Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8/17.7T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
BOA FÉ OBJECTIVA
BONS COSTUMES
TESTE DE PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201806278/17.7T8GDM.P1
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 140, FLS 136-148)
Área Temática: .
Sumário: I - O abuso de direito tem carácter extraordinário, cuja aplicação não visa extinguir direitos, mas suscitar o seu exercício limitado ou moderado, sendo um instrumento de correcção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como uma última ratio e para situações de flagrante excesso no exercício de um direito subjectivo.
II - A boa fé no comportamento abusivo tem uma formulação objectiva, surgindo como um princípio de tráfico jurídico, sendo um standard aberto de comportamentos de franqueza e de confiabilidade, impondo específicas regras de conduta (lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação).
III - Os bons costumes contemporâneos são aqueles valores ou princípios, com carácter moral e validade jurídica, reconhecidos ou assumidos pela comunidade, estabelecendo um mínimo de exigências éticas de conduta ou convivência, no âmbito de uma sociedade decente, respeitando a laicidade, a pluralidade, a diversidade e a multiculturalidade.
IV - O exercício ilegítimo de um direito subjectivo privado, por abuso de direito, só será manifesto e censurável, quando esse desempenho, para além de contrariar um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), conduzir, em concreto e atendendo à globalidade dos acontecimentos, a uma injustificada desproporção entre o benefício decorrente desse direito e a desvantagem resultante do correspondente dever para a contraparte, não surgindo aquele ou este, como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar um interesse legítimo.
V - Aquele que a título individual tem um crédito sobre uma pessoa colectiva e que, integrando simultaneamente os seus corpos directivos, participa na formação de vontade, delibera e representa esse ente colectivo sobre assuntos dos seus interesses particulares, ofende os bons costumes contemporâneos.
VI - O exercício pelos AA. do direito de sub-rogação, na sequência de uma garantia concedida pelos mesmos através de um penhor, para assegurar uma obrigação bancária constituída pela direcção do D1... para solver um outro crédito individual dos AA, tendo um destes participado na formação de vontade, deliberação e representado o D1... junto do banco, só será manifestamente abusivo se, no contexto global dos acontecimentos, for sufragado por um teste de proporcionalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 8/17.7T8GDM.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: José Manuel de Araújo Barros; Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1 No processo n.º 8/17.7T8GDM do Juízo Local Cível de Gondomar, J1, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Autores: B... e mulher C...

Recorrido/Réus: D...

foi proferida sentença em 05/jan./2018, a fls. 231/248, na qual se decidiu “julgar a presente ação totalmente improcedente e julgar a reconvenção deduzida pelo Réu contra o Autor marido totalmente improcedente e, nesta conformidade, absolver o Réu do pedido e absolver o Autor/marido do pedido reconvencional”.
1.2 Na sua petição inicial os AA. invocaram que a solicitação do R. emprestaram-lhes em 30/11/2004 a quantia de € 28.000,00, com a condição de ser imediatamente liquidado logo que a Câmara atribuísse o subsídio de apoio ao associativismo, o que foi concedido em dezembro de 2004/janeiro de 2005, mas sem que o R. pagasse aos AA. Após o A. marido ter assumido a presidência do D1... em 2006, o aqui R., representado, pelo primeiro e outro, constituiu em 13/11/2007 junto do E... um crédito, sob a forma corrente, para apoio à tesouraria, até ao limite de € 32.000,00, conforme o estabelecido no Contrato de Abertura de Crédito, constituindo os AA., como garantia desta operação financeira e a favor desse banco um penhor do seu crédito existente numa sua conta a prazo no valor de € 35.000,00. Após a obtenção deste último crédito o R. paga aos AA. a quantia anteriormente emprestada, tendo deixado a presidência do R. em 2008, tendo a nova presidência deixado de cumprir o referido contrato de abertura de crédito, motivo pelo qual foram interpelados para pagar o que era devido pelo R., tendo liquidado em 09/jun./2011 a quantia de €33.761,97, que agora peticionam, acrescidos de juros de mora a contar da citação. 1.3 O RR. contestou por excepção, invocando a prescrição do referido crédito, uma vez que o mesmo remonta a 2007, assim como a nulidade da operação de crédito com o E..., porquanto de acordo com os estatutos do C1... compete à Assembleia Geral autorizar a direcção a realizar empréstimos e outras operações de crédito, o que não ocorreu, havendo ainda abuso de direito, porquanto o A. marido, enquanto presidente da R. e sem a devida autorização, teve como primeira prioridade pagar-se a si próprio, endividando-se perante terceiros, sustentando em sede de impugnação que o R. nunca aceitou nem reconheceu a alegada dívida, não estando a mesma contabilizada. Mais sustentou, em reconvenção, a falta de zelo do A. marido enquanto presidente do R., tendo plena consciência da debilidade financeira do D1..., mas não obstante tal comprometeu o futuro deste último, ao celebrar tal contrato, gerando um prejuízo estimado de €5.000,00, terminando com o seguinte: “i) devem as excepções deduzidas ser julgadas procedentes; ii) deve a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada; iii) deve o pedido reconvencional ser julgado provado e procedente, sendo o A. B... condenado a pagar ao R. a quantia de € 5.000,00, bem como a quantia que o R. venha a ser eventualmente condenado a pagar aos RR.”
1.4 Após a realização da audiência prévia foi proferido despacho saneador, que admitiu o pedido reconvencional, fixou o valor da causa, julgando improcedente a invocada prescrição, fixando o objecto do litígio e os temas de prova, admitindo a prova e designando a audiência de julgamento.
