DD encontrava-se no seu local de trabalho, sito na Rua ..., ..., Maia, na companhia do seu irmão, o aqui arguido e do canídeo denominado M....
68. Quando, a dado momento, o DD se aproximou do quadro elétrico do seu local de trabalho, onde habitualmente se encontrava a comida destinada ao canídeo M..., propriedade do arguido, o referido animal, sem que nada o fizesse prever, atacou-o e mordeu-o por três vezes no braço esquerdo.
69. Em face deste ataque perpetrado pelo Martim, o irmão do arguido teve que se deslocar à Clínica Médica ..., Lda., onde recebeu os tratamentos médicos de que carecia, tendo ali realizado esta e mais três consultas médicas em momento posterior.
70. Sucede que nem mesmo depois de o Martim ter mordido o seu irmão, o aqui arguido procedeu ao pedido de licença de detenção de animal perigoso, nem tão pouco a qualquer alteração à apólice identificada supra.
71. Acresce que veio agora ao conhecimento da demandada que o referido M... mordeu também a progenitora da assistente, bem como a sua irmã, tratando-se de um cão perigoso.
72. No dia e hora em que ocorreu o ataque em apreço nos presentes autos, o M... circulava pela via pública sem açaimo funcional, que não lhe permitisse comer nem morder, nem se encontrava devidamente seguro e preso com uma trela curta, até 1 metro de comprimento.
73. O animal em apreço era um canídeo de raça indefinida, nascido no dia 20 de Julho de 2015, pelo que, à data de 19 de Julho de 2019, estava prestes a completar 4 anos de idade.
74. A essa data, o M... era um macho adulto e plenamente desenvolvido, pesava não menos de 40 Kg e possuía mais de 50 cm de altura.
75. À indicada data, o M... era um cão robusto, de caracter independente, dotado de uma mandíbula proporcional ao seu peso e altura, possante e capaz de causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, o que, de resto, causou.
76. O referido canídeo foi cadastrado pelo respectivo proprietário na Junta de Freguesia ..., sempre com a categoria de animal de companhia e não como animal perigoso.
(FIM DE TRANSCRIÇÃO)

Comecemos por esclarecer que o contrato de seguro aqui em causa é destinado ao cumprimento da obrigação imposta pelo artigo 10º do D/L 315/2009 de 20-10 (que revogou o D/L 312/2003 de 17 de Dezembro), consubstanciando, por tal motivo, um contrato de seguro de natureza obrigatória.
Os termos do invocado contrato de seguro encontram-se fixados pela Portaria n.º 585/2004 de 29-5.
Daqui se extrai que eventual franquia não é oponível a terceiros.
O seu artigo 7º estatui que:
«7.º
Exclusões
O contrato de seguro pode excluir os danos:
a) Causados aos empregados, assalariados ou mandatários do segurado, quando ao serviço deste, desde que tais danos resultem de acidente enquadrável na legislação de acidentes de trabalho;
b) Causados aos sócios, gerentes, legais representantes ou agentes da pessoa colectiva cuja responsabilidade se garanta;
c) Causados a quaisquer pessoas cuja responsabilidade esteja garantida por este contrato, bem como ao cônjuge, pessoa que viva em união de facto com o segurado, ascendentes e descendentes ou pessoas que com eles coabitem ou vivam a seu cargo, assim como ao detentor, vigilante ou utilizador do animal;
d) Causados pelos animais quando na prática da caça, que, nos termos da lei, devem ser objecto de seguro obrigatório de responsabilidade civil;
e) Devidos a responsabilidade por acidentes ocorridos com veículos que, nos termos da lei, devem ser objecto de seguro obrigatório de responsabilidade civil;
f) Decorrentes de custas e quaisquer outras despesas provenientes de procedimento criminal, fianças, coimas, multas, taxas ou outros encargos de idêntica natureza;
g) Causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia;
h) Causados pelo transporte de animais em veículos não apropriados para o efeito, assim como os causados aos veículos transportadores de animais;
i) Causados a outros animais da mesma espécie;
j) Decorrentes da inobservância de medidas higiénicas, profilácticas e terapêuticas recomendáveis em caso de doenças infecto-contagiosas ou parasitárias;
l) Ocorridos em consequência de guerra, greve, lock-out, tumultos, comoções civis, assaltos, sabotagem, terrorismo, actos de vandalismo, insurreições civis ou militares ou decisões de autoridades ou de forças usurpando a autoridade, assaltos e pirataria aérea.»