2. Os AA. interpuserem recurso em 12/fev./2018, a fls. 251/257, pedindo que a sentença recorrida seja “revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção, condenando-se o R. no pedido, por erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 615.º C.P.C. e artigo 334.º do C. C.”, apresentando as seguintes conclusões:
1) Os Recorrentes peticionam que o Recorrido seja condenado a pagar-lhes a quantia de 33.761,97€, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento (1)
2) Entendeu o tribunal “a quo”, que os aqui Recorrentes, incorrem no chamado abuso do direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, não podendo os aqui Recorrentes concordar com tal decisão (2,3)
3) Não nos parece a situação do caso concreto, salvo o devido respeito, até porque o “Abuso do Direito” pressupõe excesso ou desrespeito dos limites axiológico-materiais, não existindo tal abuso quando não se verificar excesso manifesto dos limites pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito (4)
4) O Abuso do Direito é um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjetivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados, não sendo invocável quando se pretende impugnar, não os limites do exercício do direito mas a própria existência do direito (5, 6)
5) Para que se verifique Abuso do Direito, previsto no artigo 334º do C. C., é necessário que o seu titular, embora observando a estrutura formal do poder que a Lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que deve observar atendendo aos interesses que legitimam a concessão desse poder, que exerça o direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, não podendo constituir abuso do direito a opção por uma das soluções possíveis duma questão controverti (7, 8)
6) Exige-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos, e, portanto, a correção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita (10)
7) Agem de “boa fé”, os ora Recorrentes, aliás, por várias vezes tentaram sanar este assunto junto do Recorrido, pela via extrajudicial, mas nunca existiu abertura para pagar o que quer que fosse (12)
8) “Perde muito tempo” a Douta Sentença que ora se recorre, a “falar“ do primeiro empréstimo de 28.000,00€, mas não é isso que esta em acusa neste pleito, até porque tal empréstimo já foi pago, e nunca em momento algum o Recorrido, coloca em causa o seu pagamento (13)
9) Nem sequer o Recorrido impugnou as atas em que tal foi deliberado, sendo que as contas foram aprovadas na Assembleia Geral, onde constava, como é obvio tal situação (14)
10) O que esta verdadeiramente em causa é o crédito sob a forma de conta corrente, para apoio à tesouraria (15)
11) O Recorrido, aquando do primeiro empréstimo, ficou de liquidar o mesmo, quando lhe fosse pago o subsidio de apoio ao associativismo pela Câmara Municipal ..., e não o fez, deixou sempre os Recorrentes, “pendurados”, pagando a outros credores em detrimento destes (16)
12) De acordo com os factos provados e em concreto na alínea h), existiu apenas e só um apelo aos futuros dirigentes, para que procedessem ao pagamento dos débitos de forma faseada e sempre que existisse disponibilidade financeira do Recorrido (17)
13) Em concreto um apelo, como a própria palavra indica, não é mais do que uma recomendação, e nunca pode ser interpretado como uma deliberação, que nos parece que foi o que aconteceu (18)
14) O Recorrido já tinha tido disponibilidade financeira, aquando do pagamento do subsidio de apoio ao associativismo pela Câmara Municipal ... e este não quis saber do que se tinha comprometido com os Recorrentes (19)
15) As contas do Recorrido passaram pelo crivo da Assembleia Geral, e nunca se fez qualquer reparo, pelo que tudo ocorreu dentro da normalidade que era habitual no seio do Recorrido, ou seja, que era pratica corrente, este tipo de operações, e por tal facto os sócios já nem questionavam (20)
16) Também o pagamento dos 28.000,00€ aos Recorrentes passou pelo crivo da Assembleia Geral, em concreto na aprovação das contas, e ninguém questionou o que quer que fosse (21)
17) Nenhuma das actas que estão nos autos foram impugnadas pelo Recorrido (22)
18) Como pode o Tribunal “a quo”, considerar abuso do direito, quando os Recorrentes, colocaram o seu património, como garantia dos empréstimos, já que ao Recorrido, não havia qualquer instituição financeira que concedesse qualquer crédito (23)
19) O que originou este pleito, foi o simples facto do Recorrido não cumprir com o pagamento das prestações do crédito sob a forma de conta corrente, para apoio à tesouraria, que foi contraído, para seu beneficio, pelo que o seu cumprimento evitaria este pleito (24, 25)
20) Não pode de maneira alguma existir Abuso do Direito, quando o Recorrido, bem sabia que foi efetuada tal operação financeira, e isto é notório nos documentos que existem nos autos, tendo inclusive pago algumas das prestações de tal crédito (26)
21) No decurso da Audiência de Julgamento, não ficou claro, em que data os estatutos do Recorrido entraram em vigor, apenas constando que estes foram aprovados em Assembleia Geral em 02/06/2006 – vide alínea u) dos factos provados – sendo que aprovar os estatutos é uma coisa e a sua entrada em vigor é outra (27, 28)
22) A sentença na sua fundamentação contradiz-se e padece de erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 615º do C.P.C. e artigo 334º do C.C. (9)
23) Perante a posição da diversa Jurisprudência teremos de concluir que os Recorrentes, não atuaram com “Abuso do Direito”, o que acarreta a procedência da acção, face à prova produzida
3. O R. contra-alegou em 19/mar./2018, a fls. 258/266 pugnando que “deve o presente recurso de apelação ser julgado totalmente improcedente, confirmando a sentença em causa e absolvendo o réu/recorrido do pedido formulado”, alegando essencialmente o seguinte:
1) O Tribunal entendeu que os aqui Recorrentes incorreram no instituto do abuso do direito, tal como prescreve o artigo 334.º do Código Civil, tendo dado adequado enquadramento à matéria de facto dada como provada, concordando o aqui Recorrido com a decisão proferida (1-4, 7)
2) Para que se verifique abuso do direito, previsto no artigo 334.º do C. C., não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, basta que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que esses limites tenham sido exercidos de forma evidente (5)
3) O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado (6)
4) É facto dado como provado que foi deliberado em reunião de Direcção que as direcções futuras deveriam proceder ao pagamento dos débitos de forma faseada e sempre que existisse disponibilidade financeira do R/Recorrido. Acta esta que foi também assinada pelo A/Recorrente enquanto membro da direcção (8)
5) Uma deliberação da direcção de que o Recorrente fazia parte e por ele foi subscrita sem qualquer reserva ou ressalva (9)
6) O R/Recorrido, como foi sobejamente referido no decorrer do julgamento, vivia em permanente sufoco. O R/Recorrido não tinha crédito na banca (10)
7) O que originou este pleito, foi o simples facto do A/Recorrente, enquanto presidente do Recorrido ter contraído um empréstimo bancário, para se pagar a si próprio, à revelia do previsto nos Estatutos do Recorrido bem como do deliberado em reunião de direcção, deliberação subscrita pelo A/Recorrente enquanto membro dessa direcção (11)
8) Os Estatutos prevêem que compete à Assembleia Geral entre outros “Autorizar a Direcção a realizar empréstimos e outras operações de crédito.”, o que, de facto, não aconteceu (12)
9) E com a operação de crédito realizada, à revelia dos sócios, o A/Recorrente decidiu pagar-se a si próprio, em detrimento dos demais credores (13)
10) O A/Recorrente apesar das dificuldades financeiras do Recorrido, sem aprovação da Assembleia Geral, contraiu um empréstimo bancário, endividando o R/Recorrido, para se pagar única e exclusivamente a si. Contrariamente ao que havia sido deliberado em reunião de direcção, de que o A/Recorrente fazia parte (14)
11) Utilizando o valor mutuado em benefício próprio, sem cuidar dos interesses do Recorrido e dos demais credores do D1..., e não para gerir a colectividade a que presidia (15,16)
12) Tendo ainda ficado demonstrado em sede de julgamento ser hábito, prática comum, os associados fazerem “empréstimos” ao Recorrido (tal como acontece com muitas instituições desportivas amadoras) existindo a firme convicção de se tratar não de verdadeiros empréstimos mas de doações, dada a debilidade financeira do Recorrido (17)
13) No decurso da Audiência de Julgamento, ficou mais do que claro, a data em que os estatutos do Recorrido entraram em vigor, na data da sua aprovação em Assembleia Geral em 02/06/2006 – alínea u) dos factos provados. Vinculando, desde logo, os órgãos directivos (18)
4. Admitido o recurso, foi o mesmo remetido electronicamente para esta Relação em 18/abr./2018, onde foi registado em 23/abr./2018, seguindo-se o exame preliminar, tendo sido dados os subsequentes vistos, não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do seu mérito.
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A questão em apreço passa por saber se a exigência da quantia peticionada, com base no direito de regresso, integra um abuso de direito.
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II. FUNDAMENTOS
1. FACTOS PROVADOS
a) Em novembro de 2004, o então presidente do Réu, F..., solicitou aos Autores que estes emprestassem ao D1..., aqui Réu, a quantia de € 28.000,00 (resposta ao artigo 1.º da petição inicial).
b) E solicitou tal empréstimo, pelo facto do Réu estar com dificuldades financeiras, pois estava em atraso pelo período de 3 meses no pagamento de salários aos jogadores de futebol (resposta ao artigo 2.º da petição inicial).
c) Tendo-se comprometido a restituir a quantia referida em a), assim que a Câmara Municipal ... atribuísse o subsídio de apoio ao associativismo (resposta ao artigo 3.º da petição inicial).
d) Os Autores acederam e emprestaram ao Réu a quantia de € 28.000,00 (resposta ao artigo 4.º da petição inicial e artigo 21.º da contestação).
e) Para o efeito os Autores efetuaram um empréstimo no G... (resposta aio artigo 5.º da petição inicial).
f) Assim, no dia 30/11/2004, o G... transferiu para a conta do Réu com o NIB ....................., sedeada no H... a quantia global de € 28.000,00 (resposta ao artigo 6.º da petição inicial).
g) Na altura que a Câmara Municipal ... entregou o subsídio referido em c) ao Réu, este não restituiu a quantia referida em d) aos Autores (resposta ao artigo 7.º da petição inicial).