Temos, assim, que ambos os demandados (arguido e seguradora) celebraram entre si um contrato de seguro que contempla os riscos derivados da detenção de um cão.
Estabelecendo-se nas Condições Especiais uma cláusula de exclusão no sentido da que esse seguro não abrange as reclamações por danos "causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia”.

A primeira questão a discutir consiste em saber se esta cláusula é oponível às demandantes civis, tendo em conta que se trata de um “seguro obrigatório”.
E, na afirmativa, se, perante a factualidade provada, essa cláusula deve considerar-se preenchida.
A resposta à primeira questão, parece dever ser afirmativa.
A aplicação analógica do regime dos acidentes de viação (previsto no art. 14º do DL 522/85, de 31/12, e mantido no art. 22º do DL 291/2007, de 21/8) não nos parece viável.
Este regime poderia servir de paradigma dos demais seguros obrigatórios de responsabilidade civil e isso mesmo foi admitido implicitamente pelo legislador ao instituir o novo regime do contrato de seguro (DL 72/2008, de 16/4).
Acabou, porém, por ser consagrado um regime bem distinto, como decorre do disposto no art. 147º da LCS (em que são oponíveis, "nomeadamente", "a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato"), mais adequado ao seguro facultativo[14].
Neste quadro não parece possível suprir uma aparente falha e incoerência do sistema com uma solução que o próprio legislador veio claramente a repelir.
Sendo, assim, de concluir pela oponibilidade da aludida cláusula de exclusão, cumpre verificar se a mesma se mostra preenchida no caso.
Essa cláusula reproduz integralmente uma causa de exclusão permitida por norma legal relativa a este seguro (a acima citada Portaria), pelo que a sua inclusão no contrato de seguro não pode deixar de considerar-se legítima.
Por outro lado, a exclusão respeita a “danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais”.
Nos termos do art. 11º e 12º do Dec. Lei 315/2009 de 29-10
- o detentor do animal tem o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais;
- o detentor do animal potencialmente perigoso fica obrigado a manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos (os quais não podem permitir a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança das pessoas, outros animais e bens).
A questão que somos chamados a dirimir tem mais a ver com o incumprimento dos deveres de vigilância e de segurança que as normas legais impõem ao detentor do animal potencialmente perigoso.
A este respeito, porém, importa, por um lado, ter em atenção e ponderar, no circunstancialismo concreto provado, o (grau de) incumprimento dos referidos deveres imputado ao dono do cão, tendo em conta as características deste (neste aspecto lembremos que resultou provado que já antes havia mordido a mãe da assistente, bem como um irmão do seu detentor).
Mas, por outro lado, não pode deixar de ser considerado e correlacionado o âmbito de previsão da mencionada cláusula de exclusão, que se limita a indicar uma genérica inobservância das disposições legais que regulamentam a detenção.
Tendo em conta esse cariz amplo e genérico, a cláusula não pode ser interpretada e aplicada de forma literal e estrita, sob pena, desde logo, de se pôr em causa o próprio risco que é essencial à existência do contrato de seguro.
Na verdade, fazendo-se depender a cobertura do seguro da observância, pelo detentor do animal, de todas as disposições que regulamentam essa detenção, só em circunstâncias excepcionais, ocorreria o evento futuro e incerto (sinistro) que se pretende prevenir e segurar.
Este seguro, assim considerado, poderia ser rentável para a seguradora (a obrigatoriedade redundaria sobretudo em benefício desta), mas não teria grande justificação e utilidade para o tomador do seguro (nem interesse e utilidade para o eventual lesado)[15].
Assim, interpretada literalmente a referida cláusula, o contrato de seguro, apesar de obrigatório, dificilmente funcionaria. Deve, pois, ter-se em conta a natureza, o fim prosseguido pelo contrato e o seu efeito útil, só podendo ser excluídos da cobertura os danos que decorram de violação com, pelo menos, culpa grave dos deveres de vigilância e de segurança por parte do tomador do seguro, detentor do cão. Assim se entendia antes da actual LCS[16] [17].
No caso, o sinistro ocorreu na via pública.
O demandado passeava o seu cão M... sem trela e sem açaimo. Um cão que já havia atacado três pessoas (irmã e mãe da assistente, bem como o irmão do arguido) com consequências de alguma gravidade.
Tudo aconteceu num espaço público exterior (via pública, Rua ..., em ..., onde passam inúmeras pessoas e automóveis; é um trajecto principal), onde, como é reconhecido[18], mais pode sobressair a perigosidade potencial do cão, designadamente por se assustar ou, por instinto, atacar outros cães bem como pessoas que os acompanhem (foi o que aconteceu).
Julgamos não poder deixar de concluir que ficou demonstrada a violação subjectiva com negligência grave, do dever de vigilância que incumbia ao detentor do cão M..., o aqui demandado/arguido.
Ocorreu violação grave das condições de segurança em que o animal deveria ser passeado na via pública por forma a evitar que este pudesse confrontar-se, sem qualquer controle, com pessoas estranhas ou animais, fora do ambiente que lhe é familiar.
Este incumprimento subjectivo do dever de vigilância (de passeio na via pública em condições objectivas de segurança) consubstancia, neste caso concreto, a culpa grave exigível
Assim, sendo aquela cláusula de exclusão oponível às demandantes, entende-se que – no caso concreto de passeio na via pública de um cão que já havia mordido duas pessoas, sem trela e sem açaime - opera, no caso, a referida causa de exclusão.
Tal obsta, por conseguinte, à responsabilidade da seguradora no sinistro aqui em causa decorrente do contrato de seguro. O que se decide.

O arguido AA também é demandado.
Vejamos a sua responsabilidade civil pelos danos ocorridos.
O artº. 493º, n.º 1 do Código Civil, dispõe que “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Trata-se, pois, de uma norma que prevê a responsabilidade civil por facto ilícito do lesante quando se reúnem os seguintes pressupostos:
i) o facto;
ii) a ilicitude;
iii) a imputação do facto ao agente;
iv) o dano;
v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
De acordo com o disposto no artº. 493º, nº. 1 do Código Civil, o detentor ou proprietário de um animal tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte.
Este normativo estabelece uma presunção de culpa para aqueles que têm a seu cargo a vigilância de animais. Tal presunção legal de culpa implica uma inversão do ónus da prova, de harmonia com o preceituado nos artºs 487º, nº. 1 e 350º, nº. 1 do Código Civil, podendo ser ilidível mediante prova em contrário (nº. 2 do mencionado artº. 350º) pelo lesante de que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Apenas existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (artº. 483º, nº. 2 do Código Civil), ou seja, nos casos de responsabilidade pelo risco, sendo um desses casos, também, o resultante dos danos causados por animais, dispondo o artº. 502º do Código Civil que “quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização”.
Do confronto entre os normativos dos artºs 493º e 502º do Código Civil, podemos concluir que na abrangência do primeiro se situam as hipóteses dos animais domésticos, os quais por sua natureza estão sujeitos à guarda e/ou vigilância dos respectivos donos ou de outrem sobre quem recaia essa obrigação específica, enquanto o segundo preceito legal tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse.
No primeiro caso temos uma situação de culpa presumida e no segundo vigora a responsabilidade pelo risco, sempre que os danos estejam em conexão com os perigos especiais que sejam inerentes à utilização do animal (cfr. Acórdãos do STJ de 13/09/2012, proc. nº. 1070/08.9TBGRD e de 19/06/2007, proc. nº. 07A1730, disponíveis em www.dgsi.pt).