h) Consta da ata de 12/06/2006 que documenta a reunião da direção do D1... ora Réu que “No sentido de uma melhor clarificação futura, foi decidido passar declarações de dívida aos credores do D1... e conforme o relatório de contas aprovado na última Assembleia – Geral a seguir indicados: H... (B...) 28.000 euros = vinte oito mil euros =; F... – 172.295.50 euros = cento setenta dois mil, duzentos noventa cinco euros, cinquenta cêntimos =; I... – 26.000, euros = vinte seis mil euros=; J... – 21.922.35 euros = vinte um mil novecentos vinte dois euros, trinta cinco cêntimos = e K... – 10.015 euros = dez mil e quinze euros. Mais foi salientado da necessidade de liquidação destes débitos, pelo que se apela aos futuros dirigentes eleitos na próxima Assembleia – Geral, que procedam de forma faseada e sempre que existir disponibilidade financeira no D1... à sua liquidação. Mais nada havendo a tratar foi aprovada por unanimidade a presente acta que vai ser assinada por todos os membros da direcção presentes e que foram os seguintes” (resposta ao artigo 22.º da contestação).
i) A ata identificada em h) foi assinada pelo Autor na qualidade de Vice Presidente (resposta ao artigo 22.º da contestação).
j) No ano de 2006 o Autor assumiu a presidência do D1... aqui Réu (resposta ao artigo 8.º da petição inicial e ao artigo 23.º da contestação).
k) Consta da ata de 22 de setembro de 2007 que documenta a reunião da direção do D1... ora Réu que “A reunião teve a seguinte ordem de trabalhos: (…) Ponto 8 – Abertura de conta no E... para um empréstimo no valor de 32.000,00 € (Trinta e Dois Mil Euros), para transferência do empréstimo que estava no G...(….) Acrescentar que em relação ao ponto 8 a proposta foi aceite ou aprovada pelos diretores presentes. Nada mais havendo a tratar se lavrou a presente acta que irá ser assinada pelo Presidente do D1... e os restantes membros presentes” (resposta ao artigo 9.º da petição inicial).
l) Consta da ata de 20 de outubro de 2007 que documenta a reunião da direção do D1... ora Réu que “A reunião teve a seguinte ordem de trabalhos: Ponto único de discussão foi a nomeação do Presidente do D1... B... e do Presidente Adjunto L..., como legítimos representantes do D1... junto do E..., quer para abertura de conta, bem como assinaturas de cheques, demais situações junto da entidade bancária acima mencionada. Nada mais havendo a tratar se lavrou a presente acta que irá ser assinada pelo Presidente do D1... e restantes membros presentes” (resposta ao artigo 10.º da petição inicial).
m) Em 13 de novembro de 2007 o Réu representado da forma referida em l), celebrou um contrato com o E..., S.A., denominado “Contrato de Abertura de Crédito”, do qual consta como 1.ª cláusula “O Banco abre um crédito, sob a forma de conta corrente, com o número 031 4660-002- 36, em nome do segundo contraente, para apoio à tesouraria, que este poderá movimentar até ao limite máximo de trinta e dois mil euros” (resposta ao artigo 11.º da petição inicial e ao artigo 24.º da contestação)
n) Contudo o E... para aceder a este tipo de operação financeira exigiu garantias e, nesta sequência, os Autores constituíram a favor do mesmo um penhor do seu crédito resultante da conta de depósito a prazo sob o n.º ............, no valor de € 35.000,00 (resposta ao artigo 12.º da petição inicial)
o) Com a quantia referida em m), o Réu restituiu o montante referido em d) aos Autores (resposta ao artigo 13.º da petição inicial e ao artigo 25.º da contestação).
p) Em 2008 o Autor deixou a presidência do D1... aqui Réu e sucedeu-lhe F..., referido em a) (resposta aos artigos 14.º e 15.º da petição inicial)
q) O Réu não restituiu o capital entregue pelo E..., em execução do contrato identificado em m) (resposta aos artigos 16.º e 17.º da petição inicial)
r) O E... enviou ao Autores duas missivas, uma a cada um, datadas de 20 de maio de 2011 a exigir o pagamento da quantia em dívida no montante de € 33.751,22, sob cominação de acionamento da garantia prestada pelos Autores, referida em n) (resposta aos artigos 19.º, 20.º e 21.º da petição inicial)
s) Por causa do referido em q) e em r), os Autores procederam ao pagamento da quantia de € 33.761,97 no dia 9 de junho de 2011 ao E... (resposta ao artigo 26.º da petição inicial).
t) Consta do artigo 49.º dos Estatutos do D... que “A Assembleia Geral detém a plenitude do poder do D..., é soberana nas suas deliberações e pertence-lhe, por direito próprio, apreciar e decidir sobre todos os assuntos de interesse para o D1..., competindo-lhe designadamente: (…) Autorizar a Direção a realizar empréstimos e outras operações de crédito” (resposta ao artigo 9.º da contestação)
u) Consta do artigo 85.º dos Estatutos do D... que “Estes estatutos foram aprovados em Assembleia Geral em 02/06/2006” (resposta ao artigo 8.º da contestação)
v) É público que o Réu é demandado nesta ação (resposta ao artigo 82.º da contestação)
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2. DO DIREITO
O Código Civil (C. C.) estabelece no seu artigo 334.º que “É ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Trata-se de uma cláusula geral que expressa, desde logo, uma antinomia, porquanto associa o abuso ao direito, quando este caracteriza-se por ser lícito e não por ser ilegítimo – como decorre de um conhecido brocardo latino, qui iure suo utitur neminem laedit (“quem faz uso do seu direito não prejudica ninguém”), ainda que temperado por outros, como seja malitis non est indulgendum (“a maldade não deve ter indulgências”). A mesma, como qualquer cláusula geral, caracteriza-se pela sua indeterminação, generalidade e vacuidade, exigindo a sua “integração valorativa”, a partir das suas origens, teleologia e dos seus pressupostos ou requisitos.
Começamos por relembrar que a sua origem, “esquecendo” agora a sua ancestralidade romanista, repousa numa construção essencialmente pretoriana, com origem na jurisprudência francesa (arrêt Doerr, Cour d’Appel de Colmar, 02/05/1855, DP 1856, 2, 9, no caso da chaminé falsa; arrêt Badoit, Cour d’Appel de Lyon, 18/04/1856, DP 1856, 2, 199, caso das águas minerais; arrêt Forissier, Cour de Cassation 10/06/1902, DP III 1902, 1, 454, no caso das águas subterrâneas das fontes de Chaverots; arrêt Clément-Bayard, Cour de Cassation 03/08/1915, DP 1917, I, p. 79 no caso dos espigões de ferro), a qual visou essencialmente limitar a característica absoluta do direito de propriedade, mediante uma formulação subjectiva (intencionalidade maliciosa – arrêts Doerr, Badoit, Clément-Bayard) e a aproximação a uma formulação objectiva (utilidade do direito – arrêt Forissier). No entanto, não existia uma consagração legal expressa, partindo-se inicialmente do critério do interesse sério e legítimo no exercício de um direito – muito embora alguma vezes associado à noção de “faute” e de “dommage” (1382.º Code Civil des Français). Por sua vez, numa das suas primeiras referências legais, como sucedeu com o Código Civil Alemão de 1896 (BGB), procurou-se proibir a chicana (Schikaneverbot, § 226), reforçando-se e alargando-se o seu âmbito através do apelo à boa fé (Treu und Glauben, §§ 157, 242), assim como aos danos intencionais e aos bons costumes (Sittenwidrig vorsätzliche Schadigung, § 826), mediante o critério de inadmissibilidade do exercício de um direito para exclusivamente causar prejuízo a outrem. Mais convicto na sua consagração legal, mas também mais amplo, adoptando uma formulação nitidamente objectiva, pois incidia apenas no comportamento, foi o Code Civil Suisse de 1907 ao considerar que “O abuso manifesto de um direito não é protegido pela lei” (2.º, 2 “L’abus manifeste d’un droit n’est pas protégé par la loi”), posteriormente seguido pelo Código Civil grego de 1940/1946 (281.º), ao consagrar que “O exercício de um direito é proibido se ultrapassar manifestamente os limites impostos pela boa fé ou os bons costumes ou os objectivos sociais e económicos do direito”, o qual serviu, como se pode constatar, de forte inspiração ao nosso Código Civil de 1966 – a única diferença é que naquele “é proibido”, neste é “ilegítimo”.