Sobre esta matéria pronunciou-se, ainda, o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/2012 (proc. nº. 1070/08.9TBGRD, disponível em www.dgsi.pt), no qual é feita uma análise da interpretação e aplicação dos artºs 493º e 502º do Código Civil nos seguintes termos:
«Ambos os preceitos regem casos de responsabilidade civil por danos causados por animais, mas com acentuadas diferenças, das quais destacamos: o artigo 493º consagra casos de presunção de culpa de quem tiver em seu poder (de facto ou jurídico) uma coisa com o dever de a vigiar ou um animal em relação ao qual assumiu o encargo de o vigiar, tendo essa coisa ou animal causado danos; o artigo 502º consagra caso de responsabilidade objectiva, logo independentemente de culpa, por parte de quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais pelos danos que estes causem, desde que os danos resultem do perigo especial que a sua utilização envolve.
Naquele caso de responsabilidade por culpa presumida, o visado verá afastada a sua responsabilidade se o demandante não provar os factos que constituem a base da presunção legal ou se o visado ilidir a presunção de culpa, sendo que pode ilidi-la por um de dois meios: provando que nenhuma culpa houve da sua parte ou provando uma causa virtual do mesmo dano verificado. E pode verificar-se a hipótese de a responsabilidade por culpa presumida ser totalmente afastada, havendo culpa do lesado, nos termos do artigo 570º, nº. 2 do CC.
A responsabilidade cominada no artigo 502º do CC é objectiva, não depende de culpa e o artigo 570º não lhe é aplicável.
Como é fácil constatar, quanto à responsabilidade civil por danos causados por animais, o preceito do artigo 502º é especial em relação ao do artigo 493º, nº. 1 do Código Civil, pelo que a aplicação daquele prevalece (art. 7º, nº. 3 do CC). E aquele oferece mais forte protecção à vítima, pois que não ressalva a falta de culpa do agente como ocorre no artigo 493º, nº 1.»

Deste modo, o proprietário de um cão, por ser dono, está obrigado a vigiá-lo de modo a que não cause danos. Por outro lado, quanto à ilicitude, podemos afirmar que ela consiste na omissão do dever de vigilância do animal que causou os danos.
Perante o quadro factual que resultou provado é patente a obrigação do arguido/demandado responder pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo seu cão M....
No que à lesada CC diz respeito, constata-se que deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia global de €15 500,00 (quinze mil e quinhentos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com o comportamento do arguido.
Como dano patrimonial a indemnizar temos o valor pago pela demandante para adquirir o seu cão de companhia.
Entendemos, como vem sendo entendido pela recente Jurisprudência, que nos danos não patrimoniais sofridos pela própria demandante se deve incluir igualmente o desgosto ou sofrimento moral com a morte do seu cão (Pinsher – abocanhado e sacudido até à morte pelo cão M..., propriedade do arguido).
Constitui um dado civilizacional adquirido nas sociedades europeias modernas o respeito pelos direitos dos animais. A aceitação de que os animais são seres vivos carecidos de atenção, cuidados e protecção do ser humano e não coisas de que o este último possa dispor a seu bel-prazer, designadamente sujeitando-os a maus tratos ou a actos cruéis, tem implícito o reconhecimento das vantagens da relação do ser humano com os animais de companhia, tanto para o primeiro como para os animais, e subjacente a necessidade de um mínimo de tutela jurídica dessa relação, de que são exemplo a punição criminal dos maus tratos a animais e o controle administrativo das condições em que esses animais são detidos.
Por conseguinte, a relação do ser humano com os seus animais de companhia possui hoje já um relevo à face da ordem jurídica que não pode ser desprezado.
Acresce que a evolução do tratamento dos danos não patrimoniais no nosso sistema jurídico conduziu a que hoje se aceite que também as pessoas colectivas podem sofrer danos não patrimoniais e que inclusivamente no domínio das puras relações obrigacionais ou contratuais o incumprimento dos deveres de prestação possa causar ao credor, danos não patrimoniais indemnizáveis. Não se vê, pois, como ou porquê deixar de incluir nos danos não patrimoniais sofridos por uma pessoa o sofrimento e o desgosto que lhe causa a perda de um animal de companhia ao qual ganhou afeição, que consigo partilha o dia-a-dia, que alimenta e cuida, que leva ao veterinário quando está doente ou precisa de cuidados de saúde.
Temos, assim, que incluir nos danos não patrimoniais sofridos pela Demandante o dano moral da morte do seu cão.
No tocante ao montante da indemnização a atribuir pela totalidade desses danos não patrimoniais, cabe acentuar que a indemnização é essencialmente compensatória, ou seja, visa a atribuição à lesada de um montante que lhe possa proporcionar satisfações que a compensem do sofrimento que irremediavelmente suportou.
A equidade surge aqui apenas como critério de temperança da subjectividade inerente à avaliação do sofrimento dos outros e da definição daquilo que é efectivamente capaz de compensar esse sofrimento.
Por essa razão a equidade apela radicalmente às circunstâncias do caso, às condições e modo de vida das pessoas envolvidas e à medida comummente usada na jurisprudência para situações próximas ou similares.
Atento os danos sofridos temos como justa e adequada a Indemnização de 10.500 euros (dez mil e quinhentos euros) a suportar pelo arguido/demandado.

No que tange à assistente BB constatamos que deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento da quantia global de €12 909,95 (doze mil, novecentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com o comportamento do arguido (cfr. fls. 225 v.º-229).
Relembremos os factos provados:
«34. A assistente viveu momentos de profunda aflição e desespero, chegando mesmo a acreditar que o cão do arguido iria por termo à sua vida e à do Pinscher que passeava.
35. A morte do Pinscher que passeava ocorreu de facto.
36. Como consequência directa e necessária da conduta do cão do arguido, a assistente sofreu lesões, que lhe determinaram 18 dias para a consolidação médico-legal.
37. A assistente sofreu dores fortíssimas e violentas, angústia, tristeza, humilhação, clausura hospitalar.
38. Em consequência do crime praticado sentiu a assistente uma forte e insuportável dor.
39. Um sofrimento atroz que a acompanhou numa longa e penosa recuperação que inevitavelmente a traumatizou psicologicamente.
40. A ofendida, pessoa respeitável na comunidade onde está inserida, em virtude do que lhe aconteceu, sentiu forte humilhação e vexame.
41. Durante muito tempo isolou-se na segurança do seu lar, evitando sempre que lhe era possível contacto com o mundo exterior pois temia que o cão do arguido repetisse os mesmos factos, pois esta já não era a primeira vez que o mesmo cão atacava membros da sua família.
42. O mesmo cão do arguido já havia mordido a sua mãe e irmã anteriormente.
43. Viveu num estado de medo e em constante sobressalto aquando das necessárias deslocações que teve que fazer.
44. Ainda hoje teme ser vítima de novo ataque, não se encontrando psicologicamente recuperada.
45. Em consequência do incidente, a assistente passou a sofrer de insónias, falta de apetite, depressão, passando a carecer de assistência médica especializada, do foro psiquiátrico.
46. São inúmeras as noites em que não consegue adormecer tendo de recorrer frequentemente a sedativos e calmantes.
47. Alguns dos seus hábitos de convívio e divertimento foram alterados, deixando de passear a pé pelos locais onde o fazia anteriormente.
48. Viveu momentos de profunda dor e desespero que foram causa necessária e suficiente para que ainda hoje não se encontre psicologicamente recuperada.
49. Sentiu-se com um sentimento de impotência perante o ataque que ambos sofreram.
50. Sofre com a lembrança do ocorrido, o que lhe causa diversos transtornos, nomeadamente angústia e depressão.
51. Lembrança esta que fez com que a assistente ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
52. A assistente era uma pessoa alegre, dinâmica, cheia de saúde e de vida e em virtude da conduta do arguido, transformou-se numa pessoa mais introvertida, receosa e insegura.