Nesta funcionalidade de equivalências legislativas e numa visão comparada, podemos desde logo considerar que o legislador nacional optou por uma formulação objectiva do abuso de direito (comportamento manifestamente indevido), afastando-se de uma formulação subjectiva (intencionalidade), com base nos limites internos (exercício) dos direitos, assente na boa fé (a), nos bons costumes (b) ou então nas finalidades do direito em causa (c), os quais têm uma função limitadora ou moderadora no exercício de direitos.
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A ilegitimidade ou inadmissibilidade do exercício de direitos assentam essencialmente em razões de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, decorrente, no nosso ordenamento jurídico, da ideia republicana de uma sociedade justa (1.º Const.), do direito à igualdade, na sua dimensão substantiva, enquanto princípio e direito fundamental subjectivo (13.º C. Rep.), bem como da atribuição aos tribunais da função jurisdicional de administrar a justiça – e não a injustiça – em nome do povo, enquanto directiva constitucional (202.º n.º 1 C. Rep.). Tudo isto aponta para que os tribunais se esforcem no sentido de dar prevalência à justiça material e em concreto, em detrimento de uma aparência de justiça, que seria em abstracto e meramente formal. Assim e à partida, o que o disposto no mencionado artigo 334.º pretende, desde logo, transmitir é que, por razões de justiça substantiva, nenhum direito elencado no Código Civil tem um carácter absoluto, sendo antes relativo – tal sucede igualmente e de modo paradigmático no âmbito do direito de propriedade, porquanto o seu gozo pleno e exclusivo, na conhecida expressão de ius utendi, fruendi e abutendi, tem desde logo os seus limites na lei e nas demais restrições (1305.º, n.º 1, I parte C. C.). Deste modo, ao reconhecimento abstracto de um direito, deve corresponder a sua concretização lícita, gerando uma equivalência de equidade entre o direito e o seu dever, que na prática será entre o justo e o útil que cada uma dessas dimensões implica.
A propósito estará sempre em causa um direito subjectivo, pelo que não existindo este, não pode ocorrer nenhum exercício abusivo do mesmo (Ac. STJ de 14/02/1995, Cons. César Marques; 07/07/1977, 14/11/1991, Cons. Roger Lopes; Cons. Rodrigues Bastos; 11/01/2011, Cons. Sebastião Póvoas, acessíveis em www.dgsi.pt como todos os demais sem indicação de origem). Mas o que se entende por direito subjectivo? Na falta de uma definição legal e assumindo uma leitura analítica, dir-se-á, com base na nomenclatura do Código Civil, que estão em causa os direitos aí reconhecidos a uma pessoa, tanto legais, como contratuais (405.º C. C.), impondo um dever a terceiros, seja de prestação, abstenção ou qualquer outro, tendo uma natureza privada. Assim, direito subjectivo privado será todo aquele que, com fundamento na lei ou num contrato e no âmbito das relações intersubjectivas, confere uma posição pessoal de vantagem jurídica em relação a terceiros, com uma diversidade de funcionalidades relevantes para o seu titular. Porém, quando os direitos identificados no Código Civil sejam estritamente de natureza pessoal e correspondam a imediações substantivas dos direitos fundamentais nucleares (Direitos, liberdades e garantias pessoais), o seu conteúdo essencial não está sujeito a qualquer ilegitimidade de exercício, atenta a sua força jurídica (18.º, n.º 3 C. Rep.) – tanto mais, que não temos uma disciplina semelhante ao artigo 25.º, 3 da Constituição Grega, segundo o qual “O exercício abusivo de direitos não é permitido”.
Por sua vez, a exigência legal de que se “exceda manifestamente os limites impostos” a um direito subjectivo privado, significa que esse abuso seja evidente ou inequívoco (Ac. STJ 09/06/1994, Cons. Faria de Sousa), pelo que o mecanismo legal do abuso de direito é um instituto de carácter extraordinário, funcionando como uma “válvula de segurança”, que não visa extinguir direitos, antes impondo o seu exercício moderado (Ac. STJ 02/02/1989, Cons. Baltazar Coelho), sendo variáveis as suas consequências jurídicas (Ac. STJ 25/11/1999, Cons. Duarte Soares, CJ (S) III/124; 04/04/2006, Cons. Afonso Correia, CJ (S) II/33). Trata-se, por isso, de um instrumento de correção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como uma última ratio e para situações de flagrante abuso (Acs. STJ de 22/02/1983, Cons. Santos Silveira; 28/10/1997, Cons. Cardona Ferreira; 20/10/1998, Cons. Ferreira Ramos; 08/06/2017, Cons. Abrantes Geraldes, CJ (S) II/118 (p. 123) – a sua utilização frugal e corrente, redundaria num indesejável “abuso do abuso do direito”.
No entanto, atenta a referida formulação objectiva, não é necessário que o titular do direito exercido tenha a consciência desse excesso e do seu abuso (Ac. STJ 23/09/1998, Cons. Ferreira Ramos; 28/06/2007, Cons. Gil Roque), muito embora se possa aferir a intencionalidade da sua actuação (Ac. STJ de 02/07/1996, Cons. Fernando Fabião, BMJ 459/519). A possibilidade do seu conhecimento oficioso tem tido um maior fulgor na jurisprudência, sendo ultimamente perfilhada sem qualquer dessintonia, correspondendo a um posicionamento dominante, apesar de algumas contrariedades (favor: Acs. STJ 09/10/1979, Cons. Ferreira Costa, BMJ 290/352; 04/07/1980, Cons. Octávio Garcia; 15/11/1983, Cons. Corte Real; 16/01/1986, Cons. Serra Malgueiro BMJ 353/475; 22/10/1991, Cons. Vassanta Tamba; 23/09/1997, Cons. Pereira da Graça; 26/04/1999, Cons. Almeida Devesa BMJ 486/222; contra: 19/10/1978, Cons. Alves Pinto, BMJ 280/290; Ac. STJ 19/04/1980, Cons. Sá Gomes).
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Trata-se, porém, de uma cláusula abstracta, com uma ampla dimensão de generalidade e incerteza, com várias valências, através de conceitos indeterminados, um comportamental (boa fé), outro moral (bons costumes) e ainda um outro funcional (fins económicos ou sociais), que devemos precisar.