53. Todas estas circunstâncias criaram em si uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio sócio-psíquico-emocional. 54. A assistente no âmbito da sua actividade profissional tem de estabelecer contactos com clientes, dar aulas em ginásios, expressar-se oralmente, de forma enérgica, pelo que sofreu diariamente, e durante vários meses, com as limitações das sequelas que a acompanharam.
55. A assistente, à data do acidente, encontrava-se empregada, desempenhando as funções de instrutora de fitness, dando aulas de grupo e personal training.
56. Tinha um horário de 8 horas diárias, auferindo €1500,00 mensais.
57. A assistente esteve ausente da sua entidade patronal, por baixa e devido à actuação do arguido, entre os dias 20 de Julho e 8 de Agosto de 2019, ou seja, por um período de 18 dias.
58. A assistente teve ainda um prejuízo de €29,95 correspondente ao valor da camisa que vestia no dia do ataque e que ficou rasgada e inutilizada.»

A título de danos patrimoniais é patente que o arguido é responsável pelo pagamento da quantia de 2.909,95 euros (período em que a assistente se manteve de baixa e sem auferir o seu salário e o prejuízo provado com a inutilização da camisa que lhe custou 29,95 euros).
No que tange aos danos não patrimoniais sofridos pela Assistente – atento tudo quanto vivenciou, as dores sofridas, o medo - julgamos justa e adequada a peticionada quantia de 10 mil euros.

O Ac. UJ nº 4/02 veio fixar a seguinte jurisprudência: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs 805º, nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
O que se conclui daquele Ac. UJ é que não há que distinguir se os danos são de natureza patrimonial ou não patrimonial, de acordo com a actual redacção do nº 3 do artº 805º, incidindo os juros sobre todos eles, na mesma medida.[19]
O que se decide em conformidade neste caso.
***
–Dispositivo:
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) – Revogar a sentença recorrida, condenando o arguido AA pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo disposto no artigo 148.°, n.º 1, do Código Penal, em concurso aparente com a contraordenação punida pelo artigo 38.º n.º 1 al. d) e r), por referência aos artigos 11.º, 13.º, n.º 2 todos do Decreto-lei n.º 315/2009, de 29.10, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros).
B) – O arguido é condenado nas custas processuais a que deu causa em primeira instância, fixando-se a respectiva taxa de justiça em três (3) UC.
C) - Absolver de ambos os pedidos cíveis, formulados por CC e BB, a Companhia de Seguros “A..., S.A.”.
D) - Julgar totalmente procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado pela Assistente BB contra o arguido AA e, consequentemente, condená-lo a pagar-lhe a quantia de 12.909,95 euros (doze mil novecentos e nove euros e noventa e cinco cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde o trânsito em julgado desta decisão.
E) - Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado pela Demandante civil CC contra o arguido AA e, consequentemente, condená-lo a pagar-lhe a quantia de 10.500 euros (dez mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde o trânsito em julgado desta decisão.
F) – Custas dos pedidos cíveis a cargo do demandado/arguido e das demandantes na proporção do respectivo decaimento.

Sem custas do recurso.

Porto, 15 de Fevereiro de 2023
Paula Pires
José Piedade
Horácio Correia Pinto
________________________
[1] Dr.ª Judite Babo, Procuradora-Geral Adjunta
[2] Procedeu-se à correcção quanto ao género. No texto da sentença escreveu-se, por lapso manifesto: “Vinha a arguida (…)”
[3] Mais uma vez corrigimos o género. Na sentença escreveu-se por lapso manifesto “uma acção da arguida (…) e, mais à frente “de que aquela é proprietária”; e “o nexo de imputação do resultado típico à arguida”.
[4] Citado no AC. Relação Lisboa de 29-3.2022; processo 322/18.4PCSXL.L1-5 em que figura como Relator o Ex.mo Sr. Desembargador JORGE GONÇALVES. Acórdão que de perto seguiremos.
[5] Citados, mais uma vez, no AC. Relação Lisboa de 29-3.2022; processo 322/18.4PCSXL.L1-5 em que figura como Relator o Ex.mo Sr. Desembargador JORGE GONÇALVES. Acórdão que de perto seguimos.
[6] Cfr., além dos citados na sentença absolutória da Primeira Instância, os acórdãos do TRE, de 05/06/2012, processo 193/10.9GACTX.E1; TRL, de 11/07/2018, processo 73/16.4PHLRS-3; TRP, de 24/09/2020, processo 96/18.6GAVCD-A.P1.
[7] Decisão da Primeira Instância assente no Acórdão da RP de 24.09.2020, n.º do processo 96/18.6GAVCD-A.P1, Relator Desembargador Horácio Correia Pinto, in www.dgsi.pt.
[8] Todos consultados e citados no AC. Relação Lisboa de 29-3.2022; processo 322/18.4PCSXL.L1-5 em que figura como Relator o Ex.mo Sr. Desembargador JORGE GONÇALVES.
[9] Artigo 165.º - (Reserva relativa de competência legislativa)
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo
(…)
c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal (…)
[10] Referência evidenciada no AC. Relação Lisboa de 29-3.2022; processo 322/18.4PCSXL.L1-5 em que figura como Relator o Ex.mo Sr. Desembargador JORGE GONÇALVES.
[11]
Artigo 36.º
Autoridades competentes em processo criminal
1 - Quando se verifique concurso de crime e contraordenação ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contraordenação, o processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal.
2 - Se estiver pendente um processo na autoridade administrativa, devem os autos ser remetidos a autoridade competente nos termos do número anterior.
3 - Quando uma mesma infração constitua crime e contraordenação, o agente é punido apenas pelo crime, podendo ser-lhe aplicadas as sanções acessórias previstas para a infração criminal ou para a infração contraordenacional.
[12] Mais uma vez corrigimos o género. Na sentença escreveu-se por lapso manifesto “uma acção da arguida (…) e, mais à frente “de que aquela é proprietária”; e “o nexo de imputação do resultado típico à arguida”.
[13]
Artigo 38.º
Contraordenações
1 - Constitui contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE):
(…)
d) A circulação de animais perigosos ou potencialmente perigosos na via pública, em outros lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, sem que estejam acompanhados de pessoa maior de 16 anos de idade, caso em que a responsabilidade contraordenacional recai sobre o detentor que não obste a tal situação, ou sem os meios de contenção previstos no artigo 13.º, ou a circulação ou permanência em zona proibida e sinalizada para o efeito nos termos do n.º 4 do mesmo artigo;
(…)
r) A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.
2 - A tentativa e a negligência são puníveis nos termos do RJCE.
[14]
Artigo 147.º
Meios de defesa
1 - O segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.
2 - Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.
[15] Como refere Moitinho de Almeida – Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, pág. 105 – "uma limitação tão ampla dos riscos cobertos tornava o seguro praticamente sem interesse em certos ramos, como o da responsabilidade civil, em que a maior parte dos sinistros são devidos a facto do segurado, mais ou menos culposo".
[16] Neste sentido, Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, pág. 108; também Ana Prata, Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, pág. 171.
No domínio da actual LCS até os actos ou omissões dolosas podem ser abrangidos pela cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade, desde que o regime legal a tal não obste – art. 148º.
[17]
Art 148º - Dolo
1 - No seguro obrigatório de responsabilidade civil, a cobertura de actos ou omissões dolosos depende do regime estabelecido em lei ou regulamento.
2 - Caso a lei e o regulamento sejam omissos na definição do regime, há cobertura de actos ou omissões dolosos do segurado.
[18] Cfr. Acórdão do STJ de 24.05.2011, em www.dgsi.pt.
[19] Cfr Ac. Do TRP, processo 75/10.4TBAMT.P1 datado de 27-9-2018, Relatora Desembargadora Deolinda Varão, publicado in www.dgsi.pt.