O Código Civil não apresenta uma noção legal de boa fé, a romanista bona fides, muita embora faça inúmeras referências à mesma. Umas vezes enuncia a boa fé como um padrão de conduta, revelando normas objectivas de comportamento, que tem expressão, por exemplo na culpa na formação dos contratos (227.º C. C.), na integração das declarações contratuais (239.º C. C.), pendência e verificação de condição (272.º, 275.º, n.º 2 C. C.), alteração superveniente das circunstâncias (437.º, n.º 1 C. C.) ou no cumprimento das obrigações (762.º, n.º 2 C. C.). Outras vezes, as suas normas revelam o estado mental de uma pessoa individualmente considerada, designadamente quando a esta não pretende ou desconhece, sem culpa, prejudicar outrem, como sucede geralmente nos caso de protecção de terceiros de boa fé (v. g. 179.º; 184.º, 2; 243.º, n.º 1, 2; 291.º, n.º 1 e 2 C. C.). Mas continuamos sem saber os ingredientes de uma e outra formulação, muito embora se possa encontrar algumas pistas interpretativas no projecto de quadro comum de referência no âmbito do Direito Privado Europeu, em que a boa fé encontra-se associada a uma negociação justa. Neste encontramos a seguinte definição: “um standard de conduta caracterizado pela honestidade, a franqueza e tomando em consideração os interesses da outra parte no negócio ou relacionamento em questão” (Principles, Definitions and Models Rules of European Private Law, Draft Commin Frame of Reference (DCFR), 2009, Livro I, 1:103 (1), p. 178, sendo nossa a tradução). Assim, a boa fé, na sua formulação objectiva, expressa regras de conduta, as quais se desdobram em lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação, sendo um princípio do tráfico jurídico, enquanto mandato de optimização, mormente na formação, realização e conclusão contratual. A boa fé, na sua formulação subjectiva, consiste num estado de acreditar ou numa convicção pessoal, em se ter agido com probidade, honestidade e integridade. Perante o exposto, não podem ocorrer dúvidas de que o requisito de boa fé no comportamento abusivo consagra a sua formulação objectiva, pois encontra-se erigido como princípio de tráfico jurídico, sendo um standard aberto de comportamentos de franqueza e de confiabilidade, impondo específicas regras de conduta (lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação).
Os bons costumes, com a sua origem romana na boni mores, têm uma consagração legal dispersa, pois para além do abuso de direito, encontram-se contemplados nas normas reguladoras das condições ilícitas dos negócios (271.º C.C.), nos requisitos e nos fins do negócio jurídico (280.º, 2; 281.º C. C.), nestes a par da ordem pública e da lei, no consentimento do lesado (340.º, n.º 2 C. C.), nos deveres do gestor (465.º, a) C. C.), nas condições ou encargos das doações (967.º C. C.), como fundamento de resolução do contrato de arrendamento (1083.º, n.º 2, al. a) C. C.), novamente conjuntamente com a lei e a ordem pública, na afectação da fração nas relações de condomínio, decorrente de propriedade horizontal (1422.º, n.º 2, al. b) C. C.) e no domínio do direito sucessório, mais precisamente em relação ao testamento (2186.º, 2230.º, n.º 2; 2245.º C. C.), associado mais uma vez à lei e à ordem pública. Isto significa, numa leitura estritamente analítica, que os bons costumes não se identificam com a lei, nem com a ordem pública – por lei entendemos os actos legislativos (112.º C. Rep.) e por ordem pública uma emanação do ius publicum, sendo os valores e os princípios fundamentais do ordenamento jurídico, logo referenciados na Constituição, tanto a nível interno, como a nível internacional, mas aqui mediante o seu reconhecimento doméstico (8.º C. Rep), desdobrando-se depois num plano infraconstitucional. Mas muito embora os bons costumes não sejam lei, os mesmos têm que ter uma validade jurídica, sob pena de insuflarmos o Direito com visões moralistas de comportamentos ou preferências (v. g. orientação sexuais ou religiosas, eugenismo, etc.) – a moral (substantivo) e o moralismo (adjectivo) são conceitos bastantes distintos. E essa validade decorre essencialmente da Constituição, a nível interno, e da plataforma dos direitos humanos, a nível internacional, sob pena de ambas se reduzirem a uma “mera folha de papel”, correspondendo antes a um projecto normativo e social de vida em sociedade. Por outro lado, convém não esquecer, as normas jurídicas, não enunciam apenas regras (mandatos definitivos), mas também princípios (mandatos de optimização) e valores (bens finais de orientação axiológica), sendo estes últimos referências de validade e desafios de correcção para um “direito justo”. Nesta conformidade, o projecto constitucional de uma sociedade livre e plural (1.º, 2.º C. Rep.), em que cada pessoa tem direito ao desenvolvimento da sua personalidade (26.º, C. Rep.), afasta-nos, desde logo, de uma concepção dos bons costumes como sendo um reflexo ou emanação de uma posição dominante, contra-minoritária ou contrária à diversidade.
A jurisprudência do STJ não tem tido um posicionamento uniforme, começando por sustentar uma perspectiva dos bons costumes dominantes, sejam as “concepções ético-jurídicas dominantes” (Acs. 15/03/1994, Cons. Roger Lopes; 28/11/1995, Cons. Fernandes Magalhães), seja a “moral social dominante” (Ac. 27/01/2004, Cons. Nuno Cameira). No entanto, tem vindo a consolidar-se uma perspectiva de bons costumes multivalorativa, considerando que estes são as regras de conduta ou convivência comummente aceites, em determinado tempo e lugar, reflectindo o conjunto de preceitos éticos e morais, que norteiam as pessoas honestas e correctas (Acs. 12/11/1996, Cons. Fernando Fabião; 10/03/1999, Cons. Diniz Nunes; 01/02/2000, Cons. Aragão Seia; 17/05/2017, Cons. Nunes Ribeiro).
Deste modo e partindo deste ultimo posicionamento, bem como das considerações anteriores, podemos considerar que os bons costumes contemporâneos são aqueles valores ou princípios, com carácter moral e validade jurídica, reconhecidos ou assumidos pela comunidade, estabelecendo um mínimo de exigências éticas de conduta ou convivência, no âmbito de uma sociedade decente, respeitando a laicidade, a pluralidade, a diversidade e a multiculturalidade.
Por último, resta o fim social ou económico do direito subjectivo em causa, o que nos remete para a sua funcionalidade ou utilidade. A propósito, partimos do pressuposto que as normas de Direito Civil, as quais estão dirigidas para as relações intersubjectivas, para além de enunciarem valores, enquanto bens finais de orientação axiológica, que actualmente estão constitucionalmente insuflados, consagram também mandatos de convivência, estabelecendo princípios (mandatos de optimização) e regras (mandatos definitivos). Por outro lado, o instituto do abuso de direito – o qual está sistematicamente inserido na sua parte geral, com um nítido efeito irradiador para toda as outras partes específicas –, mormente quando manda atender à finalidade do fim económico e social do respetivo direito subjectivo, o que nos transmite é que o “espírito do povo” expresso na lei, optou por uma compreensão comunitária e não individualista dos direitos civis. Isto significa, que o exercício de um direito subjectivo privado para além de ter uma sustentabilidade individual – e não individualista –, tem essencialmente uma coordenada vincadamente comunitária, acautelando os já enunciados propósitos de equidade. Assim, só tem sentido o exercício de um direito subjectivo privado se o mesmo, no âmbito das relações intersubjectivas, representar uma vantagem económica ou social individual, assegurando, ao mesmo tempo, a equidade da convivência comunitária. E essa razão de ser vai para além do reconhecimento formal e abstracto desse direito subjectivo privado, devendo traduzir a nível substantivo e em concreto um proveito económico ou social, bem como a equidade no âmbito das relações privadas.
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O abuso de direito, nas suas diversas vertentes, não deixa de ser uma inaceitável conduta ético-jurídica, que numa perspectiva empírica e para uma orientação da sua aplicação, tem sido enquadrado numa “lista de situações”, umas ligadas à probidade (a), outras à confiança (b), podendo ser acrescentado uma outra para justeza dos procedimentos (c). Em relação à tutela da probidade encontramos (a): (i) a exceptio dolo generalis, enquanto actuação intencional contra a boa fé, de modo a obter-se vantagens para uma parte, mas à custa de uma situação desvantajosa para a outra parte; (ii) a aemulatio, correspondendo ao exercício de um direito com a finalidade exclusiva de prejudicar, conduzindo à proibição da chicana jurídica (Ac. STJ 28/02/2008, Cons. Salvador da Costa, www.colectaneajurisprudencia.com); (iii) tu quoque, será a aquisição de um direito mediante um acto contra legem, exercendo-o posteriormente, sendo essencialmente uma actuação contra a boa fé (Ac STJ, 31/03/1981, BMJ 305/323, Cons. Corte Real; 21/01/1993, Cons. Sá Couto, BMJ 423/422; 12/11/1998, Cons. Duarte Soares, CJ (S) III/110; 10/01/2008, Cons. João Bernardo, CJ (S) I/36; 08/02/2011, Cons. Fonseca Ramos, CJ (S) I; 24/02/2015, Cons. Pinto Almeida, CJ (S) I/120,); (iv) dolo agit qui petit quod statim redditurus est, ocorre nas situações em que se age com dolo para exigir aquilo que logo depois deve restituir-se. No que concerne à tutela da confiança destacamos (b): (v) venire contra factum proprium, mediante comportamentos contraditórios da mesma pessoa, muito embora sejam ambos lícitos (Acs. STJ 05/03/1996, Cons. Fernando Magalhães; 25/05/1999, Cons. Fernandes Magalhães; 12/11/2013, Cons. Nuno Cameira); (vi) suppressio (supressão) correspondendo a um estado de facto duradouro em não exercer certo direito, por parte do seu titular, como que suprimindo-o, confiando os demais que tal se mantenha ao longo dos tempos, viabilizando uma situação de surrectio (surgimento) de um novo direito (Acs. STJ 08/06/1999, Cons. Lemos Triunfante; 07/02/2008, Cons. Santos Bernardino, CJ (S) I/77; 12/06/2012, Cons. António Piçarra; 12/11/2013, Cons. Nuno Cameira, este acessível em www.colectaneajurisprudencia.com). Aqui pode ser igualmente enquadrada a inadmissibilidade de invocar vícios formais em negócios formais, quando, posteriormente a essa ocorrência, cria-se, de modo persistente, um estado de confiança na aceitação dessa situação e na intocabilidade dessa invalidade (Acs. STJ 28/09/1995, CJ (S) III/31; 12/12/1996, Cons. Pereira da Graça; 24/02/1999, Cons. Ribeiro Coelho; 19/03/2009, Cons. Casanova Abrantes, CJ (S) I/149, 24/01/2012, Cons. Silva Jesus; 11/12/2014, Cons. João Bernardo, estes últimos acessíveis em www.colectaneajurisprudência.com). Por último, para a tutela de um processo justo (c), na sua valência negativa de proibir o uso perverso do processo, encontramos a (vii) inciviliter agere, ou seja, a acção judicial claramente iníqua e desconsiderada, ainda que este propósito seja apenas unilateral, pois quando for bilateral, haverá o mecanismo específico do uso anormal do processo (612.º NCPC).
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O abuso de direito é um mecanismo para corrigir o exercício distorcido de um direito, que formalmente e em abstracto aparece sustentado (limites externos), mas que substantivamente e em concreto vai para além da sua normatividade (limites internos). No entanto, a sua consagração legislativa através de uma cláusula geral, integrada por três conceitos indeterminados, pode trazer algumas perplexidades quanto à sua aplicação ou não, podendo gerar uma “norma vazia”, sem qualquer utilidade prática, ou uma “norma despótica”, caindo na arbitrariedade. Daí o recurso à referida “lista de situações”, tentando através da mesma precisar o seu âmbito, sendo, no entanto, uma leitura casuística, não representando uma construção sustentada, muito embora tenha a sua utilidade referenciadora.
Para o efeito, de modo a orientar a praticabilidade do abuso de direito, sabendo tratar-se de uma “norma residual” e não de uma “norma regra”, consideramos que a sua “construção jurídica” para as situações onde se “exceda manifestamente os limites impostos”, passa por um teste de proporcionalidade, conferindo alguma sustentabilidade à sua concretização. Relembramos que a proporcionalidade tem reconhecimento constitucional na limitação dos direitos fundamentais (18.º, n.º C. Rep.), podendo a mesma ser estendida, por maioria de razão e para preservar a unidade e harmonia do sistema jurídico (9.º C. C.), aos direitos subjectivos privados. Aliás, esse teste de proporcionalidade é igualmente sugerido pelo Código Civil, sendo exemplos normativos a exclusão da reconstituição natural, quando esta for “excessivamente onerosa para o devedor” (566.º, n.º 1, parte final), a exclusão da resolução por impossibilidade parcial contratual, quando a mesma “tiver escassa importância” (802.º, n.º 2), assim como na regulamentação da obrigação de prestação de facto negativo, afastando a eventual demolição a cargo do devedor, quando a mesma “for consideravelmente superior ao prejuízo sofrido pelo credor (829.º, n.º 2). A jurisprudência do STJ, ainda que de um modo isolado, já chegou explicitamente a reconhecer a necessidade de se aferir essa (des)proporcionalidade, através de critérios objectivos, conducentes à verificação da intolerabilidade e da existência de excessos inaceitáveis (Acs. STJ 14/04/1999, Cons. Peixe Pelica; 04/02/2010, Cons. Oliveira Rocha, CJ (S), I/51, neste caso indirectamente). Aliás e noutros ordenamentos jurídicos, é usual o recurso a esse teste de proporcionalidade no abuso de direito, como sucede de modo exemplar com a jurisprudência belga (Cass. 30/03/2007, RG 98/2438/A (F-20070330-3); 09/03/2009, RG C.08.03331.F (F-20090309-9); Cass. 08/02/2010, RG C.09.0416.F (F – 20100208-4); Cass. 14/10/2010, RG C.09.608.F (F-20101014-4); Cass. 06/01/2011, RG C.09.0624.F (F-20110106-4); Cass. 17/01/2011, RG C.10.046.F (F-20110117-2); Cass. 17/02/2012 RG C.10.0651.F (F-20120217-3), acessíveis em http://jure.juridat.just.fgov.be/ ).
Por sua vez e conferindo uma maior sustentabilidade e densidade a este teste de proporcionalidade, podemos ainda estabelecer alguns subcritérios, como seja a necessidade (i), a adequação (ii), a justa medida (iii) e o interesse legítimo (iv) em limitar ou moderar o exercício abusivo de um direito, aferindo, em concreto, as vantagens desse direito, com a corresponde carga desvantajosa de um dever. Esta mensurabilidade deve atender a todo o circunstancialismo que está em causa e não cindir os seus acontecimentos.
Deste modo, será censurável o exercício de um direito, que contrariando um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), revele, em concreto e atendendo à globalidade das circunstâncias, ser injustificadamente desproporcional o benefício decorrente desse direito em relação à desvantagem causada pelo correspondente dever para a contraparte, não surgindo aquele ou este como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar interesses legítimos.
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Assim, devemos atender a todo o circunstancialismo que rodeia a controvérsia aqui em causa, para se perceber e assentar se existe ou não abuso de direito com o exercício, por parte dos AA, do seu direito de sub-rogação (592.º, n.º 1; 593.º, n.º 1 C. C.), relativamente ao débito que o R. D1... tinha em relação ao E... e que aqueles liquidaram no valor de € 33.751,22.
Tudo começou em novembro de 2004, quando os AA., a pedido do R. D1..., em virtude deste estar com dificuldades financeiras (não pagava os salários de 3 meses aos jogadores de futebol), emprestaram ao segundo a quantia de € 28.000,00, tendo este último assumido o compromisso de pagar tal montante aos primeiros, logo que a Câmara Municipal atribuísse o subsídio de apoio ao associativismo (a – d). Para o efeito, os AA. contraíram previamente junto do G... um empréstimo bancário, tendo este transferido em 30/11/2004 para a conta bancária dos primeiros o mencionado montante, que depois seguiu para o R. D1... (a – f factos provados). O R. D1... recebeu o mencionado subsídio, mas não pagou aquela quantia aos AA. (g).
Na acta da direcção do R. D1... de 12/06/2006 e depois de se elencarem diversos credores e as quantias aos mesmos devidas, entre os quais o referido crédito dos AA. no montante de € 28.000, menciona-se que: “Mais foi salientado da necessidade de liquidação destes débitos, pelo que se apela aos futuros dirigentes eleitos na próxima Assembleia – Geral, que procedam de forma faseada e sempre que existir disponibilidade financeira no D1... à sua liquidação. Mais nada havendo a tratar foi aprovada por unanimidade a presente acta que vai ser assinada por todos os membros da direcção presentes e que foram os seguintes”, tendo o A. marido assinado essa acta na qualidade de Vice-Presidente (h, i factos provados).
O A. marido assumiu a Presidência do R. D1... no ano de 2006 e deixou-a em 2008 (j, p factos provados). Nas actas da direcção do R. D1... de 22/09/2007 consta na Ordem de Trabalhos, no seu ponto 8, a abertura da referida conta bancária no E... no valor de € 32.000,00, para transferência do empréstimo do G... (leia-se dos AA.), ficando expresso que tal proposta “foi aceite ou aprovada pelos diretores presentes”, enquanto na acta de 20/10/2007 consta como ponto único a nomeação do seu Presidente e presidente Adjunto como legítimos representantes do D1... junto do E... para os efeitos anteriormente mencionados, tendo o A. marido, enquanto Presidente do D1..., participado nessas reuniões e assinado tais actas (k, l factos provados).
Esse contrato bancário de abertura de crédito entre o R. D1... e o E... foi celebrado em 13/11/2007, sob a forma de conta corrente, para apoio à tesouraria do R. D1..., até ao limite máximo de € 32.000,00, que os AA. asseguraram, através do penhor de uma conta bancária sua no valor de € 35.000,00 (m – n factos provados). Com a quantia proveniente desta conta bancária, o R. D1... pagou aos AA. o capital que lhes era devido na sequência daquele empréstimo de € 28.000,00 (o factos provados). Em virtude do R. D1... não ter restituído o capital que lhes foi creditado na referida conta bancária a descoberto, o qual foi utilizado por este último para pagar um anterior empréstimo de € 28.000,00 que lhes tinha sido concedido pelos AA., o E... exigiu a estes últimos em 20/05/2011, ao abrigo do tal penhor, o pagamento da quantia de € 33.751,22, o que foi efectuado pelos AA. em 09/06/2011 (o, q, r, s factos provados).
Nos estatutos do R. D1..., aprovado na Assembleia Geral (A. G.) de 02/06/2006, consta a dado momento no seu artigo 49.º que cabe a essa A. G. “Autorizar a Direcção a realizar empréstimos e outras operações de crédito” (t, u factos provados).
A sentença recorrida foi pelo caminho do abuso do direito, argumentando basicamente o seguinte – partimos agora essencialmente das suas próprias considerações e não das suas citações:
i) “De acordo com a factualidade ora exposta, a verificação do abuso do direito exercido pelos Autores em sede sub-rogação legal relativa ao contrato de abertura de crédito radica na circunstância deste contrato de abertura de crédito ter sido celebrado com o objetivo de obtenção de dinheiro para o Réu restituir a quantia de € 28.000,00 aos Autores, quando o Autor tinha concordado que esta quantia seria paga conjuntamente com as demais dívidas do Réu de forma faseada e desde que o Réu tivesse disponibilidade para o efeito. Assim, contrariando o que o Autor tinha assumido perante o Réu, aquele decide endividar o Réu perante a Banca para pagar o montante de € 28.000,00 aos Autores.”
ii) “Conclui-se, por conseguinte, que o Autor não só, na qualidade de presidente do Réu, diligenciou pelo pagamento da quantia que tinha emprestado ao D1... num prazo em que o mesmo não era exigível, pois o D1... não tinha dinheiro para restituir (pois teve de recorrer a um empréstimo bancário), como também apenas satisfez o seu crédito sem sequer repartir pelos restantes credores, isto é, utilizar o dinheiro disponibilizado ao Réu em cumprimento do contrato de abertura de crédito para pagamento rateado dos credores que estavam em igualdade de circunstâncias, à exceção do Autor assumir a presidência do Réu já não os restantes credores”
iii) “Do elenco dos factos julgados como provados resulta manifesto que após o Autor na qualidade de dirigente do Réu, por si e em representação da Autora, ter deliberado que o crédito que tinha perante o Réu no montante de € 28.000,00 seria pago pelo Réu faseadamente e quando o D1... tivesse disponibilidade financeira para o fazer, ter agido de forma contrária um ano depois na qualidade de dirigente do D1... mas agora como presidente, no sentido de se pagar de tal crédito através do endividamento do D1... pela celebração de uma conta de abertura de crédito, fazendo-se pagar na totalidade e sem qualquer preocupação com os restantes credores colocados em igual posição, vir exercer o direito proveniente da sub-rogação legal de um contrato que endividou o D1... só para se fazer pagar a si próprio excede manifestamente os limites da boa-fé”
iv) “É precisamente o que se passa nestes autos de acordo com os factos julgados como provados, pois o Autor por si e em representação da Autora criou na convicção do Réu que este apenas teria de restituir a quantia de € 28.000,00 no momento em que tivesse disponibilidade financeira para o efeito e de forma faseada, tal como os restantes credores; logo, em virtude do Autor enquanto presidente do Réu ter celebrado um contrato que endivida o Réu para se fazer pagar a si em detrimento dos outros credores e, agora, pretende exercer o direito que lhe advém da sub-rogação legal, considera o Tribunal ao abrigo do citado artigo 334.º, do Código Civil que o exercício do direito é ilegítimo e, como tal, não admite o seu exercício”.
Pesem embora as saudáveis preocupações de equidade manifestadas pela sentença recorrida, afigura-se-nos que não está aqui em causa qualquer situação de boa fé, nem se pode considerar a actuação do A. marido como sendo integradora do venire contra factum proprium (comportamento contraditório). Também não tem aqui qualquer cabimento a citação doutrinária que a mesma faz (Hörster, Heinrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, (localidade?), Almedina (ano da edição?), pp. 285/286), sobre os comportamentos positivos decorrentes do não exercício dos vícios de nulidade contratuais e da sua aceitação ao longo do tempo, em virtude de não estar em causa qualquer destas invalidades com a referida conta bancária a descoberto e a sua garantia através do mencionado penhor.
Como já tivemos oportunidade de referir a boa fé assumida pelo artigo 334.º do Código Civil, corresponde à sua formulação objectiva, expressando regras de conduta das partes, que num contrato são os seus outorgantes, as quais se desdobram em lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação. Ora, no decurso das negociações em que foi celebrado o mútuo no montante de € 28.000 entre os AA. e o R. D1..., ocorridas em novembro de 2004, o segundo comprometeu-se com os primeiros a restituir esse montante, quando a Câmara Municipal lhes atribuísse um tal “subsídio de apoio ao associativismo”, mas tendo-o recebido nada pagaram aos AA. (c, g factos provados). Nesta conformidade e descurando agora se tal mútuo respeitou ou não o formalismo legal – nos factos provados nada se diz se o mesmo teve apenas registo oral ou seguiu qualquer registo escrito, seja particular, seja público –, quem não observou os padrões da boa fé, foi o R. D1... e não os AA.. Ora a sentença recorrida, na sua argumentação, não pondera minimamente esta realidade nem tira consequências juridicamente avaliativas da mesma.
No entanto, já considera que existe um comportamento contraditório em virtude do A. marido ter subscrito a acta de 12/06/2006 da Direcção do R. D1..., que está assinada por si na qualidade de Vice-Presidente, onde se elencaram as dívidas do D1... e depois se faz um apelo à futura Direcção para que procedam a um pagamento das mesmas “de forma faseada e sempre que existir disponibilidade financeira no D1...” (h, i factos provados). Convém precisar que a intervenção do A. marido e a subscrição deste apelo, foi na qualidade de membro da Direcção do R. D1..., não correspondendo a qualquer declaração negocial sua a título individual, com a noção e a eficácia que lhe dá o Código Civil (217.º, n.º 1; 224.º, 1), e enquanto outorgante do mútuo celebrado em novembro de 2004. E muito menos podemos encontrar nesse “apelo directivo”, a reformulação negocial e unilateral do anterior sentido negocial, passando a diferir condicional e temporalmente a restituição da quantia que lhe era devida. Será a partir deste duplo equívoco, tanto de identidade (A. marido = Vice-Presidente), como de vontade negocial superveniente (apelo de um órgão social = declaração negocial individual), que se constrói toda a narrativa da sentença recorrida no sentido da existência de venire contra factum proprium e de não considerar como legítimos comportamentos contraditórios, quando essa incompatibilidade simplesmente não existe.
Por outro lado, não decorre da factualidade provada que no momento da abertura da conta bancária a descoberto em 13/11/2007, sob a forma de conta corrente, para apoio à tesouraria do R. D1..., fosse em detrimento de outras dívidas deste último – que foi em benefício do pagamento do que era devido aos AA. nãos restam dúvidas, pois está provado (k factos provados). E isto porque a única vez que nos factos provados são mencionados e discriminados débitos do R. D1... a outros credores, foi na acta da Direcção do R. D1... de 12/06/2006 (h factos provados) e entre esta acta e abertura daquela conta bancária vão 17 meses (e 1 dia). Assim, concluir, como a sentença recorrida o fez, que o “Autor enquanto presidente do Réu ter celebrado um contrato que endivida o Réu para se fazer pagar a si em detrimento dos outros credores” é uma pura conjectura, não tendo qualquer factualidade que a suporte – factos são acontecimentos ou circunstâncias da realidade, a conjectura são suposições ou ideações cujo fundamento não está verificado.
Mais isto significa que a conduta do A. marido foi idónea e isenta de qualquer censura ético-jurídica, quando integra um órgão directivo e participa numa deliberação que lhe diz pessoalmente respeito? Representando ainda o R. D1... na abertura de uma conta bancária, que tem em vista saldar a dívida que esse mesmo D1... tem para consigo e a sua mulher? Obviamente que não, pois o mínimo de exigências éticas de conduta de uma sociedade decente, impõe que não se confundam os interesses individuais com os interesses de uma pessoa colectiva – quase que nos aproximamos do instituto do negócio consigo mesmo, da previsão do artigo 261.º C.C., mas que aqui não chega imediatamente a ocorrer. Aliás, essa confusão, permissividade e intersecção plena de duas pessoas juridicamente distintas (individual e colectiva), está na base da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades, sendo no abuso do direito (334.º C. C.) que a mesma tem o seu mais forte ancoradouro normativo. Ora os “padrões de honestidade e correcção”, para usar uma terminologia corrente na jurisprudência anteriormente mencionada, aconselhavam que o A. marido não participasse nas deliberações do R. D1... e muito menos representasse o mesmo, nas situações económicas que lhe dissessem pessoalmente respeito – como se costuma dizer, “não basta sê-lo é preciso parecê-lo”. Nesta conformidade, consideramos que o A. marido ao actuar como o fez nos diversos momentos que imediatamente antecederam e conduziram à celebração em 13/11/2007 do contrato bancário de abertura de crédito entre o R. D1... e o E..., para pagar um seu anterior empréstimo, quebrou as imposições de honestidade e correcção na vida negocial exigidas pelos bons costumes.
Mas será, que tais participações do A. marido na formação da vontade, deliberação e representação do R. D1..., conduzem a uma situação de abuso de direito? Como já referimos anteriormente, o abuso de direito tem carácter extraordinário, sendo uma autêntica “válvula de segurança”, que não extingue os direitos subjectivos privados, antes impondo o seu exercício moderado, tratando-se de um mecanismo jurídico de correção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como a última medida para situações de flagrante abuso, preservando-se, na medida do possível, a justiça material ou substantiva. Para isso, consideramos, como já anteriormente sustentámos, que devemos submeter este indício de exercício abusivo do direito de sub-rogação a um teste de proporcionalidade.
Antes de aferirmos essa medida de equilíbrio, devemos relembrar que os AA. só estão a exercer esse direito de sub-rogação, em virtude de terem assegurado o capital que ficou a descoberto naquela conta bancária, mediante um penhor sobre uma quantia monetária existente numa sua conta bancária. Isto não pode deixar de ser juridicamente valorizado e, fazendo-o, concluir que aquele indício de conduta abusiva fica mais moderado, atenuando os excessos reprováveis da conduta do A. marido em ter participado nas deliberações e representado o R. D1... relativamente a assuntos do seu interesse pessoal. Mais será de mencionar, que seguindo o alinhamento argumentativo da sentença recorrida – a conduta do A. marido foi de aceitação de um pagamento faseado (i), para quando o R. D1... tivesse disponibilidade económica (ii) –, a sua decisão deveria ser nesse sentido, fazendo uma aplicação moderada do direito de sub-rogação legal, com base no abuso de direito, e não suprimir esse direito, pois este instituto não é uma causa de extinção de direitos.
Passemos agora a mensurar entre o direito de sub-rogação exercido pelos AA. e o dever do R. D1... pagar àqueles o montante em causa, por um lado, e obstar àquele exercício e conter esse dever, por outro lado. Nessa avaliação, afigura-se-nos que é manifestamente desequilibrado, por não ser proporcional, em virtude de não se revelar necessário, adequado, na justa medida, não existindo qualquer interesse legítimo para assegurar, que os AA. não vejam satisfeitos o direito de sub-rogação do crédito que pagaram, que teria como contrapartida o R. D1... não ter o dever de pagar o montante do capital que lhes incumbia anteriormente pagar ao E.... Em suma, afastar o direito de sub-rogação dos AA. em ver reposto o montante por si pago ao E..., que deveria ter sido reembolsado pelo R. D1..., levaria a que este último tivesse um enriquecimento e uma disponibilidade de capital, sem ter o mínimo de direito a tal quantia. Nesta conformidade, a sentença recorrida não tem qualquer sustentação legal, devendo ser revogada.
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Atento o preceituado no artigo 592.º, n.º 1 do Código Civil “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito”, cujos efeitos estão assinalados no artigo 593.º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, “O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam”, que neste caso corresponde à quantia de €33.761,97.
Por sua vez, de acordo com o artigo 804.º, n.º 1 do Código Civil “A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor”, estando o momento da sua constituição regulado no subsequente artigo 805.º n.º 1, onde se menciona que “O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”, o que ocorreu quando o R. D1... foi citado para esta acção. A indemnização por mora está pré-constituída, sendo devida a partir do dia de constituição em mora, correspondendo, por falta de contratualização, aos juros legais, sendo nas obrigações civis à taxa de 4 %, (559.º, n.º 1; 806.º, n.º 1 e 2 C. C.; Portaria n.º 291/03, de 18/abr.).
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Na procedência do recurso, as custas do mesmo, assim como na 1.ª instância, devem, na sua totalidade, ficar a cargo do R. D1... – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento ao recurso interposto pelos autores B... e mulher C... e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se o réu D... a pagar aos autores a quantia de €33.761,97 (trinta e três mil euros, setecentos sessenta e um euros, noventa e sete cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal de 4 %, calculados a partir da citação e até integral pagamento

Custas, em ambas as instâncias, a cargo do réu.

Notifique

Porto, 27 de junho de 2018
Joaquim Correia Gomes
José Manuel de Araújo Barros
Filipe Caroço